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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.12 no.2 São Paulo  2010

 

ARTIGOS

Descartes, Freud e a Experiência da Loucura*

 

Descartes, Freud and the experience of madness

 

 

Joel Birman

Professor titular no Instituto de Psicologia da Universidade Federal Rio de Janeiro. Professor Adjunto no Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual Rio de Janeiro. Diretor de Estudos em Letras e Ciências Humanas, Universidade Paris VII.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A finalidade deste ensaio é recompor o grande debate teórico estabelecido entre Derrida e Foucault, entre 1963 e 1991, sobre a experiência da loucura. Esse debate se realizou em três tempos. Além de colocar em destaque as posições da psiquiatria e da psicanálise na História da loucura, tal debate colocou em cena ainda duas modalidades diferentes de compreender a filosofia. O efeito da psicanálise na História da loucura foi colocado em questão por Foucault e Derrida de diferentes maneiras.

Palavras-chaves: Freud, Razão, loucura.


Abstract

The aim of this paper is of recomposing the very important theoretical debate between Derrida and Foucault, about the experience of madness that happened between 1963-1991. This debate was accomplished in three times. Beyond to put in prominence the places of the psychiatry and the psychoanalysis in the History of madness, the debate put in question too two different ways of understanding the philosophy. The effect of psychoanalysis in the History of madness was put in question by Foucault and Derrida in different ways.

Key-words: Freud, Reason, madness.


 

 

1. Arquivo

O objeto deste ensaio é a restauração e a recomposição do rico debate travado entre Derrida e Foucault, que se teceu em três tempos, entre 1963 e 1991. A grande questão desse debate foi a problemática da loucura (Foucault, 1961). O que esteve em pauta nessa polêmica foi a interlocução estabelecida entre diferentes discursos filosóficos sobre a experiência da loucura. Nessa interlocução tanto a psiquiatria quanto a psicanálise foram devidamente colocadas em destaque em decorrência de suas possibilidades e impossibilidades de poderem dizer alguma coisa que fosse efetiva sobre a radicalidade dessa experiência.

Nesse diálogo, contudo, o que estava em questão eram não apenas diferentes concepções da filosofia, mas também as possibilidades e os impasses da inscrição do discurso filosófico no campo da história. Dito de uma outra maneira, o que estava colocado na cena do embate teórico era a efetiva abertura ou não do discurso filosófico ao registro do acontecimento (Foucault, 1994b, p. 283).

Assim, em 1963, dois anos após a publicação do livro monumental de Foucault, intitulado "Loucura e desrazão: história da loucura na Idade Clássica" (Foucault, 1961), Derrida proferiu uma longa conferência no Collège Philosophique, que foi centrada numa leitura crítica dessa obra seminal de Foucault. O ensaio de Derrida foi publicado logo em seguida na "Revue de Métaphysique et Morale" e inserido posteriormente no livro "A escrita e a diferença", sob o título de "Cogito e história da loucura" (Derrida, 1966).

Se afirmo que o livro de Foucault era monumental, é para enfatizar a qualificação que foi enunciada sobre essa obra pelo próprio Derrida, num texto posterior intitulado "Fazer justiça a Freud" (Derrida, 1992), e que se inseriu posteriormente no campo desse debate, em 1991. Além disso, no ensaio intitulado "A história da loucura como acontecimento", Canguilhem nos disse que, com essa obra, Foucault havia escrito o livro do século (Canguilhem, 1986). Finalmente, em 1991, na "Abertura" do colóquio denominado "A história da loucura - 30 anos depois" (Canguilhem, 1992, pp. 39-42), Canguilhem nos disse ainda que, com essa obra magistral, o mundo descobrira um "verdadeiro grande filósofo" (Canguilhem, 1992, p. 42).

Retornando agora ao calor e ao delineamento do debate, Foucault assistira como ouvinte à conferência de Derrida, que o homenageou na abertura por ter sido um de seus mestres em sua formação filosófica, e tentava assim sair da posição de discípulo com essa leitura crítica sobre a grande obra do mestre (Derrida, 1966, pp. 51-52). Contudo, Foucault manteve-se em silêncio durante todas as discussões que se seguiram à conferência.

Porém, em 1972, Foucault respondeu a Derrida em dois textos, intitulados "Meu corpo, este papel, este fogo" (Foucault, 1994a, pp. 245-268) e "Resposta a Derrida" (Foucault, 1994b, pp. 269-285), respectivamente. Na dedicatória a Derrida, no último texto, Foucault se desculpou inicialmente por ter respondido tão tarde (Foucault, 1994b, p. 282), para criticar sistematicamente, em seguida, o texto de Derrida.

No entanto, essa réplica de Foucault produziu uma grave dissensão entre os dois filósofos por nove anos, que nunca mais se falaram desde então. Porém, o impasse foi efetivamente superado em 1981, quando Foucault liderou uma mobilização de intelectuais franceses pela libertação de Derrida, que fora preso em Praga quando ministrava um seminário para os dissidentes. Isso não implicou, contudo, na retomada do debate em questão.

Entretanto, em 1991, quando a Sociedade de História da Psiquiatria e da Psicanálise organizou, em Paris, o colóquio intitulado "A história da loucura - 30 anos depois", Derrida realizou então uma outra leitura da obra de Foucault, denominada agora "Fazer justiça a Freud". O que estava em pauta aqui não era apenas a "História da loucura na Idade Clássica", mas todas as demais obras daquele autor nas quais existiam referências à psicanálise, quais sejam o "Nascimento da clínica" (Foucault, 1963), "As palavras e as coisas" (Foucault, 1966) e "A vontade de saber" (Foucault, 1976), além das referências complementares em "O uso dos prazeres" (Foucault, 1984b) e "O cuidado de si" (Foucault, 1984a).

A minha intenção neste ensaio é colocar em destaque e empreender a leitura dos diversos argumentos que foram sustentados pelos dois filósofos ao longo desse rico debate, que conserva ainda a sua atualidade e o seu vigor no que concerne tanto à filosofia quanto à psicanálise, tendo na problemática da loucura o seu foco fundamental. Enfim, a pretensão é a de restaurar o arquivo da polêmica em pauta.

 

2. Tradição crítica e tradição trágica

Para que se possam recompor devidamente os termos do debate em questão, é preciso começar pela evocação das teses fundamentais que foram sustentadas por Foucault em "História da loucura na Idade Clássica", mesmo que seja de maneira esquemática, para que se possam situar devidamente as diferentes críticas, isto é, a réplica e a tréplica que a polêmica efetivamente produziu ao longo do tempo entre os dois filósofos. Isso porque foi pelo enunciado e pelo desenvolvimento das ditas teses de Foucault que a polêmica se constituiu efetivamente.

Como indica literalmente o próprio título do livro de Foucault, a sua pretensão nessa obra foi realizar uma leitura da "História da loucura na Idade Clássica", que teria engendrado um efeito de descontinuidade na relação da tradição do Ocidente com a experiência da loucura. Em decorrência disso, Foucault examinou, de maneira esquemática, tanto o tempo histórico anterior à ruptura em questão quanto os desdobramentos engendrados pela dita ruptura na modernidade, de forma mais longa e minuciosa. Compreende-se facilmente, portanto, porque o livro de Foucault tenha sido considerado monumental por Derrida, dada a envergadura teórica do projeto que fora realizado. Enfim, o projeto teórico de Foucault não era empreender uma História da psiquiatria, mas uma História da loucura, na qual aquela se inscrevia no campo desta, estando justamente aqui a sua originalidade.

Assim, na leitura de Foucault, a descontinuidade em pauta centrar-se-ia na constituição histórica que foi estabelecida pela oposição entre os registros da razão e da desrazão, isto é, em uma divisão primordial que se teria produzido no próprio campo da razão e pela qual esta teria colocado a desrazão como lhe sendo exterior e estrangeira, excluída que fora do campo do seu território simbólico de pertencimento. Isso implica dizer que a experiência da loucura foi excluída dos registros do sujeito e do pensamento, não podendo mais ter a pretensão de engendrar algo que seja da ordem da obra. Vale dizer, a loucura como desrazão foi efetivamente excluída do registro da verdade (Foucault, 1972, pp. 56-59).

Portanto, se durante a Idade Média e o Renascimento existia ainda um reconhecimento simbólico de que a loucura poderia dizer a verdade, que tinha como contrapartida a circulação social e geográfica dos loucos no território europeu, esse reconhecimento e essa circulação social foram interrompidos no final do século XVI e no início do século XVII. Com efeito, uma transformação radical se produziu, então, que delineou um outro destino para a experiência da loucura no Ocidente, na qual esta passou a ser configurada como ausência de obra (Foucault, 1972, pp. 13-55).

Foi essa transformação crucial que teve a radicalidade e a dimensão de ser um efetivo acontecimento na tradição ocidental, pela descontinuidade que produziu nesta. Por isso mesmo, foi a condição histórica de possibilidade para a emergência de outros acontecimentos históricos que modularam posteriormente a História da loucura no Ocidente.

A indagação que se impõe é o que estava em pauta nesse acontecimento inaugural e originário, afinal das contas, que redimensionou o lugar e a posição da experiência da loucura em nossa tradição?

A constituição de Hospitais Gerais (França), de Workhouses (Inglaterra) e de Zuchthäusern (Alemanha) se deu, ao mesmo tempo, pela exclusão de todos aqueles que ameaçavam de alguma maneira a ordem social (Foucault, 1972, pp. 56-91). Assim, por meio das "Lettres de cachet" (Foucault, 1972), o Rei afastava definitivamente do espaço social todos os personagens que representavam uma ameaça efetiva para a ordem social e que eram então considerados perigosos. Com efeito, dos mendigos aos depravados, passando pelos vagabundos, pelos blasfemadores e pelos loucos, uma ampla massa da população foi assim sistematicamente excluída do espaço social.

A finalidade de dita exclusão social não era absolutamente de ordem médica, mas se inscrevia nos registros político, repressivo e moral (Foucault, 1972), ao mesmo tempo. No interior dessas instituições os excluídos eram submetidos não apenas a uma vigilância permanente, mas também ao imperativo severo do trabalho (Foucault, 1972, pp. 92-123), na aurora histórica do capitalismo mercantil (Foucault, 1972).

Portanto, os loucos se inseriam num campo e num conjunto evidentemente bem mais amplo, constituídos que eram por tudo aquilo que representava a periculosidade social. Esta condensava assim o mundo simbólico do Mal. Daí por que a construção dos Hospitais Gerais na França, assim com de suas versões inglesa e alemã, se realizou efetivamente nos antigos espaços sociais dos leprosários, que eram a representação maior do Mal e da morte na Idade Média (Foucault, 1972, pp. 13-55). Foram assim reconfiguradas com os novos excluídos, com efeito, as novas faces terroríficas assumidas então pelo Mal e pela morte na tradição europeia.

Ao lado disso, no entanto, Foucault enunciou a constituição correlata do discurso filosófico de Descartes como o Outro dessa renovação política e institucional, que implicava também um campo de novas práticas sociais (Foucault, 1972, pp. 56-59). Estaria justamente aqui a ousadia teórica proposta por Foucault ao inscrever uma construção filosófica no campo de uma transformação histórico-social mais abrangente, no qual aquela seria o correlato desta. Além disso, não se tratava de um discurso filosófico qualquer e menor, como se sabe, mas, pelo contrário, tratava-se do discurso fundante da modernidade filosófica. Isso porque, pelo discurso filosófico que enunciou, Descartes colocou em questão o sujeito em todas as suas certezas anteriores, para supor que, pela experiência da dúvida radical, pudesse finalmente aceder à verdade pela certeza assegurada pelo pensamento.

Assim, na leitura original proposta por Foucault, a constituição do campo da razão implicou a exclusão correlata e simultânea do registro da desrazão, de forma que, na demonstração do cogito - empreendida na primeira "Meditação" realizada por Descartes (Foucault, 1972) -, o sujeito da meditação teria excluído a experiência da loucura do campo do sujeito. Vale dizer, Descartes teria considerado de maneira diversa, na economia simbólica de sua demonstração teórica, as experiências da sensorialidade, do sono e do sonho, da experiência efetiva da loucura, delineando então uma assimetria entre esta e aquelas para o sujeito (Foucault, 1972). Enfim, para enunciar de maneira triunfante o filosofema "penso, logo existo", o sujeito teria assim excluído como possibilidade efetiva a experiência da loucura, na medida que esta foi então definitivamente colocada no registro da desrazão.

Nessa perspectiva, os diferentes personagens que foram excluídos do espaço social e alocados nos Hospitais Gerais, entre os quais os loucos, constituíram o mundo da desrazão propriamente dita, de maneira que entre os registros da desrazão e da periculosidade social um laço inédito foi então forjado, de forma indelével, na tradição ocidental. Portanto, o universo da desrazão passou a atrair sobre si um olhar perscrutante de vigilância, que passou a se realizar desde então de maneira sistemática pelo poder, delineando para o universo da desrazão um campo de práticas sociais de regulação, que se iniciava pela exclusão efetiva nos Hospitais Gerais.

Constituiu-se assim, desde então, uma tradição crítica sobre a loucura, que seria completamente diferente de tudo o que lhe precedeu historicamente, de forma que a experiência da loucura como desrazão passou a ser considerada como marcada fundamentalmente pela concepção de ausência de obra. Com isso, a figura do louco não teria o estatuto do sujeito e não poderia aceder ao registro da verdade, pois estaria excluída do campo do pensamento (Foucault, 1972).

Ao lado dessa tradição crítica sobre a loucura, que foi certamente dominante no Ocidente, constituiu-se em contrapartida uma outra, periférica e marginal, denominada por Foucault de tradição trágica. Nesta, com efeito, a experiência da loucura se inscreveria no campo da verdade e seria a condição de possibilidade para a produção efetiva de obra. Não teria sido isso que teria ocorrido na literatura (Hölderlin, Nerval, Russell), na dramaturgia (Artaud, Strindberg), na pintura (Goya, Van Gogh) e na filosofia (Nietzsche) (Foucault, 1972, pp. 531-557)?

Posteriormente, com a desconstrução efetiva dos Hospitais Gerais, os registros da loucura e da criminalidade foram então definitivamente separados, forjando-se a partir daí as modernas instituições asilar e prisional, no final do século XVIII. Foram constituídos, assim, o alienismo, inicialmente, e a psiquiatria, posteriormente, como herdeiros efetivos da tradição crítica sobre a loucura (Foucault, 1972, pp. 483-530). A leitura desta como ausência de obra se manteve incólume, contudo, de forma que a loucura passou a ser interpretada desde então no registro médico da enfermidade, configurada que foi como doença mental. Enfim, foi apenas nesse contexto histórico que a loucura foi efetivamente medicalizada, passando a ser regulada pela razão psiquiátrica.

Assim, os discursos da psiquiatria e da psicologia teriam objetivado o ser da loucura, mantendo o silêncio sobre a experiência desta, que fora iniciada na Idade Clássica e na dita tradição crítica, de maneira que naquela não existiria nem sujeito e tampouco verdade. O positivismo, que fora epistemologicamente constitutivo dos discursos da psiquiatria e da psicologia, legitimara a objetivação cientificista da experiência da loucura, relançando agora em novas bases epistemológicas a oposição entre os registros da razão e da desrazão, inaugurado historicamente pela filosofia de Descartes (Foucault, 1972, pp. 531-557).

Outra hipótese ousada de Foucault, nessa obra seminal sobre a História da loucura, foi inscrever a psicanálise na tradição crítica sobre a loucura, em continuidade, pois, com a recente leitura psiquiátrica sobre esta. Com efeito, no contexto histórico da França, marcado então amplamente pelo discurso teórico de Lacan, que sustentava a ruptura epistemológica entre os discursos psicanalítico e psiquiátrico, Foucault sustentava a tese oposta, qual seja a existência da continuidade efetiva entre esses diferentes discursos teóricos sobre a loucura. Portanto, após ter esvaziado o gesto teórico e humanitário de Pinel, constitutivo da psiquiatria, no reconhecimento que foi realizado da loucura como doença mental, inscrevendo-o decididamente na tradição crítica sobre a loucura, Foucault enunciou que a psicanálise se inscreveria na estrita continuidade dessa tradição, em conjunção com a psiquiatria (Foucault, 1972, pp. 433-530).

De que forma Foucault enunciou esta hipótese teórica inesperada? Qual seria o seu argumento crucial para sustentar tal formulação radical?

Segundo Foucault, Freud teria compreendido devidamente que o funcionamento hierárquico do sistema asilar e do tratamento moral se sustentava em última instância no poder do médico, de maneira que Freud abriu mão efetivamente dos guardas, dos vigilantes e dos enfermeiros da instituição asilar, para centrar a totalidade da experiência psicanalítica na figura do analista. Freud teria constituído assim a situação psicanalítica, centrada na transferência, pela qual as alienações e desalienações da figura do analisante passariam agora inevitavelmente pela figura do analista (Foucault, 1972). Como um taumaturgo, enfim, o lugar e a posição do analista na situação analítica estariam então em franca continuidade com a posição e o lugar estratégico da figura do médico no campo do tratamento moral e das demais práticas da instituição asilar.

Contudo, Foucault delineou também um outro lugar para Freud e para a psicanálise na leitura que realizou da História da loucura, bem diferente dessa que acabei de enunciar, e até mesmo oposta. Assim, ao se referir a certas concepções sobre a loucura na Idade Clássica, na qual a loucura era inscrita nos campos da linguagem e do discurso, Foucault afirmava que afinal das contas seria preciso "fazer justiça a Freud", pois ele teria inscrito a experiência da loucura nos registros da linguagem e do discurso (Foucault, 1972, pp. 359-360). Referia-se, assim, às diversas leituras clínicas realizadas por Freud, às publicações deste de narrativas clínicas psicanalíticas (Freud, 1911/1975), mas principalmente à interpretação forjada por Freud para a psicose de Schreber, para a qual propôs uma leitura crítica do delírio, no qual este foi decisivamente inscrito no registro da linguagem e no campo do discurso (Freud, 1911/1975, pp. 163-324).

Existiriam, assim, duas leituras de Foucault no que concerne ao lugar da psicanálise na História da loucura: uma pela qual a psicanálise se inscreveria na tradição crítica, e outra pela qual se inscreveria na tradição trágica. Certamente, a inserção da psicanálise na dita tradição crítica é a mais importante no corpo da obra e de seu sistema argumentativo, sendo esta a interpretação que permaneceu efetivamente de sua obra para a posteridade. Porém, é importante evocar a existência de tal duplicidade de leitura, pois Derrida iria evocá-la amplamente em sua leitura crítica de Foucault.

 

3. Arqueologia do silêncio?

O projeto teórico de Foucault, na reconstrução de uma efetiva História da loucura, visava assim dar voz à experiência da loucura, para deslocá-la do registro do silêncio, ao qual essa experiência fora efetivamente alocada pela dita tradição crítica sobre a loucura. Por isso mesmo, Foucault denominou o seu percurso teórico de uma arqueologia do silêncio (Foucault, 1972, pp. 14-55), para indicar todos os momentos, tempos e reflexões nos quais o silêncio da experiência da loucura fora ativamente engendrado na tradição ocidental.

Ao denominar o seu percurso teórico de arqueologia, Foucault definiu a direção metodológica da pesquisa que então iniciara e que perduraria até o final dos anos 1960. Em relação a esse conjunto de investigações, Foucault enunciou que realizava uma arqueologia de saber e não uma História das ciências, tal como intitulara a sua reflexão teórica e metodológica sobre o seu percurso num livro publicado em 1969. Esse livro foi justamente intitulado de "Arqueologia do saber" (Foucault, 1969). Com efeito, ao lado da arqueologia do silêncio, sobre a experiência da loucura, Foucault realizou uma arqueologia do olhar médico, em "Nascimento da clínica" (Foucault, 1969), e uma arqueologia das ciências humanas, em "As palavras e as coisas" (Foucault, 1966).

Contudo, seria justamente a possibilidade teórica de realizar uma tal arqueologia do silêncio, no registro da experiência da loucura, que foi contestada radicalmente por Derrida em sua leitura inicial do livro de Foucault. Com efeito, se a loucura seria ausência de obra, como magistralmente a definiu Foucault com propriedade, não seria possível a realização da arqueologia de uma obra que seria ausente e inexistente ao mesmo tempo, pois o dito silêncio não deixaria qualquer traço e rastro (Derrida, 1966, pp. 51-52). Portanto, diante dessa ausência de signos de obra e do correlato silêncio abissal, pretender empreender uma arqueologia do silêncio da experiência da loucura seria, então, um projeto eminentemente "louco", formulou incisivamente Derrida (Derrida, 1966, p. 56). Enfim, o projeto teórico de Foucault de esboçar a dita arqueologia do silêncio não teria então qualquer sentido.

No entanto, a leitura crítica de Derrida, em "Cogito e história da loucura", se centrou basicamente na análise das três páginas em que Foucault examinou, em "História da loucura na Idade Clássica", a primeira "Meditação" de Descartes. O restante dessa obra de Foucault, de cerca de seiscentas páginas, praticamente não interessaram a Derrida em sua leitura, na medida em que para ele o fundamento do projeto filosófico de Foucault estaria condensado nessas poucas páginas, em que a oposição entre os registros da razão e da desrazão fora situada por Foucault tanto como fundante da filosofia moderna quanto como decisiva na constituição da tradição crítica sobre a loucura (Derrida, 1966, p. 52).

Nessa perspectiva, o que Derrida enunciou literalmente foi que a leitura de Foucault da primeira "Meditação" de Descartes era falsa e inconsistente. Assim, Foucault não teria lido rigorosamente o texto de Descartes, cometendo erros primários de interpretação. Além disso, Foucault teria deduzido dessa leitura de Descartes um conjunto de desdobramentos históricos e sociais que seriam também equivocados. Finalmente, Foucault pretendera indicar a existência de diferença de leitura do logos, anteriormente à constituição do cogito cartesiano, como inteiramente diferente da que fora enunciada por Descartes, o que seria também inconsistente na interpretação de Derrida.

Assim, antes de analisar propriamente a leitura de Foucault sobre a primeira "Meditação" de Descartes, Derrida voltou-se inicialmente para uma questão preliminar, qual seja para a maneira pela qual Foucault situou teoricamente a descontinuidade produzida pela filosofia de Descartes na tradição do logos, que já teria se iniciado na filosofia antiga. No que concerne a isso, Derrida contestou também radicalmente, com efeito, a leitura proposta por Foucault.

Nessa perspectiva, para a interpretação proposta por Foucault, não teria existido na tradição pré-socrática qualquer oposição no interior do campo do logos, de forma que este não seria marcado pela divisão e, portanto, não seria atravessado por contrários. Nessa perspectiva, a dita oposição teria se produzido apenas posteriormente no campo do logos. Portanto, essa posteridade da oposição e da divisão no registro do logos seria assim historicamente constituída, segundo Foucault. Com isso, a constituição do logos socrático já teria ocupado, na Antiguidade grega, um lugar estratégico na tranquilização da divisão no registro do logos, já que uma harmonia já teria se enunciado nesse registro (Derrida, 1966, pp. 63-67).

Derrida indica, então, no que concerne a isso, como a leitura teórica de Foucault seria problemática, na medida em que seria profundamente marcada pela leitura ontológica de Heidegger da Grécia pré-socrática, que se realizou pela mediação da filosofia de Nietzsche (Derrida, 1966, pp. 66-70). Para Derrida, portanto, existiria aqui uma impossibilidade teórica radical ao pretender conceber a existência do campo do logos no qual este não fosse desde sempre atravessado pelos contrários (Derrida, 1966), como enunciara Foucault.

Dessa maneira, a crítica formulada por Derrida é de que a inserção histórica da ruptura e da divisão do logos apenas na Idade Clássica, como pretendia a hipótese fundamental enunciada por Foucault, não teria qualquer sentido, pois a divisão da razão em face da desrazão teria marcado radicalmente a totalidade da história da razão desde a Antiguidade grega pela constituição originária da filosofia (Derrida, 1966, pp. 67-70). Em decorrência disso, se a historicidade se iniciou efetivamente com o advento da razão, conforme afirmara a leitura bem fundada e acurada de Foucault, essa historicidade não se teria constituído apenas na Idade Clássica, pois a historicidade se confundiria com o próprio advento do logos na Antiguidade. Enfim, o conceito de historicidade não se identificaria com a concepção de historicismo (Derrida, 1966, pp. 69-70), sendo este um dos equívocos cometidos pela leitura empreendida por Foucault.

 

4. Dúvida natural e dúvida hiperbólica

Assim, foi pela consideração dessas questões preliminares que Derrida considerou como basicamente errada a leitura que Foucault realizara da primeira "Meditação" de Descartes. Tal leitura contrariava, com efeito, a tradição dos intérpretes de Descartes (Derrida, 1966, p. 74), contrapondo-se, assim, radicalmente à tradição filosófica.

No que concerne a isso, qual foi o cerne do argumento teórico sustentado por Derrida? O que enunciou sobre isso?

Nada mais nada menos de que seria preciso separar na dita "Meditação" de Descartes a existência de dois tempos radicalmente diferenciados, que forjariam duas modalidades diferentes de dúvida. Assim, seria preciso diferenciar a dúvida natural e ingênua?, que foi a que Foucault analisou efetivamente no seu texto, da dúvida metafísica e hiperbólica, pela qual com a intervenção da figura do Gênio maligno, Descartes não afastaria a experiência da loucura, como realizara no tempo inicial da dúvida natural (Derrida, 1966, pp. 75-81). Portanto, no tempo da dúvida natural, Descartes procedeu de forma pedagógica, introduzindo a figura do não filósofo no corpo do texto, no qual a possibilidade da loucura teria sido então afastada. Contudo, no tempo da dúvida hiperbólica, a possibilidade da loucura foi trazida de volta, de maneira radical, pelo destaque conferido agora à figura do Gênio maligno (Derrida, 1966, pp. 81-92).

Nesta perspectiva, se o silêncio e o murmúrio não articulado como linguagem seriam os signos insofismáveis da experiência da loucura, que seria por isso mesmo ausência de obra, em contrapartida a razão como logos se confrontaria permanentemente com a desrazão, num confronto que seria insistente e sempre recomeçado. Seria, assim, por esse viés que o logos produziria sempre sentido, no campo da linguagem, numa reflexão do domínio da razão sobre o registro da desrazão. Portanto, a tensão e o conflito marcariam então desde sempre o trabalho da razão sobre o fundo permanente do não sentido, que estaria presente na experiência da loucura, desde a tradição grega, de forma que a produção de obra, como linguagem e sentido, seria uma criação insistente da razão contra a ausência de obra e o silêncio da loucura (Derrida, 1966, pp. 88-95).

 

5. Filosofia e arqueologia do saber

A réplica de Foucault se realizou em dois ensaios, ambos publicados em 1972. O primeiro, mais longo, intitulado "Meu corpo, este papel, este fogo", foi publicado como apêndice à nova edição de "História da loucura na Idade Clássica" pela editora Gallimard (Foucault, 1994a, pp. 245-268), em 1972. O segundo, mais curto, intitulado precisamente "Resposta a Derrida", foi publicado na revista "Paideia" (Foucault, 1994b, pp. 281-295). Apesar de serem duas versões diferentes, do ponto de vista literário, os dois artigos contêm rigorosamente os mesmos argumentos teóricos. Vou privilegiar aqui, na minha leitura, o segundo ensaio, que é bem mais explicito e mais claro em sua exposição.

Antes de tudo, é preciso reconhecer devidamente que a réplica de Foucault é provocante, evidenciando a envergadura teórica do filósofo, que sustentava então a monumentalidade de sua obra seminal em face da crítica rigorosa de Derrida. Além disso, a réplica é poderosa, pois sustenta uma concepção outra da filosofia, que se contrapõe nos seus menores detalhes à que fora enunciada por Derrida. Condensa-se nesse aspecto, nas duas visões opostas do discurso filosófico, a riqueza do debate teórico estabelecido entre Foucault e Derrida.

Além de se desculpar pela demora em sua resposta, pois nove anos se haviam passado desde a leitura crítica de Derrida, Foucault reconhecera ainda que a análise de Derrida era notável por sua profundidade filosófica e pela meticulosidade efetiva de sua leitura (Foucault, 1994b, p. 281). No entanto, tal leitura revelava a forma como a filosofia seria praticada e ensinada então, pelo menos na França (Foucault, 1994b, p. 282). Por conta disso, Derrida teria se centrado apenas na leitura de três páginas de uma longa obra, onde o cogito de Descartes fora analisado como se o resto do livro não interessasse a ele, pois seria uma mera derivação do que fora analisado nas poucas páginas que haviam sido dedicadas a Descartes (Foucault, 1994b).

Estaria assim já colocado, nesse preâmbulo, que a polêmica teórica se sustentava em duas concepções opostas da filosofia. Foi essa direção interpretativa que Foucault procurou sustentar na totalidade do campo discursivo de sua resposta. Para isso, contudo, precisou reconhecer ainda previamente que Derrida seria um representante eminente da tradição filosófica francesa, da qual Foucault procurou se diferenciar teoricamente com a realização da pesquisa e com a publicação de "História da loucura na Idade Clássica".

Assim, para colocar devidamente em evidência a diferença teórica existente entre as duas concepções filosóficas em pauta, Foucault começou efetivamente a sua réplica destacando os três pressupostos sobre os quais se apoiava a leitura de Derrida, em "Cogito e história da loucura".

Quais seriam esses pressupostos teóricos?

1. Antes de mais nada, todo e qualquer discurso racional manteria com a filosofia uma relação incontornável, e seria apenas nessa relação originária que tal discurso se fundamentaria. Dessa maneira, o que a leitura filosófica sempre faria seria a análise sistemática e implícita de um dado discurso teórico, para mostrar suas coerências e incoerências, assim como suas contradições, consistências e inconsistências. Por isso Derrida teria se centrado apenas na leitura das três páginas dedicadas a Descartes, considerando irrelevante o resto da obra em sua extensão, pois seria uma simples derivação desse núcleo filosófico fundamental (Foucault, 1994b). Com isso, contudo, Derrida desprezou o que era fundamental na composição de "História da Loucura na Idade Clássica".

2. Portanto, se a filosofia assim concebida deteria a "lei" de todo e qualquer discurso racional, Derrida suporia que tudo aquilo que se afastasse desse modelo teórico de leitura remeteria à existência de "falhas" de natureza singular. Vale dizer, tais falhas não seriam de ordem racional e material, mas um misto de "pecado cristão" e "lapso freudiano" (Foucault, 1994b).

Assim, "peca-se cristãmente em relação contra essa filosofia desviando-se os olhos dela, recusando a sua luz deslumbrante e se apagando à positividade singular das coisas". Além disso, em relação a ela, "cometem-se também verdadeiros lapsos: nós a traímos sem nos darmos conta, a revelamos resistindo-lhe, e deixamos que apareça uma linguagem que só o filósofo está em posição de decodificar" (Foucault, 1994b).

3. Finalmente, nessa concepção filosófica não existe qualquer lugar para a categoria de acontecimento. Assim, nada pode acontecer ao discurso filosófico, pois tudo o que acontece já estaria antecipado ou envolto por ele. Portanto, a filosofia "não é senão repetição de uma origem mais que originária e que excede infinitamente em seu retiro tudo que ela poderá dizer em cada um de seus discursos histórico" (Foucault, 1994b). Enfim, se a filosofia é a repetição incansável dessa origem, "todo discurso filosófico, desde que seja autenticamente filosófico, excede em sua desmedida tudo o que pode acontecer na ordem do saber, das instituições, das sociedades" (Foucault, 1994b, p. 283).

Seria essa tradição filosófica, assim sintetizada nos três "postulados" teóricos presentes na leitura de Derrida em "Cogito e história da loucura" (Foucault, 1994b, p. 284), o alvo crítico de Foucault em a "História da loucura na Idade Clássica" e que se inscreveu decididamente em sua leitura arqueológica das formações discursivas (Foucault, 1994b, p. 285). Com efeito, as diferentes formações discursivas, inclusive a filosofia, seriam constituídas por regras de produção de enunciados, de enunciações e de objetos; além disso, seriam reguladas por epistemes que atravessariam as diferentes formações discursivas no tempo histórico da longa duração (Foucault, 1994b). Vale dizer, o que a arqueologia do saber pretenderia colocar em destaque seria a existência de um "inconsciente do saber", que perpassaria as formações discursivas (Foucault, 1994b). Nessa perspectiva, o discurso filosófico se inscreveria também no mesmo campo de tais regras de produção e dessas epistemes, como qualquer formação discursiva, aliás, não ocupando, pois, nenhuma posição de privilégio teórico no horizonte do campo do saber.

 

6. Sujeito, série e meditação

Delineando, assim, a sua perspectiva teórica e metodológica, indicando pela arqueologia do saber uma outra versão possível para a filosofia, Foucault pôde retomar então a sua leitura da primeira "Meditação" de Descartes, para sustentar a sua legitimidade teórica. Contudo, sua análise dessa "Meditação" se atém rigorosamente à letra do texto de Descartes, analisado então com bastante minúcias de detalhes e numa extensão que ultrapassou em muito o que fora dito na "História da loucura na Idade Clássica". Vale dizer, a sua leitura é eminentemente filosófica, no sentido estrito que ele enunciara nos pressupostos presentes no ensaio crítico de Derrida. Por isso mesmo, em sua leitura, Foucault colocou em destaque o que constituía a experiência da meditação para o sujeito. Isso porque seria justamente isso o que não estaria presente na análise realizada por Derrida.

Assim, Foucault pôde afirmar sem qualquer rodeio ou titubeio que a leitura de Derrida estava "errada" e era "inexata". Foucault devolveu então a Derrida a acusação de que tinha sido objeto inicialmente, de maneira frontal. Qual foi aqui o argumento teórico decisivo desenvolvido por Foucault?

Ao pretender separar artificialmente e opor a existência de dois tempos na dita "Meditação", assim como colocar em destaque a existência de duas modalidades de dúvida, quais sejam a natural e a hiperbólica, Derrida teria perdido de vista o que seria efetivamente uma meditação filosófica em seu sentido estrito. A meditação, com efeito, seria uma experiência do sujeito na qual o filósofo seguiria uma ordem e atravessaria uma série de argumentos e de impasses. Nessa perspectiva, não existiriam diferenças e hierarquias de tempos, pois a serialização dos argumentos e dos contra-argumentos é que constituiria o corpo da meditação propriamente dita (Foucault, 1994b, p. 292). Seria, portanto, artificial, a separação entre a dúvida natural e a dúvida hiperbólica proposta por Derrida, na qual a primeira seria um mero artifício pedagógico de Descartes em face do discurso do não filósofo, enquanto na segunda seria o filósofo quem estaria inteiramente em cena na primeira modulação de Descartes (Foucault, 1994b).

Nessa perspectiva, Foucault considerou e colocou em destaque a existência de uma assimetria fundamental no texto da primeira "Meditação", na medida em que Descartes trabalhara a dúvida presente na experiência sensorial, no sono e no sonho de maneira diferente do que estaria presente na experiência da loucura. Qual seria essa diferença? Enquanto nas primeiras o sujeito se implicaria nas experiências em questão, na segunda, em contrapartida, o sujeito se excluiria, pois a experiência da loucura retiraria qualquer legitimidade efetiva para o campo do pensamento (Foucault, 1994b, pp. 283-291).

Foi por esse viés, portanto, que a oposição entre os registros da razão e da desrazão se inscreveram no fundamento da primeira "Meditação" de Descartes, situando a experiência da loucura fora do campo do pensamento e da verdade, consubstanciando-a então como efetiva ausência de obra.

 

7. Psicanálise e deslocamento na História da loucura

No entanto, a polêmica não se fechou com essa réplica de Foucault. Derrida retomou-a como uma tréplica em 1991, após a morte de Foucault, como já disse no início deste percurso, num seminário sobre "A História da loucura - trinta anos depois". Num longo ensaio, intitulado "Fazer justiça a Freud: a história da loucura na era da psicanálise", Derrida retomou o seu debate com Foucault, centrando-se agora fundamentalmente na presença e nas referências da psicanálise na totalidade da obra deste.

Assim, Derrida recordou os debates anteriores, mas afirmava que não retomaria a polêmica nos mesmos termos, isto é, centrado na leitura estrita do texto de Descartes, pois com a morte de Foucault essa dimensão do debate já estaria concluída (Derrida, 1992, pp. 141-143). Contudo, mesmo que Derrida tivesse mudado de foco em 1991, voltando-se para as referências à psicanálise no interior do percurso teórico de Foucault, os espectros dos debates anteriores continuaram presentes em sua formulação. Isso porque, pela relação estabelecida por Lacan entre Descartes e a psicanálise, em "Sobre a causalidade psíquica" (Lacan, 1996b, pp. 151-193) e "A ciência e a verdade" (Lacan, 1996a, pp. 855-877), Derrida retomou decididamente o debate anterior, mas de maneira desviada e oblíqua, direcionando-o agora para a posição decisiva ocupada pela psicanálise no campo específico da História da loucura (Derrida, 1992, p. 147).

Pôde evocar, então, desde o início de seu novo ensaio, algo que já dissera de passagem em "Cogito e história da loucura", qual seja que a obra de Foucault sobre a loucura apenas fora possível pelo deslocamento? produzido pela emergência histórica da psicanálise (Derrida, 1992, pp. 143-144). Contudo, trabalhou essa problemática de forma frontal. Daí por que o subtítulo do texto de Derrida, "Fazer justiça à Freud", foi intitulado justamente "A história da loucura na era da psicanálise".

Vou citar, portanto, essa longa passagem de Derrida, que delineou a direção teórica dessa segunda intervenção:

"Então, se o livro de Foucault, a despeito das impossibilidades e das dificuldades reconhecidas [subentendido: por ele, decerto], pôde ser escrito, temos o direito de nos indagar em que, em último recurso, ele apoiou essa linguagem. Seu recurso e seu apoio [seu recurso e seu apoio são expressões de Foucault que acabo de citar]: quem enuncia o não recurso, quem escreveu e quem deve ouvir essa História da loucura? Pois não é um acaso se é hoje que tal projeto pôde se formar. Deve-se supor - sem esquecer, muito ao contrário, a audácia de gesto em História da loucura - que uma certa libertação da loucura começou, que a psiquiatria, por pouco que seja, se abriu [em suma eu seria tentado a substituir pura e simplesmente psiquiatria por psicanálise, para traduzir o hoje de ontem no hoje da minha questão de hoje ], que o conceito de loucura como desrazão, se algum dia teve unidade, se deslocou. E que é na abertura desse deslocamento que um projeto como esse pôde encontrar sua origem e sua passagem histórica. Se Foucault está mais do que outro sensível e atento a questões desse tipo, parece, contudo, que não aceitou reconhecer neles um caráter metodológico ou filosófico preliminar" (Derrida, 1992, pp. 144-145).

O que Derrida pretendeu ao longo de sua tréplica foi indicar as "ambivalências" e as "ambiguidades" de Foucault em relação à psicanálise e a Freud, que inscreveu a psicanálise ora na tradição crítica sobre a experiência da loucura, ora na tradição trágica e em ruptura com a tradição crítica (Derrida, 1992, p. 149). É claro que existiu em Foucault uma dominância da primeira interpretação sobre a segunda. No entanto, as dualidades e duplicidades de leitura sobre a psicanálise nos textos de Foucault seriam flagrantes (Derrida, 1992).

Nessa perspectiva, Derrida enunciou que existiria um quiasma no discurso teórico de Foucault no que concerne à psicanálise, e que esse quiasma se repetiria de maneira insistente ao longo da obra de Foucault (Derrida, 1992, pp. 149-151). Existiria, assim, o "bom" Freud ao lado do "mau" Freud, o Freud "crítico" ao lado do Freud "trágico", o que indicaria a existência de diversos Freud, mas de psicanálises também múltiplas e diversas.

Para isso, Derrida não se limitou, em "Fazer justiça a Freud", à leitura da "História da loucura na Idade Clássica", mas percorreu toda a obra de Foucault, buscando surpreender e indicar o tal quiasma no que concerne à psicanálise na totalidade do seu percurso teórico. Portanto, o foco de análise agora era a totalidade da obra de Foucault, na qual não existiria qualquer referência à psicanálise.

Porém, antes de indicar esquematicamente a leitura de Derrida, é preciso evocar as múltiplas metáforas com que aludiu ao quiasma. Além das dualidades e duplicidades, Derrida evocou ainda a metáfora da dobradiça para falar das múltiplas referências de Foucault à psicanálise (Derrida, 1992). Evocou, enfim, a metáfora de Fort/Da, conceito extraído de Freud em "Além do princípio de prazer" (Freud, 1921/1981, pp. 41-115), no qual Freud nos falara da potência de repetição, para indicar a dimensão de repetição de tal quiasma na obra de Foucault, quando este se referia à psicanálise (Derrida, 1992, pp. 149-151).

 

8. Quiasma, dobradiça e repetição

Assim, partindo da passagem presente na "História da loucura na Idade Clássica", na qual Foucault afirmou que seria preciso fazer justiça a Freud (Foucault, 1972, pp. 359-360), a que já aludi inicialmente neste ensaio, Derrida intitulou o seu texto justamente de "Fazer justiça a Freud" não apenas para fazer uma ironia com Foucault em sua duplicidade em relação à psicanálise, mas principalmente para colocar em evidência que a emergência histórica da psicanálise provocou um deslocamento na História da loucura.

Nessa perspectiva, o quiasma já se encontraria presente na "História da loucura na Idade Clássica", na medida em que ora a psicanálise se inscreveria na tradição trágica ora na tradição crítica da História da loucura. Assim, se no comentário empreendido sobre o "Neveu de Rameau", de Diderot, Freud foi alinhado ao lado de Nietzsche na dita tradição trágica (Derrida, 1992, pp. 161-162), nos capítulos posteriores Freud se inscreveria na tradição crítica em continuidade com a tradição psiquiátrica, ao lado de Pinel e de Tuke, promotores inaugurais do tratamento moral (Derrida, 1992, pp. 170-171). Ao lado disso, se os "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (Derrida, 1992, p. 177) objetivaram a experiência da loucura, inscrevendo a psicanálise na tradição crítica, as narrativas clínicas de Freud se inscreveriam na tradição trágica (Derrida, 1992). Vale dizer, ora Freud estaria do mesmo lado que Nietzsche no quiasma, ora do lado oposto deste, destacando-se diversos Freud e múltiplas psicanálises. Enfim, a repetição do quiasma persistiria decididamente no texto de Foucault.

No "Nascimento da clínica", no entanto, Foucault colocou em destaque como o discurso da medicina moderna, com Bichat e a anátomo-clínica, articulou intimamente a experiência da morte e da enfermidade, de forma que, inscrevendo-se nessa linhagem teórica, Freud teria articulado, pela mediação da problemática da morte, a relação entre o sujeito na modernidade e a finitude (Derrida, 1992, pp. 181-183). Portanto, nessa leitura Freud e a psicanálise se inscreveriam efetivamente na tradição trágica sobre a loucura, enunciando então o conceito do sujeito da finitude.

Em "As palavras e as coisas" a problemática da finitude se colocou novamente de forma fundamental na escrita de Foucault, no capítulo sobre o triedro dos saberes, quando o autor sustentou que pela proposição do conceito de inconsciente, a psicanálise, ao lado da antropologia estrutural de Lévi-Strauss, descentravam o sujeito do registro da consciência e do eu. A psicanálise não seria então uma ciência humana, mas realizaria a crítica do humanismo pela invenção do conceito de inconsciente (Derrida, 1992, pp. 181-186; Foucault, 1966, p. 355-398). Enfim, a psicanálise se inscreveria então aqui decisivamente na tradição trágica.

Porém, em "A vontade de saber" o quiasma reapareceria de maneira eloquente. Assim, se a psicanálise seria uma modalidade teórica de sexologia, por um lado, a psicanálise não se inscreveria na tradição da eugenia e do biopoder, pela crítica que realizara da teoria da degeneração, pelo outro (Derrida, 1992, pp. 188-191). No entanto, ainda em "A vontade de saber", a psicanálise se inscreveria na longa tradição da confissão inaugurada pelo Cristianismo, representando na modernidade uma modalidade secular de confissão (Derrida, 1992). Enfim, a repetição se relançaria de maneira insistente no texto de Foucault, no que concerne à psicanálise.

Finalmente, ao analisar a relação entre os registros da sexualidade e do poder, que Foucault colocou em destaque em "A vontade de saber" ao criticar a concepção repressiva de poder, Derrida se indagou como Foucault leria uma das teses de "Além do princípio do prazer" (Freud, 1921/1981), na qual Freud nos falou sobre a pulsão do domínio e segundo a qual as relações entre os registros do poder e da sexualidade estariam em cena (Derrida, 1992, pp. 192-195).

Porém, parece-me evidente que Foucault conhecia bastante bem esse texto de Freud e a totalidade de sua obra, e não foi por desconhecimento teórico que não considerou tal conceito freudiano para colocar em questão a hipótese repressiva do poder que estaria presente na psicanálise. No que tange a isso, enfim, trata-se de um recurso meramente retórico no texto de Derrida.

De qualquer forma, é preciso reconhecer e destacar que o tom de Derrida nesse último texto é completamente diferente daquele presente em "Cogito e história da loucura", quando afirmava repetidamente os "erros" presentes na leitura teórica de Foucault. O estilo argumentativo é bastante diferente. Com efeito, em "Fazer justiça a Freud", se Derrida mostrou as múltiplas ambiguidades e duplicidades na leitura de Foucault sobre a psicanálise, indicou também a pertinência teórica possível da interpretação deste da psicanálise, pois sugere que existe a presença de diversas psicanálises na História da loucura, configurando, assim, a psicanálise pela forma da multiplicidade e não pela configuração da unidade.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E–mail: joel.birman@pq.cnpq.br

 

 

Enviado em 08/10/2010
Aprovado em 11/11/2010

 

 

*Este texto foi escrito a partir das notas que me orientaram na conferência realizada no VII Congresso Nacional de Filosofia Contemporânea e no III Congresso Internacional de Filosofia da Psicanálise, que ocorreu em Curitiba, na Pontifícia Universidade Católica do Paraná, em 13 de novembro de 2009.

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