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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.13 no.1 São Paulo  2011

 

Artigos

 

O nous e a indicação da vida fáctica1

 

The nous and the indication of factical life

 

 

 

Roberto Wu

Professor no Departamento de Filosofia da UFSC
E-mail:
beto_wu@yahoo.com.br

 

 


Resumo

A noção de indicação formal em Heidegger reúne três elementos fundamentais na perspectiva do sentido (Sinn): o conteúdo (Gehalt), a relação (Bezug) e a realização (Vollzug). Do ponto de vista dos conceitos filosóficos, esses três elementos articulam-se enquanto apreensão do mundo tomado fenomenologicamente, com a explícita pretensão de evitar-se um olhar teorético que meramente classifica entes de um ponto de vista da mera generalidade vazia. Nesse sentido, o texto Interpretações fenomenológicas de Aristóteles: indicação da situação hermenêutica, também conhecido como "Informe Natorp", oferece uma interpretação explicitadora da vida fáctica, com base na análise dos conceitos aristotélicos. O presente artigo pretende apresentar de modo breve e provisório, a importância do conceito de nous, em seu caráter de abertura e possibilitação, bem como sua realização (Vollzug) nos modos articulados pelo discurso (logos). Nessa perspectiva, pretende-se mostrar que a retomada heideggeriana da filosofia aristotélica é norteada pelas funções proibitivo-referencial e reversivo-transformacional.

Palavras-clave: Informe Natorp, nous, virtudes dianoéticas.


Abstract

The notion of formal indication in Heidegger's thought assembles three basic elements in the perspective of meaning (Sinn): the subject (Gehalt), the relation (Bezug) and the actualization (Vollzug). In the perspective of philosophical concepts, these three elements articulate themselves as the apprehension of the world, in the phenomenological sense, with the goal of avoiding a theoretical look which arranges the beings in a form of generalization. Seen in these terms, the "Natorp Report" (Phenomenological Interpretations in Connection with Aristotle: an indication of the hermeneutical situation) provides an interpretation of factical life, since the perspective of the Aristotelian concepts. This article pretends to present in a provisory way the importance of the concept of nous, which has the character of openness and making-possible, as well as his actualization (Vollzug) in the modes articulated by discourse (logos). With this in mind, the article intends to demonstrate that Heideggerian's appropriation of Aristotelian philosophy is determined by the "referring-prohibitive" and "reversing-transforming" functions.

Key-words: Natorp Report, nous, dianoetics virtues.


 

 

Dessa embaraçosa oscilação conceptual, de
resto característica do pensamento
heideggeriano, que subverte as doutrinas
tradicionais extremas com as quais parece
confundir-se, minando a terminologia filosófica
consagrada, de que retira o apoio das
concepções doutrinárias correntes[...]

Benedito Nunes, Passagem para o poético

1. A situação hermenêutica

A primeira parte do Informe Natorp (Interpretações fenomenológicas de Aristóteles: indicação da situação hermenêutica) (Heidegger, 1989/1992) tem por função a explicitação da situação hermenêutica como justificativa metodológica da pretensão fenomenológica de investigar-se o fenômeno da vida com base na interpretação de Aristóteles. Trata-se da explicitação do "como" (Wie) da vida baseando-se nela mesma. Para diferenciar sua abordagem das outras propostas filosóficas, que se caracterizam pela excessiva teorização e afastamento do fenômeno da vida, Heidegger acentua a importância da consideração das condições de compreensão e interpretação. Essas condições são três: o ponto a partir do qual se dá a visada do ente (Blickstand), a orientação ou direção da visada (Blickrichtung) e o horizonte ou escopo da visada (Sichtweite). Essas condições compõem o que é denominado situação hermenêutica, isto é, o âmbito situacional em que ocorre qualquer compreensão e interpretação, num sentido ontológico e temporal. Não são, portanto, "obstáculos" à interpretação, e sim dimensões de abertura que posicionam e exigem do intérprete o modo adequado de participar do círculo hermenêutico. Essas três condições de interpretação permitem a visualização das funções específicas da indicação formal: a proibitivo-referencial e a reversivo-transformacional (Dahlstrom, 1994). A Blickstand implica um direcionamento e horizonte de visada, uma delimitação, portanto, do escopo em direção ao âmbito concreto de investigação. No Informe Natorp, a função proibitivo-referencial diz respeito à recusa de uma abordagem que não questione seus próprios pressupostos, discutindo com base em categorias fixas e consagradas. Ao mesmo tempo, a função reversivo-transformacional explicita não apenas o solo em que esses pressupostos se fundam, mas requisita uma modificação em relação ao modo pelo qual a tradição filosófica investiga tais fenômenos.

O acesso fenomenológico às experiências originárias tem por tarefa a destruição da tradição enquanto manutenção das interpretações niveladoras e medianas da vida. A vida fáctica tem de ser interpretada com base em si mesma, o que significa uma apropriação explícita de seu "como" desde a inquietação (Bekümmerung) e a mobilidade (Bewegtheit), que temporalizam cada um de seus modos de ser. Heidegger afirma a necessidade de dirigir o olhar a Aristóteles com base em seus próprios termos: "entes no como do seu ser-movido tornaram-se o fenômeno central para Aristóteles, e a explicação desse fenômeno era o tópico principal de sua física" (Heidegger, 1989/1992, p. 33). A elucidação do ser-movido dos entes requer uma interpretação da Física de Aristóteles, que Heidegger delineia na parte final do Informe Natorp, mas todas as análises partem da distinção estabelecida no livro VI da Ethica Nicomachea a respeito dos modos em que a verdade pode ocorrer, ou, como traduz Heidegger, os modos de custódia do ser na verdade (Seinsverwahrung).

A forma pela qual a vida fáctica é apresentada no Informe Natorp deriva da estrutura originária correlativa aos modos de custódia do ser na verdade. Entre esses modos, o nous ocupa uma posição de destaque, pois é o único que ocorre sem logos. Nessa perspectiva, todos os outros modos são realizações atualizadoras da visão propiciada pelo nous. A estratégia do Informe Natorp consiste em explicitar esses conceitos filosóficos, que são determinados quiditativamente e generalizados em direção a uma universalidade vazia, mas que indicam formalmente a vida fáctica em seu "como". De fato, o Informe Natorp previne a possibilidade de que os conceitos filosóficos sejam tomados na qualidade de generalidades vazias, na medida em que não os investiga com base em uma perspectiva que os descreva como meros entes simplesmente dados (Vorhanden), e sim enquanto indicações formais que se tornam significativas apenas quando referidos à situação hermenêutica concreta. Disso resulta que um conceito em sua forma indicativo-formal nunca possui um significado isolado, mas sempre remete a outros significados em certas relações. Cada relação (Bezug), entretanto, possui um caráter concreto, pois sua realização (Vollzug) depende essencialmente da ocasionalidade da vida fáctica, a apropriação do conteúdo (Gehalt) na mobilidade característica da relação ontológica com esse ser "a cada vez meu" (Jemeinigkeit). Assim, os modos pelos quais se dá a custódia do ser na verdade, incluindo o nous, consistem num deslocamento em relação ao modo pelo qual tradicionalmente esses conceitos são analisados, pois implicam uma explicitação e um esclarecimento dos pressupostos desses conceitos (função proibitivo-referencial), bem como um redirecionamento (função reversivo-transformacional) desses conceitos com vistas à destruição da tradição ontológica. Os conceitos filosóficos presentes no Informe Natorp, em especial, os aristotélicos, são identificados em relação a seu "como" originário, ao mesmo tempo em que são deslocados para uma apreensão ainda mais radical do fenômeno da vida fáctica, mais além do que o próprio Aristóteles pode ter pretendido. Com isso, pretende-se apontar que "a indicação formal é uma defesa[Abwehr], uma salvaguarda[Sicherung] preliminar, para que o caráter de realização [Vollzugscharakter] ainda permaneça livre" (Heidegger, 1995, p. 64), como se pode ler no curso de 1920-21, Fenomenologia da vida religiosa. O caráter fundamental dos conceitos indicativos formais é a defesa e salvaguarda do ente em sua fenomenalidade, isto é, em seu caráter de verdade. Esses termos, defesa (Abwehr) e salvaguarda (Sicherung), mantêm uma proximidade de sentido com a noção de custódia (Verwahrung), conceito central no Informe Natorp. Como se pretende apresentar no restante deste artigo, o Informe Natorp passa a interrogar os modos que realizam originariamente a custódia do ser na verdade, radicalizando a investigação fenomenológica rumo àqueles conceitos fundamentais que possibilitam qualquer modo de comportamento humano possível. O nous é interpretado justamente como o que fenomenologicamente dá um ver a qualquer realização possível por meio dos modos de custódia da verdade que ocorrem no logos.

 

2. Nous enquanto abertura

O Informe Natorp compõe-se programaticamente em uma análise sobre três textos aristotélicos: Ethica Nicomachea,Metafísica e Física. Tal abordagem pode gerar certa confusão, pois Heidegger não se detém apenas nos capítulos indicados em cada uma das obras – dir-se-ia até mesmo que o autor não oferece uma análise rigorosa e detalhada dos próprios textos e capítulos mencionados. Antes, seu propósito parece ser outro, a saber, abordar por meio das relações que se fizerem necessárias o assunto enunciado nos capítulos indicados.

O tópico Ethica Nicomachea Z no Informe Natorp não é, portanto, uma análise do capítulo VI, enquanto exegese de seus argumentos, mas é a apresentação da questão ontológica fundamental que possibilitará o desenvolvimento de uma hermenêutica da facticidade, seguindo, até certo ponto, Aristóteles. O tema que interessa a Heidegger, no capítulo VI, está relacionado aos modos por meio dos quais a alma é mais verdadeira (Aristóteles, 2009, EN, 1139b12) e com a discussão preliminar a respeito do que significa verdade e os modos por meio dos quais ela ocorre. Com isso, Heidegger não está preocupado exatamente com uma reconstituição da posição metafísica de Aristóteles, e sim com uma destruição da história da tradição ontológica a fim de desencobrir as experiências fundamentais originárias, o que não significa uma restauração da ontologia grega, por exemplo, mas um desencobrimento e aprofundamento investigativo em relação às possibilidades fundamentais descobertas. É nesse sentido que Heidegger, mesmo interrogando um conceito como phronesis, não o fará exatamente do mesmo modo e seguindo fielmente o percurso aristotélico, mas o fará explorando, sobretudo, seu aspecto ontológico.

A análise começa com uma advertência: "a interpretação deste tratado, prescindindo provisoriamente da problemática especificamente ética, permite compreender que as ‘virtudes dianoéticas' são diferentes modalidades de se ter disponível a possibilidade de realização [Vollzugsmöglichkeit] de uma autêntica custódia do ser na verdade" (Heidegger, 1989/1992, p. 37). Antes de analisar o conteúdo principal, é preciso notar que essa tarefa de "prescindir provisoriamente da problemática ética" (vorläufigem Absehen von der spezifisch ethischen Problematik) indica a percepção heideggeriana de que a Ethica Nicomachea é prioritariamente um livro sobre a filosofia prática e suas questões específicas. É preciso assinalar que o "provisoriamente" não foi jamais suprimido, visto que Heidegger permaneceu um ontólogo por toda a vida. O impensado na abordagem heideggeriana é outro movimento, isto é, que essa obra possa e talvez deva ser lida sob um enfoque ontológico, e que esta leitura possa repropor as questões éticas sob outra perspectiva. Com base nisso, é preciso aqui indicar dois aspectos, sendo o primeiro o fato de que a ética, enquanto disciplina filosófica tradicional, teve o seu desenvolvimento determinado pela concepção ontológica que prevaleceu na história da metafísica, a saber, o ser enquanto mera presença (Anwesenheit). Realizar uma ética, no sentido tradicional, seria um retorno e uma adequação à interrogação metafísica sobre o homem; ao contrário, o prospecto heideggeriano é o de realizar uma interpretação fenomenológica sobre a vida fáctica capaz de liberar as possibilidades de apreender-se o agir humano que não seja pela perspectiva metafísica. Portanto, o segundo aspecto a ser considerado é que há efetivamente uma reflexão sobre o agir humano, a liberdade e o ser-um-com-o-outro (Miteinandersein), embora não, obviamente, de acordo com as categorias metafísicas que determinaram predominantemente a história da ética tradicional.

Retornando ao parágrafo citado, Heidegger retoma a indissociabilidade entre as virtudes dianoéticas e a verdade. No Informe, entretanto, Heidegger pretere o termo "verdade" (Wahrheit), empregando preferencialmente "custódia do ser na verdade" (Seinsverwahrung), que, de acordo com C. S. Peraita, pode ser relacionado ao Wahrnehmung – à apreensão – um termo fenomenológico (Peraita, 2002, p. 73). A cunhagem do termo Seinsverwahrung implica uma interpretação e uma ênfase de Heidegger no caráter de desocultamento essencial da verdade. Essa concepção opõe-se àquela que afirma que o juízo é o lugar originário da verdade, e que, portanto, a verdade seria uma espécie de concordância ou adequação (Übereinstimmung) do pensamento com o seu objeto (Heidegger, 1989/1992). Por sua vez, essa formulação fundamentaria a teoria da representação no âmbito do conhecimento. O Informe Natorp tem por objetivo demonstrar que a verdade precisa ser situada ontologicamente para que se possa ter uma apreensão de seu caráter originário, ao mesmo tempo em que se explicita o traço derivativo da verdade proposicional, isto é, do juízo verdadeiro. Ao lado da rejeição da definição originária da verdade em Aristóteles enquanto adequação, bem como a elaboração consequente de uma teoria representacionista (Abbild-Theorie) pelo Estagirita, há também a preocupação por parte de Heidegger de evitar a tradução de logos por juízo válido, como se verá adiante.

Os termos alethes e aletheuein são abordados no contexto do juízo:

O sentido de alethes: ser-aí [da-sein] enquanto desoculto [unverborgen], isto é, enquanto ser-visado [vermeint-sein] em si mesmo, não se explica de forma alguma a partir do juízo e, portanto, não se origina no juízo nem está referido a ele. Aletheuein não significa "possuir a verdade", senão ter o ente em cada caso visado e, enquanto tal, enquanto desvelado [unverhülltes] na custódia na verdade (Heidegger, 1989/1992, p. 38).

 

A "violência hermenêutica" procura situar a verdade em seu aspecto originário, isto é, no caráter de desocultamento que é anterior ao e possibilitador de juízo, não o inverso. A investigação heideggeriana pergunta pelos modos em que esse desocultamento ou desvelamento ocorre, seguindo a perspectiva indicada por Aristóteles. No entanto, não se trata de seguir o caminho trilhado pela tradição de interpretação sobre a obra aristotélica, mas de matizar o desocultamento por meio da noção de custódia. Possuir a verdade implica uma relação ontológica em que a verdade é pressuposta como simplesmente dada; para Heidegger, a verdade não é uma propriedade de que se possa ter posse, mas algo que é custodiado nos modos concernentes às virtudes dianoéticas (techne, episteme, phronesis, sophia e nous).

Heidegger apresenta estrategicamente a discussão sobre os modos de custódia do ser na verdade no contexto de sua autonomia diante do juízo e começa sua análise centrando-se principalmente no nous. Com isso, Heidegger apresenta os demais modos de custódia da verdade, realizadas por meio do logos, enquanto realizações atualizadoras do nous que é aneu logou, isto é, sem discurso. Reservando, portanto, o nous para fora do âmbito do logos, Aristóteles divide os modos da aletheuein que ocorrem no e pelo discurso: a) o epistemonikon, que se refere ao âmbito ontológico do invariável, subdividido em episteme, a sua realização menor, e em sophia, a realização mais completa; b) o logistikon, relacionado ao que pode ser de outro modo, sendo a techne sua realização menor e a phronesis, sua realização mais completa. Levando-se em consideração que o logos é a realização atualizadora do nous, as formas mais altas dessa realização por meio do logos são a sophia e a phronesis:"sophia [compreensão contemplativa autêntica (eigentliches, hinsehendes Verstehen)] e phronesis [circunspecção solícita (fürsorgende Umsicht)] são interpretados enquanto modos autênticos de realização [eigentlichenVollzugsweisen] do nous: o puro apreender [reinen Vernehmens] enquanto tal" (Heidegger, 1989/1992, p. 37).

Antes mesmo de discutir os aspectos específicos relacionados à sophia e à phronesis, é preciso salientar que a distinção entre nous e logos deve ser tomada em consideração na perspectiva da crítica heideggeriana à originariedade da verdade proposicional. Se Heidegger pretende abordar o âmbito antepredicativo, sem dúvida essa tentativa tem por modelo o nous aristotélico. Isso não significa que Heidegger pura e simplesmente identifique o logos com a asserção predicativa, visto que ele realizaria ainda uma distinção fundamental no interior do conceito de logos: a diferença entre o logos apophantikos e o logos semantikos, tal como ele o interpretou no curso Platão: Sofista (Heidegger, 2003). O logos semantikos refere-se à significação que não se apresenta na forma proposicional, ao contrário do logos apophantikos, que se caracteriza justamente por ser a forma de linguagem centrada na proposição.

O nous é o apreender por excelência (Vernehmen schlechthin) que possibilita qualquer comportamento possível na lida do Dasein humano, pois é ele que permite algo como um "em direção a quê" (Worauf) em que a lida se situa. Heidegger desenvolve aqui, nessa etapa de sua interpretação de Aristóteles, uma argumentação que aproxima nous e aisthesis, já que a última é "a apreensão no como do sensível" (Heidegger, 1989/1992, p. 38). A apreensão enquanto tal (nous) e a apreensão no "como" do sensível (aisthesis) são sempre aneu logou, sem discurso, no sentido de serem anteriores ao discurso. O logos pode realizar apenas aquilo que é possibilitado pelo nous: "o nous dá, em geral, visão, um algo, um ‘aí'" (Der nous gibt überhaupt Sicht, ein Etwas, ein "Da") (Heidegger, 1989/1992, p. 40). Como se sabe, o "aí" desempenha um papel crucial na terminologia da ontologia fundamental, pois esta trata da explicitação do "aí" (Da) que o ser-aí (Dasein) é, no modo de sua existência.

O parágrafo 28 de Ser e tempo é uma discussão sobre o ser-em (In-Seins). Nele, Heidegger analisa a hipótese de uma aproximação em relação ao fenômeno do ser-em ao se pensar o ser-aí enquanto um "entre" (zwischen), isto é, o "entre" da "relação [commercium] simplesmente dada entre um sujeito [vorhandenen Subjekt] e um objeto [vorhandenen Objekt] simplesmente dados" (Heidegger, 1927/2002, p. 132). Essa possibilidade de pensar o ser-em é, contudo, imediatamente abandonada, pois ela estaria comprometida com uma ontologia nivelada pelo Vorhanden. Com isso, Heidegger procura uma forma de explicitação do ente que

em seu ser mais próprio, traz o caráter de não fechamento [Unverschlossenheit]. A expressão "aí" [Da] refere-se a essa abertura essencial [wesenhafte Erschlossenheit]. Através dela, esse ente[o ser-aí (das Dasein)], junto com o ser-aí [Da-sein] do mundo, está aí para si mesmo (Heidegger, 1927/2002, p. 132).

O aí refere-se, portanto, à abertura que o ente que compreende ser é. As dimensões da abertura – disposição, compreensão e discurso – não são meras funções que se podem executar ao longo da existência, mas o modo por meio do qual há algo como existência. A abertura constitui a transcendência do ser-aí, isto é, o fato de que o ser já se fez acessível enquanto tal. Em seguida, Heidegger afirma que:

O discurso ôntico e figurativo sobre o lumen naturale no homem não indica nada mais do que a estrutura ontológica-existencial deste ente, ou seja, que ele é no modo de ser seu aí. Ser "esclarecido" [erleuchtet] significa: estar em si mesmo iluminado enquanto ser-no-mundo, não através de um outro ente, mas, de tal maneira, que ele mesmo seja a clareira [Lichtung]. Apenas para um ente que é existencialmente iluminado desse modo que um ser simplesmente dado faz-se acessível na luz, inacessível no escuro. O ser-aí sempre traz consigo o seu aí; dele carecendo, não apenas deixaria de ser fáctico, como também não seria, de modo algum, o ente dessa essência. O ser-aí é a sua abertura (Heidegger, 1927/2002, p. 133).

O termo "ser-aí" só adquire seu verdadeiro significado caso se alcance uma precisão em relação ao aí. De fato, ser-aí implica ser transcendente, na clareira do ser. A abertura não pode ser reduzida a uma formulação metafísica que a localiza enquanto espaço de um "entre" situado no intervalo de dois entes simplesmente dados, isto é, entre um sujeito e um objeto. Pelo contrário, o aí enquanto abertura é a estrutura ontológica em que o ser-aí se explicita enquanto clareira de si mesmo em seu ser-no-mundo. Com isso, o ser-aí não ilumina originariamente a si mesmo, no sentido de uma introspecção subjetiva, ou objetos simplesmente dados, por meio de uma faculdade racional que lhes descobre propriedades – a iluminação consiste na abertura de mundo através da qual há ser.

Com isso, retorna-se à tese do Informe Natorp de que o nous oferece um ver, um algo, um aí. Não é por acaso que as frases imediatamente anteriores a essa formulação façam referência ao De anima (430a15) de Aristóteles (1991): o nous toi panta poiein, hos hexis tis, hoion to phos. Isto é, a apreensão, tal como a luz, produz todas as coisas na medida em que permite dispor-se delas" (Heidegger, 1989/1992, p. 40). Percebe-se, portanto, que o nous é interpretado justamente como sendo o aí, a abertura que possibilita qualquer comportamento do Dasein humano. Do mesmo modo, como em Ser e tempo, em que se aborda a possibilitação do ser-aí enquanto clareira de si em seu ser-no-mundo, no Informe Natorp, Heidegger relaciona imediatamente o aí correlativo ao nous à abertura da multiplicidade de afazeres:

o nous, que é idion tou anthropou, se realiza concretamente enquanto energeia – enquanto atividade, enquanto sua própria atividade; isto é, o nous abre um horizonte que sempre responde a um modo concreto de lida com o mundo através de uma operação [Ausrichten], de uma execução [Herstellen], de uma manipulação [Behandeln], de uma determinação [Bestimmen] (Heidegger, 1989/1992, p. 40).

À visão propiciada pelo nous, correspondem todas as atividades humanas possíveis pelos modos de custódia do ser na verdade, correlativas ao logos. Essas possibilidades de comportamento humano, entretanto, dependem de uma doação primeira, um dar-se do ser com base no qual essa doação de sentido originária é realizada, atualizando-se nos modos do logos: seja no âmbito do logistikon, cujos saberes específicos são a techne e a phronesis, em torno da região ontológica do ente que pode ser de outro modo, ou no âmbito do epistemonikon, correspondente ao ente que é invariável, na realização da episteme e da sophia. Na interpretação heideggeriana, do ponto de vista ontológico, todos esses saberes são derivados do ver de uma abertura possibilitadora. Nesse contexto, é oportuno recordar a notória análise empreendida por Heidegger em Ser e tempo, a propósito do caráter derivativo do "saber teórico", em relação ao "saber prático", denominações imperfeitas e carregadas de pressupostos metafísicos. O cerne da análise heideggeriana é que os conceitos de teoria e prática são compreendidos em geral com base em uma oposição fundada numa metafísica da mera presentidade. Eles não correspondem pura e simplesmente, por exemplo, às categorias aristotélicas. De fato, um dos aspectos mais importantes da interpretação heideggeriana de Aristóteles talvez seja o de salientar o caráter único de cada uma dessas possibilidades do existir humano: nous, techne, phronesis,episteme e sophia. O que não significa que Heidegger desconsidere que para o Estagirita haja uma preeminência do saber da sophia, o mais elevado dos saberes da theoria, diante da phronesis. Trata-se de explicitar a argumentação e os pressupostos ontológicos de Aristóteles, de compreender os motivos e a concatenação conceitual que o levou a optar pela concepção ontológica correspondente ao invariável, mas também de propor uma radicalização – condizente a uma ontologia da finitude – sobre as possibilidades entrevistas na explicitação das estruturas ontológicas presentes na poiesis e na praxis. Nesse sentido, se os saberes que realizam e atualizam o nous por meio do logos, isto é, techne, phronesis,episteme e sophia, são dependentes de uma abertura originária em que se dá ser, por outro lado, há, de acordo com Heidegger, uma derivação das atividades "teóricas" em relação às atividades "práticas", na medida em que ocorre uma modificação da apreensão circunspectiva na lida, para o olhar contemplativo que destaca o ente de suas relações remissivas na mundanidade. Assim, as atividades descritas na citação acima, operação (Ausrichten), execução (Herstellen), manipulação (Behandeln), determinação (Bestimmen), respondem ao aberto do nous na forma de realização (Vollzug) desse aberto.

De acordo com C. S. Peraita,

Heidegger recorda, ademais, que o nous é energeia e que, como tal, ele é sempre em uma das formas concretas do trato; isto é, em uma das diversas formas de desvelamento do ser, seja esta produção (techne), ação (phronesis) ou determinação (episteme) (Peraita, 2002, p. 80).

Comparado com a mão, na medida em que a mão seria instrumento de instrumentos (organon estin organon), conforme a passagem 432a1-3 do livro III do De Anima de Aristóteles (1991), Heidegger procura acentuar o caráter possibilitador do nous, visto que este é sempre em ato (energeia) em cada uma das realizações concretas atualizadoras por meio do logos. Em outras palavras, a abertura proporcionada pelo nous não é a de um estágio precedente e imediatamente substituído pelas outras formas de custódia do ser na verdade que ocorrem no logos, mas uma perspectiva de visão aberta enquanto atividade dinamicamente atualizada, de acordo com a situação hermenêutica.

O que o nous apreende é o indivisível (adiaireta): "o objeto genuíno do nous é aquilo que ele apreende aneu logou, independentemente do modo em que se interpela [Ansprechens] algo em suas determinações-enquanto-quê [Als-Was-Bestimmungen][ou ti kata tinos]" (Heidegger, 1989/1992, p. 40). A estrutura determinações-enquanto-quê, que Heidegger associa ao "ou ti kata tinos" (De Anima, 430b28), implica o modo em que se relaciona com o ente por meio do logos, ou seja, por meio da simultaneidade da divisão (diairesis) e da síntese (synthesis): "o interpelar e o discutir [An- und Besprechen] no modo da determinação sintética também podem ser considerados enquanto decomposição, explicitação" (Heidegger, 1989/1992, p. 40). Esse, entretanto, não é o modo correspondente ao nous, visto que ele apreende o indivisível, e não o ente enquanto algo determinado pelo logos. Se "o logos, o legein é o modo em que se realiza [Vollzugsweise] o noein" (Heidegger, 1989/1992, p. 40), isto não significa que ambos sejam o mesmo, e sim que há um movimento de realização atualizadora no logos daquilo que é aberto numa perspectiva pelo nous.

A distância e, ao mesmo tempo, o copertencimento entre nous e logos são mantidos do ponto de vista da realização, mas o modo em que esta ocorre implica uma distinção em relação ao "como" da apreensão. Em vez de ser interpretado na forma da estrutura enquanto-quê, o nous é descrito como sendo uma aisthesis tis, "uma apreensão que em cada ocasião mostra pura e simplesmente o aspecto dos objetos" (Heidegger, 1989/1992, p. 41), referindo se ao De anima, 432a2 (ho nous eidos eidon kai he aisthesis eidos aistheton). É preciso ressaltar que a aisthesis é sempre verdadeira, pois o falso (pseudos) só pode ocorre lá onde há síntese e divisão, isto é, no logos. Portanto, se o apreender da aisthesis é sempre verdadeiro, o mesmo ocorre com o nous, que é descrito por Heidegger como sendo aisthesis tis. O verdadeiro aqui é tomado justamente em seu caráter originário, ou seja, do ponto de vista fenomenológico de acesso ao ente, a aisthesis não é verdadeira em um sentido derivado, qual seja, verdadeira com base no logos. Pelo contrário, a verdade e a falsidade no âmbito do logos ocorrem como realizações atualizadoras da doação originária que ocorre na aisthesis enquanto o que dá um "em direção a quê" (Worauf) intencional originário (Heidegger, 1989/1992, p. 38). Diferentemente do modo que toma o ente no seu enquanto, por meio do interpelar-enquanto e do discutir-enquanto (Ansprechen-als, Besprechen-als) no legein, isto é, o ente no seu enquanto-quê (Als-Was), o nous, no sentido de uma abertura originária, oferece tão somente um algo apreendido (aisthesis tis):"nous dá a todo discutir concreto [konkrete Besprechen] seu possível sobre-quê [Worüber] e este sobre-quê não é algo que o discutir [Besprechen] enquanto tal poderia estar apto a ganhar um acesso por si mesmo" (Heidegger, 1989/1992, p. 40). Em Ser e tempo, Heidegger retoma a análise em torno do sobre-quê, embora suprimindo, no seguinte trecho, a questão do nous: "discorrer [reden] é um discurso [Rede] sobre... O sobre-quê[Worüber] do discurso não possui necessariamente, nem mesmo na maior parte das vezes, o caráter de tema de uma proposição determinante" (Heidegger, 1927/2002, pp. 161-162).

Se o caráter antepredicativo do nous é ressaltado no Informe Natorp, isso deve ser levado em consideração juntamente com a proximidade da phronesis com a aisthesis. No livro VI da Ethica Nicomachea lê-se a respeito das virtudes dianoéticas:

Tudo que cumpre fazer está incluído entre as coisas particulares [kath'hekasta] e últimas [eschaton]; pois não só deve o homem dotado de prudência [phronesis] ter conhecimento dos fatos particulares, mas também a inteligência [synesis] e o bom senso [gnome] dizem respeito a coisas a serem feitas, e estas são as coisas últimas. O nous, por sua vez, ocupa-se com coisas últimas em ambos os sentidos, pois tanto os primeiros termos como os últimos são objetos do nous, e não do logos, e o nous que é pressuposto pelas demonstrações apreende o invariável e os primeiros termos, enquanto em questões práticas o nous apreende o fato último e variável, isto é, a premissa menor. Pois esses termos variáveis são os princípios [archai] para a apreensão do fim [hou heneka], visto que chegamos aos universais [katolou] pelos particulares; devemos, portanto, ter a percepção [aisthesin] destes, e tal percepção é o nous (Aristóteles, 2009, 1143a32-1143b6, trad. mod.).

Nesse trecho, Aristóteles acentua o caráter bidirecional do nous: ele apreende o que é primeiro (prota) pela sophia e o que é último (eschata) pela phronesis. Heidegger afirma sobre essa bidirecionalidade que "nós temos aqui duas possibilidades do nous: nous na mais extrema concreção e nous no mais extremo katholou, na universalidade mais geral" (Heidegger, 2003, p. 112). A sophia, enquanto nous kai episteme (EN, 1141a19ss), apreende a universalidade mais geral, isto é, os primeiros princípios indemonstráveis correspondentes à região do ser do que sempre é (aei), enquanto a phronesis é a forma de realização do nous que apreende o mais extremo e contingente na sua mais absoluta singularidade, o que é possível apenas enquanto percepção (aisthesis), pois o eschaton é a cada vez diferente. Na phronesis, o nous desvela o princípio (arche) da ação que consiste no "hou heneka", o "em função do quê" (Weswegen no "Informe Natorp", Worumwillen em Ser e tempo; cf. Bernasconi, 1990, pp. 132-133). Embora sophia e phronesis sejam meta logou, a abertura de doação de sentido é realizada pelo nous, que é sempre energeia, isto é, sempre em atividade em cada uma das possibilidades humanas de custódia do ser na verdade. É nesse sentido que "o nous é tanto princípio [arché] quanto fim [telos], pois demonstrações são a partir destes e acerca destes" (EN, 1143b11-12).

 

3. Considerações finais

O Informe Natorp tem como propósito apresentar uma "indicação da situação hermenêutica", tal como aparece no próprio título. Essa indicação tem o caráter de uma indicação formal, isto é, uma interpretação explicitativa da vida fáctica com base nela mesma, uma apreensão do "como" (Wie) de sua mobilidade (Bewegtheit) constitutiva, e não uma mera classificação teorética sobre ela. Esse "como" implica uma explicitação da situação hermenêutica com base na qual se tenta apreender a vida fáctica em sua fenomenalidade. O olhar que meramente constata o ente enquanto simplesmente dado (vorhanden) não é uma forma de apreensão originária, visto que ele mesmo é derivado de uma interpretação do mundo matizada pela queda (Verfallen), na tendência de ser absorvido pelo mundo, numa fuga da inquietação (Bekümmerung) característica da vida fáctica. Trata-se, pois, não de evitar a mobilidade da vida fáctica, mas de encontrar um acesso que possibilite explicitar o que há de fundamental sobre ela. O modo pelo qual esse acesso é possível consiste numa explicitação da situação hermenêutica mediante a indicação-formal da vida fáctica. A interpretação dos conceitos filosóficos diz respeito sempre à realização das diversas possibilidades da existência, que são fundamentalmente derivadas das cinco formas de custódia da verdade, em sua interpretação de Aristóteles. Procuramos ressaltar a importância do conceito de nous nas pretensões fenomenológicas de Heidegger, em especial, no Informe Natorp, como aquilo que dá a abertura com base na qual os modos que ocorrem por meio do logos podem realizar-se. Sophia e phronesis são as possibilidades mais originárias de apreensão do ente e realização do nous, cada uma delas correspondendo a uma região do ente específica: a primeira em relação ao que é invariável, necessário e universal (katholou), a segunda ao variável, contingente e particular (kath'hekasta).

 

Referências

Aristóteles (1991). De Anima. In J. Barnes (Ed.), TheComplete Works of Aristotle (J. A. Smith, Trad.). Princeton (NJ): Princeton University Press.         [ Links ]

Aristóteles (2009). Nicomachean ethics. (D. W. Ross, Trad.; L. Brown, Rev.). Oxford: Oxford University Press.         [ Links ]

Bernasconi, R. (1990). Heidegger's destruction of phronesis. The Southern Journal of Philosophy, 28(S1), 127-147.         [ Links ] 

Dahlstrom, D. (1994). Heidegger's method: philosophical concepts as formal indications. Review of Metaphysics, 47, 775-795.         [ Links ]

Heidegger, M. (1992). Phänomenologische Interpretationen zu Aristoteles(Anzeige der hermeneutischen Situation). Trad. de J.-F. Courtine. Mauvezin (FR): Trans-Europ-Repress. (Trabalho original publicado em 1989)          [ Links ]

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Heidegger, M. (2002). Sein und Zeit. Tübingen (AL): Max Niemeyer. (Trabalho original publicado em 1927)          [ Links ]

Heidegger, M. (2003). Plato's Sophist. (R. Rojcewicz & A. Schuwer, Trads). Bloomington (IN): Indiana University Press.         [ Links ]

Nunes, B. (1992). Passagem para o poético: filosofia e poesia em Heidegger (2. ed.). São Paulo: Ática.         [ Links ] 

Peraita, C. S. (2002). Hermenéutica de la vida humana: en torno al informe Natorp de M. Heidegger. Madri: Trotta        [ Links ]

 

 

Recebido em 10/09/2011
Aprovado em 10/10/2011

 

 

1 Este trabalho recebeu o apoio da FAPERGS.