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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.12 no.2 São Paulo  2010

 

ARTIGOS

 

Nietzsche e Théodule Ribot: Psicologia e Superação da Metafísica*

 

Theodule Ribot Nietzsche and: Psychology and the Overcoming of Metaphysics

 

 

Wilson Antonio Frezzatti Junior

Doutor em Filosofia pela Universidade São Paulo Professor dos cursos de Graduação e Mestrado em Filosofia da Unioeste

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Embora Nietzsche não cite explicitamente em seus textos o psicólogo e filósofo francês Théodule Ribot, a semelhança entre algumas noções do filósofo alemão e de Ribot é inquestionável: a proposta de uma nova psicologia não metafísica (uma psicofisiologia); a continuidade entre o físico, o biológico (fisiológico) e o psicológico (moral e cultural); o corpo, a vontade e o sujeito enquanto multiplicidades; a saúde enquanto presença de um centro de coordenação; etc. O objetivo deste artigo é investigar a proposta, presente nos dois autores, de uma psicologia ou psicofisiologia que supere a psicologia metafísica, ou seja, que rejeite a investigação da alma e de suas faculdades. No entanto, há uma diferença axial entre o filósofo alemão e Ribot: enquanto a psicofisiologia francesa é uma morfologia de reflexos, que são processos físico-químicos e, portanto, materiais, a psicofisiologia nietzschiana é uma morfologia da vontade de potência, que é um processo impulsional de crescimento de potência, e esses impulsos não são nem corporais nem espirituais.

Palavras-chave: Fisiologia; Metafísica; Nietzsche; Psicologia; Théodule Ribot.


ABSTRACT

Although Nietzsche does not mention in his writings the French philosopher and psychologist Théodule Ribot, there are some similarities between them: a proposal for a new psychology (a no metaphysical psychophysiology); the continuity among the physical, the biological (physiology) and psychological (morality and culture) phenomena; the multiplicity of the body, the will and the "ego"; the health as the presence of a center of coordination; etc. The aim of this paper is the proposal of a new psychology or a psychophysiology to overcome the metaphysical psychology, i.e., to reject the investigation of the soul and its faculties. However, there is an ultimate difference between Nietzsche and Ribot: the French psychophysiology is a morphology of nervous states (physical-chemical processes, and thus material processes), and the Nietzschean psychophysiology is a morphology of will to power, which is a process of increase of power, and thus no bodily or spiritual process.

Keywords: Metaphysics; Nietzsche; Physiology; Psychology; Théodule Ribot.


 

 

Queremos propor, neste trabalho, a inserção de Nietzsche na discussão francesa sobre o estabelecimento de uma nova psicologia, não metafísica e baseada nas ciências naturais, do mesmo lado dos psicólogos de tendência positivista, especialmente o psicólogo e o filósofo Théodule Ribot, considerado o fundador da psicologia científica francesa e responsável por sua autonomia (cf. Nicolas, 2002, p. 103-118; Dugas, 1924, p. 16-32). Desde o início, alertamos que não estamos considerando Nietzsche um cientista nem um seguidor das ideias de Ribot. O que queremos fazer é mostrar que o filósofo alemão compartilhava uma série de questões com a discussão francesa. Ele foi, para nós, sem dúvida, inspirado por ela e por algumas noções que se faziam presentes, mas isso não significa que Nietzsche simplesmente as utilizou como conceitos científicos. Ele as modificou e as usou de acordo com suas necessidades filosóficas. Ao lado de semelhanças entre seu pensamento e o de Ribot, encontraremos diferenças que são cruciais para que o autor de "Além de bem e mal" mantenha sua independência filosófica e seu projeto de superação da metafísica e de elevação da cultura (a filosofia do porvir).

No fim da primeira dissertação de "Para a genealogia da moral" (Bom e mau, Bom e ruim), Nietzsche, ao chamar a atenção para a necessidade de estudos de história da moral e de filologia, afirma:

Não é, certamente, menos necessário conseguir a participação de fisiologistas e de médicos no estudo desses problemas (concernente ao valor das avaliações que tiveram lugar até o presente). Aqui ainda poder-se-ia deixar os filósofos de ofício desempenharem o papel de porta-vozes e de intermediários, após se ter sucesso em transformar completamente as relações sempre tão acres e tão desconfiadas, desde a origem, entre a filosofia, a fisiologia e a medicina em uma troca de perspectivas as mais amigáveis e fecundas. [...] Todas as ciências têm agora que preparar a tarefa futura do filósofo, sendo essa tarefa entendida como: o filósofo deve resolver o problema do valor, ele deve determinar a hierarquia de valores (Nietzsche, 1999, Vol. 5, p. 289).

Este excerto ao mesmo tempo aproxima e afasta Nietzsche de Ribot, sendo bem representativo do estatuto das leituras científicas nietzschianas. Para os dois pensadores, a fisiologia tem papel primordial no combate contra a metafísica: no caso de Ribot, a psicologia baseada na fisiologia tem como objetivo superar a psicologia tradicional de caráter metafísico (a ciência da alma); no caso de Nietzsche, superar a moral cristã baseada na dualidade de opostos qualitativos absolutos. Entretanto, há duas diferenças primordiais: 1) o sentido no qual os dois autores utilizam o termo fisiologia: para Ribot, trata-se dos processos físico-químicos dos organismos; para Nietzsche, da dinâmica da luta dos impulsos por mais potência (vontade de potência); 2) o objetivo filosófico de Nietzsche está claramente posto e não está no âmbito do pensamento de Ribot: avaliar o valor dos valores, que é uma das tarefas do procedimento genealógico nietzschiano.

O filósofo alemão vai além de indicar a necessidade da fisiologia: vai dizer que é o único que sabe aplicá-la com a psicologia. Em "Ecce homo", Por que sou um destino, § 6, ao se distinguir enquanto imoralista, pois teve uma amplitude vital para descer às "profundezas tenebrosas" do cristianismo, declara: "Quem, antes de mim, entre os filósofos, foi psicólogo e não antes a antítese do psicólogo, 'trapaceiro superior', 'idealista'? Antes de mim, a psicologia nem mesmo existia" (cf. Nietzsche, 1999, Vol. 6, p. 371). Longe de ser um privilégio, esse destino (Schicksal) é pesado, uma maldição, já que essa nova perspectiva pode levar ao fastio do humano. Ou seja, antes de Nietzsche, segundo o próprio filósofo, ninguém foi capaz de desvendar os meandros da produção dos valores humanos e, em vez de uma origem espiritual ou mesmo divina, o que ele encontrou foi uma origem "humana, demasiado humana". Em "Ecce Homo", Crepúsculo dos ídolos: como filosofar a golpes de martelo, § 2, temos:

E, eu falo seriamente, ninguém antes de mim conhecia o reto caminho, o caminho que sobe: é somente a partir de mim que há novamente esperanças, tarefas, caminhos para prescrever à cultura [Cultur] – eu sou aquele que anuncia a boa nova... E, assim, eu sou um destino... (Nietzsche, 1999, Vol. 6, p. 355).

Nietzsche se atribui uma perspectiva privilegiada pela qual se distingue das visões metafísicas e religiosas que remetem as coisas humanas a causas primeiras ou últimas, geralmente apartadas do vir-a-ser, da efetividade (Wirklichkeit). Se considerarmos essas proposições apenas como um exagero ou uma peça retórica, perderemos a oportunidade de entender por que Nietzsche considera suas perspectivas tão diferentes daquelas vigentes. Ou, como diz Wotling, um dos principais pesquisadores que têm chamado atenção para o papel axial da psicologia no pensamento nietzschiano, desconsiderar a psicologia de Nietzsche e seu papel fundador de importantes questionamentos é fazer dele um metafísico malgré lui (cf. Wotling, 1999, pp. 15-16), ou seja, é não compreender aspectos centrais da filosofia nietzschiana, como, por exemplo, a vontade de potência. Ainda concordando com Wotling (1999, p. 17), a construção da psicologia nietzschiana se faz contra a psicologia vigente, o que lhe dá um caráter antimetafísico, antimoral e anti-idealista. Essas características, como pretendemos mostrar, aproximam muito os projetos de uma nova psicologia de Nietzsche e de Ribot.

 

1. A questão das leituras nietzschianas sobre a psicologia experimental francesa

A relação entre os pensamentos de Nietzsche e Ribot não tem sido muito estudada. Além da abordagem inicial de Andler (1958, Vol. II, pp. 532-537), temos apenas Haaz (2002) e Lampl (1989) com trabalhos específicos sobre o assunto. Kaufmann (1978) não relaciona a psicologia de Nietzsche a Ribot e a nenhum psicólogo ou fisiologista do século XIX. Aborda somente os próprios textos nietzschianos e chama a atenção para o fato de que era ignorada, até a época de seu texto, a afirmação do próprio Nietzsche de que ele foi o primeiro grande psicólogo (cf. Kaufmann, 1978, p. 261). Sobre a relação de Nietzsche com a psicologia francesa do século XIX, temos a reflexão de Wotling (1999) acerca da construção da noção nietzschiana de psicologia, o trabalho de Cowan (2005) sobre a noção de fraqueza da vontade (Willenschwäche), e a abordagem de Gauchet (1992), que, em um livro sobre a formação da ideia de inconsciente e a psicofisiologia do século XIX, escreveu um capítulo sobre Nietzsche e as noções de consciência e indivíduo enquanto multiplicidade. Alguns trabalhos relacionam assuntos nietzschianos com sua leitura do periódico fundado e dirigido por Ribot, "Revue Philosophique de la France et de l'Étranger": Haase (1989) aponta as ideias que Nietzsche teria trazido de Francis Galton (a metáfora da antecâmara da consciência – o inconsciente – e a relação entre criminalidade e doença); Lampl (1986) aponta as semelhanças entre trechos dos textos de Nietzsche e o livro "Dégénérescence et criminalité", de Charles Féré, e seus textos naquele periódico; Wahrig-Schmidt (1988) mostra a relação entre excertos de Alexander Herzen (filho) na "Revue" e alguns fragmentos póstumos do filósofo alemão; Brotbeck (1990) afirma que Nietzsche leu Peirce também na revista (o artigo original "La logique de la science", dividido em duas partes: "Comment se fixe la croyance", "Revue Philosophique", VI, 1878, pp. 553-569, e "Comment rendre nos idées claires", "Revue Philosophique", VII, 1879, pp. 39-57); e Treiber (1993) relaciona Nietzsche ao projeto de uma ciência positiva da moral e a Émile Durkheim, autor que também escreveu na "Revue Philosophique". Richter (1911), em uma pesquisa sobre o caráter lamarckista da filosofia nietzschiana, faz aproximações entre o que considera as propostas selecionistas sociais de Nietzsche e a filosofia de Herbert Spencer, outro autor fortemente presente nas páginas do periódico de Ribot. Rahden (1984) faz um estudo sobre Nietzsche e Von Hartmann sem se referir à revista.

Apesar de alguns pontos terem semelhanças muitos grandes, é difícil estabelecer exatamente o que o filósofo alemão leu do psicólogo francês. Nietzsche cita explicitamente o nome de Ribot apenas em duas cartas: uma para Paul Rée, do início de agosto de 1877, e outra para Malwida von Meysenbug, de 4 de agosto do mesmo ano (cf. Haaz, 2002, p. 158; Brotbeck, 1990, p. 146). Na carta a Meysenbug, Nietzsche diz:

eu estabeleci contato proveitoso com um inglês, Sr. G. Croom Robertson, e sua família; eu tenho dificuldade em ter que deixá-lo hoje. Ele é professor da University College of London, e é o editor do melhor periódico de filosofia (não somente da Inglaterra, mas em geral; no máximo, a revue philosophique de Th. Ribot lhe iguala (Nietzsche, 1986, Vol. 5, p. 268)1.

Na carta a Rée, Nietzsche também conta de seus encontros com Robertson e fala da revista de Ribot: "Você sabe que nós, na Alemanha, não temos nada similar em qualidade, como os ingleses nessa revista e os franceses na excelente revue philosophique de Th. Ribot" (Nietzsche, 1986, Vol. 5, p. 266).

Haaz (2002, p. 7) indica que os fragmentos póstumos de 1879 a 1885 são importantes para entender as críticas que Nietzsche faz contra o darwinismo e sua recepção das teorias biológicas e psicológicas do século XIX. Entre as inúmeras leituras, o autor destaca a "Revue Philosophique de la France et de l'Étranger" de Ribot, que, além das informações específicas de psicologia e fisiologia, teria preparado o filósofo alemão para a recepção de outras teorias científicas, por exemplo, a luta entre as partes dos animais de Wilhelm Roux (cf. Haaz, 2002, pp. 37 e 79-149)2. O autor afirma que o filósofo alemão provavelmente leu "As doenças da memória" ("Les maladies de la mémoire", 1881), "As doenças da vontade" ("Les maladies de la volonté", 1883) e "As doenças da personalidade" ("Les maladies de la personnalité", 1885) de Ribot, porém reconhece as dificuldades de estabelecer com certeza as leituras que Nietzsche tenha feito do psicólogo francês e de sua revista. O que temos de certo é que Nietzsche conhecia a "Revue Philosophique" e que tinha em sua biblioteca (e provavelmente leu) inúmeros livros dos principais autores que frequentavam as páginas da revista, entre eles: Ribot, Alexander Bain, Alexander Herzen (filho), Alfred Espinas, Alfred Fouillé, A. B. Morel, Louis Büchner, Thomas Carlyle, Charles Féré, Charles Richet, E. Beneke, Eduard von Hartmann, Émile Durkheim, Eugen Dühring, Gustav Theodor Fechner, Francis Galton, Friedrich Albert Lange, Georg Heinrich Schneider, Hermann von Helmholtz, Gustave Le Bon, Herbert Spencer, Hyppolite Taine, Franz Brentano, J. Delboeuf, J. Hughlings Jackson, Jean-Marie Guyau, Johannes von Kries, Émile Litré, Cesare Lombroso, Karl Wilhelm von Naegeli, P. Mantegazza, Paul Rée e Wilhelm Wundt. É inegável a semelhança entre certas noções nietzschianas e as encontradas nas obras de Ribot e nos textos publicados na "Revue"3.

O maior problema em relação à fonte nietzschiana desses autores é que Nietzsche leu e/ou possuía em sua biblioteca vários livros de muitos desses autores e de outros ligados à psicologia e fisiologia: Alfred Espinas: "Des sociétés animales" (na tradução alemã de 1879); Alfred Fouillé: "La science sociale contemporaine" (1880); Charles Féré: "Dégénérescence et criminalité"; Charles Richet: "La psychologie physiologique, l'homme et l'intelligence. Fragments de physiologie et psychologie" (1884) e "Essai de psychologie générale" (1887); Delboeuf: "La matiàre brute et la matiàre vivante" (1887) e vários outros artigos; Francis Galton: "Inquiries into human faculty and its development" (1883); Georg Heinrich Schneider: "Der thierisch Wille: systematische Darstellung und Erklärung der thierischen Trieb und deren Entstelung, Entwicklung und Verbreitung im Thierischen als Grundlage zu einen vergleichenden Willeslehre" ("A vontade animal", 1880) e "Der menschliche Wille von Standpunkte der neuren Entwicklungstheorien" ("A vontade humana do ponto de vista da nova teoria do desenvolvimento", 1882); Jean Martin Charcot: "Nouvelles leçons sur les maladies du systàme nerveux, en particulier sur l'hysterie" (1886), na tradução alemã de Sigmund Freud; Jean-Marie Guyau: "L'esquisse d'une morale sans obligation ni sanction" (1885) e "L'irréligion de l'avenir. Étude sociologique", 2e ed. (1887) (cf. Haaz, 2002, pp. 81, 115, 119, 130, 133 e 138); A. Krauss: "Die Psychologie des Verbrechers" ("A psicologia dos criminosos"); Eugen Dühring: "Wert des Lebens" ("Valor da vida"); Friedrich Albert Lange: "Geschichte des Materialismus" ("História do materialismo"); H. von Wolzogen: "Die Religion des Mitleides und die Ungleichheit der menschlichen Rassen" ("A religião da compaixão e a desigualdade das raças humanas"); Herbert Spencer: as traduções alemãs de "Data of ethics" e "Study of sociology"; Ludimar Hermann: "Grundriss der Physiologie des Menchen"; John Lubbock: "Die Entstehung der Civilisation und der Urzustand des Menschengeschlechts" ("O surgimento da civilização e o estado primitivo da humanidade"); M. Forter: "Lehrbuch der Physiologie"; Charles Letourneau: "La physiologie des passions"; Paolo Mantegazza: "La physiologie de l'amour" e "La physiologie de la jouissance"; Wilhelm His: "Unsere Körperformen und das physiologische Problem ihrer Entstehung" ("As nossas formas corporais e o problema fisiológico de seu surgimento", 1875) (cf. Richter, 1911, pp. 11, 13, 28, 139, 151, 203 e 209); além de inúmeros livros sobre biologia e evolução. Stingelin, em seu verbete "Psychologie", em "Nietzsche-Handbuch" (Ottmann, 2000), considera que Nietzsche leu os artigos e os relatórios críticos (comptes rendus) na "Revue Philosophique" dos seguintes autores: Bergson, Bernhaim, Binet, Bourru e Burot, Delboeuf, Espinas, Fechner, Ferri, Helmholtz, Herzen, James, Janet, Lombroso, Ribot, Richet, Tarde e Wundt (cf. Haaz, 2002, pp. 109-110). Esses artigos tratavam dos seguintes assuntos: psicologia comparada, psicologia da percepção, psicologia da consciência, psicologia das associações, sono, hipnose, transtornos de múltipla personalidade e psicofisiologia. Não é certo, para Stingelin, que o filósofo alemão tenha lido "As doenças da memória" (1881) e "As doenças da vontade" (1883): o conhecimento das ideias de Ribot ter-se-ia dado pela leitura do periódico, pois o psicólogo francês publicou partes inteiras de seus livros na "Revue Philosophique".

Estamos, portanto, diante de uma enorme dificuldade. Como, em meio a essa teia virtualmente infinita de referências dos autores do século XIX, retraçar as leituras de Nietzsche? O filósofo alemão teve conhecimento das várias teorias fisiológicas e psicológicas apenas por meio da "Revue Philosophique"? Pelos textos de Ribot? Ou diretamente nos textos citados por Ribot e pelo periódico? Ou ainda por todas essas fontes? As possibilidades são inúmeras e acreditamos que é impossível refazer o percurso realizado por Nietzsche. Será possível eliminar em alguns casos a sempre presente possibilidade de uma coincidência conceitual?

Para complicar ainda mais a situação, Ribot tem uma característica em comum com Nietzsche: a imensa quantidade de autores utilizados em seus textos. O fundador da psicologia francesa não clinicava e não realizava experimentos em laboratório, mas foi a principal figura e o catalisador da criação da psicologia enquanto disciplina independente. Ribot foi o responsável, na França, pelo projeto de uma psicologia científica com caráter de disciplina axial para a discussão das questões humanas, livre da filosofia, ou seja, livre de questões metafísicas. A "Revue Philosophique" reunia partidários e adversários de uma psicologia independente da filosofia da alma e baseada na fisiologia, mas tinha, como os livros de Ribot, uma meta clara, a de fundar uma nova psicologia. Esse projeto culminou com a criação, em 1888, da cátedra de Psicologia Experimental e Comparada no Collàge de France, assumida pelo próprio Ribot. Esse fato é considerado o marco inaugural da psicologia científica francesa. A base da psicologia de Ribot eram os trabalhos dos psicólogos associacionistas ingleses, dos fisiologistas alemães e certos aspectos do positivismo francês. Para citar apenas os autores que são temas dos capítulos de "A psicologia inglesa contemporânea" e "A psicologia alemã contemporânea", temos os seguintes psicólogos, dos quais Ribot aceita alguns aspectos e rejeita outros: entre os ingleses, James Mill, John Stuart Mill, Herbert Spencer, Alexander Bain, George Lewes, Samuel Bailey, J. D. Morell e J. J. Murphy (cf. Ribot, 1870); entre os alemães, J. F. Herbart, a escola de Herbart (Theodor Waitz, Lazarus e Steinthal), E. Beneke, Lotze, o debate sobre a origem da noção de espaço (inatistas: J. Müller, Ernst-Heinrich Weber, Carl Stampf, Tortual, Volkmann, Donders, Nagel, Panum e Hering; empiristas: Steinbuch, Weir Mitchell, Wundt e Helmholtz), Gustav Theodor Fechner e Wilhelm Wundt (cf. Ribot, 1879). A pergunta que podemos fazer, principalmente sobre os psicólogos e psicofisiologistas alemães, é a seguinte: Nietzsche entrou em contato com esses autores diretamente ou por meio das obras de Ribot? Não sabemos, portanto, a real fonte dos autores com os quais o filósofo alemão entrou em contato.

É necessário, para entendermos realmente a dimensão do problema, conhecer a estrutura da "Revue Philosophique de la France et de l'Étranger". O periódico foi fundado por Ribot em 1876 para agregar as discussões em torno do estatuto da psicologia e suas relações com as ciências naturais (especialmente a fisiologia e o evolucionismo) e a filosofia, ou seja, para divulgar uma nova psicologia (positivista e científica) em substituição à velha psicologia (espiritualista e metafísica, isto é, filosófica). A "Revue" durou até 1938 (126 números), tendo sido dirigida pelo psicólogo francês até sua morte, em 1916. A sua periodicidade era semestral e sua estrutura era composta das seguintes seções: Artigos originais (Articles originaux); Notas, discussões, documentos (Notes, discussions, documents), com assuntos específicos e pontuais, como, por exemplo, comentários de experimentos e teorias; Análises e relatórios críticos (Analyses et comptes rendus), com resenhas de livros e artigos atuais ou passados; Revisão de periódicos (Revue de périodiques), seção na qual os principais periódicos científicos e filosóficos eram listados com seus artigos; Principais artigos (Principaux articles), na qual alguns artigos da seção anterior recebiam uma resenha e um comentário crítico. A partir de 1886, o periódico passou a trazer textos da Société de Psychologie Physiologique numa nova seção. Essa estrutura permitia que uma quantidade imensa de dados e teorias (e de confrontos entre elas) fossem veiculadas em cada número. Assim, novamente, vemos que fica extremamente difícil identificar a origem de uma fonte em que Ribot e sua revista estão envolvidos. Não há como discordar de Haaz quando ele afirma que buscar a influência de Ribot em Nietzsche é buscar a influência de todo um conjunto de teorias e experimentos que o psicólogo francês recolheu para realizar seu próprio trabalho (cf. Haaz, 2002, p. 111).

As semelhanças entre Nietzsche e Ribot, mais do que indicar que o filósofo alemão abraça esta ou aquela concepção teórica, inserem-no em um projeto de transformação dos modos de conhecimento e de entender o mundo, o homem e a cultura. Podemos dar vários exemplos que mostram semelhanças teóricas entre Nietzsche e o contexto teórico de Ribot: a continuidade entre o físico e o espiritual (moral e cultural); a consciência como produto do desenvolvimento orgânico; a decadência cultural causada por doenças fisiológicas; a luta dos afetos ou impulsos para se tornarem conscientes; a aniquilação da vontade; a noção de centro de coordenação; a decadência enquanto dissolução; método patológico; memória e esquecimento; as características da nobreza ou aristocracia; alguns aspectos sobre a educação; entre outros. A mais importante, contudo, é a proposta de uma nova psicologia, antimetafísica, fisiológica e de posição condutora em relação às outras ciências. Em Nietzsche, essa proposta aparece claramente em "Além de bem e mal", § 23, e, em Ribot, em todos os seus livros até pelo menos 1888.

 

2. A psicologia de Ribot: fisiologia e rejeição da noção de alma

No debate francês sobre o estatuto da psicologia, não eram apenas as questões de objeto e de método que estavam presentes, mas também a demarcação entre filosofia, psicologia e fisiologia, o que era central para Ribot e também para Nietzsche. As relações entre psicologia e filosofia na França sempre foram intensas (cf. Nicolas, 2002): o racionalismo cartesiano, o empirismo e o sensualismo de Condillac ("Traité des sensations", 1754), a psicologia de Maine de Biran, a posição antimetafísica da escola ideológica, o ecletismo metafísico ou espiritualismo de Victor Cousin e Théodore-Simon Jouffroy, o positivismo de Auguste Comte. Foi no embate entre a psicologia cousinista, que propunha a disciplina como parte essencial da filosofia, e os psicólogos experimentais, que propunham a independência da psicologia em relação à filosofia, que surgiram as propostas de Ribot: disputa entre positivistas, espiritualistas, materialistas, e suas inúmeras variações. Pensamos que essa disputa não se referia apenas ao estatuto da psicologia e sua autonomia. Era também uma disputa pela demarcação entre filosofia, psicologia e fisiologia.

Théodule Ribot, na introdução a "A psicologia inglesa contemporânea" (1870), faz a distinção entre a psicologia e a filosofia, sendo a primeira uma nova psicologia, e a segunda inseparável de uma antiga psicologia, ou seja, da metafísica. A distinção é suportada pela noção positivista de evolução: em sua origem, a filosofia era uma ciência universal que tinha por objeto o Todo, e não havia ciências independentes e distintas: "Ela [a filosofia] parece esses organismos rudimentares nos quais a divisão fisiológica do trabalho ainda não ocorreu" (Ribot, 1870, p. 1). Da mesma forma que nos embriões, a tendência natural ao progresso fez as ciências se diferenciarem e separarem da filosofia: matemática, física, linguagem, moral. Mas a psicologia ainda se debate contra a metafísica por sua independência. Apesar dos trabalhos de Aristóteles, a fisiologia nunca foi dependente da filosofia: como a química, a fisiologia nasceu das técnicas. Para o progresso da ciência, é necessário se especializar, e essa especialização não tem limites visíveis.

A palavra filosofia, para Ribot (1870, pp. 6-10), é confusa. Efetivamente, é uma mistura incoerente de quatro ou cinco ciências. Pretende ter significado preciso, objeto bem determinado e limites postos pela experiência, mas, ao contrário das ciências positivas, isso não é fácil de determinar. No sentido comum, a filosofia é o estudo da alma: lógica (faculdade de raciocínio), moral (faculdade de querer e agir conforme uma lei) e Deus (causa primeira de todas as coisas). No entanto, as ciências já têm assumido parte desses estudos, exceto Deus. Assim, a filosofia trata apenas da parte da alma que as ciências não tratam? As ciências particulares, ao se separarem da filosofia, deixam de lado uma série de questões não respondidas. Elas começam ao acaso, e não sabem onde vão chegar, porém sabem o que são. Para se tornar independente, da mesma maneira que a moral não deve perguntar o que é o bem em si, a psicologia não deve perguntar o que é a alma. A condição fundamental da existência e do progresso das ciências é não buscar as causas primeiras (cf. Ribot, 1870, p. 11). O futuro da filosofia é ser uma metafísica e nada mais: especulações gerais do espírito humano sobre os primeiros princípios e as razões últimas de todas as coisas. Seu objeto é o que as ciências não podem conhecer e o que se abstêm de discutir. Só assim continuará universal. A filosofia pode também abordar outra questão sem resposta científica: de onde nasce a ciência e para onde vai.

A metafísica não pode ser uma ciência, pois é subjetiva, não é demonstrativa, não pode ser verificada e é uma produção pessoal ou local, ou seja, efêmera. Numa alusão – talvez irônica – ao mito da caverna de Platão, Ribot diz: "Há alguns espíritos audaciosos que se lançaram nessa região inacessível e retornaram cegos, com vertigens e que contam coisas tão estranhas que os outros tomam por alucinações" (Ribot, 1870, p. 14). A filosofia se tornará tão afastada dos fatos, tão abstrata, que se tornará uma obra de arte: poesia má escrita para uns, divina para outros.

A psicologia é independente e diferente da filosofia, não podendo ser a base da metafísica. Ela é o estudo puro e simples de fatos empíricos, não discute questões metafísicas. Analogamente à biologia e à física, que não perguntam o que é a vida e a matéria, ela não deve ter a alma como seu objeto. Apenas a psicologia experimental é psicologia; o resto é filosofia ou metafísica (cf. Ribot, 1870, pp. 19-22). Não devemos confundir os fenômenos psicológicos com especulações ontológicas: Biran e Jouffroy estão equivocados ao dizer que a alma é conhecida imediatamente. A antiga psicologia estuda apenas a alma humana e, o que é pior, somente o homem adulto, branco e civilizado.

O único método utilizado pela psicologia metafísica é o da observação interior. Para Ribot (1870, pp. 22-23), esse método é importante e indispensável para qualquer psicologia. Um estudo dos nervos, por exemplo, fica incompleto se o anatomista não souber, por via própria, o que é a dor ou o prazer. Entretanto, não é o único método psicológico, porque o que se passa em mim não me faz penetrar no espírito do outro. É necessário ultrapassar o caso particular para a psicologia se tornar objetiva. Não falta material para ela iniciar sua fase experimental: mecanismo das sensações, condições da memória, imaginação, associação de ideias, sonhos, sonambulismo, êxtase, alucinação, loucura, idiotismo, história, raças, língua, relação entre o físico e o moral etc. (cf. Ribot, 1870, pp. 27-30). Estão dadas as condições da autonomia da psicologia: estudo constante dos fatos e separação da metafísica, ou seja, não há discussão dos primeiros princípios. Seu método é, ao mesmo tempo, subjetivo e objetivo. Essa nova psicologia será totalmente experimental e não será nem espiritualista nem materialista, pois essas duas posições são metafísicas.

A ausência de um método objetivo na velha psicologia a impede de realizar uma psicologia comparada e de operar com a noção de progresso (cf. Ribot, 1870, pp. 31-34). O estudo dos instintos, das paixões e dos hábitos dos animais, das crianças e dos selvagens só é possível pela abordagem exterior, por meio dos fatos materiais que os traduzem: não há acesso direto à consciência que lhes dá origem. As desordens mórbidas são fundamentais para esse acesso objetivo, e, sem a noção de progresso, de evolução ou de desenvolvimento, não se pode estudar os seres vivos. Segundo Ribot, a doutrina de Heráclito foi confirmada pelas ciências naturais e pela história após 20 séculos. Assim, uma verdadeira psicologia deve abarcar todos os fenômenos psicológicos. Com isso, ela perde o caráter abstrato que a fazia semelhante à lógica. Ela constata o que é e não prescreve o que deve ser, ou seja, não é uma moral.

Em "A psicologia alemã contemporânea", Ribot continua criticando a antiga psicologia metafísica e defendendo a autonomia da psicologia experimental (cf. Ribot, 1879, Introduction, pp. I-XXXIII). Agora, contudo, a ênfase está no aspecto fisiológico experimental da nova disciplina. Ao investigar a alma e outras abstrações do gênero, a velha psicologia refina tanto os detalhes que acaba agindo somente com e sobre palavras e conceitos, e a realidade desaparece. As preocupações metafísicas e o abuso do método subjetivo e das abstrações paralisam os melhores espíritos. A fisiologia torna os fenômenos psicológicos mais objetivos, pois todo estado psíquico está associado a um estado nervoso. O princípio básico da psicologia fisiológica (psychologie physiologique) é "todo estado psicológico determinado está ligado a um ou vários acontecimentos físicos determinados que conhecemos bem em muitos casos, pouco ou mal em outros" (Ribot, 1879, Introduction, p. XI).

Esse princípio torna possível a experimentação que investiga fenômenos, e não essências abstratas e faculdades imaginárias. A psicologia passa a ligar-se à vida e aos seus mecanismos. O método experimental rigoroso permite estudar as variações do fenômeno da consciência, e não a própria consciência, pois este último estudo é metafísico e não científico. A experimentação faz que a psicologia progrida: passa da fase descritiva à fase explicativa, pois não lhe é mais suficiente ser uma história natural: ela deve ser uma ciência natural. A psicologia experimental alemã não faz descrições, e Ribot, embora ressalve que o termo tenha sido muito mal utilizado, acredita que aqui o seu uso é adequado para caracterizá-la: a psicologia alemã é uma psychologie physiologique, pois coloca os fenômenos psíquicos em condições determinadas e estuda suas variações (cf. Ribot, 1879, Introduction, p. XIX).

Essa dependência não faz que a psicologia seja absorvida pela fisiologia. Na concepção positivista do psicólogo francês, uma ciência superior necessita apoiar-se logicamente na inferior e, da mesma maneira que a fisiologia se utiliza da química sem se subordinar a ela, a psicologia usa a fisiologia. Ribot, no entanto, vê que a psicologia inteiramente fisiológica ainda é um acontecimento futuro. As lacunas do conhecimento fisiológico são muitas, e o uso do método de observação interna continua tendo sua utilidade. Não há ainda pessoas suficientes para essa construção. Poucos psicólogos conhecem fisiologia e vice-versa. Na França, sobretudo, há muito que fazer porque a psicologia está nas mãos dos metafísicos, que insistem em ver o psicólogo como um filósofo e não como um naturalista. O progresso da fisiologia, acredita o psicólogo francês, vai preencher essas lacunas e sepultar de vez a velha psicologia. Só então haverá o profissional psicólogo, assim como há o físico e o químico. Enquanto a psicologia tiver a infelicidade de estar misturada à metafísica, será apenas um conjunto de contrassensos (cf. Ribot, 1879, Introduction, pp. XXVII-XXVIII).

Apesar de dar uma ênfase muito grande à psicologia, Ribot, ao fundar sua revista em 1876, mantém a referência à filosofia: "Revue Philosophique de la France et de l'Étranger". Na abertura do primeiro número (I, jan.-juin de 1876), o psicólogo francês afirma querer abrir um espaço de debate para todas as escolas: positivismo puro, escola experimental (francesa, alemã e inglesa), criticismo kantiano e o espiritualismo (Maine de Biran). Certamente, a escolha foi estratégica, pois se houvesse escolhido o nome psychologique talvez não tivesse conseguido efetivamente reunir artigos das várias correntes, embora a ênfase da revista seja mesmo a psicofisiologia. Mais importante é que Ribot protege o termo psychologique de se confundir com as várias correntes presentes no periódico. A importância da psicologia é enfatizada pela relação que o psicólogo francês estabelece entre ela e a filosofia ainda no mesmo texto inaugural, quando ele explicita os campos filosóficos: 1) conhecimento teórico do homem: abrange a psicologia (a parte mais antiga da filosofia) acrescida de anatomia, fisiologia, patologia mental, história e antropologia. A lógica e a estética não se distinguem da psicologia, já que a primeira envolve o estudo do mecanismo da razão humana, e a segunda, a investigação do prazer causado pelo belo; 2) moral e ciências afins: estudo das ações humanas. Uns pensam nela como a base de toda a filosofia, mas outros tentam fazer dela uma ciência humana livre de concepções religiosas e apoiada nas ciências naturais; 3) ciências da natureza: teorias gerais, tais como o princípio de correlação das forças, a hipótese da evolução, as teorias químicas e as concepções acerca da vida; 4) metafísica: aqui Ribot faz uma concessão, pois todas as outras divisões estão, em algum grau, ligadas à experiência; 5) história da filosofia: método crítico rigoroso que prevalece nos trabalhos históricos. Achamos que fica clara a intenção do psicólogo francês de resumir a filosofia à psicologia e colocá-la ao lado das ciências experimentais.

 

3. A psicologia de Nietzsche: morfologia da vontade de potência

Mais do que as semelhanças conceituais, são as posturas antimetafísicas e antiessencialistas de Nietzsche que o inserem no debate psicológico francês. Os termos utilizados pelo filósofo alemão são, por vezes, os mesmos da disputa francesa, e algumas posições são as mesmas. Já em 1876, o filósofo alemão afirmava no fragmento póstumo 19 [101], de out.-dez. 1876: "O estudo da psicologia pertencia à antiga Retórica. [...] A nova psicologia [Die neue Psychologie] é indispensável ao reformador" (Nietzsche, 1999, Vol. 8, p. 355). O § 23 de "Além de bem e mal", que encerra a primeira parte do livro ("Dos preconceitos dos filósofos"), é o texto que mais claramente liga Nietzsche àquela discussão. Os preconceitos dos filósofos são constituídos pelas noções metafísicas tradicionais: alma, dualidades de opostos absolutos qualitativos, atomismo, lógica etc. Nesse excerto, Nietzsche principia declarando que, até o momento, a psicologia permaneceu prisioneira de preconceitos morais, não se arriscando até as profundezas, ou seja, não investigou a origem demasiado humana das funções psicológicas, incluindo a moral. Do mesmo modo que Ribot, o filósofo alemão vê a psicologia presa à metafísica e entende que os efetivos elementos da atividade mental ainda não foram tocados.

Ninguém, continua Nietzsche, considerou a psicologia como ele: "morfologia e teoria do desenvolvimento da vontade de potência (Morphologie und Entwicklungslehre des Willens zur Macht)". Até então os preconceitos morais (Bem e mal absolutos, Alma etc.), fortemente arraigados, exerceram uma ação nociva, paralisante, ilusória e produtora de cegueira. Ribot, mostramos acima, também considera a metafísica um caminho ilusório e improdutivo, e sua nova psicologia é inseparável de um evolucionismo e de uma morfologia (estudo do desenvolvimento). No entanto, aqui devemos ter cuidado: Nietzsche utiliza a palavra Entwicklung (desenvolvimento) e não Evolution (evolução), o que reforça suas críticas ao progresso6. O sentido de evolução para o psicólogo francês é quase sempre o de progresso. Além disso, não devemos confundir o estatuto da vontade de potência nietzschiana com o estatuto dos reflexos simples de Ribot. Os reflexos são mecanismos físico-químicos, isto é, materiais, enquanto a vontade de potência não é um "ser", mas um processo, um vir-a-ser.

Nietzsche considera a sua psicologia digna de ser chamada psicofisiologia (Physio-Psychologie) (cf. Nietzsche, 1999, Vol. 5, p. 38). E, por isso, ela entra em choque com o hábito inconsciente ("ela tem o 'coração' contra ela") de considerar bem e mal opostos absolutos. Se, por um lado, há resistências inconscientes, por outro, conscientemente, a abordagem da psicologia fisiológica é considerada imoral, visto que afirma a "interdependência dos bons e maus impulsos [Trieben]", ou, pior, que os impulsos bons nascem dos maus. O próprio filósofo alemão coloca sua psicologia ao lado das psicofisiologias francesa e alemã, ou seja, o psicológico tem suas raízes no fisiológico e não é determinado a priori por faculdades a-históricas e essenciais. Além disso, temos implicitamente a noção de hábito operando aqui: o choque entre os hábitos já adquiridos e os novos em formação. Essa luta entre o costume moral e a nova imoralidade é apontada por Nietzsche pelo sintoma semelhante ao do enjoo marítimo. Aqui também temos a continuidade entre o fisiológico e o psicológico, garantida, no pensamento do filósofo alemão, pela dinâmica da luta dos impulsos.

Se entrarmos nesse domínio desconhecido de experiências perigosas, passaremos para além da moral (cf. Nietzsche, 1999, Vol. 5, p. 38). A psicologia reencontrará seu estatuto de ciência mestre (Herrin der Wissenschaften), à qual todas as outras devem servir e para a qual devem se preparar: "a psicologia torna-se o caminho que conduz aos problemas fundamentais". Para os dois pensadores, o estudo da psicologia encaminha para as mais importantes questões, haja vista que a continuidade entre o físico, o biológico (ou fisiológico) e o psicológico (ou cultural e moral) permite afastar os erros metafísicos7, sair de suas ilusões paralisantes e atingir um conhecimento que respeite as potencialidades humanas. Tanto para o filósofo alemão quanto para o psicólogo francês, as verdades últimas da metafísica não valem como conhecimento. Em "A gaia ciência", § 355, Nietzsche diz que poderíamos considerar a psicologia e a investigação dos elementos da consciência como ciências antinaturais, já que tomam o habitual enquanto objeto, e "o habitual é o que há de mais difícil de 'reconhecer', ou seja, de considerar como problema, como estranho" (cf. Nietzsche, 1999, Vol. 3, p. 594). É um engano considerar o "mundo interior", os "fatos da consciência", como "o mundo melhor conhecido de nós mesmos". É isso que a psicologia metafísica faz: não questiona os nossos processos conscientes, valorizando o método de observação interna. Por coincidência ou não, essa é a mesma crítica que Ribot faz à velha psicologia. No fragmento póstumo 14 [27] primavera 1888, lemos:

A filosofia como décadence

Sobre a psicologia do psicólogo Os psicólogos, tal como são possíveis apenas a partir do século XIX: não mais esses curiosos [Eckensteher] que observam a três ou a quatro passos diante deles e se contentam quase que em pesquisar eles próprios. Nós, os psicólogos do futuro – nós somos pouco inclinados à auto-observação: tomamos quase como sinal de degenerescência o fato de um instrumento "buscar a conhecer a si próprio" (Nietzsche, 1999, Vol. 13, p. 230).

Em outros excertos, Nietzsche também critica a psicologia de seu tempo. Em "Além de bem e mal" § 47, ao tratar do sentimento religioso como uma doença nervosa causada por solidão, jejum e continência sexual, ele considera que a psicologia tradicional (bisherige Psychologie) soçobra ao explicar a transformação do "homem mau" em santo justamente por se fundamentar no antagonismo dos valores morais, por projetar essa dualidade metafísica na efetividade (cf. Nietzsche, 1999, Vol. 5, p. 69). E isso é, no fundo, um erro de interpretação, uma falha filológica. A "obtusa psicologia antiga" (die tölpelhalfte Psychologie von Ehedem) nos impede de entender a crueldade e a relação entre sofrimento e prazer (cf. Nietzsche, 1999, Vol. 5, p. 166). No fragmento póstumo 25 [185], da primavera de 1884 ("Psychologie"), lemos: "Rever tudo o que se aprendeu sobre 'interior' e 'exterior'" (cf. Nietzsche, 1999, Vol. 11, p. 64). A doutrina da vontade de potência revela os opostos interior/exterior como uma dualidade metafísica, e o mesmo ocorre em Ribot: a continuidade dos fenômenos afronta nossa noção arraigada de fora e dentro (cf. Ribot, 1870, p. 414, e 1873, p. 355). Nietzsche é ainda mais contundente no fragmento póstumo 15 [13], da primavera de 1888:

Nós abolimos quase todas as noções das quais dependia até aqui a história da psicologia [Geschichte der Psychologie] – inclusive da filosofia! nós negamos que exista uma vontade (nem falamos de livre-arbítrio) nós negamos a consciência, enquanto "unidade" e enquanto faculdade nós negamos que haja "pensamento" (: pois nos falta o que pensa e o que é pensado nós negamos que haja entre os pensamentos uma causalidade real como crê a lógica (cf. Nietzsche, 1999, Vol. 13, p. 414)

Nietzsche acredita que alguns na Europa tentam extirpar a filosofia decadente e metafísica da vontade, como se vê no fragmento póstumo 15 [30], da primavera 1888 (Nietzsche, 1999, Vol. 13, p. 425): aqueles que desejam restituir a inocência ao vir-a-ser, aqueles aos quais nem deus, nem a sociedade, nem os ancestrais, nem eles próprios lhes deram suas qualidades, ou seja, aqueles que pensam de modo antagonista aos valores vigentes. Aqui o conceito de vontade de potência exerce seu papel.

Na psicologia antimetafísica de Nietzsche, a vontade de potência tem papel central. Um fragmento póstumo da primavera de 1888 (14 [121]), intitulado "A vontade de potência – de um ponto de vista psicológico. Concepção unitária da psicologia" (cf. Nietzsche, 1999, Vol. 13, pp. 300-301), sintetiza essa importância:

– a monstruosa abundância de formas é conciliável com a forma primitiva do afeto (Affekt), que é a vontade de potência (Wille zur Macht). Todos os outros afetos são arranjos ou configurações (Augestaltungen) dessa tendência ao aumento de potência;

– o prazer nada mais é do que um sintoma do aumento de potência, a consciência da diferença: o prazer não é causa. Toda força impulsional (treibende Kraft) é vontade de potência, não havendo força física ou psíquica. Assim, podemos entender a psicofisiologia nietzschiana como a dinâmica da relação entre os impulsos, que não são nem corpo nem alma, o que nos mostra que a dualidade fisiológico/psicológico é tão metafísica quanto a dualidade corpo/alma;

– a vontade de potência não é uma vontade como a dos metafísicos, ou seja, não é uma faculdade da alma ou a ação do sujeito sobre o objeto, não envolve substância e seus atributos: "a vontade tal como a psicologia a compreendeu até aqui é uma generalização injustificada; essa vontade não existe absolutamente; ao invés de tomar o processo de configuração [Augestaltung] de uma vontade determinada em numerosas formas, anulou-se o caráter da vontade eliminando-se o conteúdo, a direção". Há aqui sem dúvida uma analogia com a multiplicidade dos estados corporais de Ribot, dos quais a vontade nada mais é do que a expressão.

 

4. Conclusão

A psicologia nietzschiana é imprescindível para o entendimento da própria filosofia de Nietzsche. É inegável, para nós, que o filósofo alemão está inserido no debate francês, no projeto antimetafísico da psicologia experimental de Ribot. O afastamento da metafísica e a construção de uma nova visão de mundo estão presentes na nova psicologia francesa e, especialmente, nas noções nietzschianas de vontade de potência e eterno retorno. Acreditamos que a construção da noção de vontade de potência, feita paralelamente às leituras do contexto de Ribot, aprofundou e modificou as posições anteriores de Nietzsche.

Embora tenhamos inserido Nietzsche na discussão psicológica francesa, não queremos dizer que ele tenha se limitado a ela nas suas concepções psicofisiológicas. Pensamos que ele se apropriou do que lhe interessava, modificando os conceitos científicos conforme suas necessidades filosóficas. Entretanto, entendemos que ele fez mais do que isso: o filósofo alemão quis superar o debate francês. A vontade de potência não é o reflexo nervoso de Ribot ou a sensação dos associacionistas ingleses, ou seja, não é um elemento material. Há, na noção de hereditariedade de Ribot, um aspecto de conservação criativa (cf. Ribot, 1873, pp. 395-400) que o trasbordamento e o esbanjamento da vontade de potência não suportariam. O mesmo ocorre com a evolução: para Ribot, hereditariedade e evolução são as principais leis da vida e, portanto, também dos fenômenos psicológicos.

Em algum momento, o filósofo alemão parece se irritar com a psicofisiologia francesa de sua época: "A teoria do Milieu, uma teoria da décadence, mas que invadiu e dominou a fisiologia" (15 [105], da primavera de 1888) (Nietzsche, 1999, Vol. 13, p. 468)8; e "A teoria do Milieu, hoje a teoria par excellence parisiense, é ela mesma a prova de uma fatal desagregação da personalidade" (15 [106], da primavera de 1888) (cf. Nietzsche, 1999, Vol. 13, p. 468). Nietzsche, porém, não se limita a isso, pois, no fragmento póstumo 1 [86], de outono de 1885 / primavera 1886, nega o estatuto de realidade aos conceitos biológicos: "Divisão do trabalho [Arbeitstheilung], memória [Gedächtniss], exercício [Übung], hábito [Gewohnheit], instinto [Instinkt], hereditariedade [Vererbung], capacidade [Vermögen], força [Kraft] – todas são palavras pelas quais não explicamos nada, mas nos contentamos de designar e indicar (cf. Nietzsche, 1999, Vol. 12, p. 32)9. Em outras palavras, esses termos são metáforas que tentam apanhar algo de fixo (um conceito ou uma lei) em processos dinâmicos de dominação; não designam nada de real.

O que ocorre é que Nietzsche não pode aceitar a verdade dos elementos fisiológicos e biológicos. As limitações kantiana e positivista do que pode ser conhecido não foram o bastante. A ciência de sua época, embora substituísse uma verdade pela outra, demonstrando uma desconfiança acerca da verdade absoluta, ainda estava imbuída do valor absoluto da verdade, isto é, ainda estava impregnada de preconceitos morais. Igualmente à ideia de que o Bem é sempre superior ao Mal, a verdade era considerada um valor supremo. O filósofo alemão mostra a sua posição sobre a ciência em "A gaia ciência", § 344:

A ciência mesma se funda sobre uma crença, ela não é ciência "sem pressuposição". [...] Essa vontade de verdade: o que é ela? É a vontade de não se deixar enganar? [...] Mas por que não enganar? Mas por que não se deixar enganar? [...] De onde a ciência tomou sua crença absoluta, sua convicção sobre a qual repousa, a saber, que a verdade é mais importante que qualquer outra coisa, até mesmo que qualquer outra convicção? [...] é ainda e sempre sobre uma crença metafísica que repousa nossa crença na ciência, [...] nós que buscamos hoje o conhecimento, nós, os sem-deus e antimetafísicos, nós acendemos ainda nosso fogo na fogueira que uma crença milenar inflamou, essa crença cristã que foi também a de Platão, a crença de que Deus é a verdade, que a verdade é divina... (cf. Nietzsche, 1999, Vol. 3, pp. 575-577).

Estamos, portanto, sugerindo que Nietzsche talvez pensasse que os psicólogos franceses ainda não eram antimetafísicos o suficiente. As doutrinas da vontade de potência e do eterno retorno são tentativas de eliminar os resquícios metafísicos da ciência, daí seu caráter mais estético que científico: elas não descrevem o mundo como ele é, elas dão significado ao mundo. Essa eliminação passa pela superação das dualidades de qualidades opostas absolutas: bem/mal, verdade/falsidade, alma/corpo, psicológico/fisiológico, cultura/biológico etc. O desenvolvimento da luta dos impulsos por mais potência não é um progresso ou uma evolução, um movimento teleológico. Nietzsche não reduz o psicológico (o mental, o moral) ao fisiológico (ao corporal, ao material), não há coisas ou seres, apenas o vir-a-ser, um fluxo contínuo de movimento, interpretado como uma tendência geral de aumento de potência.

 

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Endereço para correspondência
E–mail: wfrezzatti@uol.com.br

 

 

Enviado em 9/11/2010
Aprovado em 02/05/2011

 

 

* Este artigo é parte dos resultados do meu estágio pós-doutoral na França, supervisionado pelo Prof. Dr. Patrick Wotling (Université de Reims Champagne-Ardennes). Agradeço ao suporte financeiro da Capes (Projeto Capes-Cofecub n. 611/08 "Crises e anátemas da modernidade filosófica: Spinoza e Nietzsche como sismos na metafísica da subjetividade") e ao apoio da Unioeste.
1
O prof. Robertson é o primeiro editor da revista "Mind". Na carta, Nietzsche diz que colaboram na revista todos os grandes filósofos ("Spencer, Tylor, Maine, Darwin, etc., etc.") e conta o interesse do inglês pelo livro de Rée, seu gosto por Wagner e a promessa de, se Nietzsche e Rée fossem a Londres, apresentá-los a todas as autoridades célebres. Sabe-se muito pouco sobre o encontro de Nietzsche com Robertson. Segundo Haaz (2002, p. 81, nota 176), talvez tenham lido e discutido "Esboço biográfico de uma criança" ("A biographical sketch of an infant") de Charles Darwin. Ribot (1879, p. 117-118) faz referência a esse texto, publicado na "Mind" de julho de 1877.
2 Segundo Richter (1911, p. 36-37), Nietzsche leu "A luta das partes no organismo" ("Der Kampf der Teile im Organismus", 1881), de Roux, e "Problemas biológicos" ("Biologishe Probleme zugleich als Versuch zur Entwicklung einer rationalen Ethik", 1882), de W. H. Rolph, logo após as leituras de G. H. Schneider: "A vontade animal" (1880) e "A vontade humana" (1882).
3 Acreditamos que as semelhanças não estão apenas nas obras de Ribot citadas por Haaz e nos textos do mesmo no periódico, mas também nas primeiras obras do psicólogo francês: "A psicologia inglesa contemporânea" ("La psychologie anglaise contemporaine", 1870), "A hereditariedade: estudo psicológico sobre seus fenômenos, suas leis, suas causas, suas consequências" ("L'hérédité: étude psychologique sur ses phénomànes, ses lois, ses causes, ses conséquences", 1873) (tese de doutorado em francês) e "A psicologia alemã contemporânea" ("La psychologie allemande contemporaine", 1879). 4 No século XIX, a Universidade Sorbonne era a principal formadora de professores de Filosofia para o ensino médio (Lycées) e para as faculdades (?Facultés). A tese de doutorado em francês de Ribot ("Hérédité", 1873) é a primeira a tratar da psicologia científica e foi defendida nessa universidade, onde foi aprovada com elogios, mas também com restrições a partes do conteúdo. Desde 1880, Ribot tenta estabelecer um curso de psicologia experimental na Sorbonne, mas sofre resistências, pois, durante essa época, ela era dominada pelo que o psicólogo francês chama de antiga psicologia (psicologia espiritualista e cousinista). Em 1885, consegue dar o curso, mas não tem sucesso em repeti-lo nos outros anos. Contudo, no Collàge de France, instituição independente da universidade, Ribot recebe apoio do seu diretor Ernest Renan, que substitui a cátedra de Direito da Natureza e das Gentes ("Droit de la Nature et des Gens") do filósofo Adolphe Franck (espiritualista e aluno de Cousin) pela de Psicologia Experimental e Comparada ("Psychologie Expérimentale et Comparée"). A mudança foi feita em um contexto de reformas universitárias e em meio a uma intensa movimentação política no Collàge e no meio universitário. O nome experimental e comparada foi utilizado em lugar de fisiológica para evitar as associações desta última com o positivismo e o materialismo, além de facilitar a disputa com outros candidatos no concurso da cátedra. Apesar da criação do ensino oficial de psicologia no Collàge de France, Ribot, que era psicólogo teórico e filósofo, não pretendia estabelecer um laboratório. O psicofisiologista Étienne-Henry Beaunis criou o primeiro laboratório de psicologia francês na Sorbonne em 1889. Em 1885, Ribot e Charcot instituíram a Société de Psychologie Physiologique, da qual Beaunis foi um dos membros fundadores (cf. Nicolas, 2002, pp. 126-139).
5 Ainda assim Ribot relaciona a metafísica com a experiência: "A 'Revue' guarda-lhe [à Metafísica] um lugar, pois ela não professa o empirismo puro; mas, aos próprios metafísicos, ela exigirá os fatos, persuadindo que nenhuma parte pode passar da experiência e que, onde ela falta, há apenas argúcias lógicas, criações imaginárias ou efusões místicas" (Revue Philosophique de la France et de l'Étranger, Vol. I, 1876, p. 3).
6
Em "Hereditariedade", Ribot afirma com Lyell que a evolução não implica necessariamente progresso. A lei da evolução dá conta do progresso e da degradação. Esta última é a produção de estruturas inferiores causada pela melhor adaptação às condições de existência por um organismo inferior (cf. Ribot, 1873, p. 399).
7 Erro, como Nietzsche define em "Ecce homo", Prefácio § 3, é a crença no ideal (cf. Nietzsche, 1999, Vol. 6, p. 259). Para o filósofo alemão, em "Crepúsculo dos ídolos", Os quatro grandes erros, há um erro psicológico básico: a má compreensão da causalidade (cf. Nietzsche, 1999, Vol. 6, pp. 88-97). 8 Nietzsche se refere à teoria da influência do meio sobre o indivíduo, a qual ele acredita perpassar o evolucionismo darwiniano e spenceriano (cf. Frezzatti, 2001, pp. 96-97 e 103-104). Herbert Spencer é uma das grandes presenças nos textos de Ribot, cf., por exemplo, Ribot, 1870, capítulo "Herbert Spencer" e 1873, pp. 529-534.
9 Essas palavras estão estreitamente ligadas às teorias de Ribot. O conceito de divisão de trabalho refere-se à coordenação dos reflexos e é muito importante para a constituição das sociedades animais de Espinas (cf. Espinas, 1924, pp. 414-415). Nos fragmentos póstumos 14 [201] (cf. Nietzsche, 1999, Vol. 13, p. 385) e [221], da primavera de 1888 (cf. Nietzsche, 1999, Vol. 13, pp. 394-395), Nietzsche utiliza a noção de divisão de trabalho para entender as castas indianas. O filósofo alemão justifica, em 40 [21], de agosto-setembro de 1885, por que utilizar o corpo e a fisiologia: "Partir do corpo e da fisiologia: por quê? – Nós obtemos assim uma representação [Vorstellung] exata da espécie de nossa unidade subjetiva, feita de um grupo de regentes à frente de uma coletividade, nem 'almas' nem 'forças vitais', nós compreendemos como esses regentes dependem daqueles que eles comandam, e como as condições da hierarquia e da divisão do trabalho tornam possível a existência dos seres participantes e do todo; como as unidades vivas nascem e morrem sem cessar e como a eternidade não é um atributo do 'sujeito'; como a luta se exprime mesmo na troca de comando e obediência e como uma delimitação sempre flutuante de potência é inerente à vida. [...] O que importa: é que compreendamos que o comandante e seus subordinados são da mesma espécie, todos sentem, querem e pensam –" (cf. Nietzsche, 1999, Vol. 11, pp. 638-639).

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