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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.11 no.2 São Paulo fev. 2009

 

ARTIGOS

 

Realismo e antirrealismo na interpretação da metapsicologia freudiana1

 

Realism and anti–realism in the interpretation of Freudian metapsychology

 

 

 

 

Richard Theisen Simanke

Universidade Federal de São Carlos – São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo discute e contrapõe as leituras realistas e antirrealistas da metapsicologia freudiana. Para tanto, parte de um comentário da interpretação tipicamente antirrealista apresentada no livro O método especulativo de Freud, de Leopoldo Fulgencio. A seguir, discute a possibilidade alternativa de uma interpretação realista da metapsicologia, tomando por base alguns autores que assumem essa orientação e analisando algumas passagens da obra de Freud que parecem poder subsidiar essa leitura. Por fim, procura distinguir algumas implicações e consequências de ambas as leituras para o modo como se concebe a natureza do conhecimento psicanalítico e o desenvolvimento futuro da psicanálise, em geral, e da metapsicologia, em particular.

Palavras–chave: Antirrealismo, Especulação, Freud, Metapsicologia, Modelos teóricos, Realismo.


ABSTRACT

This paper discusses and compares the realist and antirealist readings of Freudian metapsychology. It starts with a commentary of a typically antirealist interpretation as presented in Leopoldo Fulgencio’s book, Freud’s speculative method. Next, it discusses the alternative possibility of a realist interpretation of metapsychology based on some other authors who sustain this point of view; it also comments on some passages of Freud’s work which seem to support this interpretation. Finally, it seeks to discern some consequences brought about by each one of these readings to the understanding of the future development of psychoanalysis and metapsychology.

Keywords: Antirealism; Freud, Metapsychology, Realism, Speculation, Theoretical models.


 

 

Introdução

Muito já se discutiu se a psicanálise pode ou não ser adequadamente compreendida sem a referência a esse corpo de conceitos fundamentais elaborados por Freud e batizado por ele com o neologismo “metapsicologia”. Evidentemente, a discussão dessa questão passa pela elucidação do sentido dessa disciplina teórica, destinada a estabelecer as bases do conhecimento psicanalítico. Qual o estatuto conceitual dos termos e enunciados que a constituem? Por qual método eles chegaram a ser formulados? Qual o alcance ou a relevância atual desses conceitos, num momento em que o ambiente cultural e científico no qual eles tomaram forma foi há muito deixado para trás? é possível discuti–los ainda com proveito no contexto da epistemologia contemporânea? Qualquer resposta que se possa oferecer a essas perguntas precisa justificar–se a partir da compreensão que se tenha da metapsicologia freudiana, a qual, por sua vez, ganha sentido em função da estratégia de interpretação adotada, cuja explicitação é imprescindível para esclarecer os termos do debate.

Tendo isso em vista, o objetivo aqui é discutir duas possibilidades de interpretação da metapsicologia freudiana com relação a um ponto específico: o caráter realista ou antirrealista que se possa atribuir a seus conceitos. Essa discussão tem a vantagem de inserir a psicanálise num debate epistemológico bem mais abrangente e absolutamente atual, a saber, aquele que se trava em torno das possibilidades e das limitações do realismo científico2. Trata–se de um debate que experimentou diversas reviravoltas ao longo do período histórico em que a psicanálise nasceu e se consolidou como disciplina, com posições realistas e antirrealistas predominando alternadamente, de modo que se evidencia sua relevância para o trabalho de elucidação da natureza do conhecimento psicanalítico e de estabelecimento de seu status científico.

Para abordar essa questão, parte–se aqui de um comentário crítico mais minucioso de um exemplo de interpretação enfaticamente antirrealista da metapsicologia freudiana: aquela proposta por Leopoldo Fulgencio em seu livro O método especulativo de Freud (Fulgencio, 2008). Esse ponto de partida se justifica pelo fato de tratar–se de uma das mais completas e sistemáticas interpretações da metapsicologia freudiana encontráveis na literatura recente, além de que a qualidade das análises que aí se podem encontrar torna–o uma base confiável para alavancar a discussão que se segue. Por outro lado, sua tomada de posição antirrealista é perfeitamente explícita e muito bem fundamentada, de modo que pode ser assumida como representativa de um dos polos do debate que se pretende aqui analisar3. Num segundo momento, são discutidas algumas interpretações realistas da metapsicologia, com o intuito de ilustrar a possibilidade de uma abordagem alternativa, de fazer um levantamento de seus principais argumentos e de identificar qual forma de realismo elas propõem. Como complemento à discussão dessa segunda abordagem, algumas passagens da obra de Freud que parecem fornecer evidências para sustentá–la são brevemente comentadas, a fim de evidenciar a sua viabilidade. Por fim – e a título de conclusão –, discutem–se algumas razões pelas quais essas interpretações discordantes do sentido da metapsicologia são possíveis e se procura apontar em que direção as implicações de uma e outra podem conduzir.

 

Uma interpretação antirrealista da metapsicologia4

Antes de apresentar a tese principal do trabalho de Fulgencio (2008) e seus desdobramentos, cabe explicitar os pressupostos metodológicos a partir dos quais ela é formulada e defendida. Aqui reside uma das maiores virtudes do livro e, talvez, aquela da qual provenham todas as demais. De fato, o autor parte do princípio de que o contexto e o pano de fundo adequado contra o qual a psicanálise deve ser avaliada é aquele fornecido pela epistemologia e pela filosofia das ciências. Isso, em primeiro lugar, devido ao fato de que foi como uma ciência natural da mente que Freud pretendeu, desde o início, constituir a psicanálise. Trata–se de algo que deveria ser evidente, mas que é frequentemente desconsiderado na literatura psicanalítica, quando não deliberadamente obscurecido. Assim, é a partir da própria atitude epistemológica que se pode encontrar em Freud que esse ponto de partida se justifica:

Ele [Freud] sempre a considerou uma ciência empírica, pertencente, portanto, ao rol das Naturwissenschaften, recusando–se, inclusive, a incluí–la no grupo das ciências do espírito (Geisteswissenschaften). […] Freud não a concebeu como um novo ramo do saber – como se sua doutrina estivesse mais próxima da ética, estética, política ou da arte –, estabelecendo um campo sui generis; ao contrário, ele a manteve no interior da sociedade dos cientistas naturalistas. (Fulgencio, 2008, p.161)

Por isso, por mais que esteja consciente da gravidade das questões cruciais que se colocam atualmente para a psicanálise, tanto com relação à sua eficácia terapêutica, quanto no que diz respeito ao lugar que se lhe pode atribuir no panorama científico contemporâneo, o livro rejeita, de saída, a “política do avestruz”, que consistiria em entrincheirar–se dentro dos limites dogmaticamente fortificados da psicanálise, praticando alguma variedade de metafísica defensiva:

O problema não pode ser evitado fechando–se os olhos e colocando a psicanálise como um saber hors–concours, levantando a bandeira ideológica de uma disciplina revolucionária sui generis, só avaliável por seus próprios parâmetros, independente de todos os outros saberes. (Fulgencio, 2008, p. 25)

Dessas considerações e da determinação de evitar essas armadilhas – das quais, segundo muitas análises clássicas, o próprio Freud não teria escapado (Grünbaum, 1984, por exemplo) – resulta então o pressuposto metodológico básico, que não tarda a ser explicitado:

Sem esquecer a especificidade da psicanálise, este livro coloca–a num diálogo com a história e a epistemologia das ciências, diálogo que, se recusado, condena a prática analítica (tanto clínica como teórica) a transformar–se numa seita ou ideologia grupal. (Fulgencio, 2008, p. 30)

é verdade que a idéia de uma análise epistemológica da psicanálise está longe de ser uma novidade. De fato, a própria área de pesquisa em filosofia da psicanálise na qual este tipo de interrogação se insere constituiu–se inicialmente, na cena nacional, como a proposta de uma epistemologia da psicanálise. Só que, na origem, o que se designava por esse termo era uma concepção bastante específica de epistemologia. Nascida nos meios filosóficos paulistas, cujo cânone se inspirava na escola francesa de história da filosofia e em sua metodologia de análise estrutural dos textos filosóficos clássicos, essa epistemologia transpunha aqueles procedimentos para a análise das teorias científicas, propondo–se a tratá–las como um texto a ser decifrado a partir dos princípios imanentes que tivessem regido a sua construção (Monzani, 1989; Lebrun, 1977). Embora tenha realizado uma tarefa indispensável de saneamento no campo dos estudos freudianos e psicanalíticos em geral, introduzindo rigor conceitual numa área em que tradicionalmente predominava a especulação descompromissada e a improvisação literária apresentada como novidade de doutrina, essa prática desempenhava, por isso mesmo, uma função instrumental e constituía–se numa etapa a ser ultrapassada. Pode–se dizer que a área de pesquisa em filosofia da psicanálise, tal como se apresenta contemporaneamente, tomou forma a partir das diversas soluções encontradas pelos pesquisadores para realizar essa ultrapassagem5. A epistemologia praticada por Fulgencio em sua abordagem da metapsicologia pode ser considerada uma dessas soluções. Daí que ele se dê ao cuidado de distingui–la daquela forma de epistemologia imanente que, a seu ver, conduziria exatamente às armadilhas que se quer evitar, a saber, à concepção de que a psicanálise é uma disciplina que só pode ser avaliada segundo os próprios critérios:

Convém ainda salientar que, ao referir–me a uma discussão sobre a epistemologia da psicanálise, não estou apenas me referindo à análise da lógica interna da teoria psicanalítica – como se, para analisar epistemologicamente uma disciplina, fosse necessário considerar uma epistemologia regional, circunscrita apenas ao quadro teórico dessa disciplina e só avaliável por critérios internos a ela –, mas sim considerando que a psicanálise deve ser tomada como passível de ser questionada por uma epistemologia geral, enquanto uma ciência que se ocupa tanto da análise da lógica interna de um sistema teórico quanto das regras de correspondência e de adequabilidade entre suas teorias e os objetos dos quais trata. (Fulgencio, 2008, p. 432)

Tanto é assim que, por exemplo, mesmo a extensa discussão do emprego de analogias por parte de Freud, que ocupa a Parte IV do livro (Fulgencio, 2008, pp. 353–430) transcorre inteiramente dentro dessa perspectiva que procura compreender os procedimentos freudianos à luz de seus compromissos epistemológicos, afastando–se deliberadamente das leituras que os consideram como idiossincrasias estilísticas de Freud (Etcheverry, 1988; Mezan, 1989; Figueiredo, 2002), justificáveis apenas em função da irredutível singularidade disciplinar da psicanálise que, ao se ocupar da subjetividade, do sujeito terapêutico em suas multiformes manifestações, teria precisado abrir espaço para o estilo como forma de pensamento e, confrontada com o ineditismo de seu objeto, praticamente exigira a autonomia desenvolta com que seu criador lançou mão dos instrumentos que a cultura e a ciência colocavam à sua disposição. Nosso autor mostra–se, assim, perfeitamente a par de que o uso de analogias e metáforas é algo absolutamente corriqueiro na prática científica – mesmo no caso das ciências maduras, diga–se de passagem – e que a presença desses recursos em seus textos de forma alguma testemunha contra as sinceras intenções científicas de Freud: “o uso de analogias corresponde a uma postura metodológica de Freud, que as utiliza como instrumentos heurísticos, de uma maneira bem delimitada e de acordo com certos parâmetros e objetivos específicos da prática de pesquisa nas ciências naturais” (Fulgencio, 2008, p. 355).

Esta última passagem se presta também para introduzir aquele que é um tema recorrente do livro, se não seu tema central: a heurística freudiana, isto é, o conjunto dos procedimentos empregados por Freud para dar forma às concepções metapsicológicas, que, a seu ver, se deveriam entender não como enunciados descritivos de estados de coisa empiricamente constatáveis no mundo da mente, mas como construções especulativas voltadas para a resolução dos problemas que a prática clínica apresenta ao investigador psicanalítico. Essa perspectiva deriva de uma leitura particular de Kant e da hipótese – fartamente argumentada – da influência deste sobre Freud, mas, ao mesmo tempo, encontra–se claramente articulada com a postura metodológica mencionada acima e com a idéia de epistemologia que ela comporta. Essa articulação transparece na própria enunciação do objetivo central do estudo realizado:

Inscrevendo, pois, Freud no curso da história das idéias e da epistemologia das ciências, tomo como objetivo deste estudo mostrar o kantismo de Freud na construção da psicanálise como uma psicologia empírica, não em todos os seus aspectos, mas tão–somente no que se refere ao uso de ficções heurísticas no quadro de um método especulativo de pesquisa para as ciências da natureza, ficções necessárias para a elaboração de parte da teoria psicanalítica. (Fulgencio, 2008, p. 45). [grifos nossos]

A interpretação proposta por Fulgencio apoia–se, declaradamente, na leitura de Kant desenvolvida por Loparic (2000, por exemplo), que reconstrói a filosofia crítica kantiana como uma semântica transcendental voltada para a formulação e resolução de problemas filosóficos e visando, entre outras coisas, à dissolução do que seriam os falsos problemas engendrados pela adesão ao realismo metafísico. Aplicada à ciência, essa leitura resulta numa concepção heurística – isto é, não realista – do conhecimento científico que é, então, utilizada na análise da obra de Freud e de seu lugar na história das ciências. Não pretendo aqui discutir essa interpretação de Kant ou, mesmo, o perfil do kantismo que, a partir dela, atribui–se a Freud – faltar–me–iam, por completo, os meios para tanto. As considerações que se seguem ocupam–se apenas, por assim dizer, da fotografia que se obtém do pensamento freudiano ao considerá–lo sob essa ótica.

O panorama obtido por esses procedimentos retoma, ainda que de uma maneira original, a repartição da obra freudiana em duas dimensões qualitativamente distintas quanto a seus métodos, objetivos e quanto às funções que desempenham na conformação da psicanálise: a clínica e a metapsicologia. Essa divisão é recorrente nas interpretações filosóficas da psicanálise, tanto na tradição antropológica e humanista que vai de Politzer (1928) a Habermas (1968), passando por nomes como Dalbiez (1936) e Ricoeur (1965), quanto na linha positivista e cientificista, ilustrada exemplarmente por Grünbaum (1984) e MacMillan (1991). Ela, em geral, resultou numa desqualificação da metapsicologia em proveito da clínica, quer em nome da maior originalidade do método psicanalítico e de seus resultados, que teria permitido desvendar toda uma dimensão significativa da ação humana até então ignorada, quer devido à maior suscetibilidade das explicações clínicas fornecidas pela psicanálise a uma avaliação nos termos dos critérios utilizados para a validação dos enunciados científicos6. No entanto, Fulgencio deixa claro que essa heterogeneidade não decorre simplesmente do fato de que a metapsicologia exprima certas preferências pessoais de Freud, mas sim provém da própria concepção de ciência com a qual ele se alinha. Essa perspectiva tem a vantagem suplementar de fornecer um nexo para compreender–se a articulação entre clínica e metapsicologia, para além das diferenças que as separam. A clínica psicanalítica – entendendo–se por isso tanto a prática interpretativa da psicanálise quanto o conjunto dos fenômenos do qual esta se ocupa – constitui–se como um campo de problemas empíricos, cuja resolução requer a elaboração de certos construtos teóricos, mediante o tipo de método especulativo que define a metapsicologia. Esses construtos desempenhariam, portanto, uma função exclusivamente instrumental com relação a esses problemas, residindo a sua justificação nessa função e apenas nela. Daí que a análise desenvolvida conceda “uma ênfase especial ao tema do uso de conceitos que são ficções heurísticas, meras idéias sem referente adequado no mundo dos fenômenos, mas que são úteis para a pesquisa empírica” (Fulgencio, 2008, p. 46). A tese central do livro condensa–se, então, nessa expressão constantemente retomada – ficções heurísticas – e sua demonstração pode, assim, assumir a forma da análise do emprego sistemático e deliberado desse tipo de conceitos por parte de Freud na construção da metapsicologia: “mostro que Freud considera, de fato, suas hipóteses metapsicológicas – tais como os conceitos de aparelho psíquico, pulsões, libido etc. – como meras ficções ou instrumentos úteis para a procura da solução de problemas” (ibid., p. 47).

Isso resulta em que o método pelo qual procede a metapsicologia só possa ser a especulação, como afirma o próprio título do livro, pois fica difícil imaginar como se poderia abordar de outra maneira um ser de razão que não possui um referente adequado na realidade dos fenômenos. Estabelecida a tese principal, o livro se dedica a persegui–la em todos os seus desdobramentos, examinando e reafirmando continuamente o caráter meramente heurístico da totalidade dos modelos metapsicológicos. Esse caráter precederia até mesmo o nascimento da psicanálise propriamente dita, sendo identificado na obra neurológica e pré–psicanalítica de Freud, o que reforça a hipótese de tratar–se de uma atitude com relação ao conhecimento científico como um todo, que seria depois transposta para a nova disciplina – e não uma idiossincrasia exclusiva desta última. Assim, com relação ao passo inaugural da teorização metapsicológica freudiana, em seu ensaio de 1891 sobre as afasias7, pode–se ler: “Ao analisarmos o texto sobre as afasias, no entanto, vemos que Freud não está fazendo um trabalho de descrição anatômica, mas de proposição de um modelo dinâmico enquanto uma ficção heurística” (Fulgencio, 2008, p. 113). [grifos nossos]

Prosseguindo no percurso da elaboração dos modelos metapsicológicos, o Projeto de uma psicologia (Freud, 1895/1950) – certamente o mais conhecido e debatido de todos os documentos neurocientíficos deixados por Freud – vai ser considerado exatamente da mesma maneira, na contramão de todas as interpretações que procuram ver nesse texto um esforço, ainda que mais ou menos malogrado, de construir uma psicologia empírica naturalista e materialista no sentido literal da palavra:

… o Projeto de uma psicologia […] corresponde à sua primeira tentativa de produzir uma teoria geral sobre o psiquismo tal qual uma metapsicologia descrita em termos biológicos. […] esta não corresponde a um modelo que Freud esperava ter, algum dia, referência empírica direta; ou seja, essa metapsicologia é apenas uma metáfora, tão–somente avaliável por seu valor heurístico e jamais por seu valor empírico. (Fulgencio, 2008, p. 249)

Esses dois modelos que precedem e preparam a formulação da teoria freudiana do aparelho psíquico – para a qual cabe certamente reivindicar a condição de alicerce fundamental da metapsicologia – poderiam ser, assim, considerados como ficções teóricas cumprindo uma função exclusivamente instrumental no esforço de teorização sobre o psiquismo, mesmo tendo sido concebidos num momento em que a obra freudiana não teria atingido, segundo a historiografia mais tradicional, aquele ápice de originalidade que a tornou célebre e estando confinados, portanto, nos limites mais estreitos de uma concepção ainda conservadora de ciência. Por isso, não seria de se surpreender que os modelos psicológicos que se lhe sucederam compartilhassem dessa mesma condição, uma vez que são as mesmas questões – o mesmo tipo de problemas clínico–empíricos – que continuam a ser aí elaboradas, ainda que de uma perspectiva que veio se alterando com o tempo. é isso que teria acontecido a partir do capítulo 7 de A interpretação dos sonhos, onde a substituição da linguagem neurológica pela psicológica de forma alguma representaria qualquer espécie de reorientação, por parte de Freud, quanto à maneira de conceber a natureza de seus construtos teóricos e a sua relação com os fenômenos e com os problemas com os quais, nesse plano, o investigador psicanalítico é confrontado:

Freud reapresenta a necessidade de conceber um aparelho dividido em instâncias psíquicas, o que tornará possível conceber mecanismos de determinação recíproca (também psíquica) entre elas. Desse novo modelo metapsicológico, […] será possível conceber ações próprias ao agir clínico (análise da transferência, da resistência, como tornar consciente o inconsciente etc.). é necessário enfatizar que a adequação desse modelo deve ser reconhecida em termos heurísticos, ou seja, não se trata de uma representação espacial verdadeira (empírica), com sistemas psíquicos (Ics, Pcs–Cs) objetivamente existentes, mas tão–somente uma ficção teórica útil, um instrumento para a pesquisa ou resolução dos problemas clínicos. (Fulgencio, 2008, p. 271–2)

Não poderia ser de outra maneira: todo o “ponto de vista tópico” da metapsicologia – isto é, qualquer tentativa de representar os processos psíquicos como um sistema de lugares –, quer este se exprima em termos neurofisiológicos, quer em termos psíquicos, estaria fadado a nunca ser mais do que uma ficção (une façon de parler, no máximo), uma vez que se propõe a uma tarefa irrealizável, pelo menos num sentido literal e realista: a tarefa de “figurar algo que não é figurável: o psiquismo” (Fulgencio, 2008, p. 128). Assumindo–se, com toda a intransigência, essa impossibilidade de princípio e levando–se em conta o caráter ficcional que é, por isso, atribuído à noção de aparelho psíquico como um todo, aquela de suas partes – o sistema inconsciente – que é reivindicada por Freud como a novidade teórica e o campo de investigação por excelência da psicanálise deve–se revestir, inevitavelmente, das mesmas características. Tratou–se, por isso, desde o começo, de “levantar a hipótese do caráter ficcional da teoria metapsicológica do inconsciente” (ibid., p. 39) ou, mais precisamente, sustentar que:

Freud jamais concebeu o inconsciente como uma entidade empírica apreensível, como sendo “real”. […] O inconsciente é, no sentido acima comentado, um conceito operativo, uma ficção heurística. Se o tomamos como “real”, perdemos de vista o posicionamento epistemológico que torna possível conceber a psicanálise como ciência sempre aberta a reformulações e substituições, mesmo em seus conceitos fundamentais. (Fulgencio, 2008, p. 240)

Todos os principais conceitos metapsicológicos – a teoria das pulsões, sobretudo, longamente analisada em suas diversas formulações (Fulgencio, 2008, p. 277–349) – fazem–se objeto do mesmo tipo de análise e interpretação. Daí o duplo caráter, provisório e descartável,8 atribuído à metapsicologia: uma vez que esta só se justificaria por um critério de utilidade na resolução de outra ordem de problemas – aqueles colocados pela investigação clínica da psicanálise –, ela não engendraria nenhuma problemática própria que lhe pudesse conferir autonomia. Esse caráter instrumental justificaria, por um lado, a sua interpretação ficcional e, por outro, tornaria essas ferramentas metapsicológicas, consideradas em si mesmas, contingentes e não essenciais para a construção do conhecimento psicanalítico. Elas poderiam, assim, ser livremente substituídas por outras, na exata medida em que os novos modelos e metáforas se revelassem mais eficientes para cumprir sua função ou que novos problemas surgissem da investigação clínica a requerer outros meios de instrumentação teórica. No limite, a metapsicologia como um todo poderia ser considerada contingente e não essencial, nesse sentido.

Por mais que se apresente como um esforço para compreender o estilo freudiano de teorização, o livro não se propõe como uma análise neutra e tampouco se furta a assumir um tom decididamente crítico com relação ao perfil das estratégias freudianas que emerge de suas análises. Pressuposta, talvez, em toda a extensão de seus argumentos está a idéia de que tal abordagem, identificada como está a toda uma heurística proveniente do campo das ciências da natureza, traduz, em seus resultados, uma visão, em última instância, distorcida da natureza humana. Assim, há uma rejeição latente de todo naturalismo psicológico permeando a discussão, a qual se expressa de quando em quando, tornando então explícito o alvo visado por essa leitura crítica. A própria inspiração kantiana atribuída ao projeto freudiano serve de ponto de partida para a enunciação dessa rejeição: “Toda proposta de constituição de uma psicologia como uma ciência empírica que aceite esse quadro kantiano, tanto por seus aspectos transcendentais como heurísticos, acaba por naturalizar e objetificar o homem” (Fulgencio, 2008, p. 101).

Tendo isso em vista, o caráter ficcional, convencional e instrumental atribuído à metapsicologia pode aparecer em todo o seu comprometimento com essa visada naturalista, lembrando que, dentro do conjunto das idéias psicanalíticas, coube sempre à metapsicologia ser apontada como a principal herança dessa imersão no naturalismo científico típico do século 19 que teria marcado a formação de Freud como pesquisador:

Não é, portanto, por acaso que Freud caracterizará, logo no primeiro parágrafo de seu texto sobre a metapsicologia, as pulsões como idéias abstratas, conceitos puramente convencionais que, ao lado da ficção teórica do aparelho psíquico e da libido (como energia apenas suposta) são utilizados como uma superestrutura especulativa que visa à apreensão, organização e sistematização dos dados empíricos, em que há apenas passividade, ou seja, o psiquismo pensado por sua determinação natural. (Fulgencio, 2008, p. 102–3). [grifos nossos]9

Essa abordagem tem a nítida virtude de não fechar os olhos, como tantas outras, ao escancarado naturalismo freudiano, ainda que o avalie negativamente. O ficcionalismo da metapsicologia surge, aqui, sob uma nova luz: assumindo–se, como Fulgencio parece fazer, que o ser humano, a subjetividade e a mente não são, nem podem ser considerados objetos naturais, qualquer discurso que assim os apresente só pode ser minimamente levado a sério dentro de uma perspectiva do tipo “como se”. Ao tentar fundar uma ciência do sujeito pautada pelos cânones do naturalismo científico, Freud ter–se–ia condenado, naquilo em que a psicanálise permanece devedora dessa epistemologia (ou seja, a metapsicologia), a restringir–se à construção de modelos teóricos sempre inadequados (a não ser instrumentalmente, como foi definido acima) e, por isso, sempre indefinidamente substituíveis por outros; numa palavra, sempre irremediavelmente provisórios. Daí, por exemplo, a referência, também de tom inequivocamente crítico, à asserção freudiana em suas Novas conferências…, de que “a alma é uma coisa como qualquer outra estrangeira ao homem, ou seja, como se fosse um objeto da natureza” (Fulgencio, 2008, p. 354).10 Daí também, como contrapartida, o elogio à psicanálise de Winnicott, pela “formulação de uma psicologia empírica que não objetifica nem naturaliza o homem” (ibid., p. 103). é assim que, na conclusão do trabalho, após passar pela referência de Heidegger e sua crítica, mais uma vez, à “concepção naturalista do homem” (ibid., p. 438) – que, nos seminários de Zollikon, por exemplo, endereçou–se especificamente a Freud –, é ao horizonte aberto pela possibilidade de uma psicanálise sem metapsicologia que se chega, uma psicanálise capaz de se esquivar aos equívocos trazidos pelos compromissos metafísicos, pelas opções epistêmicas e pelas estratégias heurísticas que se puderam identificar em Freud:

Um extenso campo de pesquisa se abre nessa perspectiva, pois trata–se de perguntar que tipo de ciência seria essa, não edificada sobre o solo da metafísica da natureza […], mas também que tipo de mudanças nas explicações e nas concepções dos problemas, bem como no método de cura psicanalítico […], deveria advir de uma psicanálise reformulada por princípios fundamentais que recolocam o homem na sua especificidade existencial, como algo diferente de um objeto ou de um aparelho, movido por forças ou energias ou, noutros termos, uma psicanálise que explica os fatos humanos utilizando parâmetros próprios ao ser humano e suas relações. (Fulgencio, 2008, p. 441)

Sintetizando – e, ao mesmo tempo, tentando articular o antinaturalismo e o ficcionalismo que distinguem essa leitura de Freud –, como o ser humano não é, definitivamente, um objeto natural (como parece ser assumido a priori), qualquer discurso ou teoria que o apresente como tal não pode passar de um artifício ou ficção. Não é à toa, como se procurará exemplificar adiante, que uma visão mais simpática ao naturalismo psicológico abra igualmente uma via para uma interpretação mais realista da metapsicologia – ainda que não nos termos de um realismo empírico, cuja inadequação à reflexão metapsicológica fica, nas análises que acabamos de examinar, cabalmente demonstrada.

 

A psicanálise e as possibilidades do realismo científico

Embora, durante a maior parte do tempo, o trabalho de Fulgencio (2008) persiga com zelo a sua tese, reafirmando–a continuamente e ilustrando–a em detalhe com as passagens pertinentes do texto de Freud, ele não deixa, de tempos em tempos, de reconhecer algumas nuanças nas formulações freudianas que, embora a seu ver não enfraqueçam sua interpretação geral, permitem admitir que as ficções metapsicológicas nem sempre se apresentem assim tão totalmente descoladas da realidade empírica dos fenômenos que elas pretendem enquadrar teoricamente. O reconhecimento dessas nuanças só evidencia o rigor da análise, pois leva em conta o fato de que os pensadores originais dificilmente se reduzem aos estereótipos com os quais, muitas vezes, seus comentadores procuram identificá–los. Assim, apenas para ilustrar, após definir as noções de “quantidade” e “neurônio” como princípios especulativos a partir dos quais a arquitetura conceitual do aparelho neuronal do Projeto teria sido edificada, o autor admite que “a primeira psicologia geral de Freud é um modelo teórico que utiliza um vocabulário relativo à física e à biologia, para o qual os neurônios são uma referência mais ou menos empírica” (Fulgencio, 2008, p. 254). [grifos nossos].11

Fulgencio não deixa de reconhecer que existem leituras realistas da teoria freudiana que, quanto a isso, encontram–se em oposição à sua. Menciona, por exemplo, o trabalho de Michele Porte (1994), que aborda a psicanálise a partir da morfologia dinâmica de René Thom, quando então ela:

interpreta Freud como um realista, ou seja, como um pensador que acredita na realidade empírica das dinâmicas em jogo, como se houvesse uma estrutura comandando os processos de transformação das formas, sejam elas físicas ou psíquicas: uma morfologia dinâmica conduzindo a natureza. (Fulgencio, 2008, p. 32), [grifos nossos]

Deixemos de lado, por ora, o fato de que o autor parece, nesse trecho, identificar o realismo como um todo ao realismo empírico, uma impressão que é reforçada por outras passagens do texto.12 Essa é uma questão que terá que ser retomada mais adiante, quando se tratar de discutir os diversos sentidos em que se pode pensar o realismo científico e se algum deles pode ser atribuído a Freud. Trata–se agora de examinar algumas dessas interpretações realistas da psicanálise e da metapsicologia, a fim de verificar o teor de seus argumentos e avaliar a sua consistência, para, a seguir, retornar à obra de Freud em busca de alguma evidência capaz de sustentar essas interpretações.

Há, certamente, autores que, como Juignet (2000), adotam uma atitude cautelosa, reconhecendo o que parece ser uma oscilação ou uma ambiguidade em Freud quanto ao estatuto a ser atribuído às entidades psicanalíticas. Essa ambiguidade se manifestaria sob a forma de uma “prudência epistemológica”, uma espécie de suspensão do julgamento a respeito da atribuição ou não de realidade aos modelos metapsicológicos, o que não impediria que a comparação entre passagens provenientes de pontos diferentes da obra evidenciasse a contradição entre essas atitudes epistemológicas contrastantes:

Encontramo–nos diante de uma nova contradição. Ora o psiquismo é suposto existir concretamente na realidade, ora as formas estruturais são modelos, e até mesmo um conjunto de metáforas, e nada mais. Freud oscila entre uma atitude realista e uma atitude formalista. Por momentos ele constrói um modelo abstrato, um aparelho fictício e, em outros, ele descreve um ser de natureza indeterminada, mas tendo uma existência, uma presença. (Juignet, 2000, p. 31–32)

O autor parece aqui considerar que há uma “contradição” entre utilizar–se de modelos teóricos e supor que o psiquismo exista “concretamente na realidade”, embora isso não seja, de forma alguma, um ponto pacífico, como veremos adiante na discussão da possibilidade de um uso existencial dos modelos teóricos. Seja como for, o reconhecimento dessa oscilação não o impede, no entanto, de admitir que, em certos pontos, essa atitude cautelosa ceda lugar a uma afirmação mais conclusiva da realidade do psiquismo. São justamente os modelos do aparelho psíquico elaborados em A interpretação dos sonhos – e que culminam na formulação do conceito decisivo de realidade psíquica – que traduzem mais francamente essa afirmação, de tal modo que:

A prudência epistemológica dá lugar à afirmação realista da existência do psiquismo. Assume–se que isso do qual se fala existe (de tal modo que se fala dele de forma aproximativa). Freud fala do psiquismo como poderia fazê–lo um botânico descrevendo um espécime de flor: ela apresenta três partes, agenciadas de tal e tal maneira entre elas. (Juignet, 2000, p. 31)

Essas constatações só permitem concluir que, afinal de contas, a atitude de Freud caminharia em direção ao realismo, para além de todas as cautelas: “Convencido da existência do psiquismo, Freud declara que essa ordem tem uma ‘realidade’ equivalente à ‘realidade material” (Juignet, 2000, p. 21). Outros autores são mais taxativos quanto a essa filiação, sobretudo aqueles que procuram aproximar a psicanálise de programas de investigação contemporâneos – como a psicologia cognitiva, por exemplo – que se pautam mais decididamente pelo naturalismo científico e para os quais, por isso, uma epistemologia realista está longe de parecer heterogênea ou inadequada ao seu objeto (retornaremos adiante sobre essas relações entre realismo e naturalismo). Essa perspectiva pode ser assim enunciada como um ponto de partida para a consideração da obra freudiana e da sua possibilidade de integração com esses outros programas que tomaram forma posteriormente no campo da investigação dos fenômenos mentais:

Como os cognitivistas modernos, Freud era um realista consistente (a staunch realist), que acreditava que há uma verdade a respeito do que são as representações – e, portanto, os significados – na mente do paciente, e que estão causando o seu comportamento. Para Freud, a tarefa do psicólogo não é apenas a construção de algo útil, mas a descoberta da verdade a respeito das representações na mente. (Wakefield, 1991, p. 79)

A referência de Wakefield nessa passagem é o livro de MacKay (1989), um dos mais vigorosos ensaios de epistemologia freudiana a se opor à desqualificação da metapsicologia, corrente em trabalhos tais como os de Grünbaum (1984), Holt (1989a, 1989b) e Gill (1976), e que , não por coincidência, elabora uma visão declaradamente realista do pensamento de Freud e de sua concepção da causalidade psíquica, de modo que vale a pena examiná–lo mais detidamente. Podemos visualizar, nas suas análises, uma tomada de posição quase que diametralmente oposta à de Fulgencio, que examinamos acima, de tal modo que ambas se afiguram como representativas das duas posições aqui em discussão.

O objetivo central de MacKay é apresentar a psicanálise freudiana como uma teoria da motivação. Isso significa, em primeiro lugar, que ela não se contentaria em propor uma caracterização particular dos processos mentais, mas, além disso, quereria fornecer uma explicação de por que estes são do jeito que são. Até aí, pelo menos, sua abordagem está em perfeita continuidade com as posições de Freud: sabemos como as restrições de Freud às psicologias da consciência e à nosografia psiquiátrica tradicional decorriam de que ele as considerava como limitadas a uma abordagem descritiva do mental, enquanto a psicanálise – com sua hipótese do inconsciente, sobretudo – seria capaz de fornecer uma teoria efetivamente explicativa dos processos psíquicos normais e patológicos. MacKay é bastante explícito, desde a abertura de seu trabalho, quanto ao fato de que esse encaminhamento requer (ou resulta) numa abordagem realista da explicação psicológica em geral e da metapsicologia freudiana em particular: “Minha tarefa foi argumentar que um realismo científico (basicamente, um materialismo) é apropriado para a explicação psicológica e que ele torna compreensível a metapsicologia freudiana” (MacKay, 1989, p. 2). Essa tomada de posição é reafirmada, da maneira mais inequívoca, na sua conclusão: “Eu ofereci, neste ensaio, uma abordagem realista do conceito freudiano de motivação” (ibid., p. 222).

O próprio tema central de todo o ensaio – o conceito de motivação que emana da metapsicologia freudiana – fornece a chave para a compreensão das razões pelas quais esse realismo é tão enfaticamente assumido. Com efeito, trata–se de pensar a noção de motivação em termos causais, e os fatores motivacionais como causas efetivas dos comportamentos observados. Para tanto, aos processos e estados mentais não observáveis – inconscientes – que a psicanálise constrói inferencialmente teria que ser atribuída alguma ordem de realidade, de modo que a sua eficácia causal pudesse ser justificada:

Podemos ser igualmente realistas a respeito dos conceitos psicanalíticos, não no sentido de que a psicanálise fornece necessariamente a caracterização correta dos processos mentais – as causas do comportamento –, mas no de que essas são caracterizações tentativas de processos reais. (MacKay, 1989, p. 146)

O que está sendo dito aqui é que a realidade do mental pode ser (ou deve ser) assumida independentemente do fato de que cada uma das explicações propostas pela psicanálise seja verdadeira ou não, o que, evidentemente, só pode ser decidido na própria prática da investigação, e não por uma tomada de posição epistemológica que a preceda e condicione. Ou seja, assumir o realismo não significa aceitar que o mental seja do modo que a psicanálise afirma que ele é, mas apenas admitir que exista algo que é mental, ao qual os conceitos psicanalíticos se referem de forma mais ou menos adequada, devendo essa referência ser aperfeiçoada pelo desenvolvimento do conhecimento produzido pela psicanálise. A partir aí, pode–se pôr em questão essa adequação das explicações propostas para esse real psíquico, um problema espinhoso, mas não inédito no campo das ciências, do qual resulta o perfil específico que é preciso atribuir a esse realismo freudiano, o qual pode ser assim caracterizado:

Aqui, voltamo–nos para a maneira como Freud considera seus próprios conceitos: 1) como ele os considera científicos da mesma maneira que as outras ciências; 2) como ele os reconhece como convencionais, mas não arbitrários; 3) como ele os considera incertos e sujeitos a revisão; 4) como, apesar disso, ele mantém o ponto de vista de que eles sejam processos reais e causais. Todos esses pontos de vista são parte do realismo de Freud. (MacKay, 1989, p. 146)

Fica claro, nessa caracterização, que não é de um realismo empírico que se trata aqui, isto é, não se trata de mais uma maneira de insistir no privilégio epistêmico e ontológico do observável, típico dos diversos positivismos. Ao contrário, é às entidades hipotéticas referidas pelos termos teóricos da psicanálise que se faz necessário atribuir realidade, de modo que o papel causal que desempenham na explicação psicológica possa ser justificado. O “realismo científico” atribuído a Freud precisa, pois, acomodar o caráter inferencial dos estados mentais envolvidos, sua eficácia causal e o estatuto teórico – e não empírico ou descritivo – dos termos que os designam. Diz o autor: “Claramente, contudo, a linha que eu segui é a de um realismo científico; os termos teóricos da psicanálise nomeiam estados mentais inferidos, e estados mentais inferidos tanto existem, quanto estão causalmente relacionados com o comportamento” (MacKay, 1989, p. 145). [grifos nossos]13

Por tudo isso, essa postura realista atribuída a Freud precisa ser nuançada e especificada, caso contrário se recairia exatamente na atitude criticada por Fulgencio (2008), a saber, a de considerar as fórmulas metapsicológicas como enunciados descritivos de estados de coisa empiricamente constatáveis em princípio, caso em que a metapsicologia permaneceria mesmo uma mitologia do mental. Em outras palavras, é preciso conciliar o realismo científico e o emprego de modelos ou “construtos teóricos” – isto é, superar sua aparente “contradição”, à qual, como vimos, Juignet se referia acima. Esses construtos seriam empregados, justamente, para representar esses processos que, por sua própria natureza, não admitem uma abordagem descritiva direta, precisando ser construídos (ou modelizados) retrospectivamente a partir de seus efeitos:

Assim, a perspectiva de Freud sobre suas próprias formulações teóricas mostra um equilíbrio entre o realismo científico e a constatação de que esses conceitos são somente caracterizações putativas daqueles processos reais. Esta é a própria essência da abordagem de “construto teórico” que eu venho adotando. (MacKay, 1989, p. 148)14

Essa postura seria compatível, inclusive, com o reconhecimento de que uma caracterização definitiva – isto é, não sujeita a contestação ou a revisões posteriores – desses processos poderia permanecer, no limite, inatingível: “Freud combina um realismo com o reconhecimento de que descrições finais e exatas de processos não observados não são nunca atingidas” (MacKay, 1989, p. 169). O autor reconhece, assim, que esse realismo não é um realismo qualquer, mas um realismo específico (a qualified realism), cuja caracterização precisa fazer jus à complexidade das questões que se colocam à investigação psicológica. Essa qualificação necessária pode ir até o ponto de tornar problemática a distinção entre realismo e instrumentalismo (apresentado por MacKay como representativo das atitudes antirrealistas na filosofia da ciência), o que resultaria do fato de que a mente, em última instância, só poderia ser objeto de um conhecimento teórico, e não empírico:

Estou apresentando aqui um realismo, mas com qualificações que podem, às vezes, parecer instrumentalistas! Eu argumento que o conhecimento teórico é inferencial, e isso inclui o conhecimento sobre a própria mente e sobre a mente dos outros. A distinção entre aqueles enunciados teóricos que descrevem estados de coisa reais e aqueles que não o fazem é mais complicada do que aquela que os realismos e os instrumentalismos teóricos permitem. (MacKay, 1989, p. 169)15

Seja como for, ainda é preciso traçar um perfil para esse realismo sui generis (ou, pelo menos, distinto do realismo empírico neopositivista) que poderia caracterizar mais fidedignamente a atitude epistemológica de Freud. Talvez uma possibilidade para identificar que tipo de realismo MacKay tem em mente aqui se encontre na noção de realismo teórico, desenvolvida, entre os anos 70 e 80, na filosofia das ciências sociais de autores como Keat, Urry e Bhaskar e que, em algum momento, chegou a ser aplicada especificamente à psicanálise freudiana. Que me conste, esse esboço de aplicação não teve continuidade, pelo menos não de forma sistemática, na reflexão epistemológica posterior, pelo que talvez valha a pena recapitulá–lo aqui.

Essa concepção realista da ciência pretende opor–se tanto ao positivismo quanto ao convencionalismo (aqui representativo das concepções antirrealistas da ciência, tal como o instrumentalismo o era para MacKay, como vimos acima). O positivismo professaria, no máximo, uma espécie de realismo mínimo, isto é, a simples aceitação da existência de uma realidade externa independente das crenças e conceitos teóricos do investigador; é justamente essa existência que seria rejeitada pelo convencionalismo e, mais amplamente, pelos diversos antirrealismos (fenomenalismo, instrumentalismo, ficcionalismo etc.). Não obstante, a visão positivista recusa a idéia de que seja função da ciência procurar algo “além” ou “por trás” dos fenômenos, e restringe a tarefa da explicação científica à constatação e descrição de regularidades empíricas, capazes de serem representadas por leis científicas cada vez mais gerais e abrangentes, até o limite ideal da universalidade. à medida que se amplia a generalidade do enunciado das leis, cresce proporcionalmente o poder preditivo da teoria em que elas se incluem, e esse poder preditivo é o critério supremo – senão o único critério – segundo o qual a verdade da explicação pode ser avaliada. Desse modo, explicação e previsão seriam, no limite, consideradas como dois aspectos de uma mesmo operação lógica – ou essa mesma operação conduzida em duas direções opostas –, princípio explicitado e sistematizado na célebre tese da simetria entre explicação e previsão, com a qual Carl Hempel (1966) expôs o essencial da filosofia da ciência neopositivista e que suprime qualquer diferença essencial entre as duas operações. Mas:

… para o realista, diferentemente do positivista, há uma importante diferença entre explicação e previsão. E é a explicação que deve ser perseguida como o objetivo primário da ciência. Explicar os fenômenos não é meramente mostrar que eles são instâncias de regularidades bem estabelecidas. Ao contrário, devemos descobrir as conexões necessárias entre os fenômenos, adquirindo conhecimento sobre as estruturas e mecanismos subjacentes em ação. Frequentemente, isso significará postular a existência de tipos de entidades e processos inobserváveis que não nos são familiares: mas é apenas ao fazer isso que conseguimos ir além das “meras aparências” das coisas, rumo a suas naturezas ou essências. Assim, para um realista, uma teoria científica é uma descrição de estruturas e mecanismos que geram causalmente os fenômenos observáveis, uma descrição que nos habilita a explicá–los. (Keat & Urry, 1975, p. 5). [grifos nossos]

Não há espaço aqui para nos estendermos sobre os detalhes dessa concepção de ciência. Basta apenas observar que ela converge com a concepção explicativa de MacKay – as teorias constroem modelos dos mecanismos e processos que produzem causalmente os fenômenos observáveis, e não simplesmente descrevem regularidades naturais, empíricas e contingentes –, ao mesmo tempo em que parece capturar o espírito da metapsicologia freudiana, a qual, como vimos, dedica–se a teorizar sobre o inobservável. A caracterização diferencial (novamente com relação ao positivismo) do que essa visão da ciência considera como progresso ou desenvolvimento científico reforça a impressão de familiaridade com os procedimentos de Freud, principalmente no que diz respeito à construção de modelos teóricos de múltiplas camadas, nos quais os níveis mais profundos explicam o que ocorre nos níveis mais superficiais e onde uma significação existencial é atribuída às entidades e/ou processos que constituem cada nível:

para o realista, [o progresso científico] consiste primariamente em aumentar a profundidade teórica, com cada nível de estruturas e mecanismos causalmente operativos sendo sucessivamente explicado por referência a outros níveis, mais profundos. Nesses desenvolvimentos, hipóteses existenciais concernentes a entidades previamente não imaginadas frequentemente desempenham um papel central – em contraste com as hipóteses universais enfatizadas pelos positivistas. (Keat, 1998, p. 585)

Quando aplicada às ciências da mente, essa concepção realista da ciência, com sua proposta de um naturalismo científico distinto daquele proposto pelo positivismo16, permite acomodar as explicações psicológicas num quadro geral elaborado para as ciências naturais como um todo, sem que seja necessário desqualificar os conceitos específicos desse campo de investigação e embarcar nas estratégias reducionistas que são típicas da filosofia da ciência positivista (redução do mental ao comportamental ou do mental ao neural, por exemplo):

Para os realistas, os conceitos mentalistas podem ser considerados como desempenhando uma função similar aos conceitos teóricos nas ciências naturais: referindo–se potencialmente a entidades, estruturas e processos inobserváveis e sendo empregados em teorias que podem ser testadas pelo seu poder explanatório como quaisquer outras. Daí que não haja uma razão a priori quer para eliminá–los completamente, quer para provê–los de definições operacionais em termos comportamentais, quer para considerá–los instrumentalmente, como não mais do que ficções convenientes ou dispositivos preditivos. (Keat, 1998, p. 585)

A admissão de proposições a respeito de entidades ou processos mentais tipicamente inobserváveis conduz naturalmente ao reconhecimento da possibilidade de caracterizá–los como inconscientes, com o que a referência a Freud e à psicanálise, dentro do contexto mais amplo em que essa concepção realista é aplicada às ciências da mente, torna–se praticamente inevitável:

Para o realista, nem sequer é preciso que o reino do mental seja restrito àquele da consciência. Daí que, enquanto os positivistas frequentemente consideraram a teoria psicanalítica como “não científica” ou, mesmo, “metafísica”, os realistas podem encarar os argumentos de Freud para a postulação de “o inconsciente” como estando em pé de igualdade com aqueles tipicamente aduzidos na postulação de entidades teóricas nas ciências naturais, e suas tentativas para especificar a natureza de suas estruturas e mecanismos como, em princípio, um exercício perfeitamente legítimo de teorização científica. (Keat, 1998, p. 585)

Esse autor, de fato, empreendeu, em outro trabalho, uma aplicação extensiva dessa visão de ciência à psicanálise freudiana – em especial, à sua teoria social –, acompanhando a crítica de Habermas ao positivismo, mas recusando as implicações antinaturalistas que este parece extrair como consequência. Nesse trabalho, a concepção realista da ciência apresentada acima aparece mais explicitamente caracterizada como um realismo teórico, em oposição ao realismo empírico positivista e ao privilégio epistêmico e ontológico do observável que, como vimos, este traz consigo. Deixando de lado o problema mais específico do livro – se uma teoria social naturalista (como a freudiana) pode ser uma teoria crítica, no sentido habermasiano, e estar, assim, a serviço do interesse emancipatório, e não apenas do interesse técnico ou comunicativo, dos agentes sociais – e nos concentrando apenas na discussão epistemológica envolvida, o argumento do autor pode ser desdobrado em três partes: 1) Freud pode ser mais bem compreendido como um realista; 2) a forma de realismo que melhor descreve sua epistemologia é a que o autor caracteriza como realismo teórico; 3) assim compreendido, removem–se os obstáculos para endossar o naturalismo científico tão claramente reivindicado por Freud. O realismo teórico proposto opõe–se, então, à visão positivista da ciência – quer em suas versões mais realistas, quer nas mais instrumentalistas – e reencontra as teses apresentadas anteriormente:

Mas há também formas não positivistas de realismo. Em particular, há a posição frequentemente chamada de “realismo teórico”, que difere do positivismo principalmente em não restringir a ontologia científica ao domínio do que é observável. Para os realistas teóricos, teorias científicas tipicamente fazem afirmações a respeito da natureza e da existência de itens inobserváveis […]. Além disso, o realismo teórico envolve a rejeição da análise positivista da causalidade como regularidade e a substitui por algum conceito de necessidade natural, e não lógica. (Keat, 1981, p. 20)

O projeto do autor é, declaradamente, aplicar esses pontos de vista sobre a ciência na caracterização da epistemologia freudiana, no contexto do debate crítico que empreende com a leitura que Habermas faz dessa mesma epistemologia:

Para mim, a peça central de Conhecimento e interesse é a discussão de Freud. Eu já estive interessado pela teoria psicanalítica, principalmente no contexto dos debates a respeito de seu status científico, e fui levado a pensar que ela pode ser mais bem compreendida, epistemologicamente, nos termos do realismo teórico apresentado em A teoria social como ciência. (Keat, 1981, p. vii). [grifos nossos]

Embora não seja a nossa preocupação principal aqui, cabe observar que essa interpretação abre caminho para uma aceitação do naturalismo psicológico no âmbito da epistemologia freudiana. Keat considera que a “autoincompreensão cientificista” (scientistic self–misunderstanding) que Habermas atribui a Freud – por este último ter entendido sua teoria como empírico–analítica e, portanto, comprometida apenas com o interesse técnico dos agentes sociais, e não como uma “ciência da autorreflexão”, comprometida com seu interesse emancipatório – resulta, ela mesma, de uma compreensão pobre de como funcionam as teorias científicas e, ao fim e ao cabo, da dificuldade de se desvencilhar da concepção de ciência natural que é proposta pelo positivismo, tomando–a como se fosse a única possível e, portanto, tendo que recusar o naturalismo como um todo como não fazendo jus à originalidade e ao potencial emancipatório que entrevê na teoria e na prática psicanalítica. Ele considera, ao contrário, que, desde que se desvincule a compreensão do sucesso terapêutico da psicanálise da ideia de que este consiste em libertar o sujeito do “reino da causalidade” – isto é, da ação determinante que os processos inconscientes exercem sobre a consciência e a intencionalidade da ação –, uma visão da psicanálise como prática emancipatória pode ser conciliada com sua fundamentação biológica e com a possibilidade da redução neurofisiológica que Freud parece admitir:

Eu argumento contra a sua [de Habermas] tentativa de eliminar uma concepção biológica dos instintos da teoria psicanalítica, que se reflete na sua incompreensão do conceito de id. Defendo, também, a possibilidade de uma redução neurofisiológica da psicanálise e sugiro que esta seja compatível com a caracterização dos processos terapêuticos como emancipatórios, desde que se rejeite a visão de Habermas de que tais processos envolvam um movimento para fora do reino da causalidade. (Keat, 1981, p. 10). [grifos nossos]

Novamente, não há espaço aqui para desenvolver mais longamente os argumentos que sustentam essa visão realista e naturalista da psicanálise freudiana, inclusive de sua teoria social, apresentada nos textos assim chamados “culturais” do corpus freudiano. Trata–se apenas de mostrar que tais interpretações existem e que elas parecem convergir com as reivindicações epistemológicas explicitamente formuladas por Freud, sobretudo o pertencimento da psicanálise ao domínio das ciências da natureza. Em interpretações antirrealistas da teoria freudiana, como a de Fulgencio (2008), examinada inicialmente, essas reivindicações só poderiam ser entendidas no contexto da heurística freudiana – um “como se” que permite instrumentar teoricamente uma prática e resolver problemas clínicos que, em última instância, referem–se a outra ordem de realidade, a saber, a dimensão propriamente antropológica da ação humana17. Como acabamos de ver, essas mesmas reivindicações podem ser interpretadas no âmbito de uma epistemologia realista, sem prejuízo, em princípio, para o modo como se concebem os efeitos da ação terapêutica. é necessário, no entanto, constatar ainda se tal interpretação realista da epistemologia freudiana encontra algum respaldo nos textos do próprio Freud. Como mencionamos acima, o livro de Fulgencio, aqui tomado como exemplar das interpretações antirrealistas da metapsicologia e da teoria psicanalítica freudiana como um todo, ilustra fartamente seus pontos de vista com as passagens dos textos de Freud que, segundo lhe parece, sustenta–los–ia. Trata–se agora de verificar, portanto, se é possível encontrar ali manifestações que sustentem também a interpretação oposta, antes que se possa concluir com a discussão das implicações e consequências que decorrem de uma e outra dessas leituras.

 

O realismo de Freud

Essa parte de nossa análise se desenvolve em dois momentos. Em primeiro lugar, é preciso percorrer as tomadas de posição epistemológicas mais explícitas de Freud, com relação ao conhecimento científico em geral e com relação a como ele concebe o lugar do conhecimento psicanalítico diante da atitude científica reconhecida como válida. Feito isso, pode–se passar a examinar um exemplo mais concreto de elaboração de um construto metapsicológico, para verificar se o que Freud propõe como um posicionamento epistemológico geral se confirma no trabalho teórico que ele efetivamente pratica. Quanto ao primeiro ponto, pode–se antecipar que Freud diversas vezes manifesta uma epistemologia que endossa de forma bastante clara uma postura realista, pelo menos no sentido mais amplo que se pode atribuir ao realismo científico, tal como definido no início deste ensaio (as passagens que suportam a interpretação antirrealista comentada acima são exaustivamente elencadas e analisadas em Fulgencio [2008] e o leitor pode remeter–se a elas). Quanto ao segundo, como um dos principais focos da análise de Fulgencio foi uma interpretação da noção de aparelho psíquico como uma ficção heurística, serão discutidas certas nuanças da formulação inicial desse conceito, no capítulo 7 de A interpretação dos sonhos, a fim de verificar se, para além da justificação do modelo em termos de sua utilidade teórica, há elementos que permitam uma interpretação mais realista do mesmo. Em caso afirmativo, será preciso discutir, antes de concluirmos, o significado dessa convivência de modelos ficcionais ou heurísticos, por um lado, e realistas por outro, no âmbito das elaborações metapsicológicas freudianas.

Um dos principais trabalhos em que Freud se detém mais longamente sobre a sua concepção de ciência e sob o pertencimento da psicanálise a esse campo é, como se sabe, a última da Nova série de conferências de introdução à psicanálise, que versa sobre o problema da visão de mundo (Weltanschauung) científica e de sua subscrição pela psicanálise. Aí, quando se propõe a caracterizar o pensamento científico como um todo, um viés realista aparece de forma bastante inequívoca e, inclusive, acompanhada de uma concepção de verdade como correspondência bastante claramente formulada:

[O pensamento científico] esforça–se por alcançar a concordância com a realidade (die übereinstimmung mit der Realität) – isto é, com o que existe fora (ausserhalb) de nós e independentemente (unabhängig) de nós e que, tal como a experiência nos ensinou, é decisivo para a satisfação ou para o desapontamento de nossos desejos. Chamamos verdade (Wahrheit) a essa concordância com o mundo externo real (realen Aussenwelt). Ela permanece sendo a meta do trabalho científico, mesmo se deixarmos de lado o valor prático desse trabalho. (Freud, 1933, p. 597)

Assim, quando Freud conclui esse texto com a célebre afirmação de que a psicanálise não constitui uma visão de mundo própria, uma vez que ela não pode deixar de assumir como sua a visão de mundo científica, não é surpreendente que ele explicite como característico da psicanálise esse traço realista do pensamento científico como um todo que foi enunciado na passagem acima:

Sou da opinião que a psicanálise é incapaz de criar uma visão de mundo própria. Ela não precisa de uma; ela é uma parte da ciência e pode aderir à visão de mundo científica. […] Uma visão de mundo erigida sobre a ciência tem, além de sua ênfase no mundo externo real (realen Aussenwelt), principalmente traços negativos, tal como a submissão à verdade e a rejeição de ilusões. (Freud, 1933, p. 608)

No Esboço de psicanálise, a mesma posição epistemológica é reafirmada, justamente numa passagem em que Freud compara sua hipótese do aparelho psíquico com as hipóteses e fundamentos das demais ciências. Como é uma visão realista da ciência que aí está sendo proposta, há razões para supor que uma interpretação realista da teoria do aparelho psíquico não seria um completo contrassenso (retornaremos a essa questão mais adiante). Seja como for, Freud insiste aqui em que a ciência deve ir além dos dados imediatamente acessíveis à observação, que esse “algo além” é relativamente independente do observador e que, consequentemente, deve ser pensado como mais real do que os dados puramente fenomênicos, ainda que o acesso a esse real permaneça problemático e, no limite, inexequível:

Na nossa ciência, assim como nas outras, o problema é o mesmo: por trás dos atributos (qualidades) do objeto em exame que se apresentam diretamente à nossa percepção, temos que descobrir algo mais, que é mais independente da capacidade receptiva de nossos órgãos dos sentidos e que se encontra mais próximo do que se pode supor como constituindo o estado de coisas real. (Freud, 1940, p. 196). [grifos nossos]

Poderíamos multiplicar os exemplos de afirmações realistas de Freud, de tom e intenção semelhantes. Assim, no verbete Psicanálise, escrito para o Handwörterbuch der Sexualwissenschaft em 1923, podemos ler: “pois, como todas as ciências, [a psicanálise] é não tendenciosa e tem apenas um único objetivo – a saber, chegar a uma visão consistente de uma parte da realidade” (Freud, 1923, p. 252) [grifos nossos]. Mas, antes de passarmos dessas considerações epistemológicas gerais – que parecem afirmar a existência de uma realidade independente do observador à qual se referem as proposições científicas – para o problema mais específico do status ontológico que Freud atribui aos objetos da psicanálise, é interessante considerar o posicionamento de Freud perante um autor emblemático do antirrealismo ficcionalista. Uma interpretação antirrealista da psicanálise, evidentemente, beneficiar–se–ia de uma aproximação entre Freud e a filosofia do “como se” de Hans Vaihinger. Fulgencio (2008, p. 240; p. 357) ensaia algumas vezes essa aproximação, que é ainda mais interessante para o seu argumento pelo fato de Vaihinger ser um pensador neokantiano, reforçando assim a tese de que a heurística freudiana deriva, sobretudo, do kantismo de Freud. No entanto, apesar de algumas formulações freudianas parecerem próximas ao espírito da filosofia do “como se” (die Philosophie des Als Ob), não é menos verdade que Freud também explicitamente a rejeita como um artifício filosófico – o que é tanto mais significativo quando se recorda a ênfase com que Freud considera a abordagem filosófica como inadequada ao conhecimento do inconsciente e à problemática psicanalítica como um todo. O fato de que, na passagem abaixo, o que está em questão não seja a ciência, mas sim as razões para se aceitar o ponto de vista da religião, apesar de seus contrassensos (Freud menciona Vaihinger lado a lado com o “Credo quia absurdum” cristão), não torna a rejeição do ficcionalismo dessa concepção menos explícito:

[A filosofia do “como se”] afirma que nossa atividade de pensamento inclui um grande número de hipóteses cuja falta de fundamento e, mesmo, cujo absurdo nós percebemos plenamente. Elas são chamadas de “ficções” (Fiktionen), mas, por uma variedade de razões práticas, temos que nos comportar “como se” (als ob) acreditássemos nessas ficções (Fiktionen). […] Mas eu considero que a exigência do “como se” (die Forderung des “Als Ob”) é tal que apenas um filósofo poderia apresentá–la. Alguém cujo pensamento não estiver influenciado pelos artifícios da filosofia (die Künste der Philosophie) nunca será capaz de aceitá–la; na visão de tal pessoa, a admissão de que algo é absurdo ou contrário à razão não deixa mais nada a ser dito. (Freud, 1927, pp. 162–163)

Fulgencio mesmo reconhece, diante dessa passagem, que, nela, “Freud parece apelar para um realismo das ficções propostas” (Fulgencio, 2008, p. 380). De qualquer maneira, ainda resta saber se esse realismo global que Freud parece às vezes atribuir à atitude científica como um todo se mantém quando ele se refere ao campo de investigação próprio da psicanálise – a mente, o aparelho psíquico, o inconsciente. é curioso que, por exemplo, em A questão da análise leiga, uma referência ao conceito de aparelho psíquico com essas mesmas ressonâncias realistas apareça logo antes de outra menção ao ficcionalismo de Vaihinger.18 Diz Freud nesse ponto:

Pois nós representamos o aparelho desconhecido que serve às atividades da mente como sendo realmente um instrumento construído de múltiplas partes (às quais nós nos referimos como “instâncias”), cada uma das quais desempenha uma função particular e possui uma relação espacial fixa com relação às outras: ficando entendido que por relação espacial queremos dizer, simplesmente, em primeiro lugar, a sucessão regular das funções. (Freud, 1926, p. 194). [grifos nossos]19

Essa referência ao aparelho psíquico serve para introduzir a discussão mais específica sobre a natureza desse aparelho e sobre o tipo de realidade que se lhe pode (ou não) atribuir. Embora todos os trechos mencionados acima, que sugerem a presença de uma epistemologia realista no pensamento de Freud, provenham de seus textos mais tardios (indicando que esta é a sua posição mais ou menos definitiva), cabe lembrar que o conceito de “realidade psíquica” (psychische Realität) foi introduzido, já na edição de 1909, no capítulo 7 de A interpretação dos sonhos, e aplicada, sobretudo, na caracterização dos desejos inconscientes que se manifestam nos sonhos. é claro que sempre se pode argumentar que “realidade” – ali, como nas demais passagens citadas acima – significa apenas um modo de falar, que permitiria tratar a subjetividade “como se” fosse real e objetiva, mesmo sabendo–se que ela não o é, pelo menos não no mesmo sentido em que os acontecimentos do mundo físico o são. Mas isso seria, evidentemente, resolver a questão por decreto, pré–julgar a resposta e recusar a discussão. Assim, por exemplo, embora o conceito de força possa ser, para uma leitura antirrealista, exemplar de uma ficção heurística, justificada apenas pela sua fecundidade explicativa – Fulgencio (2008, p. 77–81) assim o considera, referindo–o diretamente a suas origens kantianas –, podemos encontrar em Freud também afirmações como essa: “Os impulsos inconscientes revelados pelos sonhos não têm a importância de forças reais (realen Mächten) na vida mental?” (Freud, 1900, p. 587). E, logo a seguir, ele parece definir a realidade psíquica dos desejos inconscientes de uma maneira bastante literal:

Se considerarmos os desejos inconscientes reduzidos à sua forma mais fundamental e mais verdadeira, teremos que concluir, sem dúvida, que a realidade psíquica (psychische Realität) é uma forma particular de existência (eine besondere Existenzform), que não se deve confundir com a realidade material (materiellen Realität). (Freud, 1900, p. 587). [grifos do autor]

Dito isso, podemos passar diretamente para a discussão do estatuto de realidade que pode ou não ser concedido ao aparelho psíquico freudiano – afinal, a noção de realidade psíquica se aplica, antes de tudo, aos desejos e moções (Regungen) que constituem o inconsciente, a “parte” mais fundamental do aparelho freudiano. Para tanto, algumas noções têm que ser previamente precisadas. Que Freud, em algum momento, considere seu aparelho psíquico uma “ficção” é irrecusável: como veremos a seguir, ele o afirma textualmente. No entanto, sua construção admite algumas modulações que precisam ser explicitadas. As análises de Fulgencio (2008) discutidas acima, como têm por objetivo traçar um contraste entre os procedimentos clínico–empíricos da psicanálise e as especulações metapsicológicas, não se preocupam em distinguir com detalhe entre os diversos dispositivos conceituais passíveis de serem utilizados na elaboração das teorias científicas. Assim, por exemplo, com relação ao aparelho psíquico especificamente, podemos ler: “o modelo teórico proposto no Projeto, com a noção de um aparelho psíquico espacialmente figurável, também deve ser tomado como uma metáfora, um modelo teórico que Freud esperava ser útil para entender e poder agir sobre os fenômenos psíquicos” (ibid., p. 270–1. [grifos nossos]. No entanto, ainda que haja proximidade entre o uso de metáforas e de modelos na construção de teorias, eles não são procedimentos idênticos, além do que os modelos teóricos, especificamente, admitem mais de uma forma de interpretação e de utilização. Na continuidade, faremos referência aos trabalhos de Max Black (1962a, 1962b), ainda exemplares com relação a essas questões, com o objetivo de tornar mais precisos os sentidos e os usos dessas noções, para então tentar mostrar que Freud apresenta definições e caracterizações qualitativamente distintas do aparelho psíquico, das quais algumas são mais marcadamente ficcionais, enquanto outras se aproximam mais de uma atitude realista. é claro que nenhuma dessas apresentações de seu modelo é, por definição, uma descrição empírica de um objeto fenomênico, já tendo ficado estabelecido definitivamente que o realismo empírico não fornece uma perspectiva adequada para a elucidação do sentido das formulações metapsicológicas.

Quanto à metáfora, basta observar que um autor como Black enfatiza o valor cognitivo das metáforas e se opõe àqueles que as consideram um mero adorno ou decoração do discurso, em tudo inferior à linguagem literal e logicamente articulada. Para isso, ele propõe uma concepção da metáfora por interação, em oposição e em acréscimo às metáforas por substituição ou por comparação20. Na metáfora por interação, o tema principal (aquele que se quer expressar ou compreender) e o tema subsidiário (aquele que é utilizado figuradamente) não se substituem entre si, nem são propriamente comparados, mas permanecem “‘ativos em conjunto’ e ‘interagem’ para produzir um sentido que é resultante daquela interação” (Black, 1962a, p. 38). Para o autor, essa forma de metáfora permite superar os defeitos e limitações das duas primeiras e permite a elaboração do que ele denomina “uma metáfora não trivial” (ibid., p. 39), isto é, uma construção discursiva que permita um ganho cognitivo efetivo no tratamento do assunto em questão e não consista apenas num dispositivo didático. é esse ganho que confere certa autonomia à metáfora por interação, retirando–a da relação de dependência para com a eventual expressão literal da idéia que se está formulando. Assim, embora reconheça que nem todas as metáforas possam ser entendidas dessa maneira – e que, portanto, é possível classificar as metáforas como exemplos das formas por substituição, por comparação e por interação –, Black considera que apenas esta última tem importância para a filosofia (e, poderíamos acrescentar, para a linguagem científica). Isso porque:

metáforas por substituição e metáforas por comparação podem ser substituídas por traduções literais…, sacrificando–se algo do charme, da vivacidade ou da espirituosidade do original, mas sem nenhuma perda de conteúdo cognitivo. Mas as ‘metáforas por interação’ não são sacrificáveis. Seu modo de operação requer que o leitor utilize um sistema de implicações (um sistema de ‘lugares–comuns’ ou um sistema especialmente estabelecido para o propósito em vista) como um meio para selecionar, enfatizar e organizar relações num campo diferente. (Black, 1962a, p. 46). [grifos do autor]

A primeira apresentação que Freud faz do aparelho psíquico, no capítulo 7 da Traumdeutung, só pode ser considerada metafórica. Trata–se, evidentemente, da célebre compara ção com um aparelho ótico, um telescópio ou coisa semelhante. O objetivo imediato desse símile é ilustrar a idéia de localidade psíquica, que acabara de ser proposta, a partir da referência à frase de Fechner sobre o sonho ocorrer em outro cenário, distinto daquele em que transcorre a vida de vigília. A determinação que Freud manifesta aí de permanecer em terreno psicológico faz com que ele renuncie a falar de lugares anatômicos e substitua a referência aos mesmos pela referência a outra ordem de lugares – a disposição espacial das lentes de um aparelho ótico, dos espaços que as separam etc. –, capaz de ser figurativamente aproximada da estrutura da mente como um sistema composto por lugares não anatômicos (isto é, virtuais). Trata–se, então, de:

seguir a sugestão de que devemos representar (vorstellen) o instrumento que executa nossas operações mentais como semelhante a um microscópio composto ou um aparelho fotográfico, ou algo desse tipo. A localidade psíquica corresponde, então, a um lugar no interior do aparelho no qual se forma um dos estágios preliminares da imagem. Num microscópio ou telescópio, como se sabe, essas são, em parte, localizações ideais, regiões nas quais nenhum componente tangível do aparelho está situado. (Freud, 1900, p. 512)

Além de procurar esclarecer o sentido da recém–introduzida noção de localidade psíquica pelo conceito de imagem virtual, emprestado da ótica, essa comparação prepara o caminho para a construção do modelo teórico que se lhe segue, no qual uma significação funcional será atribuída a esses lugares ou sistemas, como se verá abaixo. A rigor, poder–se–ia dizer que se trata mais de um símile ou de uma analogia, uma vez que os dois termos da comparação são explicitados no texto (uma metáfora seria uma comparação implícita). Freud mesmo a considera assim, logo nas linhas seguintes do texto. Isso pareceria aproximar a imagem do aparelho ótico das metáforas por comparação, tal como esta foi definida acima. Contudo, é patente que Freud está aqui em busca de um ganho cognitivo novo, uma vez que é justamente a dificuldade de descrever direta e literalmente a relação dos processos mentais com sua base neurológica, a limitação do conhecimento disponível para tanto, que motiva a sua decisão de permanecer em terreno psicológico e expressar essa relação apenas metaforicamente. Já a interação entre os dois contextos – o tema primário (a mente, a psicologia) e subsidiário (o aparelho, a ótica), para usar o vocabulário de Black – permite que o conceito de localidade psíquica ganhe sentido e crie condições para o tratamento dos problemas teóricos complexos que serão abordados na continuidade. Seja como for, é inequivocamente de um símile ou de uma metáfora que se trata21, e qualquer interpretação mais realista do mesmo fica, ipso facto, excluída.

O desenvolvimento seguinte na construção da teoria do aparelho psíquico já consiste na elaboração de um modelo teórico, e não mais apenas de uma metáfora. Em outro trabalho, após considerar os modelos escalares e os modelos analógicos (mais os modelos matemáticos, como um caso particular, mas importante, destes últimos)22, Black parte para a consideração das propriedades distintivas dos modelos teóricos. Estes últimos têm como característica distintiva, segundo o autor, o objetivo de serem explicativos, e não apenas descritivos como os demais tipos de modelo. Eles consistem em descrever um dado conjunto de entidades pertencentes a um domínio primário, ainda pouco explorado ou cuja abordagem é, por alguma razão, problemática, nos termos – isto é, na linguagem teórica – de outro domínio de conhecimento (secundário), mais familiar, menos problemático, mais bem organizado etc. O exemplo clássico fornecido é o do conceito de éter na física de Maxwell e Kelvin, proposto como o meio através do qual atuam as forças de um campo eletromagnético e concebido como um fluido incompressível imaginário. Nesse caso, o domínio primário, menos bem conhecido, é o eletromagnetismo, enquanto o domínio secundário é a mecânica dos fluidos, cujas leis já tinham sido convenientemente estabelecidas no primeiro século após o surgimento da física moderna.

No entanto, essa definição geral dos modelos teóricos permite que, do ponto de vista metodológico, façam–se dois usos distintos dos mesmos: eles podem ser considerados apenas como uma invenção ou como um construto imaginário a serviço da resolução de certo tipo de problemas ou, ao contrário, podem comportar um “compromisso ontológico” muito maior, “estarem mais firmemente comprometidos com o idioma realista” (Black, 1962b, p. 227). No primeiro caso, nos termos de Black, estamos diante do uso dos modelos como ficções heurísticas; no segundo, de um uso existencial dos modelos, com ganhos e riscos diferenciados em cada caso:

No pensamento “como se”, há uma suspensão voluntária da descrença ontológica, e o preço pago, como Maxwell insiste, é a ausência de poder explanatório. Aqui, nós podemos falar do uso dos modelos como ficções heurísticas. Ao arriscar enunciados existenciais, entretanto, colhemos as vantagens de uma explicação, mas ficamos expostos aos perigos do autoengano…. O uso existencial dos modelos parece–me característico da prática dos grandes teóricos da física. (Black, 1962b, p. 228). [grifos do autor]23

Na sequência da exposição de Freud, em A interpretação dos sonhos, a metáfora do telescópio cede rapidamente lugar a um modelo teórico: os diversos segmentos do aparelho ótico convertem–se nas instâncias ou sistemas psíquicos. Uma série de princípios ou conclusões teóricas extraídas anteriormente por Freud – o conceito de reflexo, a incompatibilidade entre percepção e memória, a impossibilidade de diferentes princípios de organização vigorarem no mesmo sistema, a múltipla inscrição dos traços mnêmicos, a noção de regressão, as diferenças formais entre os processos suscetíveis e insuscetíveis de consciência, entre outras – vai convergir nesse modelo e interagir com as propriedades derivadas da metáfora inicial, isto é, a idéia de um sistema de lugares sucessivos, a orientação espacial etc. Disso tudo resulta que:

Representamos, então, o aparelho mental como um instrumento composto, cujos elementos chamaremos de instâncias (Instanzen) ou, para fins de maior clareza, sistemas (Systeme). A seguir, formulamos a expectativa de que esses sistemas devam possuir, talvez, uma orientação espacial uns com relação aos outros, do mesmo modo como os diversos sistemas de lentes de um telescópio se seguem uns aos outros. A rigor, não precisamos supor uma ordenação efetivamente espacial dos sistemas psíquicos. Basta–nos que uma sequência fixa entre eles tenha sido estabelecida, que, em determinados processos psíquicos, os sistemas sejam percorridos pela excitação numa determinada série temporal. […] Na continuidade, para fins de maior brevidade, referir–nos–emos aos componentes do aparelho como ‘sistemas–Y’. (Freud, 1900, p. 513). [grifos do autor]

Na sequência do texto – e ao longo de todo o capítulo 7 –, esse modelo será desenvolvido, suas propriedades detalhadas e, paralelamente, Freud explorar–lo–á no tratamento de questões que ficaram pendentes ao longo da obra, tanto teóricas como empíricas (por exemplo, a especificação do conceito de censura e a explicação do caráter alucinatório dos sonhos, respectivamente). O uso que Freud faz de seu modelo, nessa formulação, é claramente heurístico: não há nenhuma tentativa de argumentar que as coisas se passem realmente dessa maneira no cérebro ou na mente, que os sistemas propostos tenham qualquer espécie de realidade, funcional ou material. Mais adiante, quando Freud desenvolve sua reflexão sobre a gênese hipotética desse aparelho, seu estado primitivo voltado exclusivamente para a descarga imediata das excitações (esta, por sua vez, resultante da incorporação da noção de reflexo), e assim por diante, esse caráter ficcional pode ser explicitamente reconhecido:

Havíamos aprofundado a ficção (die Fiktion) de um aparelho psíquico primitivo, cujo trabalho era regulado pelo esforço de evitar a acumulação de excitação e para manter–se tanto quanto possível desprovido de excitação. Ele foi, por isso, construído segundo o esquema de um aparelho reflexo; a motricidade, a princípio, como caminho para a alteração interna do corpo, era a via de descarga disponível. (Freud, 1900, p. 568)

No entanto, no momento mesmo em que faz essa afirmação, Freud começa a desenvolver a sua noção de sistema psíquico numa direção que acabará por dar outra configuração à sua concepção do aparelho mental que esses sistemas constituem. A ênfase vai recair cada vez mais no modo de atividade próprio de cada um dos sistemas, principalmente dos dois que realmente importam para a distinção que Freud quer estabelecer, isto é, o inconsciente (Ics) e o pré–consciente (Prcs). Ao que Freud chama de primeiro sistema – primeiro na série temporal do desenvolvimento e, portanto, segundo as regras de construção do modelo, primeiro também na estrutura espacial do aparelho – corresponde um modo de funcionamento pautado pela tendência imediata à descarga das excitações pelo caminho mais direto possível; ao segundo sistema corresponde a inibição dessa tendência, com tudo que daí decorre: o rodeio interposto entre a necessidade e a ação em que consiste o pensamento, a possibilidade da sondagem da realidade (Realitätsprüfung) etc.24 Ao fim e ao cabo, uma equivalência perfeita vai ser estabelecida entre os dois modos de operação ou atividade e os dois sistemas aos quais, na prática, reduz–se agora a discussão da estrutura do aparelho: “Ao processo psíquico que somente o primeiro sistema admite eu chamarei agora de processo primário; ao que resulta da inibição imposta pelo segundo [sistema], processo secundário” (Freud, 1900, p. 571, grifos do autor).

Mas, estabelecida essa correspondência, a etapa seguinte é fazer a elaboração do modelo do aparelho avançar mais um passo e reconhecer que a representação das diferenças funcionais entre as diversas atividades da mente em termos de processos é mais precisa, mais rigorosa e, acima de tudo, mais próxima ao que se pode considerar como a realidade do mental, do que a sua representação em termos de sistemas. Nesse ponto, embora Freud reitere o caráter de representações auxiliares de suas formulações, sua provisoriedade e sua disposição a abandoná–las se for preciso – um tema onipresente em toda a caracterização do método da elaboração metapsicológica, como as análises de Fulgencio tão bem demonstraram –, esse procedimento é entendido como tendo uma orientação bem definida, isto é, como tentativas de aproximar–se progressivamente da realidade psíquica que os modelos construídos se destinam a representar. é claro que, por definição, nenhum modelo é uma descrição empírica de um fenômeno observável – em outras palavras, o recurso mesmo à elaboração de modelos teóricos exclui a idéia de um realismo empírico –, mas os modelos podem, como vimos acima, ser utilizados de uma forma mais ou menos realista, como ficções heurísticas às quais se atribui apenas uma significação instrumental, ou como representações indiretas de algo que se considera como real, às quais se atribui, por isso, uma significação existencial. Freud parece utilizar, de forma bastante consciente, seus modelos de ambas as maneiras, atribuindo, além disso, uma superioridade epistêmica aos modelos mais realistas:

Se considerarmos as coisas mais de perto, as elucidações psicológicas das seções anteriores não nos sugerem a suposição da existência de dois sistemas próximos da extremidade motora do aparelho, mas sim de dois processos ou de dois modos de decurso da excitação. Para nós dá no mesmo, pois sempre devemos estar dispostos a abandonar nossas representações auxiliares, quando nos encontrarmos em condições de substituí–las por alguma outra coisa que se aproxime melhor da realidade desconhecida (unbekannten Wirklichkeit). Tentemos agora corrigir algumas intuições, que puderam tomar forma equivocadamente, enquanto tivemos em vista os dois sistemas, no sentido mais imediato e mais grosseiro, como duas localidades situadas no interior do aparelho mental … (Freud, 1900, p. 578, grifos do autor)

E, a seguir, prosseguindo no intuito de neutralizar certas conotações introduzidas em seu vocabulário pela concepção da distinção espacial entre os sistemas – idéias como de “deslocar”, “irromper” e outras que pressupõem, em geral, uma mudança de lugar –, ele deixa bem claro que o modelo baseado em processos, e não mais em sistemas (localidades), deve a sua superioridade a uma correspondência mais rigorosa com a realidade que se trata de representar:

Agora, substituímos esses símiles (Gleichnisse) por algo que parece corresponder melhor ao estado de coisas real (dem realen Sachverhalt besser zu entsprechen scheint), isto é, que uma ocupação de energia foi imposta ou retirada de um determinado arranjo, de tal modo que a formação psíquica cai sob o domínio de uma instância ou dele escapa. Mais uma vez, substituímos aqui um modo de representação tópico por um dinâmico; não é a formação psíquica que nos aparece como móvel, mas sim sua inervação. (Freud, 1900, p. 578). [grifos nossos]

Como que para não deixar nenhuma dúvida, Freud justifica–se por continuar utilizando a noção de sistema – cuja inadequação relativa acabou de ser afirmada – em função da sua utilidade, de seu caráter intuitivo que permite visualizar mais facilmente os processos complexos que é preciso descrever. Ao mesmo tempo, deixa claro que a representação do mental em termos de processos é mais fidedigna por aproximar–se mais daquilo que se pode considerar como constituindo o real psíquico, isto é, o movimento de circulação das quantidades de excitação nervosa ao longo dos caminhos (Bahnen) por ela constituídos sobre as estruturas anatômicas do sistema nervoso:

Apesar disso, considero conveniente e justificável continuar fazendo uso da representação intuitiva (die anschauliche Vorstellung) dos dois sistemas. Evitaremos qualquer abuso desse modo de figuração (Darstellungsweise), se nos lembrarmos que representações, pensamentos e formações psíquicas em geral não podem ser localizados nos elementos orgânicos do sistema nervoso, mas sim, por assim, dizer, entre eles, onde resistências (Widerstände) e facilitações (Bahnungen) formam seus correlatos correspondentes. (Freud, 1900, p. 579)

Como se sabe, foi ao renunciar formalmente a estabelecer a distribuição neuroanatômica dos processos mentais – embora afirmando explicitamente que isso deva ser, em princípio, possível – que Freud começa a construir seu modelo do aparelho psíquico, como uma representação psicológica provisória daquilo que não era possível conhecer nem explicar diretamente, naquele momento, por referência à sua base neural. Freud deixa claro, ao longo de sua obra, que essa carência se refere tanto à falta de conhecimento empírico sobre essa base neural, quanto à falta de uma teoria que permita conceber a relação entre esta e o mental. Assim, é possível compreender que os modelos teóricos metapsicológicos admitam, para Freud, uma interpretação tanto mais realista – a atribuição de uma significação existencial, para usar os termos de Black – quanto mais permitam à teoria aproximar–se dessa “realidade desconhecida”, e uma interpretação tanto mais heurística (“como se”) quanto mais dela se afastem, ainda que seu emprego seja, em ambos os casos, pragmaticamente justificado pela contribuição que oferecem na resolução dos problemas clínicos e empíricos colocados pela intervenção e pela investigação psicanalítica.

 

Conclusão: os destinos da metapsicologia

Na análise que Black faz do uso de modelos teóricos na prática científica, ele deixa claro que o ganho cognitivo que se espera obter não provém do fato de que uma linguagem teórica seja, em si, mais ou menos adequada ou fácil de manejar do que outra, mas sim do grau de desenvolvimento do campo da investigação científica de onde provém a teoria que fornece o modelo. é assim que, como vimos, a mais bem conhecida e cientificamente madura mecânica dos fluidos pôde, nas décadas finais do século 19, fornecer um modelo hidráulico para a construção das teorias do campo eletromagnético , que engatinhavam então. Noutro exemplo, o autor mostra como esta última teoria pôde, mais recentemente, fornecer por sua vez um modelo capaz de permitir a resolução de um problema de geometria pura, que se mostrara refratário a outras estratégias de solução. Esse exemplo evidencia bem que o importante não é o maior ou menor grau de complexidade ou abstração das teorias envolvidas, mas apenas que um domínio seja mais bem explorado e conhecido do que o outro:

Diz–se, às vezes, que a virtude de trabalhar com modelos é a substituição de abstrações e fórmulas matemáticas por imagens ou qualquer outra forma de representação que seja prontamente visualizável. Mas o exemplo recém–mencionado mostra que essa visão enfatiza a coisa errada. Não é mais fácil visualizar uma rede de correntes elétricas do que visualizar um retângulo dissecado em quadrados componentes: a vantagem de pensar sobre correntes elétricas não é que nós possamos vê–las ou imaginá–las mais facilmente, mas sim que suas propriedades são mais bem conhecidas do que aquelas do campo de aplicação pretendido. (Black, 1962b, p. 232, grifos do autor)25

Parece ter sido exatamente essa a intenção de Freud quando abandonou seu projeto inicial de formulação de uma teoria neurológica da mente e passou a dedicar–se à construção de modelos vazados em linguagem predominantemente psicológica, os quais, como se procurou sugerir acima, admitem uma interpretação mais ou menos realista conforme o caso. é possível compreender dessa maneira por que a metapsicologia freudiana constitui uma infração gritante a um princípio de pureza epistemológica, herdado de Hughlings Jackson, que Freud ainda subscrevia inteiramente em seu trabalho sobre as afasias, a saber, o de não confundir descrições neurológicas e psicológicas e de manter separadas as duas linguagens. A não obediência a esse princípio seria um dos aspectos mais criticáveis do localizacionismo, remetido, por sua vez, à disparidade do conhecimento disponível sobre os dois domínios:

Eles [os autores criticados] consideravam apenas que a modificação da fibra nervosa pela excitação sensorial – que pertence à fisiologia – provoca na célula nervosa central outra modificação, que se torna então o correlato fisiológico da ‘representação’. Como sobre a representação eles sabem dizer muito mais do que sobre as modificações fisiológicas, desconhecidas e ainda não caracterizadas, servem–se da expressão elíptica: na célula nervosa estaria localizada uma representação. (Freud, 1891, p. 99). [grifos nossos]

A dificuldade de sustentar esse projeto diante do estado incipiente do conhecimento sobre o cérebro e o sistema nervoso, mesmo no plano da construção de modelos teóricos, já transparece claramente no Projeto de 1895, onde Freud se utiliza largamente do mesmo tipo de linguagem mista, neuropsicológica, que criticara em 1891 – como vimos, Fulgencio (2008) demonstrou com muita propriedade que já nesses trabalhos iniciais as construções freudianas não consistem em descrições empíricas de observáveis, embora possam beneficiar–se das observações disponíveis, como, por exemplo, aquelas que levaram aos primeiros esboços da teoria neuronal na última década do século 19. Ao longo do processo de elaboração de A interpretação dos sonhos, essa deficiência do conhecimento neurológico tornou–se mais e mais presente para Freud, até o ponto em que ele se resignou a exprimir sua teoria em termos psicológicos, de modo que a psicologia – a psicologia médica, a psicologia científica descritiva, a psicologia que o próprio Freud vinha desenvolvendo a partir de suas primeiras investigações clínicas – passou a operar como o domínio mais bem conhecido, capaz de fornecer os modelos para representar a “realidade desconhecida” dos processos nervosos que constituem a materialidade do mental. Daí que, quanto mais essa construção pudesse ser feita em termos compatíveis com o que era legítimo supor sobre esse domínio desconhecido, mais seria possível atribuir uma significação existencial aos modelos que dela resultassem – é mais razoável supor processos excitatórios, seja qual for a sua distribuição, como realmente ocorrendo no córtex cerebral do que aí inscrever estruturas espacialmente delimitadas que não sejam anatômicas. Ao contrário, quanto mais a teoria assumisse o aspecto de uma psicologia fechada sobre si mesma, mais se deveria considerá–la como um modo figurado de expressão, como uma construção do tipo “como se”. Na carta a Fliess de 22 de setembro de 1898, podemos ler:

Não estou inclinado, se forma alguma, a deixar a psicologia suspensa no ar, sem uma base orgânica. Mas, para além dessa convicção, não sei como prosseguir, nem teórica, nem terapeuticamente e, portanto, devo comportar–me como se apenas a psicologia estivesse sendo levada em consideração. Sequer ainda comecei a sondar por que não consigo encaixá–los juntos [o orgânico e o psicológico]. (Masson, 1985, p. 326). [grifos nossos]

Essa idéia de que é a limitação do conhecimento biológico e neurológico disponível que torna necessário restringir a teorização psicanalítica ao domínio do psicológico reaparece ao longo de todo o percurso da obra de Freud26. Assim, a provisoriedade das formulações metapsicológicas – o fato de elas serem consideradas como “andaimes” que podem ser descartados quanto o edifício estiver concluído – pode ser também interpretada como um compasso de espera, enquanto não se é capaz de atingir uma apresentação dos processos mentais que seja mais próxima da realidade. Essa provisoriedade não é, assim, necessariamente incompatível com uma leitura realista das teses metapsicológicas. Como procuramos ilustrar acima a propósito da teoria do aparelho psíquico, talvez nem todas as versões dessas teses possam ser entendidas estritamente da mesma maneira, seja ela realista ou antirrealista. Tudo se passa como se Freud estivesse constantemente à procura da epistemologia adequada à sua descoberta e ao campo de investigação que ele abriu e explorou, e essas tentativas dão margem a diversas interpretações, a partir das ferramentas disponíveis para a reflexão epistemológica que foram tomando forma desde então.

Essas interpretações talvez possam ser reunidas em dois grandes grupos. Para um, que valorize mais a dimensão clínica da psicanálise e o respeito à especificidade da ordem humana que essa prática pode permitir, a metapsicologia vai acabar por aparecer como um resíduo descartável de um naturalismo anacrônico. Para esse tipo de interesse clínico, a provisoriedade dos construtos metapsicológicos constantemente reafirmada por Freud pode ser generalizada como uma tese da provisoriedade da metapsicologia enquanto tal, de modo que o horizonte dessa interpretação passe a ser o futuro de uma psicanálise sem metapsicologia. Esta última deveria ser então considerada como um conjunto de ferramentas úteis a serem descartadas quando perdessem o corte. E quem pode duvidar que muitos instrumentos metapsicológicos (embora não todos), afiados quando de sua formulação original, perderam já o corte e pouco apelam hoje para a imaginação teórica do investigador contemporâneo no campo da psicologia? Retrospectivamente, esse horizonte vai fazer ressaltar o caráter heurístico, ficcional e, numa palavra, antirrealista dessa parte da teoria psicanalítica, a ser substituída por outra linguagem teórica (antropológica, fenomenológica etc.) mais adequada às peculiaridades de seu objeto. Ao contrário, para um intérprete mais interessado no potencial científico–naturalista da psicanálise e na contribuição que este possa oferecer à ciência contemporânea, uma ênfase compreensivelmente maior recairá sobre aqueles aspectos da teorização metapsicológica mais passíveis de uma interpretação realista, e aquela mesma provisoriedade será entendida como uma adaptação momentânea da teoria às limitações das formas de investigação científica com as quais conviveu; portanto, o horizonte dessa interpretação não será mais uma psicanálise sem metapsicologia, mas uma psicanálise provida de uma metapsicologia liberta daquelas limitações. Na sua Apresentação ao livro de Fulgencio, Loparic expressamente reconhece essa possibilidade:

Por um lado, ele [Fulgencio] fortaleceu, ainda que apenas indiretamente, a posição dos estudos recentes, que tentam substituir a metapsicologia especulativa de Freud, do tipo psicológico, kantiana, datada e em crise, por uma metapsicologia não–especulativa, baseada na neurociência positiva natural. (Loparic, 2008, p. 14)27

A interpretação de Fulgencio (2008), por tudo que se viu, é exemplar da primeira tendência e dos termos em que ela pode ser concretizada. Além de discuti–la, procurou–se apresentar aqui as condições sob as quais a tendência alternativa pode ser perseguida. Essas condições passam pela especificação do tipo de epistemologia adequada a essa perspectiva, o que se procurou também indicar, ainda que preliminarmente. Sobretudo, procurou–se evidenciar a possibilidade de uma interpretação realista da metapsicologia e introduzir a discussão do tipo de realismo adequado à empresa freudiana, além de mostrar que o próprio Freud, à sua maneira, não permaneceu alheio a essas questões. Parece–me perfeitamente desnecessário argumentar pelas vantagens de um ponto de vista sobre o outro, ou sobre qual das duas leituras de Freud é mais correta. Isso seria retornar ao dogmatismo e ao esprit de corps sectário que a análise epistemológica da psicanálise deveria permitir dissolver. Basta que se identifiquem com rigor quais as premissas, as implicações e os desdobramentos das várias abordagens possíveis e teoricamente justificáveis, assim como quais desenvolvimentos e compromissos epistemológicos freudianos convergem mais eficientemente com cada uma delas.

 

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Enviado em 15/2/2009
Aprovado em 25/6/2009

Endereço para correspondência
E–mail: richardsimanke@uol.com.br

 

 

 

1 Este trabalho resultou da participação, juntamente com Renato Mezan e Zeljko Loparic, na mesa–redonda “Passado e futuro da metapsicologia”, organizada pela Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana em setembro de 2008, de cujo debate ele muito se beneficiou. Ele recebeu o apoio do CNPq sob a forma da Bolsa de Produtividade em Pesquisa concedida ao projeto “Psicanálise, ciência e neurociência: Freud e a epistemologia das ciências da mente contemporâneas”, ao qual se encontra vinculado.
2 Para os propósitos deste trabalho, é suficiente partir de uma definição bastante padronizada e abrangente de realismo científico como a doutrina que “afirma que os objetos do conhecimento científico existem independentemente das mentes ou atos dos cientistas e que as teorias científicas são verdadeiras à medida que se refiram a esse mundo objetivo (independente da mente)” (Fine, 1998, p. 581). Sendo assim, o realismo é, por um lado, uma tese metafísica, que afirma a existência de certo tipo de entidades, e, por outro, uma tese epistemológica, que afirma o quanto é possível conhecer a respeito dessas entidades e qual o estatuto desse conhecimento. Há diversas formas de realismo (Harré, 1986), duas das quais – o realismo empírico e o realismo teórico – são discutidas mais longamente no que se segue.
3 O ponto de partida deste artigo foi, de fato, a intenção de fazer uma resenha de O método especulativo de Freud. O interesse e as ramificações das questões aí desenvolvidas e a extensão dos comentários necessários para fazer–lhes justiça acabou exigindo que se desse ao texto as dimensões de um artigo.
4 Tal como acontece com o realismo, pode–se falar de diversos “antirrealismos” que, de modo geral, negam a existência independente das entidades ou processos de que fala a ciência. é possível distinguir–se aí, um tanto esquematicamente, o instrumentalismo (que coloca a ênfase na função pragmática, na confiabilidade e na adequação empírica, e não na verdade das proposições científicas), o ficcionalismo (variante do primeiro, que nega a existência das entidades postuladas pelos realistas e as considera como criações mais ou menos livres do espírito), o convencionalismo (que afirma que as verdades científicas são convenções, em vez de descrições), o fenomenalismo (que só leva em conta a realidade das sensações) e o construtivismo (que considera como construções sociais os próprios “fatos” que a ciência investiga). Alguns nomes próprios são tradicionalmente elegidos para ilustrar essas posições e podem facilitar sua identificação: Duhem (instrumentalismo), Vaihinger (ficcionalismo), Poincaré (convencionalismo), Mach (fenomenalismo) e, na epistemologia mais recente, van Fraassen (construtivismo). Nem sempre a distinção entre eles é estabelecida claramente, e é comum, na literatura sobre o tema, vermos um filósofo realista eleger uma das formas do antirrealismo para representar o todo ao qual se opõe, e vice–versa. Fulgencio (2008) tampouco se detém nessa distinção, e sua apresentação de Freud transita entre o convencionalismo, o instrumentalismo e o ficcionalismo. Mas essa distinção não é importante para o seu argumento e, tampouco, para o comentário que se segue.
5 Para uma discussão mais detalhada dessas questões, ver Simanke (2007).
6 Grünbaum (1984), por exemplo, considera que as hipóteses clínicas da psicanálise, ao contrário das formulações metapsicológicas, são falsificáveis – no sentido popperiano e ao contrário do que o próprio Popper acreditava – e, portanto, científicas segundo esse critério de demarcação, procurando mostrar como elas já teriam sido, de fato, falsificadas pela não verificação empírica das previsões que delas se podem derivar, quando testadas independentemente.
7 Embora isso não seja dito claramente, o autor parece concordar com a idéia de que a monografia de 1891 possa já ser considerada, sob certo aspecto, como um trabalho metapsicológico (um comentário desse texto e um desenvolvimento mais detalhado dessa interpretação podem ser encontrados em Simanke [2006]). De fato, ele reitera sua hipótese, logo a seguir, nos seguintes termos: “Apesar de Freud considerar esse texto pertencente aos seus trabalhos de neurologia, ele aí elabora, de fato, um tipo de psicologia que, ao hipotetizar um ‘aparelho de linguagem’, constrói o precursor do ‘aparelho psíquico’, e nada mais é do que um instrumento de pesquisa, uma ficção teórica” (Fulgencio, 2008, p. 115, grifos do autor).
8 Nesse livro, Fulgencio trata mais explicitamente do caráter provisório das construções metapsicológicas; sua condição de “descartáveis” aparece mais em trabalhos mais recentes do autor, ainda inéditos. é claro que se poderia argumentar que uma característica pode ser simplesmente deduzida da outra: nada é provisório, se não puder ser abandonado ou descartado. No entanto, a relação entre esses termos deixa de ser autoevidente, caso se considere a possibilidade de um abandono total da metapsicologia, e não apenas da substituição mais ou menos permanente de seus modelos uns pelos outros. é nessa direção que caminha a argumentação de Fulgencio, a saber, a de uma psicanálise sem metapsicologia, como fica claro ao final do livro. Discutirei adiante como esse posicionamento é consistente com sua interpretação ficcional dos conceitos metapsicológicos. Outra possibilidade de se entender a provisoriedade atribuída por Freud a seus modelos – no sentido de que estes devam se aproximar, progressivamente, de uma representação mais adequada dos processos de que a psicanálise se ocupa – exigiria, por sua vez, uma interpretação mais realista dos mesmos.
9 Ou, em outra passagem, referindo–se especificamente à teoria do aparelho psíquico: “O aparelho psíquico […] corresponde a uma especulação provisoriamente necessária para que se possam buscar explicações mais completas sobre a vida psíquica do homem em termos naturalistas (objetificada por uma psicologia que se coloca como uma ciência empírica naturalista)” (Fulgencio, 2008, p. 275).
10 Ou, ainda: “O psiquismo não é, para Freud, um objeto metafísico, mas um objeto natural, tomado pela psicanálise como qualquer outro objeto estrangeiro ao homem, passível de ser explicado pelas mesmas leis que governam a natureza” (Fulgencio, 2008, p. 133).
11 O autor parece entender que a passagem para os modelos psicológicos do aparelho resultou numa acentuação de seu caráter especulativo, que seria pelo menos moderado enquanto se conservasse a referência à anatomia nervosa. De fato, em várias passagens ele parece equiparar “empírico” a “anatômico”. Assim, na avaliação do trabalho sobre as afasias, já mencionada acima, encontramos a oposição entre “descrição anatômica” (que seria empírica) e “modelo dinâmico enquanto uma ficção heurística”. Em outra passagem, afirma, mais explicitamente, que o modelo do Projeto “não é um conjunto de hipóteses biológicas que busca um referente empírico objetivo (anatômico) […], mas uma metáfora” (Fulgencio, 2008, p. 260). [grifos nossos].
12 Em outro ponto, é explicitado o que significa “considerar Freud um realista”, a saber, considerá–lo “como um cientista que tomava suas representações auxiliares – que caracterizam sua metapsicologia, tanto a do Projeto quanto a que será elaborada mais tarde – como um conjunto de conceitos que teriam um hipotético referente empírico na realidade fenomênica …” (Fulgencio, 2008, p. 259). [grifos nossos].
13 MacKay ilustra essa atitude, por exemplo, com a conhecida crítica de Freud a Janet por considerar o inconsciente como apenas une façon de parler. Quanto a Freud, ao contrário, “embora ele enfatize a natureza hipotética dos conceitos, […] está sempre pronto a asseverar que os processos inconscientes dos quais a psicanálise fala são reais” (MacKay, 1989, p. 147).
14 Também Juignet, que discutimos acima, estabelece esse nexo entre a recusa do realismo empírico e a necessidade de construção teórica na caracterização do realismo que se pode atribuir a Freud: “O inconsciente é o campo do real psíquico que se postula. O psicanalista diz a verdade, pois ele ultrapassa o realismo empírico. […] a reconstituição teórica feita a partir da realidade fenomenal reenvia a processos empíricos reais” (Juignet 2000, p. 120). [grifos nossos]
15 Em outra passagem, esse realismo qualificado é mais claramente apontado como constituindo a “filosofia da ciência” que se pode encontrar em Freud: “A filosofia da ciência de Freud é um realismo, e sua abordagem da psicologia é materialista. Mas ela é qualificada pela compreensão de que os processos dos quais a ciência – inclusive a ciência da mente – fala podem ser conhecidos apenas indiretamente” (MacKay, 1989, pp. 10–11 e 174). [grifos nossos].
16 é um traço comum aos autores que desenvolvem essa linha de reflexão epistemológica a crítica à confusão entre o naturalismo em geral e a visão especificamente positivista do naturalismo científico, de tal modo que a crítica deste último leve à rejeição do primeiro. Por isso, essa visão realista da ciência muito frequentemente se faz acompanhar de uma defesa de um naturalismo capaz de ser estendido também às ciências sociais ou humanas: um naturalismo que “pode ser definido como a tese de que há (ou pode haver) uma unidade essencial de método entre as ciências naturais e sociais” (Bhaskar, 1989, p. 2). Ele não deve ser confundido, assim, com o reducionismo ou o cientificismo, que seriam formas de naturalismo (no caso do cientificismo, mais uma ideologia científica do que uma posição epistemológica), mas não as únicas possíveis. Assim, prossegue o autor, “em contraste com essas duas formas de naturalismo, pretendo defender um naturalismo qualificado e antipositivista, baseado numa visão essencialmente realista da ciência. Esse naturalismo sustenta que é possível propor uma abordagem da ciência sob a qual podem caber os métodos próprios e mais ou menos específicos tanto das ciências naturais quanto das sociais” (ibid., p. 2–3). [grifos nossos]
17 Compreensivelmente, Keat manifesta–se enfaticamente contra uma visão exclusivamente antropológica da ação humana e contra a tendência, que percebe em Habermas, de considerá–la como estando fora da natureza: “Também sugiro que sua teoria [de Habermas] envolve uma dicotomia inaceitável entre a natureza e os humanos, que tanto oculta a diversidade de diferentes tipos de ‘seres naturais’, especialmente seres orgânicos, quanto, de fato, ‘desnaturaliza’ os seres humanos ao defini–los exclusivamente em termos de suas características distintivas da espécie (species–distinctive), especialmente a linguagem” (Keat, 1981, p. 10). [grifos do autor]
18 Contudo, ao longo dessa passagem, Freud diz: “Parece–me desnecessário apelar aqui para o ‘como se’, que se tornou tão popular” (Freud, 1926, p. 194). [grifos nossos].
19 O aparelho psíquico freudiano, assim definido, lembra sobremaneira o conceito de sistema funcional, crucial nas teorias de Alexander Luria – neuropsicólogo russo, materialista e pouco suspeito de simpatias por uma visão ficcionalista das teorias científicas (ver Luria, 1973). Uma análise mais detalhada da convergência entre esses dois autores seria, certamente, esclarecedora, mas terá que ser empreendida em outro lugar.
20 “Qualquer concepção que sustente que uma expressão metafórica é usada no lugar de alguma expressão literal equivalente, eu chamarei uma concepção da metáfora por substituição” (Black, 1962a, p. 31, grifos do autor). “Se um escritor sustenta que uma metáfora consiste na apresentação de uma analogia ou similaridade subjacente, ele estará assumindo o que eu chamarei de uma concepção da metáfora por comparação” (ibid, p. 35). [grifos do autor].
21 No entanto, Black observa que a metáfora por comparação nem sempre se restringe a explorar passivamente uma similaridade preexistente e pode assim produzir algum conhecimento novo sobre o assunto em foco: “Seria mais iluminador, em alguns desses casos, dizer que a metáfora cria a similaridade do que dizer que ela formula uma similaridade anteriormente existente” (Black, 1962a, p. 37). E prossegue, sobre a distinção entre símile, comparação e metáfora: “Uma comparação é frequentemente o prelúdio para um enunciado explícito das bases de semelhança, enquanto nós não esperamos que uma metáfora se explique a si mesma. […] Mas, sem dúvida, a fronteira entre algumas metáforas e alguns símiles não é uma linha precisa” (ibid., p. 37).
22 Os modelos escalares (uma maquete, por exemplo) representam iconicamente seu objeto em outra escala de grandeza, preservando as proporções do original e as características que se pretendem enfatizar. Os modelos analógicos envolvem “uma mudança de meio. Penso em exemplos como os modelos hidráulicos de sistemas econômicos ou o uso de circuitos elétricos em computadores” (Black, 1962b, p. 222). Seu objetivo é, pois, reproduzir a estrutura do original; seu princípio básico de construção é o isomorfismo, assim como o princípio básico dos modelos escalares é a proporcionalidade.
23 Black ilustra a diferença com a evolução do pensamento de Maxwell, de uma concepção mais heurística do éter para uma mais realista, onde as linhas de força de Faraday “não devem mais ser consideradas como meras abstrações matemáticas”, e complementa: “Certamente, não há como falar de uma colocação de propriedades imaginárias. O meio puramente geométrico tornou–se muito substancial” (Black, 1962b, p. 227). Kelvin teria sido ainda mais realista com relação ao conceito: “Há certamente uma vasta diferença entre tratar o éter como uma mera conveniência heurística, como as primeiras observações de Maxwell requerem, e tratá–lo ao modo de Kelvin, como ‘matéria real’, possuindo propriedades definidas – embora, com certeza, paradoxais – e independentes da nossa imaginação” (ibid., p. 228).
24 Freud deixa claro que é somente a distinção entre esses dois modos de operação que está em questão aqui: “Eu me atenho apenas à idéia de que a atividade do primeiro sistema Y está voltada para a livre descarga das quantidades de excitação, e que o segundo sistema produz, pelas ocupações (Besetzungen) que dele partem, uma inibição (Hemmung) dessa descarga, sua transformação numa ocupação em repouso (ruhende Besetzung) …” (Freud, 1900, p. 569, grifos do autor). Freud já reconhecera um pouco antes que a noção de sistema era apenas um modo de referir–se aos distintos modos de operação: “Assim, tornou–se necessária uma segunda atividade – no nosso modo de dizer, a atividade de um segundo sistema …” (ibid., p. 568).
25 Ou ainda: “Tem sido dito que o modelo deve pertencer a um reino mais ‘familiar’ do que o sistema ao qual ele é aplicado. Isso é bem verdade, caso se assuma que familiaridade quer dizer pertencente a uma teoria bem estabelecida e amplamente explorada.” (Black, 1962b, p. 233).
26 Por exemplo: “Pois é fácil descrever o inconsciente e seguir seus desenvolvimentos, se ele é abordado pelo lado das suas relações com o consciente, com o qual ele tem tanto em comum. Por outro lado, não parece ainda haver nenhuma possibilidade de abordá–lo pelo lado dos eventos físicos. Assim, ele deve permanecer sendo um tema para a investigação psicológica” (Freud, 1913, p. 179). Ou ainda: “A estrutura teórica da psicanálise que nós criamos é, na verdade, uma superestrutura, que um dia terá que ser assentada em sua fundamentação orgânica. Mas nós ainda a ignoramos” (Freud, 1916–1917, p. 389).
27 No entanto, o reconhecimento dessa possibilidade parece tornar necessário relativizar a conclusão de que a análise de Fulgencio distancia Freud de “qualquer interpretação realista” (Loparic, 2008, p. 13), como se procurou argumentar acima. A ênfase no ponto de vista heurístico pode ter por efeito traçar–se uma oposição simples entre um realismo empírico–observacional, por um lado, e um ficcionalismo, por outro, numa espécie de hiperpositivismo, para o qual tudo que não fosse descrição seria, inevitavelmente, especulação, no pior sentido da palavra. Spence, por exemplo, que se apoia integralmente nas análises de Black, parece simplesmente não levar em conta a possibilidade de um uso existencial dos modelos teóricos, identificando–os em bloco como ficções heurísticas e aproximando–os da metáfora. Isso resulta, compreensivelmente, numa distorção da abordagem freudiana: “Uma metáfora morta, como vimos, aproxima–se mais de ser confundida com o que estamos tentando descrever. A despeito da sensibilidade de Freud para essa questão, ele frequentemente deixou de lado a distinção entre modelo e observação e tendeu a tratar sua metáfora como se fosse uma parte confirmada da realidade” (Spence, 1987, p. 36).