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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.11 n.1 São Paulo jun. 2009

 

RESENHAS

 

A Morte e a Origem. Em torno de Freud e de Heidegger

Death and the source. Around Freud and Heidegger

 

 

Dominique Mortiaux

 

Irene Borges–Duarte (coord.). Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2008, 322 pág.

Será realmente possível um diálogo entre os pensamentos de Freud e de Heidegger? O primeiro funda a sua psicologia na biologia e concebe o ser humano como movido por pulsões, ou seja, representantes mentais de impulsos de origem somática. Se Heidegger nega toda originariedade ao somático e pensa o homem a partir da sua relação ao ser, cujo esquecimento permite precisamente a operatividade das ciências ônticas, onde se poderia ainda encontrar um terreno comum a partir do qual desenvolver um tal diálogo? Se, além disso, o tema escolhido neste objectivo fosse “a morte e a origem”, não seriam múltiplos os riscos de malentendidos? Apontaria neste sentido o facto de L. Binswanger, repensando os fundamentos da psicanálise a partir da fenomenologia de cunho husserliano e heideggeriano, se ter afastado cada vez mais das teorias de Freud. Seria, então, vão o esforço que deu lugar ao colóquio na Universidade de évora em Novembro de 2006, cujas actas, coordenadas por Irene Borges–Duarte, foram publicadas no verão do ano passado com o título A Morte e a Origem. Em torno de Freud e de Heidegge(2008. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa). A boa notícia é que a leitura deste volume nos mostra que o confronto entre os dois pensadores é não só possível como importante e plenamente actual.

O colóquio juntou oradores, vindos tanto da psicanálise e da medicina como da filosofia, cujos interesses abriram o debate a autores como Lacan e Winnicott, mas também Lévinas, Ricoeur, Blumenberg, Wittgenstein, Merleau–Ponty ou Kant. é à presença deste último no pensamento heideggeriano que Franco Volpi tinha dedicado a sua intervenção ‘Comienzo a amar realmente a Kant’. Heidegger descubre Königsberg.” (Borges–Duarte, 2008, pp. 179–188). Seguiremos alguns dos intervenientes através das deambulações que compõem o livro, a partir de cinco temas (a correspondência entre a morte e a origem, a polissemia da origem, o caminho pela linguagem, pensar como relação e os mortais), abertos por citações do autor de Ser e Tempo. Nascido de uma iniciativa do grupo de investigação e tradução “Heidegger em português” – dirigido por Irene Borges–Duarte –, que dedicava nessa altura os seus trabalhos ao pensamento heideggeriano dos anos 30, o colóquio, que não contou com nenhuma comunicação sobre a Daseinsanalyse, foi também a ocasião de comemorar o 30° aniversario do falecimento do mestre de Friburgo, e do 150° do nascimento do autor da Interpretação dos Sonhos. Não se escapa à morte nem à origem…

Coube a Marco Casanova estabelecer a relação entre Heidegger e Freud a partir da teoria das pulsões deste último, tomando como ponto de partida a este efeito a pulsão de morte (Da pulsão da morte à finitude dos mortais. In Borges–Duarte, Irene, 2008). O vivente, conhecendo o estado inanimado antes de aparecer como vivente, aspira a retornar – tal é a meta da vida – ao inorgânico. Visto que para qualquer organismo este regresso acontece por razões internas, esta pulsão está descrita como pulsão de auto–conservação. Impelido por ela, o psiquismo fará tudo para impedir que a morte aconteça por outra via que endógena. “Morte” aqui não significa, portanto, o fim da vida, mas antes uma certa economia da própria vida. Ora, esta pulsão exprime–se, em primeiro lugar, não na pulsão de destruição mas na absorção do ser humano no mundo ambiente das suas ocupações quotidianas. é esta absorção que Heidegger descreve em Ser e Tempo como modo de ser quotidiano e inautêntico do homem (designado como ser–aí), ponto a partir do qual a comparação com o pensamento freudiano é, portanto, possível.

Na sua quotidianidade, o ser–aí humano está familiarizado no seu mundo ambiente, que compreende a partir de interpretações previamente dadas, estabelecidas e sedimentadas através da compreensão do ser–explicitado público, ou seja, impessoal. De início e na maioria das vezes, o ser–aí não é ele próprio, é os outros no modo impessoal: perdeu–se ou nunca se encontrou. Na fuga ante ele próprio, identifica–se com o seu mundo, concebendo–se no modo dos entes por si subsistentes, tal como os encontra nos seus afazeres quotidianos. Esta identificação é a condição de possibilidade da sua interpretação de si como “eu”, na qual fecha o seu ser–no–mundo. A modificação deste modo de ser é, no entanto, possível a partir da abertura à própria morte como antecipação desta, abertura sempre angustiante, na qual o ser–aí se singulariza ou seja assume na resolução a sua ek–sistência como poder–ser próprio, desligado da tirania tranquilizante do “Se” impessoal. Descobre então o “não estar em casa” como o seu modo originário de ser. é esta abertura, nunca definitiva, ao Si–mesmo que pode ser metaforicamente designado como “saída da caverna” ou “do útero materno”. Enquanto tenta existir da forma mais desprovida possível de mundo – aproximando–se ao máximo de um estado inorgânico –, ao abrigo da familiaridade própria à quotidianidade, ao abrir o seu ser–no–mundo, o indivíduo estaria então movido pelo que Freud chama “pulsão sexual”, ou seja a pulsão que “sempre aspira a e impõe uma vez mais a renovação da vida”. Se esta comparação pode ser estabelecida entre os dois pensamentos, a noção de pulsão aparece, no entanto, inapta para pensar a “renovação da vida”, tal como a entende Heidegger, na sua superação da determinação subjectivista do pensamento.

A abertura do ser–no–mundo do homem enquanto ser–aí – a partir da assunção da sua finitude –, é pois pensada pelo “segundo Heidegger” como abertura do ser em si: o ser–aí é o aí do ser (interpretado, então, como Ereignis: acontecimento apropriado). Nesta abertura, abre–se o mundo como desvelamento originário do ente através do qual o ser “se essencia”. “Essenciar–se” é um neologismo que traduz o verbo alemão wesen, tal como o pensa Heidegger; terceira raiz do verbo sein, que significa “habitar”, “morar”, “permanecer”, o seu valor de aspecto é o da duração, da estadia, da habitação (wesen é estritamente aparentado a währen: durar). Enquanto o ser “se essência”, o ente “é”. O substantivo Wesen, a “essência” deve ser compreendido a partir do verbo wesen, e não na sua acepção tradicional próprio à metafísica como género intemporal; expressa, portanto, a dimensão da habitação e da estadia e o movimento de desdobramento que se dispensa a partir do ser pensado como Ereignis. Neste constituir–se mundo do mundo, o campo de manifestação do ente na sua totalidade está renovado, o que acontece de maneira privilegiada na obra de arte (na língua como Poema) (Moura, V. Inversões, ou a obra de arte como origem. In Borges–Duarte, Irene. 2008). Se o ser como Ereignis é enquanto tal o Livre, através desta última pode desvelar–se o ente na plenitude da sua presença e no seu esplendor até então encoberto. Velada e retraída no seu mistério permanece todavia a origem, no seu descerrar do ente. A morte aparece, portanto, não como o fim do possível, mas como o que une numa aliança o ser humano à origem, recolhendo esta e abrigando–a “no dizer que recolhe o mundo como poema” (Heidegger, M. Der Tod ist das Gebring des Seyns im Gedicht der Welt. In P. Jaeger (Ed.), Die Gefaht. GA 79. Frankfurt a. M.: Klostermann, 1994, p. 56). O simbólico não pode ser, portanto, concebido aqui, como o faz Blumenberg comentado no volume por Olivier Feron 2008 (Borges–Duarte, 2008, pp. 153–154), como compensação da sempre traumática saída da caverna, mas antes como acesso na liberdade à plenitude do real. Heidegger dirá neste sentido que “a renúncia não tira. A renúncia dá o vigor inesgotável do Simples” próprio ao originário (Der Verzicht nimmt nicht.Der Verzicht gibt. Er gibt die unerschöpfliche Kraft des Einfachen. In H. Heidegger (Ed.), Der Feldweg. GA13. Frankfurt a. M.: Klostermann, 1983). (O acesso, em termos heideggerianos, à “Terra natal” está, portanto, condicionado pelo encontro com o Unheimlich, pensado aqui como não familiar). Desta origem, Freud não fala, fechando–se finalmente numa concepção do ser humano (baseada na teoria do complexo de édipo) demasiado rígida, que lhe será criticada (nomeadamente por G.Deleuze no seu Anti–édipo, mas também por exemplo por Merleau–Ponty, como o refere Irene Pinto Pardelha (A passividade da origem. Merleau–Ponty leitor de Freud. In Borges–Duarte, Irene. 2008, pp. 134–152).

A razão de ser da psicanálise não deixa todavia de residir na possibilidade, para quem a solicita, de reencontrar, caso acontecimentos dolorosos o tenham tornado demasiado difícil, o caminho de saída da caverna. Para escapar aos circuitos repetitivos e fechados de uma existência dominada pela pulsão de morte, o paciente estará em condição de poder reinterpretar a sua historia e, assim, de se reencontrar, de maneira diferente. Este trabalho, que necessariamente fere o orgulho, permite desatar os nós na compreensão e desfazer ilusões de verdade, tarefa que Wittgenstein, por sua vez, atribuía à terapia linguística, tal como o mostra Ana Falcato (Linguagem como terapia “arrancar” a origem ao silêncio. Wittgenstein, Freud, Heidegger. In Borges–Duarte, 2008, pp. 177–188). Embora este aspecto tenha sido desenvolvido com mais amplitude pelos sucessores de Freud, a psicanálise, e a freudiana para começar, mostra como nos criamos, desde o nascimento, através de relações, e como estas, portanto, influenciam o curso das nossas vidas. Fundamenta, neste sentido, a possibilidade da cura numa relação, a estabelecida entre o paciente e o psicanalista. Surge, então, imediatamente uma pergunta: será que não encontramos aqui a impossibilidade de aprofundar o confronto com o pensamento de Heidegger, se é verdade que este está caracterizado por uma fundamental carência de consideração da questão ética?

A abertura à minha liberdade está, pois, condicionada, segundo o autor dos Caminhos de Floresta, pela antecipação resoluta da própria morte. Lévinas, presente através da comunicação de João J. Vila (A estrutura meta–ontológica do A–Deus: o dom da morte segundo Emmanuel Lévinas. In Borges–Duarte, 2008, pp. 279–306), criticará violentamente esta posição, como se sabe, ao mostrar a irreversível prioridade da morte do outro sobre a minha: a impossibilidade da indiferença perante esta revela–se contestação do não–sentido da morte e emergência do sentido na exigência absoluta de amor e justiça. Ricoeur, atacando também a posição heideggeriana, sublinhará na mesma linha de pensamento que o encontro decisivo com a morte acontece apenas na morte do ser amado. Outra das críticas à tanatologia heideggeriana referida no volume é a de Jaspers, que aponta também o seu carácter não–comunicativo. Serão no entanto legítimas estas críticas, ou revelam antes malentendidos? Precioso, para tratar desta questão, é em particular o texto de André de Macedo Duarte (2008, pp. 211–226). O ponto fulcral a partir do qual podem brotar este tipo de críticas situa–se nas páginas dedicadas à modificação que faz passar o ser–aí do modo de ser quotidiano inautêntico ao modo de ser autêntico. O malentendido consiste em considerar esta modificação como um isolamento do ser–aí que o extrairia do seu mundo ambiente familiar e o cortaria da sua relação com os outros, para o abrir ao seu ser–para–a–morte, ou seja ao seu poder–ser próprio. A abertura ao Si–mesmo não é todavia uma pura relação a si, que faria abstracção do mundo, mas sim uma outra maneira de ser–no–mundo, no qual o Si como “Se” impessoal se transforma em Si–mesmo. Nesta modificação, portanto, visto que o ser–com pertence à estrutura de ser do ser–aí, transforma–se não só a relação do ser–aí com os outros, como também a que o liga ao ente intramundano na sua ocupação.

Heidegger descreve a relação ao outro como “preocupação” (Fürsorgen). Na sua forma positiva, ela reveste dois modos extremos: o primeiro consiste em substituir–se ao outro para assumir no seu lugar o objecto da sua ocupação; pode–se converter em dominação do outro, ao torná–lo dependente e súbdito; determina na maioria das vezes o ser–um–com–o–outro quotidiano. Visto que o ser–aí encontra outrem a partir dos seus afazeres no mundo ambiente, são no entanto os modos da deficiência e da indiferença que caracterizam em primeiro lugar o ser–com com os outros no impessoal. No seu outro modo extremo positivo, a preocupação não respeita a algo do qual o outro se ocupa, mas à sua existência, restituindo–lhe a sua liberdade; descrita como “libertadora numa antecipação”, deixa ser o outro no seu poder–ser próprio. Só um ser–aí existindo no modo de ser autêntico, ou seja aberto ao seu Si–mesmo, é capaz de uma tal preocupação que necessariamente, embora a palavra não apareça em Ser e Tempo, implica o amor. (é sobre este modelo que Heidegger pensará, depois da obra de 1927, não só a relação autêntica com o outro humano, como também a que se tem com qualquer essência que venha a ser, a partir da guarda da verdade do ser). Ao ler as comunicações dos psicanalistas presentes no colóquio de évora, em particular a de António Coimbra de Matos (Freud, sexualidade e morte. In Borges–Duarte, 2008, pp. 21–28), veja–se também C. Machado (A experiência analítica enquanto relação criadora. In Borges–Duarte, 2008, pp. 247–252) e J. C. Coelho Rosa (O pensamento filosófico de Freud e as contribuições psicanalíticas de Heidegger. Um percurso pessoal. In Borges–Duarte, 2008, pp. 253–258), aparece que é também a partir dela que o trabalho terapêutico encontra a sua possibilidade de êxito. Não é, portanto, a partir da sua pretendida falência no tratamento da questão da intersubjectividade que será possível entender o compromisso heideggeriano com o nacional–socialismo. é mais provável que seja necessário abandonar a ideia de um fascismo inerente ao seu pensamento para abordar esta questão. Veja–se a este propósito o texto de Helga Hook Quadrado (Heidegger, a lógica, a linguagem e o Zeitgeist. In Borges–Duarte, 2008, pp. 189–194). Revela–se também aqui incontornável o tema do silêncio, que o “primeiro Heidegger” concebe como modo de falar, a partir do qual é possível realmente ouvir e, portanto, responder. Para a questão da relação entre linguagem e silêncio no “primeiro” e no “segundo” Heidegger, veja–se, em particular, respectivamente, M. A. Pacheco (Linguagem e finitude. O ser–para–a–morte em Heidegger. In Borges–Duarte, 2008, pp. 195–205) e B. Sylla (A origem e a fala da langue em Heidegger. In Borges–Duarte, 2008, pp. 169–178). Mas a relação com o outro torna–se particularmente essencial, através do tema da origem, relativamente à questão do nascimento, colocada nomeadamente por Eliane Escoubas (L’origine et l’Ultime Reiner Schümann, héritier de Heidegger. In Borges–Duarte, 2008, pp. 63–74), Jerôme Porée (“Exister vivante”. Le sens de la naissance et
de la mort chez Heidegger, Jaspers, Ricoeur. In Borges–Duarte, 2008, pp. 75–94) e Zeljko Loparic (Origem em Heidegger e Winnicott. In Borges–Duarte, 2008, pp. 99–122). As criticas a Heidegger são também aqui fecundas para nos forçar a pensar.

O autor de A questão da técnica, ao dar uma importância primordial à morte, prolongaria apenas uma tradição filosófica, iniciada com Sócrates, que nunca considerou decisivo o problema do nascimento dos seres humanos. Abordado em Ser e Tempo, efectivamente, desde a outra extremidade da existência, Heidegger não dedica nenhuma reflexão neste livro às questões da transmissão da vida, da paternidade e da maternidade. Trata apenas num curso de 1928/29 (Introdução à Filosofia), de um modo todavia pouco desenvolvido, do modo de ser dos recém–nascidos. é com a Kehre que o tema da origem se torna central, sem que isso implique o estudo, no seu sentido concreto, do nascimento humano. Enquanto Freud concebe este como a emergência num aumento de tensão, a partir da matéria inorgânica, de matéria orgânica, Heidegger pensa o nascer, como já referimos, a partir da origem velada do ser como Ereignis. Com o “desmoronar–se” da αληθεια, acontecido com o platonismo, é esta origem que fica esquecida; na época do cumprimento da história da metafísica, ou seja, da técnica, está atingido o ponto extremo deste esquecimento, quando o ser já não se desvela no ente enquanto objectidade, mas enquanto disponibilidade do fundo. Nenhuma experiência humana, pois, atinge mais o nascer inicial do ente, sendo o próprio da essência da técnica impedir a abertura do mundo. é precisamente neste sentido que Heidegger escreve que a essência da morte está, na época que é nossa, dissimulada e que o ser humano não é ainda “o mortal”. Fernando Gil, citado no volume por João Lobo Antunes (Antunes, J. L. (A morte como opção. Variações sobre o ensaio de Fernando Gil “Mors certa, hora incerta”. In Borges–Duarte, 2008, pp. 307–317), que lhe presta homenagem, dizia, por sua vez, que a racionalidade moderna aspira, pelo recalcamento da própria morte, a anular a incerteza da morte, e a transformar esta em objecto de decisão; o que implica, ao mesmo tempo, a vontade de anular a incerteza de cada momento da vida. Nota assim o autor do Tratado da evidência: “A sociedade moderna quer gerir o que outrora cabia ao destino” (Antunes, 2008). Heidegger vai ainda mais longe quando sublinha o desejo da humanidade moderna de se modificar e de se fabricar a si mesma. Se morrer, neste caso, toma o sentido de “deletar–se”, o que ainda significa existir? E, portanto, que significa nascer?

Partindo destas considerações, Zeljko Loparic considera insuficiente a interpretação heideggeriana do nascer como desvelamento originário, para poder pensar de um modo não técnico–científico a chegada concreta de seres humanos ao mundo. Isso, porque um bebé não sai da clareira do ser, mas da barriga da mãe, e que para poder se tornar um ser–aí adulto, capaz de morar nesta mesma clareira, precisa antes de um ambiente acolhedor que, segundo as descrições de D. Winnicott, é a mãe, e com a qual o recém–nascido se identifica. Daí o autor concluir que se o lactante enquanto ser humano está concernido pelo sentido do ser, o sentido relevante deste último não é o da “manifestidade” mas sim o da confiabilidade. Zeljko Loparic parece esquecer que o desabrochar inicial do ente na plenitude da sua presença – portanto, não enquanto objecto, nem fundo disponível – é possível justamente a partir do cuidado humano, o qual consiste em velar pela verdade do ser. é notável, a este propósito, relevar que quando Heidegger descreve este velar como “guarda preveniente” (die Wahr), nota que die Wahr significa die Hut, “a guarda”, e que designa no dialecto suábio “as crianças confiadas à boa guarda de uma mãe” (“In unserer schwäbischen Mundart meint das Wort ‘die Wahr’: die der mütterlichen Hut anvertrauten Kinder”, in Heidegger, M., Die Gefahr, op.cit., p. 46.) Velar sobre a verdade do ser acontece aliás im Geringen: “na flexibilidade do que é pequeno” (ID., Vorträge und Aufsätze, GA7 (ed. F–W.von Herrmann), Klostermann, Frankfurt a.M., 2000, p. 34.). A maternidade aparece, portanto, como um modo – eminente e que cabe como próprio ao sexo feminino – de velar pelo emergir inicial dos seres humanos.

é necessário portanto retomar o questionamento de um modo mais agudo, colocando a questão: o que é que é ser mãe – à qual acrescentamos: e pai? Mais precisamente: o que é que é ser mãe e pai na época da técnica? Na época em que, como o mostra Alexandre Franco de Sá, o manifestar–se do ente como vida é pura exposição ao bio–poder (Franco de Sá, A. Da morte à origem: Heidegger e os vindouros. In Borges–Duarte, 2008, pp. 49–62); em que a linguagem está cada vez mais reduzida a um meio de comunicação–informação? óbvias consequências sobre o nascer e o criar de uma criança terá o facto de a mãe e o pai se terem ou não encontrado cada um como Si–mesmo, a partir da abertura à própria morte, tão difícil hoje em dia. Claro que os bébés (até hoje) saem da barriga da mãe e não da clareira do ser, mas mudará muito se a mãe (e o pai) têm ou não uma experiência desta. A questão do nascimento implica a da procriação, e portanto também das relações sexuais entre homens e mulheres. Coloca–se, pois, aqui, no tempo dos bancos de esperma e das inseminações artificiais, a questão do erotismo, cara a Freud. O que será este numa época em que os seres–no–mundo dos indivíduos estão impelidos a se fechar e em que se exacerbam as lutas pelo poder? Em que, portanto, estes mesmos indivíduos se afastam cada vez mais da sua nudez originária? Veja–se a este propósito “Amor y Muerte. Variaciones sobre lo Unheimlich freudiano”, escrito por Gabriel Albiac, que retoma a questão lacaniana da “relação sexual” (2008. Amor y muerte. Variaciones sobre lo Unheimlich freudiano. In Borges–Duarte, pp. 29–48). Acabaremos este percurso neste apaixonante volume perguntando–nos, seguindo o autor de Desde la Incertidumbre, se para o ser–aí tal como o pensa Heidegger, o significante “mulher” terá ainda como função de suprir, de um modo sempre falhado, a ausência motor do desejo fálico que o nomeia. Para ele, não será o encontro erótico (o gozo) com uma mulher um modo essencial de acesso à plenitude, nunca objectivável, do real?

Apercebemo–nos, ao termo desta recensão, da clara possibilidade de convergência entre o questionamento próprio ao pensamento heideggeriano, de um lado, e ao pensamento freudiano e psicanalítico em geral, de outro. Efectivamente, o autor de Ser e Tempo não desenvolveu análises específicas para todas as possibilidades ônticas da existência humana reflectidas pela psicanálise. Repensou todavia de um modo radical esta mesma existência à luz da questão do ser e do seu esquecimento. Toda a questão é de saber se a psicanálise, na perspectiva de um aprofundamento do diálogo com Heidegger, pode ignorar a analítica existencial no contexto da história do ser, e em que medida a sua consideração a levaria a repensar os seus próprios fundamentos. Como o refere Marco Casanova, nos seminários de Zollikon (nos quais pensou, em presença de médicos e de psiquiatras, a questão da prática médica e terapêutica), Heidegger, afirmando que a ontologia fundamental é o pensamento que se movimenta no fundamento de toda ontologia, considera que a psiquiatria, enquanto pesquisa que opera no âmbito da essência do homem, é a ontologia regional que menos pode abandonar o fundamento. é precisamente nesta orientação que L. Binswanger desenvolveu a Daseinsanalyse. A riqueza das contribuições reunidas no volume coordenado por Irene Borges–Duarte incita a retomar e desenvolver o questionamento por ele iniciado, e renova assim fecundas perspectivas de trabalho.