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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.12 no.2 São Paulo  2010

 

ARTIGOS

Jamais se renuncia ao Arquivo Notas sobre 'Mal de Arquivo' de Jacques Derrida

 

One never renounces oneself to the archive: notes on "Archive fever" of Jacques Derrida

 

 

Paulo Cesar Duque-Estrada

Departamento de Filosofia. Pontifícia Universidade Católica-Rio

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo desenvolve uma leitura do livro de Jacques Derrida, Mal de arquivo, com o objetivo de situar o que se poderia chamar de concepção derridiana de arquivo. Ao desdobrar o potencial de conflito que se arquiva na própria palavra "arquivo", Derrida oferece uma concepção de arquivo que, para além das discussões desenvolvidas no livro em questão, abre a possibilidade de uma nova forma de se pensar o âmbito da política.

Palavras-chaves: arquivo, identidade, diferença, política.


Abstract

This article develops a reading of Jacques Derrida's book, Archive Fever, with the aim of circumscribing what could be named the Derridian conception of archive. By unfolding the conflictive power which is archived within the proper word "archive", Derrida comes with a conception of archive that, beyond the discussions developed in the book, opens the possibility of a new way of thinking the political.

Key-words: archive, identity, difference, politics.


 

 

Gostaria de iniciar esta apresentação citando uma parte da primeira nota que se encontra logo nas primeiras páginas de Mal de Arquivo1 . Esta nota aparece quando Derrida, a propósito da psicanálise freudiana, se refere ao que chama de "qualquer lugar", sendo a psicanálise um destes lugares2 , em que se põe em questão tanto o lugar quanto a lei a partir dos quais institui-se um princípio unificador, reunidor, globalizante ou totalizador - qualquer lugar, enfim, onde ocorre um questionamento deste tipo; entenda-se: não um questionamento baseado ou orientado por algum princípio, mas um questionamento do próprio princípio, um questionamento do lugar e da lei em que um princípio se constitui e se institui enquanto princípio –, e acrescenta, em seguida, que um questionamento desta ordem traz "graves consequências" para uma teoria do arquivo. Passemos ao trecho da referida nota onde lemos:

Certamente, a questão de uma política do arquivo nos orienta aqui permanentemente, mesmo se a duração de uma conferência não nos permite abordá-la diretamente e com exemplos. Não determinaremos jamais esta questão como uma questão política entre outras. Ela atravessa a totalidade do campo, e na verdade determina, de parte a parte, a política como res publica. Nenhum poder político sem controle do arquivo, para não dizer da memória. A democratização efetiva se mede sempre por este critério essencial: a participação e o acesso ao arquivo, à sua constituição e à sua interpretação. (Derrida, 2001, p. 16; 1995, p. 15)3

Gostaria de enfatizar o que é dito na última frase da passagem acima sobre a democratização efetiva: a acessibilidade e liberdade de interpretação do arquivo não é tudo; é preciso também que a própria constituição do arquivo se encontre ela mesma exposta ao exame, à investigação e à problematização. Depreende-se aqui um argumento que aponta para dois momentos no interior de uma dinâmica cuja "lógica" poderia ser descrita do seguinte modo: embora, por um lado, o pensamento habite o arquivo, embora o trabalho de interpretação, discussão, reflexão, se desdobre através do arquivo, há, por outro lado, a necessidade do pensamento se emancipar do próprio arquivo4 . Preservação e rompimento com o arquivo mostram-se, nesta dinâmica, como dois momentos inseparáveis um do outro.

Tentemos prosseguir passo a passo. De início, cabe perguntar: de que maneira a questão de uma política do arquivo não consiste em "uma questão política entre outras", mas sim na questão política por excelência, na questão mesma da política que atravessa e determina, de parte a parte, como diz Derrida, a política como res publica? A resposta a esta pergunta passa por uma consideração sobre a própria palavra "arquivo"; mais especificamente, sobre o que se encontra arquivado nesta palavra. Vejamos.

Arkhê, lembra Derrida, designa tanto o começo quanto o comando, o que significa que tal palavra reúne e coordena ao mesmo tempo os dois princípios relativos a esta dupla designação; quanto ao começo: o princípio físico, histórico ou ontológico, princípio que diz respeito ao lugar onde as coisas começam - seja a partir de causas físicas, naturais, de fatores históricos ou de determinações ontológicas; e, quanto ao comando: o princípio nomológico, princípio da lei que diz respeito ao lugar onde os homens e os deuses comandam; portanto, onde se exerce a autoridade, a ordem social, enfim, o lugar a partir do qual a ordem é dada, estabelecida, instituída.

Em relação a este último aspecto, Derrida descreve certas estruturas de poder que se encontram relacionadas ao arquivo de modo mais imediato:

(...) o sentido de "arquivo", seu único sentido, vem para ele do arkheîon grego: inicialmente uma casa, um domicílio, um endereço, a residência dos magistrados superiores, os arcontes, aqueles que comandavam. Aos cidadãos que detinham e assim denotavam o poder político reconhecia-se o direito de fazer ou de representar a lei. Levada em conta sua autoridade publicamente reconhecida, era em seu lar, nesse lugar [em itálico no texto] que era a casa deles [...] que se depositavam então os documentos oficiais. (Derrida, 2001, p. 12; 1995, pp. 12,13)

Há aqui uma óbvia referência ao poder que, num plano histórico-social, encontra-se diretamente associado ao arquivo; mas chamo a atenção, nesta mesma passagem, para algo que talvez possa passar desapercebido. Refiro-me à íntima vinculação entre localidade e autoridade ou localidade e exercício do poder; vinculação que é essencial à estrutura do arquivo. É por isso que Derrida, quando se refere ao princípio de comando - ou princípio da lei; princípio que, como já dito, se encontra arquivado na palavra arkhê - insiste nesta dupla vinculação entre lugar e comando, entre lugar e autoridade: o lugar, diz, onde homens e deuses comandam, onde a ordem é instituída. Mas além desta relação com o princípio de comando, a localidade se encontra relacionada também ao princípio de começo; princípio que se encontra igualmente arquivado na palavra arkhê. Também ali, ao tratar da ideia de começo, Derrida é enfático quanto à localidade inerente a todo início; ali, diz ele, onde as coisas começam, o lugar onde as coisas têm início.

Gostaria de citar, a título de ilustração, uma passagem de outro texto de Derrida, O outro cabo, onde a íntima relação entre estes três aspectos -localidade, poder (ou comando) e início (ou começo) – tomada na perspectiva da dinâmica a que há pouco me referi, de preservação e rompimento, de arquivamento e emancipação em relação ao arquivo -, é considerada no âmbito de uma problemática política atual: a identidade cultural europeia que se vê ameaçada de dissolução pelo fenômeno da globalização. O outro cabo é o texto de uma conferência proferida por ocasião do colóquio "A identidade cultural europeia", ocorrido em Turim. Derrida chama a atenção neste texto para o fato de que com a globalização, que vem provocando um rápido apagamento das fronteiras entre localidades de poder até então bem delimitadas - a começar pelo próprio território europeu, com as suas capitais, seus centros de decisão política, econômica, militar, bem como de produção artística, cultural etc -, a experiência política começa a se inscrever em uma nova e estranha topologia. Uma topologia, como se lê em O outro cabo, de instâncias que se reinscrevem sem estância; por exemplo, e é para onde se volta a discussão proposta por Derrida, a capital como a-capital.

Algumas passagens de O outro cabo:

Sobre a íntima relação entre lugar, poder e começo (no âmbito do que poderíamos chamar de "potência arquivística": memória que se capitaliza em si e para si):

A Europa não é apenas um cabo geográfico, que sempre se deu a si mesma a representação ou a figura de um cabo espiritual, ao mesmo tempo como projeto, tarefa ou ideia infinita, isto é, universal: memória de si que se reúne e se acumula, se capitaliza em si e para si. A Europa confundiu também a sua imagem, o seu rosto, a sua figura e o seu próprio lugar, o seu ter-lugar com o de uma ponta dianteira, de um falo se quiserem; portanto ainda de um cabo para a civilização mundial ou para a cultura humana em geral. A ideia de uma ponta dianteira da exemplaridade é a ideia da ideia europeia, o seu eidos, ao mesmo tempo como arkhê – ideia de começo mas também de comando (o cabo tal como a cabeça, lugar de memória capitalizante e de decisão, de capitão ainda) – e como telos – ideia do fim, de um limite que completa ou põe termo (...). a ponta dianteira é ao mesmo tempo começo e fim, divide-se como começo e fim; é o lugar a partir do qual e em vista do qual tudo tem lugar. (Derrida, 1995a, p. 103; 1991, pp. 28, 29)

Cabe notar, e é toda a problemática derridiana da descontrução da "metafísica da presença" que se encontra aqui implicada, que o que se capitaliza em si e para si – tal é a razão primeira e última de toda capitalização – nunca esteve presente. Aliás, no que diz respeito ao fenômeno da globalização e aos seus efeitos desconstrutores sobre a suposta presença da "identidade europeia", a capitalização desta última – auto-afirmação de um "auto" que nunca esteve presente a si - insiste e persiste por outras vias:

Não haverá, certamente [hoje, no âmbito da globalização], capital oficial da cultura europeia. [...] Todavia, a inelutável questão da capital não desaparece por isso. Ela aponta doravante para as lutas pela hegemonia cultural. Através dos poderes estabelecidos e tradicionalmente dominantes de certos idiomas, de certas indústrias culturais, através do extraordinário aumento de novos media, de jornais e da edição, através da Universidade, através dos poderes tecno-científicos, através de novas "capilaridades", competições, por vezes surdas mas sempre ferozes, estão já em curso. Fazem-no, todavia, em novos moldes, numa situação que muda rapidamente e onde as pulsões centralizadoras não passam sempre pelos Estados [...] é então que se vê surgir a questão da capital, isto é, da centralidade hegemônica5.. (Derrida, 1995a, pp. 109, 110; 1991, p. 39)

Enfim, face à desconstrução desta suposta presença a si chamada "identidade cultural europeia", o ideal de universalização que lhe é intrínseco se vê diante de uma dupla injunção: a necessidade de ao mesmo tempo permanecer e se emancipar do arquivo "Europa":

(...) por um lado, a identidade cultural europeia não pode dispersar-se (e quando digo "não pode", tal deverá significar também "não deve" – e este duplo regime está no cerne da dificuldade). Ela não pode nem deve dispersar-se num sem número de províncias, numa multiplicidade de idiomas encravados ou de pequenos nacionalismos ciumentos e intraduzíveis. Ela não pode nem deve renunciar aos lugares de grande circulação, às mais largas avenidas de tradução e de comunicação, isto é, de mediatização. Mas, por outro lado, ela não pode nem deve aceitar a capital de uma autoridade centralizadora que, através de aparelhos culturais transeuropeus, através de concentrações editoriais, jornalísticas, acadêmicas, [...], controle e uniformize, submetendo os discursos e as práticas artísticas a uma grelha de inteligibilidade, a normas filosóficas ou estéticas, a canais de comunicação eficaz e imediata, à procura de níveis de audiência ou de rentabilidade comercial. [...] Doravante não existirá mais a necessidade de ligar a capital cultural a uma metrópole, a um sítio ou a uma cidade geográfico-política, mas a questão da capital permanece por inteiro (...). (Derrida, 1995a, p. 111; 1991, p. 41)

Mas voltemos a Mal de arquivo. Sobre a íntima vinculação entre lugar, começo e comando, pode-se dizer que todo conteúdo arquivado é sempre e já também um local habitado e resguardado por uma autoridade que detém o seu controle.

Diz Derrida:

Os arcontes [ou seja, os magistrados superiores;"aqueles que comandavam"; os cidadãos proprietários em cuja residência se depositavam os arquivos] foram os seus primeiros guardiões [dos documentos oficiais]. Não eram responsáveis apenas pela segurança física do depósito e do suporte. Cabiam-lhes também o direito e a competência hermenêuticos Tinham o poder de interpretar os arquivos. Depositados sob a guarda desses arcontes, esses documentos diziam, de fato, a lei: eles evocavam a lei e convocavam à lei. (Derrida, 2001, p. 12, 13; 1995, p. 13)6

É importante atentar para o fato de que isto não significa apenas que o arquivo era depositado em algum lugar sobre um suporte estável e à disposição de alguma autoridade hermenêutica. Ainda sobre os arcontes, ou sobre o poder arcôntico, Derrida afirma:

É preciso que o poder arcôntico, que concentra também as funções de unificação, identificação, classificação caminhe junto com o que chamaremos o poder de consignação. Por consignação não entendemos apenas, no sentido corrente desta palavra, o fato de designar uma residência ou confiar, pondo em reserva, em um lugar e sobre um suporte, mas o ato de consignar reunindo os signos. [...] A consignação tende a coordenar um único corpus em um sistema ou uma sincronia na qual todos os elementos articulam a unidade de uma configuração ideal. [...] O princípio arcôntico do arquivo é também um princípio de consignação, isto é, de reunião. (Derrida, 2001, p. 13, 14; 1995, p. 14)

É preciso, portanto, fazer a experiência do "princípio arcôntico" que, para além de suas determinações histórico-sociais concretas, segue como princípio inerente à universalidade dos discursos. Mas é na simples consideração da palavra arkhê que Derrida antecipa, em toda a sua amplitude, o caráter propriamente político da questão do arquivo.

Sua dimensão política, indicada na simples consideração da palavra arkhê, consiste no fato desta palavra comportar - em cada um dos dois princípios que ela reúne, e aos quais já nos referimos: começo e comando - uma série de divisões e diferenciações, ou seja, uma heterogeneidade que atravessa, efetivamente e desde sempre, cada momento semântico implicado na própria genealogia da palavra. Esta heterogeneidade - como veremos a seguir - irá, necessariamente e por razões estruturais, comprometer, complicar, contaminar, como diz Derrida, a pretensa homogeneidade ou auto-identidade do sentido de cada um desses momentos. Ou seja - e isto vale como uma primeira indicação do aspecto político aqui implicado -, a estrutura referencial implicada na palavra arkhê nunca constitui, como a princípio poderíamos supor, uma indicação imediata e segura em direção ao que nela é pensado ou significado. Ao contrário, Derrida nos faz ver, a propósito da palavra arkhê, que sua estrutura referencial é, por natureza, heterogênea, oblíqua, desviante em relação ao que nela é referido.

Tentemos aqui uma maior aproximação a esta argumentação de Derrida: quando se refere a arkhê no sentido de começo, e faz alusão tanto ao começo segundo a natureza, ou seja, o começo a partir de causas físicas, quanto ao começo segundo a história, isto é, o começo a partir de fatores históricos (além do começo segundo determinações ontológicas), ele chama a atenção para o fato de que já ali, intrínseco ao princípio relacionado à ideia de começo e, por extensão, à ideia do que é primeiro, principal, mais originário, já ali, pode-se constatar uma diferença, e, portanto, uma heterogeneidade, um desvio ou uma oscilação entre o que é primeiro, principal, mais originário segundo a natureza ou segundo a história, e mesmo, poderíamos acrescentar, segundo determinações ontológicas.

Qual a importância disso? O que, afinal, pretende Derrida ao propor esta discussão? Ele quer enfatizar que o princípio nunca é um consigo mesmo; ao contrário, o que é primeiro, o que diz respeito ao começo, ao início, se constitui, desde sempre, na e pela diferença. A consequência disto está longe de ser desprezível. Basta considerarmos, como Derrida faz questão de evidenciar, o fato de que desta diferença, desta heterogeneidade entre começo segundo a natureza e começo segundo a história, decorre uma série de oposições conceituais que sustentam toda a tradição do pensamento ocidental: por um lado, a physis - a emergência ou aparição das coisas a partir delas mesmas - e, por outro lado, como também diz, todos os outros da physis: thesis (que, além de significar a ação de pôr, colocar, significa também, dentre outras coisas, instituição, estabelecimento), tekhnê (saber-fazer, capacidade de produzir), nomos (leis), etc. Qual seria então a implicação política que se pode, efetivamente, vislumbrar a partir desta consideração? Digo efetivamente de modo proposital, pois a expectativa por uma consequência palpável desta discussão só ocorre porque, de imediato, não nos damos conta de que sempre já nos encontramos efetivamente imersos, implicados na problemática que está sendo levantada aqui. Estamos tão efetivamente imersos nesta problemática, ela está tão intimamente relacionada ao nosso modo de ser, pensar, agir e se relacionar com as coisas, que, efetivamente, não nos damos conta dela.

Esta implicação política torna-se mais clara no momento em que nos damos conta, em que nos de-paramos com o fato de que a afirmação - ou o estabelecimento, ou a institucionalização - de um começo à luz do qual as coisas se reúnem em um todo, se consignam ou se arquivam, como poderíamos dizer, tornando-se então pensáveis, explicáveis, legíveis, significativas, inteligíveis etc; enfim, no momento em que começamos a nos dar conta de que toda e qualquer afirmação de um começo? - portanto, de um princípio garantidor de ordem, estabilidade, inteligibilidade, etc - carrega em si mesma, e desde sempre, uma cisão, uma heterogeneidade, ou, mais precisamente, uma relação de diferença (entre, como vimos, de um lado a physis, e, de outro, todos os seus outros). No princípio, a diferença. Tal é a implicação política de que se trata aqui.

Constata-se, assim, que aquilo que todo gesto afirmador pretende, de um modo ou de outro, como seu nunca, de fato, o foi – pretender fixar, situar, delimitar, abarcar, conter, organizar, guardar ou preservar o que quer que exista enquanto tal, em si mesmo e por si mesmo (seja um fenômeno qualquer, um acontecimento, uma obra, um aspecto da cultura, um sentido, um dado biográfico, etc) é deixar-se mover, por uma espécie de passividade primordial, pela violência do desejo de presença. É que a positividade, reivindicada no ato mesmo da afirmação, se vê, efetivamente e desde sempre, comprometida. Ela se vê comprometida pela própria diferença que, residindo no interior de toda e qualquer afirmação, imprime, como uma lei inexorável, a marca da cisão, da separação, da heterogeneidade, no corpo pretensamente uno, homogêneo, delimitável e auto-idêntico, do que quer que seja afirmado (por si mesmo, em si mesmo, em sua presença enquanto tal). É precisamente neste sentido que, para Derrida, nenhuma identidade é auto-idêntica, justo porque toda identidade implica sempre, nela mesma, uma diferença, uma heterogeneidade. Qualquer identidade cultural, linguística, psicológica etc é sempre, enquanto identidade, diferente dela mesma: para falarmos como Derrida, uma cultura é diferente dela mesma, a linguagem é diferente dela mesma, uma pessoa é diferente dela mesma.

Dito em outros termos, o que a diferença compromete no próprio ato da afirmação é o caráter pretensamente evidente, auto-idêntico, daquilo mesmo que é inscrito, guardado e preservado - portanto, arquivado - na afirmação; ou seja, aquele "algo", de certo modo familiar, disponível, passível de avaliação e reavaliação, conhecível e reconhecível como um fundo ou horizonte comum, um patrimônio de todos. Fica aqui a pergunta (que só podemos indicar, em nossa tentativa de situar a dimensão política que aqui está em pauta): um patrimônio de todos, mas ... "todos" ... quem? E quem é que diz ... "todos"? Quem unifica, consigna e arquiva as coisas em nome de todos, para todos ou a serviço de todos? Mesmo que esses "todos" sejam sempre alguns. Tais interrogações demandam uma responsabilidade política - no sentido mais imediato da palavra responsabilidade; como "responder por" - na medida em que esse "todos" é sempre um recorte voltado para uma inscrição, para o estabelecimento de um "nós"; de um "todos ... nós"; mas, novamente, "nós quem"? Quem diz "nós"?

Tocamos aqui no elemento propriamente conflituoso envolvido nesta implicação política que estamos tentando nos aproximar e que diz respeito, em última análise, à questão do arquivo, à questão do arquivamento em geral das coisas em geral. Tal conflito - que se arquiva, se inscreve e se reúne na própria palavra "arquivo" -, pode ser sintetizado do seguinte modo: ou bem o começo é afirmado e compreendido como dizendo respeito ao âmbito da aparição espontânea das coisas, isto é, ao âmbito da physis, e, neste caso, isto se dá, necessariamente, por algum tipo de operação que exclui, negligencia ou encobre o âmbito da thesis, da tekhnê, do nomos; ou bem é neste último âmbito - da thesis, da tekhnê, do nomos - que o começo é afirmado e compreendido, e, neste caso, por alguma operação que necessariamente exclui, negligencia ou encobre o âmbito da physis. Em ambos os casos, a afirmação supõe sempre uma negação (que poderíamos nomear de várias maneiras: repressão, exclusão, esquecimento, encobrimento, etc); uma negação daquilo que, embora negado, excluído, encontra-se estruturalmente e necessariamente relacionado ao que é afirmado como seu outro.

Esta violência da afirmação que exclui diz respeito à formação de qualquer identidade, de qualquer individuação, unificação, delimitação, configuração de domínios ou âmbitos de qualquer espécie. É precisamente neste sentido que, em Mal de Arquivo, lemos o seguinte:

O Um se guarda do outro. Protege-se contra o outro, mas no movimento desta violência ciumenta comporta em si mesmo, guardando-a, a alteridade ou a diferença de si (a diferença para consigo) que [não obstante] o faz Um. O 'Um que difere de si mesmo'. O Um como centro. Ao mesmo tempo, mas num mesmo tempo disjunto, o Um esquece de se lembrar a si mesmo, ele guarda e apaga o arquivo desta injustiça que ele é. Desta violência que ele faz. O Um se faz violência7. Viola-se e violenta-se mas se institui também em violência. Transforma-se no que é, a própria violência – que se faz a si mesmo. Autodeterminação como violência. O Um se guarda do outro para se fazer violência ... (Derrida, 2001, p. 100; 1995. Pp. 124, 125)

Esta passagem pode servir de referência para situarmos o afastamento de Derrida em relação à abordagem de Yerushalmi, historiador do judaísmo, que quer dar conta da identidade judaica, de uma judeidade (interminável) que resiste à ausência da fé em Deus, compreendendo ou englobando a psicanálise freudiana como uma ciência judaica. Yerushalmi atribui ao judaísmo e somente ao judaísmo, a partir de certas características suas - como o apego à Aliança com Deus, marcada no corpo pela circuncisão, a esperança do cumprimento da promessa divina no futuro, a permanente tensão entre, de um lado, a memória, com a obrigatoriedade do estudo das Escrituras, e, de outro, o futuro mantido como esperança na promessa divina; enfim, Yerushalmi atribui ao judaísmo a característica única, ou, nas palavras de Derrida (2001, p. 97), "o privilégio absoluto, a unicidade absoluta na experiência da promessa (o futuro) e a injunção da memória (o passado)." "Em Israel, e em nenhuma outra parte" - diz Yerushalmi, citado por Derrida (2001, p. 98) - "a injunção de se lembrar é sentida como um imperativo religioso para todo um povo."

Ora, na avaliação de Derrida, e lembrando a passagem que citei há pouco sobre a violência do Um, a judeidade pretendida por Yerushalmi, o Um desta identidade afirmada ou declarada por ele, é violento não só em relação a outras culturas, a outras religiões, que, por outras vias, através de outros códigos, de outras linguagens, fizeram ou fazem igualmente a experiência da memória em consonância com uma abertura para o futuro, mas, além disso, o Um de Yerushalmi é violento também em relação ao próprio judaísmo. Ele pensa saber o que é o judaísmo, ele pensa poder afirmar, dispor como um objeto seu, a judeidade do judaísmo. Desse modo, em seu proprio arquivo, Yerushalmi apaga com a sua certeza argumentativa aquilo que ele deseja arquivar, salvar, preservar: o judaísmo em sua singularidade própria. Veremos, em seguida, de que maneira a refutação de Derrida não quer sugerir uma falha ou erro teórico na argumentação de Yerushalmi; não quer ser também uma crítica, muito menos uma repreensão moral em relação ao historiador.

Vou tentar, para terminar, apenas situar duas noções importantes de Derrida, sem as quais não podemos avaliar satisfatoriamente a passagem há pouco referida - sobre a violência do Um, do Um que faz e se faz violência; sobre a autodeterminação como violência - a propósito de Yerushalmi, cuja compreensão do judaísmo é tomada aqui apenas a título de ilustração, já que o argumento de Derrida se aplica a toda e qualquer abordagem, historiográfica ou não, que alimente uma pretensão identitária. Esta questão da violência, como já vimos, é entendida nos termos de um conflito. Um conflito entre afirmação e negação. Ela é uma questão importante porque diz diretamente respeito ao tema do arquivo tal como pensado por Derrida. As duas noções importantes que tentarei situar a seguir são a de "différance" (com "a" e não "e", como se escreve diferença em francês) que, obviamente, se refere ao problema da diferença, mas da diferença tal como pensada por Derrida, e a de "iterabilidade", que se refere à ideia de repetição.

Sobre a différance:

Quando trabalhamos um conceito qualquer, como, por exemplo, o conceito de "história", estamos, necessariamente, pressupondo um outro conceito, um conceito que é outro em relação ao conceito de história: o conceito de "natureza". No entanto, embora pressuposto, este conceito - de natureza - não é considerado, não é levado em conta em nosso trabalho, pelo fato dele não ter nenhuma importância, nenhuma relevância, no trabalho historiográfico. Mas, embora excluído, não considerado, não levado em conta, este outro conceito, de natureza, se encontra implicado no conceito de história. E isto porque não é possível conceber um conceito de história - que diz respeito ao âmbito dos eventos produzidos pela ação humana - que não pressuponha o conceito de natureza – que, por sua vez, diz respeito ao âmbito dos eventos não produzidos pela ação humana. Portanto, um conceito se encontra implicado no outro, comprometendo, desta forma, a garantia de clareza e precisão que julgamos ter quando nos debruçamos confiantes sobre o campo que tomamos como sendo o campo próprio da história. Na verdade, um conceito pressupõe o outro e vice-versa, o que nos leva a concluir, seguindo o argumento de Derrida, que não se pode falar propriamente de um âmbito em si mesmo, enquanto tal, próprio, da história, ou da natureza. Não existe o âmbito da história e nem o âmbito da natureza; a história enquanto tal; ou a natureza enquanto tal. A afirmação da história enquanto tal, do âmbito ou da dimensão própria da história ou do histórico, só se faz pela negação - repressão, encobrimento, exclusão, esquecimento - da natureza. E vice-versa.

É isto que nos permite entender a ideia de "différance", que não é exatamente o mesmo que diferença. É que a diferença a que nos referimos, entre história e natureza, para ficar apenas com o nosso exemplo, não é uma diferença binária, uma diferença entre dois termos opositivos. Não se trata de um domínio bem definido - o da história - que se opõe a um outro domínio igualmente bem definido - o da natureza. Não existe nem a história nem a natureza, posto que uma só existe na pressuposição da outra. Na terminologia de Derrida, uma traz em si o rastro da outra. Isto se aplica não só aos conceitos de natureza e história, mas, de resto, a tudo o que se arquiva na totalidade da nossa língua. Derrida diz, em algum lugar, que tudo o que há são rastros e rastros de rastros.

Devemos pensar então a diferença derridiana neste sentido preciso: não como uma diferença opositiva entre coisas, mas como uma diferencialidade sempre em movimento, sempre em curso, um jogo de diferenças entre rastros que produz não propriamente sentidos, mas efeitos de sentido: "a história", "a natureza", por exemplo. É isto o que, não em francês - porque tal palavra não existe - mas valendo-se do francês, ele chama de "différance" (com "a" e não com "e"; o que é impossível de se verter para outra língua) e que encerra a ideia de um movimento diferencial - "diferancial", diz ele - produtor de rastros e rastros de rastros.

É nesta mesma perspectiva da différance que Derrida compreende a relação entre as noções freudianas de "princípio de prazer" e "princípio de realidade". Também aqui, não se trata de uma diferença opositiva entre dois domínios distintos. O "princípio de realidade" não se constitui como um muro impermeável às investidas do "princípio de prazer". Este último, por sua vez, não consiste em uma pura descarga livre de qualquer ancoragem na realidade. Novamente, não se trata de uma diferença opositiva, binária, mas de uma mesma coisa em différance; ou seja, o "princípio de realidade" constitui o desvio no qual e pelo qual o "princípio de prazer" se efetiva. Prazer puro ou realidade pura significariam a morte. Em termos arquivísticos, esta implicação mútua entre os dois princípios encontra-se operante na dinâmica mesma dos arquivos, na formação de suas economias, de seus diferentes domínios, articulações, subdivisões, etc. Mas não podemos nos alongar mais sobre isto aqui.

Passemos à ideia de iterabilidade:

Ela se liga à "différance" num sentido muito preciso: se a "différance" nos informa que não há a coisa enquanto tal mas sim o rastro, a iterabilidade nos informa que, desde o início, o que se dá não é a coisa, qualquer que seja ela, em sua presença, mas sim a referência a ela, ou, poderíamos dizer, a sua re-tomada. Em outros termos, a noção de iterabilidade nos diz que o que é primeiro nunca é a coisa, mas sim a sua repetição - na palavra, no discurso, enfim, em alguma estrutura referencial. Sempre e desde o primeiro momento, o que se dá é a repetição de uma referência à coisa e não a coisa mesma. Este primado da repetição é o que, por um lado, comanda o desejo de origem, o desejo de adesão, de apreensão da presença, ao mesmo tempo em que, por outro, já torna tal desejo impossível. A experiência, para Derrida, encerra esta estrutura que, poderíamos dizer, se confunde com a estrutura geral do arquivo; isto é, a estrutura de um desejo que aniquila a coisa desejada no momento mesmo que se projeta sobre ela com o intuito de dela se apropriar, possui-la, contê-la, preservá-la. É que a coisa singular que se quer preservar, na "presença" de sua singularidade, inevitavelmente se apaga, se esvai, se destrói, na generalidade repetível do discurso, na "lógica" e nos procedimentos que orientam a experiência, na mecânica e previsibilidade das relações. Dor do apagamento, diz em outro lugar Derrida (1992, p. 392 ), que habita o interior da memória mesma.

Cito Derrida:

(...) diretamente naquilo que permite e condiciona o arquivamento só encontraremos aquilo que expõe à destruição e, na verdade, ameaça de destruição, introduzindo a priori o esquecimento e a arquiviolítica no coração do monumento. No próprio "saber de cor". O arquivo trabalha sempre a priori contra si mesmo. (Derrida, 2001, p. 23; 1995, pp. 26, 27)

Mal de arquivo, portanto, "estamos com mal de arquivo", diz Derrida;

(...) o que "pode significar [pelo menos em francês; "em mal de"] outra coisa que não apenas sofrer de um mal, de uma perturbação [...]. É arder de paixão. É não ter sossego, é incessantemente, interminavelmente procurar o arquivo onde ele se esconde. É correr atrás dele ali onde, mesmo se há bastante, alguma coisa nele se anarquiva. É dirigir-se a ele com um desejo compulsivo, repetitivo e nostálgico, um desejo irreprimível de retorno à origem, uma dor da pátria, uma saudade de casa, uma nostalgia do retorno ao lugar mais arcaico do começo absoluto. (Derrida, 2001, p. 118; 1995, p. 142)

Poderíamos formalizar aqui, a partir desta argumentação, algo como uma lei universal do arquivo que se encontra implicada em toda política e, em particular, em toda política do arquivo. Poderíamos formalizar esta lei da seguinte maneira: malgrado todos os processos e técnicas de arquivamento, nada aparece enquanto tal - ou seja, nada aparece em sua verdade enquanto tal, em seu modo de ser enquanto tal, naquilo que é tal como é, em si mesmo e por si mesmo -; "nada aparece enquanto tal", esta é a lei que, em outras palavras, significa precisamente isto: só há arquivo. Para dizer ainda o mesmo em outras palavras, perde-se sempre o que se retém; isto é próprio ao arquivo, mas, não nos esqueçamos, há tão somente arquivo.

Talvez possamos agora entender a articulação entre as três dimensões que se encontram interligadas em Mal de Arquivo: 1) a amplitude ilimitada da dimensão política do arquivo, tal como pensado por Derrida; 2) a sua relação com a questão da democracia, na referência que fiz inicialmente e que repito aqui, em parte - "A democratização8 efetiva se mede sempre por este critério essencial: a participação e o acesso ao arquivo, à sua constituição e à sua interpretação." - e, finalmente, 3) o seu interesse pela psicanálise. Esta articulação se encontra sintetizada na seguinte passagem que cito para encerrar:

Não se renuncia jamais, é o próprio inconsciente, a se apropriar de um poder sobre o documento, sobre sua detenção, retenção ou interpretação. (Derrida, 2001, p. 7; 1995, Priàre d insérer)

 

Referências

Derrida, J. (1991). L'autre cap. Paris: Les Éditions de Minuit.         [ Links ]

Derrida, J. (1995a). O outro cabo. Coimbra: Ed. Reitoria UC/ Amar Arte.         [ Links ]

Derrida, J. (1992). Points de suspension. Paris: Galilée.         [ Links ]

Derrida, J. (1995). Mal d'archive: une impression freudienne. Paris: Galilée.         [ Links ]

Derrida, J. (2001). Mal de Arquivo. Uma Impressão Freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará         [ Links ].

 

 

Endereço para correspondência
E–mail: pcde@puc-rio.br

 

 

Enviado em 09/09/2010
Aprovado em 07/01/2010

 

 

1 Texto de uma conferência proferida em 1994, em Londres, por ocasião do Colóquio Internacional "Memória: a questão dos arquivos", organizado por René Major e Elizabeth Roudinesco, e apoiado pela Sociedade Internacional de História da Psiquiatria e da Psicanálise, além do Museu Freud e do Instituto de Arte Courtauld.
2 Assim como a psicanálise, a literatura e a filosofia constituiriam também, em tese, um desses lugares.
3 Tradução ligeiramente modificada. Sempre que houver dupla referência – ano e número de página -, a segunda se refirará ao original em francês.
4 Uma vez que a constituição mesma do arquivo deve se prestar ao exame, à reflexão, etc.
5 Meu acréscimo de colchetes.
6 Colchetes meus.
7
Meu acréscimo de colchetes.
8 "Democratização", talvez, seja uma palavra-chave para a compreensão da famosa expressão derridiana "democracia por vir" que com frequência, entre aqueles que não admitem pensar fora do paradigma da presença, se quer desqualificar lançando mão, para isso, de uma exigência de efetividade. Que a "democracia por vir" não se refere a nenhuma ordem política presente ou programada para o futuro, isto quer dizer, em termos efetivos, para aqueles que insistem tão somente em reformar o ancoradouro da presença, que nos encontramos já e desde sempre em situação de ter que responder à lei violenta do arquivo; significa, em outros termos, que nosso devir tem lugar na e através da preservação-destruição do arquivo.

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