SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.13 número1Indicación formal y juicio reflexionante. El discurso filosófico y sus desafíosA função da angústia na metapsicologia freudiana índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.13 no.1 São Paulo  2011

 

Artigos

 

Conceito e decisão: fenomenologia, indicações formais e a viabilidade da "ciência do ser"1

 

Concept and decision: phenomenology, formal indications and the feasibility of the "science of being"

 

 

Fernando Fragozo

Professor adjunto da Escola de Comunicação da UFRJ e professor colaborador do PPGFil da UERJ
E-mail: ferfra3@gmail.com

 

 


Resumo

Este artigo visa a apresentar e analisar a delimitação, a definição e o método propostos por Heidegger para a elaboração da "ciência do ser" em Os problemas fundamentais da fenomenologia, de 1927, e Ser e tempo. Trata-se de apresentar a definição da ontologia em contraposição às visões-de-mundo e às ciências positivas, ressaltando a peculiariedade de seu objeto, cuja tematização demanda um procedimento fenomenológico próprio marcado pelo que Heidegger denomina "indicação formal" e que encontra sua realização central e primordial na analítica existencial de Ser e tempo. A análise do sentido crítico e transcendental do projeto da ciência do ser é realizada e, por fim, a viabilidade do projeto considerada à luz da aporia em que se constitui.

Palavras-clave: Heidegger, Fenomenologia, Indicações formais, Ontologia fundamental.


Abstract

This article aims to present and analyze the delimitation, the definition and the method proposed by Heidegger for the drawing up of the "science of being" in The basic problems of phenomenology, of 1927, and Being and time. It aims at establishing the definition of ontology in contraposition to worldviews and positive sciences, emphasizing the uniqueness of its object, whose thematization demands a phenomenological procedure itself marked by what Heidegger calls "formal indication" and that finds its central and paramount fulfilment in the existential analytic of Being and time. The analysis of the critical and the transcendental sense of the project of the science of being is realized and, finally, the viability of the project considered in the light of the aporia in which it constitutes itself.

Key-words: Heidegger, phenomenology, formal indications, fundamental ontology.


 

 

1. Visão de mundo, positividade e ciência

Ao final de Os problemas fundamentais da fenomenologia Heidegger (1927/1975, p. 467) nomeia o que, segundo ele, "hoje mais do que nunca, a partir de todos os setores da vida espiritual, ameaça a filosofia: a formação de visões-de-mundo, a magia, e as ciências positivas que se esqueceram de seus próprios limites". Se a magia não é objeto específico do curso, sendo apenas definida de modo sumário e sem maiores desenvolvimentos como um pensamento (Denken) no qual o ser-aí não se distingue a si mesmo como um ente outro em relação às "coisas" (1927/1975, p. 171), o desafio posto pelas duas outras "ameaças", a saber, "a formação de visões-de-mundo" e "as ciências positivas que se esqueceram de seus próprios limites", será objeto explícito e central da tentativa de Heidegger de, nesse curso, definir a filosofia e demarcá-la destas "ameaças".

A visão-de-mundo, Weltanschauung ("palavra especificamente alemã", diz Heidegger, 1927/1975, p. 5), é definida como um

modo auto-realizado, produtivo assim como consciente de apreensão e interpretação do universo dos entes, […] não apenas uma concepção da interconexão das coisas da natureza, mas ao mesmo tempo uma interpretação do sentido e propósito do ser-aí humano e consequentemente da história (Heidegger, 1927/1975, pp. 6 e 7).

Entendida como ua espécie de "guia" para o ser-aí, toda visão-de-mundo está relacionada, em seu sentido, a cada ser-aí contemporâneo particular a cada momento, e é em geral determinada por uma mistura de superstição e conhecimento – até mesmo científico –, preconceito e razão. Assim, "a visão-de-mundo é algo que em cada caso existe historicamente a partir, com e para o ser-aí fático", seja ela entendida como "natural", na qual todo ser-aí cresce e com a qual se habitua, seja ela entendida como formada "individual" ou "culturalmente" com base nesta "visão natural" (Heidegger, 1927/1975, p. 6). Deste modo, fundamentalmente, já que toda visão-de-mundo está relacionada a um mundo específico realmente existente e ao ser-aí particular existindo faticamente, "toda visão-de-mundo é relacionada entitativamente a algum ente ou a entes" (Heidegger, 1927/1975, p. 12). Em outras palavras, ela põe (setzt) entes, algo que é, ou seja, ela é positiva.

Assim como as ciências "não filosóficas", ciências "positivas" que têm como tema "algum ente ou entes, e de tal modo que eles são, em cada caso, dados antecipadamente como entes a estas ciências" (Heidegger, 1927/1975, p. 17). Lidando sempre com domínios específicos de entes pré-determinados (natureza, história ou geometria, por exemplo), as ciências não filosóficas lidam com o que é, com entes, e, neste sentido, "suas proposições, mesmo as da matemática, são proposições positivas" (Heidegger, 1927/1975, p. 17).

Toda visão-de-mundo é relacionada a entes, ao mundo que é, ao Dasein que é. Toda ciência não filosófica é relacionada a entes específicos, pré-determinados em seus domínios que são. Ambas, visão-de-mundo e ciência não filosófica, na medida em que lidam com entes, são assim, "positivas". E se distinguem, neste sentido, da filosofia, que "lida com o que toda positividade de entes […] deve pressupor essencialmente" (Heidegger, 1927/1975, p. 16).

A filosofia lida com o ser. Ela é ciência do ser: ontologia. Neste sentido, tem muito mais em comum com as ciências não filosóficas do que com as visões-de-mundo, já que, para Heidegger, o que está em jogo com as visões-de-mundo não é nenhum "conhecimento teórico", mas sim "convicções coerentes que determinam os negócios correntes da vida mais ou menos expressa e diretamente" (Heidegger, 1927/1975, p. 7).

Ciência é um modo do conhecimento (Erkennen), e o conhecimento tem basicamente o caráter de desvelamento (Enthüllen). Assim, a ciência é um modo do conhecimento com o intuito de desvelar enquanto tal. Diz Heidegger (1927/1975, p. 455):

o que está para ser desvelado deve tornar-se manifesto apenas em vista de seu próprio si [seiner selbst], em seu puro caráter essencial e seu modo específico de ser. O que está para ser desvelado é a única instância de sua determinabilidade, dos conceitos que são adequados para interpretá-lo.

Toda ciência constitui-se essencialmente com base no que já se abriu de algum modo, e, neste sentido, toda "investigação científica constitui-se na objetificação [ Vergegenständlichung] do que já de algum modo se desvelou antecipadamente" (Heidegger, 1927/1975, p. 456).

A questão é que essa objetificação vai variar segundo o que e como algo é previamente dado, de modo que "duas possibilidades essenciais de objetificação são postas" (1927/1975, p. 456): a objetificação de entes, realizada pelas ciências positivas, e a objetificação do ser, realizada pela ontologia.

Na medida em que as ciências positivas visam justamente o que já está presente, o que já está adiante (vorliegend), o positum, a objetificação das ciências positivas se dá na direção da tendência da apreensão direta cotidiana. O processo se dá neste caso pelo que Heidegger (1927/1967, p. 363) denominara, em Ser e tempo, "tematização", "projeto científico dos entes já de algum modo encontrados no mundo", que se desdobra em

articulação da compreensão ontológica, delimitação dela derivada do setor de objetos e prelineamento da conceitualização adequada ao ente. Esta projeção da constituição ontológica de um domínio de entes não é, contudo, propriamente uma investigação ontológica do ser dos entes assim questionados, mas ainda tem o caráter de uma reflexão pré-ontológica, na qual um conhecimento já disponível a respeito das determinações ontológicas dos entes em questão pode entrar e de fato entra (Heidegger, 1927/1975, p. 457).

Tal teria sido o caso da moderna ciência da natureza, que, com Galileu, desenvolveu essa projeção "a partir de e no âmbito de um conhecimento sobre conceitos ontológicos básicos da natureza tais como movimento, espaço, tempo e matéria", que foram tomados de modo peculiar da antiga filosofia e da escolástica.

 

2. Da "ciência do ser"

No caso da objetificação do ser, da ciência do ser, da filosofia, enfim, segunda possibilidade essencial de objetificação, parte-se também de uma certa familiaridade – mas a objetificação não se dá na direção do comportamento em relação a entes da existência fática cotidiana. Se "a objetificação do ser é sempre possível, na medida em que o ser é de algum modo desvelado", ela, no entanto, se dá " numa direção projetiva que corre contra o comportamento cotidiano em relação a entes" (Heidegger, 1927/1975, p. 459), pois o ser, diferentemente dos entes (e este é o sentido mesmo da diferença ontológica), não "é". Assim, " a direção da possível projeção de ser enquanto tal é [sempre] por demais duvidosa, indefinida e insegura para apreendê-lo expressamente a partir desta projeção" (Heidegger, 1927/1975, p. 458). E isso explica por que, tradicionalmente, a projeção do ser necessariamente se torna "projeção ôntica" ou toma a direção de conceitos como "pensamento", "compreensão", "alma", "espírito" ou "sujeito" – o que mais adiante na reflexão de Heidegger será caracterizado como a própria essência da metafísica como ontoteologia, que pergunta pelo ser como se um ente fosse.

Nesse sentido, o "método da ontologia", que nesse curso é denominado por Heidegger "método fenomenológico", seguindo nessa direção que corre contra o comportamento cotidiano ("a filosofia é um mundo invertido", já dissera Hegel, citado em Heidegger, 1927/1975, p. 19), é constituído por três componentes básicos, que mutuamente se pertencem e se articulam, a saber, redução, construção e destruição.

A redução corresponde ao movimento de dirigir-se a um ente específico a fim de destacar seu ser e tematizá-lo; a construção corresponde a uma livre projeção prévia do ente sobre seu ser e a estrutura de seu ser; e a destruição corresponde a um processo crítico no qual os conceitos tradicionais, que têm de ser necessariamente usados no início, são desconstruídos até as fontes de onde foram obtidos (Heidegger, 1927/1975, pp. 28-31).

A filosofia é assim definida em Ser e tempo (Heidegger, 1927/1967, p. 436) como "uma ontologia fenomenológica e universal que parte da hermenêutica do ser-aí, a qual, enquanto analítica da existência, amarra o fio de todo questionamento filosófico no lugar de onde ele brota e para onde retorna". Ser e tempo corresponde assim a esse projeto de tematização explícita do ser por meio da analítica do "ente que nós mesmos somos", que sempre "compreende" ser de algum modo e para o qual, sendo, está sempre em jogo seu ser. Como diz Heidegger (1927/1975, p. 322):

O ser e sua diferença em relação aos entes pode ser apenas fixado [fixiert] se conseguirmos ter controle sobre/apreender [in den Griff bekommen] a compreensão do ser [Verständnis von Sein] enquanto tal. Mas compreender/apreender [begreifen] a compreensão do ser [Seinsverständnis] significa antes de mais nada compreender o ser a cuja constituição ontológica a compreensão de ser pertence, o ser-aí2

Compreender o ser-aí corresponde a compreender o "ente que nós mesmos somos". Mas isso não quer dizer compreender, como é dito no Relatório Natorp (Heidegger, 1922/2005, p. 350), o "ser-aí em geral de uma humanidade universal", mas o ser-aí de si mesmo, já que "o ser-aí fático é sempre o que é apenas como inteiramente próprio de si, não o ser-aí em geral de uma humanidade universal". O ser-aí é sempre em cada caso "meu", e este ser-aí próprio nunca é um ente que pode definitivamente ser "completado" e definido como um ente qualquer com propriedades definidas: na medida em que é sempre aberto a possibilidades fáticas que dependem do contexto em que em cada caso se dão, o ser-aí é sempre incompleto.

Como compreender esse ente que nós mesmos, a cada vez, somos, e que nunca se "completa", imerso que é sempre em possibilidades de ser? Como "apreender" este ente sem perder justamente a inefabilidade de seu ser?

 

3. Indicação formal e o procedimento da analítica

O nome da estratégia adotada por Heidegger para essa tarefa é "indicação formal". Não há como capturar conceitualmente esse ente em seu ser sem justamente perder seu modo de ser, mas haveria, segundo Heidegger, como indicar formalmente o que está em jogo no ser deste ente que, sempre, a cada vez, está aberto a possibilidades e é sempre especificamente "meu".

Nesse sentido, a ontologia fundamental tem seu ponto de partida na indicação do conceito formal de "existência" (Existenz) e de "propriedade" (Jemeinigkeit) como determinações básicas do ser-aí. Existência: "o ser-aí é um ente que, na compreensão de seu ser, com ele se relaciona e comporta". Propriedade: "o ser-aí é o ente que sempre eu mesmo sou" (Heidegger, 1927/1967, pp. 52-53). Este é o ponto de partida central da analítica, é ele que constitui a aposta ou o desafio que Heidegger se põe. É deste ponto de partida, desta indicação formal, que Heidegger dirige-se ao modo pelo qual o ser-aí mostra-se "antes de tudo e na maioria das vezes" (zunächst und zumeist) em sua "cotidianidade mediana" (Alltäglichkeit), para daí extrair suas estruturas existenciais.

A analítica apresenta-se assim como uma re-interpretação, à luz dos conceitos de existência e propriedade, da cotidianidade mediana e da interpretação que esta tem do ser-aí. Mas não apenas: a projeção dos conceitos de existência e propriedade sobre a cotidianidade mediana faz-se por intermédio do conceito central de "ser-no-mundo", que é apresentado como "constituição ontológica" do ser-aí. É em sua interpretação, segundo Heidegger, que repousa a possibilidade de compreensão a priori dos conceitos anteriores, e, portanto, é nela que se encontra "o ponto de partida devido da analítica" (Heidegger, 1927/1967, p. 53).

Assim, "com base na constituição ontológica designada como ser-no-mundo", projeta Heidegger sobre a "cotidianidade mediana" as caracterizações de "existência" e "propriedade". Esta projeção é o movimento central e fundamental de Ser e tempo. Todo o seu desdobramento dela decorre: a obtenção do conceito de cuidado (Sorge) como o "ser do ser-aí", o desenvolvimento de um conceito ontológico e existencial da totalidade e do fim (o ser-para-a-morte), a elaboração do modo pelo qual se dá a existencialidade autêntica com base nos conceitos de consciência, culpa/débito e decisão, e, por fim, o atingimento da temporalidade como sentido ontológico do cuidado e horizonte transcendental para a questão do ser.

O problema que se põe é evidentemente a comprovação possível deste ponto de partida e, consequente e paulatinamente, de todo o desdobramento ulterior da analítica. O que se obtém com estes resultados? Que tipo de conhecimento é este que Ser e tempo pode proporcionar? Em que medida ele diferencia-se de outro tipo de conhecimento, notadamente o positivamente científico? Qual seu modo de comprovação?

Nesse sentido, Heidegger tecerá, ao longo de Ser e tempo, considerações metodológicas a respeito do procedimento dessa projeção inicial, mas é fundamentalmente no § 63 que "o caráter metodológico da analítica existencial" será posto à prova diante dos resultados obtidos nos parágrafos precedentes. De fato, Heidegger (1927/1967, pp. 314-315) ali se pergunta se o que foi pressuposto na analítica tem o caráter de um "projeto compreensivo", que

deixa aquilo a ser interpretado pôr-se a si mesmo em palavras pela primeira vez, de tal modo que ele decida, com base em si mesmo, se a entidade que ele é tem a constituição de ser para a qual ele no projeto se abriu de modo formal-indicativo.

A comprovação possível da analítica existencial apresenta-se assim na necessidade de responder à sua indicação, numa resposta que só pode ser dada, na medida em que o ente que ali é interpretado é sempre "meu", por "mim". O desafio aqui está lançado, para aquele que se pergunta sobre seu ser, de responder à interpretação de Heidegger, situando-se de modo radical na posição que ele indica, qual seja, a de não pensar o ser-aí como algo dado, um ente entre outros entes, mas justamente como o ente que se é e que questiona seu ser. Aceitar o desafio de Heidegger é pensar a filosofia, como é dito no Relatório Natorp (Heidegger, 1922/2005, p. 363), "não como uma ocupação artificial que apenas acompanha a vida e lida com ‘universais’ de um tipo ou de outro e arbitrariamente põe [setztend] princípios", mas como um "conhecimento que questiona" e que, neste questionar, "busca trazer à vista e à apreensão [in Sicht und Griff zu bringen] a vida fática em termos de suas possibilidades decisivas", sem dar atenção à agitação (Betriebsamkeit) das visões-de-mundo.

Trata-se de pensar o questionamento radical como um modo possível de comportamento do ser-aí que questiona, de modo permanente, os modos possíveis de comportamento. Trata-se de uma decisão, que a cada vez tem de ser tomada (re-tomada, re-petida), na medida em que, conforme diz Heidegger (1927/1975, p. 459),

mesmo o ato básico da constituição da ontologia, da filosofia, da objetivação do ser, a projeção do ser sobre o horizonte de sua compreensibilidade corre sempre o risco de ser revertido, já que esta objetivação deve necessariamente se mover numa projeção diretiva que corre contra o comportamento cotidiano em relação aos entes,

e o método fenomenológico, "se uma tal coisa pudesse existir", não pode nunca se tornar uma "técnica filosófica".

 

4. Projeto crítico, projeto transcendental

Nesse sentido, o projeto visado pela ontologia fundamental é crítico, nos diversos sentidos deste conceito:

- é crítico em primeiro lugar na medida em que faz a crítica dos conceitos herdados, em sua "reificação" e "naturalização". A rigor, no âmbito da tarefa da destruição, o que está em jogo é mais que uma crítica no sentido corrente, a própria "critica" se vendo passível de ser desconstruída;

- é crítico também na medida em que realiza a diferença ontológica, realiza a "distinção – krinein, em grego – não entre um ente e outro ente, mas entre ser e entes". Neste sentido, Heidegger (1927/1975, p. 23) denominará a filosofia em geral, a ontologia, em distinção à ciência dos entes, "ciência crítica";

- e é crítico, enfim, num sentido radical de krinein, como de-cisão que se decide pelo questionamento radical.

Como ciência crítica, que realiza a diferença ontológica, a ontologia é também ciência transcendental: ao realizar a distinção entre ser e entes, e ao selecionar o ser como tema, ultrapassamos, diz Heidegger (1927/1975, p. 23), o domínio dos entes, "nós o transcendemos". A "ciência do ser" é assim apresentada como ciência transcendental, num gesto que não quer "simplesmente retomar inalterado o conceito de transcendental em Kant", ou seja, quer ir além. Um além que se quer "sentido original" e "verdadeira tendência" do pensamento kantiano, "talvez ainda velados a Kant".

Esse "sentido original", que estaria "talvez ainda velado a Kant", apresenta-se de dois modos:

- Em primeiro lugar, no conceito de "ciência transcendental" apresenta-se o que em Kant explicitava-se como busca de conhecimento de condições de possibilidade. Tratava-se, para Kant, de buscar o conhecimento da condição de possibilidade do conhecimento, o que simultaneamente quer dizer: buscar o conhecimento da condição de possibilidade da experiência. Ora, para Heidegger, trata-se de buscar o conhecimento das condições de possibilidade da existência – o conceito de "experiência" em Kant ainda se vendo marcado, segundo Heidegger, pelo horizonte da relação sujeito-objeto, relação esta que se apresenta como relação derivada, e não "originária". Isso quer dizer que, seguindo a intenção transcendental de Kant no sentido de buscar as condições de possibilidade, Heidegger também visa "princípios" ou "estruturas" que estariam na base da "existência". Gesto muito semelhante, que se distancia, contudo, no que visa.

- Por outro lado, Heidegger definirá a transcendência como "determinação fundamental da estrutura ontológica do ser-aí", pertencendo à "existencialidade da existência". Diz Heidegger (1927/1975, pp. 425-426): "ser-aí é o ente transcendente. Objetos e coisas nunca são transcendentes. A natureza original da transcendência manifesta-se na constituição básica do ser-no-mundo" e "transcendência significa compreender a si mesmo a partir de um mundo".

Uma definição que encontrará, num texto posterior (Heidegger, 1929/1979, p. 105), uma formulação concisa:

Nós designamos aquilo em direção ao qual (horizonte) o ser-aí como tal transcende, o mundo, e determinamos agora a transcendência como ser-no-mundo. Mundo constitui a estrutura unitária da transcendência: enquanto dela faz parte, o conceito de mundo é um conceito transcendental.

Desse modo, sob a questão do "transcendental" vemos Heidegger aproximar-se de Kant de dois modos:

1. numa reinterpretação do conceito no sentido de integrá-lo à analítica existencial como "ser-no-mundo", interpretação esta que se quer "sentido original e verdadeira essência" do pensamento kantiano, apesar de impensada por Kant.

2. no gesto de buscar estruturas "originárias", "ontológicas", "existenciais", "transcendentais".

 

5. Analítica existencial, aporia e a viabilidade da "ciência do ser"

  No que tange à intenção da analítica existencial de conceitualizar o ente que nós mesmos somos, o que este duplo movimento em relação à transcendentalidade revela é, a meu ver, a aporia constitutiva de toda busca das condições de possibilidade do que nos constitui. Ao constatar a transcendentalidade da transcendência, ou a transcendentalidade da mundanidade, o que Heidegger está dizendo é que todo ser-aí é, ontologicamente, existencialmente, sempre em-um-mundo, um mundo específico, no qual se encontra lançado e que, portanto, o ser-aí denominado Heidegger também se constitui como ser-no-mundo de um mundo específico, do qual não pode "sair".

Nesse sentido, a questão que se põe, quanto aos resultados concretos da analítica, é em que medida os conceitos ali obtidos conseguem de algum modo se destacar do mundo do qual fazem parte e serem apresentados de fato como conceitos transcendentais, o que quer dizer: não referidos a um mundo específico, mas assinalando a condição de possibilidade da mundanidade enquanto tal em suas estruturas. Em outras palavras, se Heidegger propõe-se a desvelar (enthüllen) os fenômenos essenciais e se, para isso, parte "daquilo que a interpretação cotidiana diz" (1927/1967, p. 281), como garantir que estas "pistas" (Spuren), "indicações" (Anweisungen), da "‘ideia’ originária do fenômeno" – pistas e indicações estas que se dão em um mundo específico, a saber, o mundo no qual Heidegger encontra-se lançado –, são as adequadas para o atingimento dos fenômenos essenciais? Como não pensar que esses conceitos, com toda sua carga mundana, marcados por uma herança específica, de um mundo específico, na qual são termos fundamentais, trazem consigo uma "visão-de-mundo" naturalizada, ao serem considerados como transcendentais?

Heidegger tem consciência dessa aporia, de tal modo, que escreve (1927/1975, pp. 230-231):

Com esta tarefa [de trazer à luz a constituição existencial do ser-aí] […] também nos dirigimos a um problema central que permaneceu desconhecido a toda a filosofia anterior e a envolveu em notáveis e insolúveis aporias. Não devemos esperar resolver o problema central em apenas uma tentativa ou mesmo até deixá-lo suficientemente transparente como problema.

Como tentativa de "resolver esse problema", Ser e tempo terá sido, no dizer mesmo de Heidegger, no último parágrafo do tratado, um caminho sobre o qual se deverá "decidir se é o único ou, simplesmente, o correto". Nós gostaríamos de nos perguntar se ele é viável. Ou seja, se o problema tem propriamente "solução". Se é, de fato, possível, tematizar, conceituar, elaborar "cientificamente" o modo de ser do ente que somos, as suas condições de possibilidade, com todos os termos fortes que Heidegger usa para qualificar esta intenção – a pureza, a transparência (Durchsichkeit), a visibilidade (Sicht), a apreensão (in den Griff bekommen) –, sem cair em insolúveis aporias, ou se, deste caminho percorrido, o que herdamos não é justamente a radicalidade de um modo de ser que põe a intensificação permanente do questionamento como sua própria decisão.

 

 

Referências

Heidegger, M. (1967). Sein und Zeit. 11. ed. Tübingen (Al): Max Niemeyer (Trabalho original publicado em 1927)          [ Links ]

Heidegger, M. (1975). Die Grundprobleme der Phänomenologie. In GA 24 (Sommersemester 1927). Frankfurt a. M.: Vittorio Klostermann (Trabalho original publicado em 1927)          [ Links ]

Heidegger, M. (1979). Sobre a essência do fundamento. In Heidegger – conferências e escritos filosóficos (E. Stein, trad., introds. e notas). São Paulo: Abril, Col. Os Pensadores (Trabalho original publicado em 1929) 

Heidegger, M. (2005). Phänomenologische Interpretationen zu Aristoteles (Anzeige der hermeneutischen Situation) – Ausarbeitun g für die Marburger und die Göttinger Philosophische Fakultät (Herbst 1922) [Relatório Natorp]. In GA 62 (Frühe Freiburger Vorlesung Sommersemester 1922). Frankfurt a. M.: Vittorio Klostermann (Trabalho original publicado em 1922)

 

 

Recebido em 20/09/2011
Aprovado em 06/10/2011

 

 

1 Este trabalho recebeu o apoio da FAPERGS.
2 No original: "Sein und der Unterschied desselben von Seiendem kann nur fixiert werden, wenn wir das Verständnis von Sein als solches in den Griff bekommen. Das Seinsverständnis begreifen heißt aber, das Seiende zunächst verstehen, zu dessen Seinsverfassung das Seinsverständnis gehört, das Dasein".