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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.13 no.2 São Paulo  2011

 

Artigos

 

A noção de indicação formal: uma questão de método?

 

The notion of formal indication: a question of method?

 

 

Mario Fleig1

Dep. de Filosofia da Unisinos
e-mail: mfleig@terra.com.br

 

 


Resumo

A indicação formal é uma noção introduzida por Martin Heidegger, a fim de dar conta da especificidade de seu âmbito de estudo – a questão do ser e a pergunta por seu sentido –, cujo recurso é exigido pela dimensão antepredicativa da experiência originária. A par disso, o texto sustenta a hipótese de que a indicação formal funcionaria, nos caminhos de pensamento do filósofo alemão, como um método privilegiado de acesso ao ser, tendo em vista que ela vem se pôr como defesa contra a queda no registro da referência, que é justamente aquele em que o discurso teorético-objetivador encontra seu maior apoio. O texto parte, assim, da contribuição dos escritos do jovem Heidegger, nos quais se tecem, pela primeira vez, os esclarecimentos sobre a indicação formal, sem, contudo, deixar de vislumbrar seus desdobramentos no decorrer de seu trabalho intelectual. Nesses termos, examina a má interpretação em jogo no entendimento dos conceitos, bem como avalia a importância da tautologia no dizer filosófico, porquanto esta se define enquanto um não dizer que diz. Portanto, com base na análise desse recurso, o texto dirige-se, por fim, para a explicitação do sentido ontológico do cuidado como temporalidade, de sorte que nos aproximemos da compreensão heideggeriana dos limites da lógica, na justa medida em que nela se deita a interpretação vulgar do tempo como presente constante, o que vem exigir, como precaução, a entrada na fenomenologia do inaparente, a fim de nos afastarmos do predomínio irrestrito dos conceitos.

Palavras-chave: Heidegger, fenomenologia, método, indicação formal.


Abstract

Formal indication is a notion introduced by Martin Heidegger, in order to define the specificity of his field of work – the issue of being and the question by his sense –, whose resource is demanded by the anti-predictive dimension of the originary experience. Taking that into account, this text holds the hypothesis that the formal indication would work, according to the German philosopher, as a privileged method of access to the being, as it is a defense against the fall in the reference register, that is exactly the one in which the theoretical-objective speech finds its support. Therefore, the text starts from the contributions of texts by the young Heidegger, in which he deals, for the first time, with the explanations on formal indication, whose unfoldings he would yet glimpse throughout his intellectual work. Thus, it analyses the bad interpretation in the understanding of concepts, as well as evaluate the importance of tautology in the philosophical speech, because it defines itself as a "non-speaking that speaks". Therefore, from the analysis of this resource, the texts heads to the explicitation of the ontological sense of care as temporality, that brings us closer to the Heideggerian compreension of the limits of logic, since in it lies the vulgar interpretation of time as a constant present, that demands, as a precaution, coming into the fenomenology of inapparent, so that we can move away from the unrestricted predominance of concepts.

Keywords: Heidegger, fenomenology, method, formal indication.


 

 

Três importantes interdições que marcaram o pensamento ocidental estão referidas a Aristóteles: a interdição de qualquer acesso ao infinito atual; a impossibilidade de haver episteme do singular, visto que a substância primeira não é predicável; e a terceira interdição, introduzida posteriormente pela moral cristã e ligada possivelmente ao desaparecimento do suposto livro de Aristóteles sobre a comédia, a interdição do riso. A primeira será transgredida por Cantor, em suas formulações sobre o infinito atual, como é o caso dos números transfinitos. A terceira interdição, ainda que passível de ser suspensa no período das festas não religiosas, como o Carnaval, cairá diante do vigor da comédia e do riso na vida humana. A segunda interdição, quando transgredida, produziria algo que não poderia ser considerado ciência ou filosofia, mas simplesmente literatura. Sua transgressão mostra-se no surgimento do estatuto do particular e do indivíduo, de modo incontornável no pensamento de Kierkegaard. Este introduz novas categorias, como o indivíduo, a angústia, a existência, a decisão, o instante, etc., para referir-se a algo a que não temos acesso por meio da razão tradicionalmente entendida. O modo de Heidegger fazer filosofia situa-se nesta mesma perspectiva, interessando-se por algo que está aquém da grande filosofia e da ciência. Trata-se da dimensão pré-discursiva ou antepredicativa, na qual se dá uma experiência que precede a definição própria do discurso, ou seja, que precede a predicação. Sabemos que é neste âmbito que acontece o velamento e o desvelamento, que algo se dá.

É nessa perspectiva que Heidegger localiza o solo fenomenal em que se radicam os tradicionais conceitos fundamentais da ontologia (ser, ente, substância, etc.), que não se fundamentam a si mesmos. A tarefa da filosofia então passa a consistir em mostrar como tais conceitos se formam com base neste âmbito prévio e originário. Ontologia fundamental é a denominação que recebe essa tarefa, que tanto elucida a noção de origem como mostra a formação dos conceitos fundamentais da ontologia. A origem, ou seja, de onde brotam e se formam os conceitos da ontologia, como é apontado na introdução metodológica da preleção de 1923 (Heidegger, 1995), é a facticidade, ou Dasein. Em decorrência disso, a tarefa primeira consiste em elaborar uma ontologia da facticidade, que recebe o título de hermenêutica da facticidade. Assim, a articulação conceitual da origem consistirá na formalização das estruturas inerentes aos modos de lidar consigo mesmo e com os entes, como analítica ontológica do Dasein. A analítica do Dasein constitui-se então na tarefa preliminar para o pleno desenvolvimento da pergunta pelo sentido de ser.

O complexo processo de formalização das estruturas inerentes ao agir humano, como hermenêutica da facticidade, ou Dasein, é o tema de elaborações e preleções ministradas entre 1919 e 1922, nas quais Heidegger introduz a noção metodológica de indicação ou indício formal (Formal Anzeige). Esta consiste na operação de redução que despoja os conceitos de seu conteúdo (Was) e assim permite um acesso ao modo (Wie) pelo qual tais conceitos se dão. O modo pelo qual se dão os conceitos nada mais é do que uma dada concepção que está pressuposta no conteúdo. O primeiro resultado desta operação de redução é a indicação de que a modalidade imediata na qual vivem os conceitos filosóficos é a atitude teórico-objetivante do sujeito de conhecimento. Isso requer uma segunda redução, que manifesta a atitude interessada do ser-aí, em seu lidar prático e histórico. Assim, os conceitos filosóficos precisam ser retraídos do âmbito teórico-objetivante para o plano do agir, ou seja, a facticidade do Dasein, o que comporta a distinção heideggeriana entre a ontologia do ente disponível (Zuhandenheit), que está à mão, e a ontologia do ente subsistente (Vorhandenheit).

Ao retomarmos a noção de indicação formal, surgiu-nos uma pergunta aparentemente banal: a introdução da noção de indicação formal estaria ligada ao problema do método no pensamento heideggeriano? Logo em seguida tivemos de admitir que a resposta só poderia ser afirmativa, visto que o tema da indicação formal sempre aparece no texto heideggeriano justamente quando está em pauta a questão do método da investigação fenomenológica. A constatação dessa evidência salta aos olhos quando nos apercebemos de que é seu texto metodológico de 1919/1921, "Notas sobre a 'Psicologia das visões de mundo' de Karl Jaspers", que abre a coletânea intitulada Marcas do caminho (Heidegger, 1973/2008).

Assim, tanto o conteúdo dessa resenha da obra de Jaspers tem como tema central a questão do método, quanto a terminologia que aparece no título, no prefácio, etc. Torna-se claro que Heidegger não entende o termo "método" no sentido corrente de "caminho para", mas antes aponta sempre para outro sentido que a etimologia grega permite: estar a caminho. Logo nos lembramos de termos recorrentes na pena do pensador: Unterwegs zur Sprache (A caminho da linguagem), Holzwege (Caminhos do bosque), Wegmarken (Marcas do caminho), Wege nicht Werke (Caminhos, não obras), etc.

Quanto ao questionamento crítico da obra resenhada, Heidegger (1973/2008) alerta para a necessidade de realização da destruição do que foi herdado com vistas a uma explicitação das fontes originárias motivadoras do filosofar, ou seja, para a urgência de examinar criticamente a concepção prévia que está operante em qualquer ciência ou filosofia. Assim sendo, postula que "todo e qualquer problema relacionado com a concepção prévia é um problema de 'método', e, em verdade, a cada vez diverso de acordo com a originariedade, tendência, orientação regional e nível teorético da concepção prévia" (Heidegger, 1973/2008, p. 19). Isso significa que o método, em sua acepção de caminho, já se dá junto com a concepção prévia, como ele passa a examinar, por exemplo, na noção de existência. Na significação da noção de existência, como já está "indicada de modo formal, o conceito deve apontar no 'eu sou' como princípio de um nexo principial dos fenômenos e da problemática a eles inerentes" (Heidegger, 1973/2008, p. 21). Deste modo, aqui vemos introduzir-se a noção de indicação formal. O que ela significa? Qual sua função? Neste caso, a indicação formal, que aponta para aquilo que se dá previamente, tem a função de "prevenir precisamente uma recaída acrítica em uma determinada concepção existencial, por exemplo, de Kierkegaard ou de Nietzsche, para assim possibilitar aprofundar o fenômeno da existência e explicitar este percurso" (Heidegger, 1973/2008, p. 21). O que significa esse elemento formal referido por Heidegger? No que ele é fundamental para a formação do conceito com base no que se dá de modo fáctico e histórico?

Ora, Heidegger afirma que a introdução da indicação formal tem como fim "preparar a colocação de um problema [da existência] (que, segundo o seu sentido, deve ser uma vez mais desconstruído)" (Heidegger, 1973/2008, p. 39). Ainda que "existência" possa ser uma determinação de algo que mantenha de modo equívoco seu sentido, para Heidegger ela somente pode ser concebida genuinamente como o ser do eu sou, apreendido não de modo teórico, mas ao realizar-se em um modo de ser do ser do "eu". Deste modo, assevera ele, "em uma indicação formal, o ser do si-mesmo assim compreendido significa existência. Com isto indicou-se de onde deve ser haurido o sentido de existência enquanto o como determinado do si-mesmo (do eu)" (Heidegger, 1973/2008, p. 39). A questão do como, ou seja, a explicitação dos modos concretos da experiência do lidar consigo mesmo, na preocupação cotidiana que se efetiva historicamente, diz respeito à própria questão do método, isto é, o modo pelo qual se dá a apropriação de si-mesmo.

No caso de uma postura observadora e objetivante, assinalada por Heidegger na obra resenhada, defrontamo-nos com a inefabilidade do psíquico, já destacada por Aristóteles a respeito da não-predicação de toda substância primeira e nomeada como a "impossibilidade de uma apreensão sem restos do elemento individual" (Heidegger, 1973/2008, p. 51). Diante da clássica impossibilidade de haver um conceito de indivíduo, ele se pergunta se não haveria "um modo determinado de apreensão do individuum com base neste dictum" (Heidegger, 1973/2008, p. 51). É na direção de tal questão que o problema do método encetado por Heidegger apoia-se na elucidação da concepção prévia que está em jogo em todo agir do Dasein por meio da noção de indício ou indicação formal.

Assim, Heidegger serve-se do termo "indicação" (Anzeige) para caracterizar a estrutura dêitica, subjacente aos conceitos filosóficos, que direciona o olhar para o contexto originário de sua enunciação, ou seja, o mundo prático do Dasein no lidar consigo mesmo e com os entes. A formalização implicada pela indicação formal comporta, além da redução do conteúdo aos modos de ser do Dasein, uma formalização no sentido da atribuição de um predicado formal, que inicialmente se denomina "categorias da vida" (Heidegger, 1985, pp. 86-87) e depois, em Ser e tempo (Heidegger, 1977a/1927), "existenciais" (Existenzialien). Estes são predicados formais que estruturam a priori, ou seja, formalmente, as estruturas da vida prática, que é o próprio Dasein.

Na medida em que vamos percebendo o alcance metodológico da noção de indicação formal, podemos nos dar conta de que ela está incrustada no âmago da tessitura conceitual heideggeriana ao longo de sua obra. Propomos seguir a explicitação desta em textos que consideramos fundamentais para sua compreensão.

Nas preleções do inverno de 1920/1921, Einleitung in die Phänomenologie der Religion, ele mostra que a generalização e a formalização procedem da atitude teórica, e por isso mesmo objetivam o vivido, e então, em contrapartida, ele faz uso da noção de indicação formal. Esta operação metódica teria como função primeira prevenir contra "a determinação formal do objetual que domina plenamente a filosofia" (Heidegger, 1995, p. 64). O que se entende por "formal" nesta operação metódica? Não se trata da formalização e da generalização no sentido proposto por Husserl, mas significa algo que é mais originário e relativo à referência. A indicação formal é "uma defesa" que aponta de modo prévio a referência do fenômeno, mas de modo que "seu sentido referencial fique em suspenso" (Heidegger, 1995, p. 59). Este é o tratamento metódico proposto para os conceitos fundamentais que tratam da vida fática, guiado pela regra de precaução (Vorsichtsregel), como defesa contra os significados que procedem da atitude teórico-objetivante que não dá conta do sentido originário. Disso resulta então que "a referência e a realização do fenômeno não se determinam, de antemão, mas estão m suspenso, à espera de concretização" (Heidegger, 1995, p. 64) e perdure um apontar para algo, realizado no lidar com os entes, como modo de precaver-se contra qualquer objetivação, que é própria da tendência de predicar algo como "algo". Por isso, Heidegger afirma: "[...] o 'formal' dá o 'caráter de princípio' da execução da realização do cumprimento originário do indicado" (Heidegger, 1995, p. 63). Se a fenomenologia é "a explicação de uma totalidade de sentido" (ou seja, explicação do fenômeno) segundo suas três direções de sentido (sentido de conteúdo, de referência e de realização) (Heidegger, 1995, p. 63), então se entende que para Heidegger o formal seja tomado em seu "caráter de princípio" do exercício no qual se realiza uma explicitação fenomenológica. Esta se alcança "mediante a indicação formal. Ela possui o significado da posição de começo [Ansetzen] da explicação fenomenológica" (Heidegger, 1995, p. 64).

De modo resumido, podemos então entender essa noção como uma remissão da atitude objetivante à vida concreta, ou seja, à coisa mesma, de tal modo que os conceitos se dão de maneira originariamente fenomenológica quando se assumem de um modo indicativo, isto é, quando se mantêm como um dizer que se suspende para deixar prevalecer a coisa mesma que nesse dizer está em questão. Esta suspensão do sentido referencial e de sua realização, ou seja, suspensão da determinação conceitual do vivido, abre a dimensão pré-discursiva ou antepredicativa que cede ao vivido sua originária legitimidade no que se diz. Assim, a orientação formal originária se mantém na provisoriedade determinada pela função indicativa, com os seguintes traços: o sentido referencial que orienta; seu caráter provisório (sujeito à impropriedade, ou seja, objetivação); uma orientação que requer ser realizada formalmente, ou seja, que deixe em aberto o sentido executivo e referencial do fenômeno considerado; a apropriação de sentido da explicação fenomenológica tem de voltar a operar sobre a orientação primordial, reconduzindo-a em uma repetição.

Posterior a Ser e tempo, encontramos nova exposição metódica da indicação formal nas preleções de 1929/1930, Os conceitos fundamentais da metafísica (Heidegger, 1983), em que ele destaca o fato de que o questionamento filosófico extravia-se quando seus conceitos deixam de assumir-se indicativamente. Assim, "todos os conceitos filosóficos são indicações formais, e, somente quando são tomados deste modo, eles fornecem a autêntica possibilidade do conceber" (Heidegger, 1983, p. 425), e exemplifica isso se referindo ao ser para a morte, conceito elaborado em Ser e tempo. No "ser para a morte" trata-se de recolher uma possibilidade concreta da existência: a disposição resolutiva que se encarrega da própria morte como horizonte último que lhe concerne. Essa possibilidade contrapõe-se ao agir cotidiano mantido de uma maneira inercial, no esquecimento de si. Então, afirma que aquilo de que se trata de dar conta na decisão é o instante "como instante do agir real". Os conceitos com sentido filosófico funcionam apenas na medida em que se desprendem da concepção vulgar do ente e transformam-se no ser-aí neste ente. Os conceitos utilizados, considerados como meros conceitos, "[...] demandam esta transformação, mas nunca podem eles mesmos provocar o acontecimento da transformação, eles são indicadores" (Heidegger, 1983, p. 429). Em outras palavras: os conceitos utilizados têm que ser indicativamente assumidos se eles têm de servir para encarregar-se de "[...] uma concreção do ser-aí singular no homem, mas nunca trazem já consigo em seu conteúdo esta concreção" (Heidegger, 1983, p. 429). Também é possível tomar estes conceitos em seu conteúdo, "sem fazer qualquer referência ao seu caráter de indicação" (Heidegger, 1983, p. 429). O entendimento naturalmente acomodado pode abraçar "aquilo" que a mera leitura constata, sem assumir a subordinação concreta que requer o dito, sem realizar a transformação indicativa que reclama, pondo-se a argumentar meramente sobre "ele". O que se diz acerca da propriedade do ser para a morte pode começar a tomar-se então como "uma tese" que, a partir de fora, estabeleceria a preferência por uma "atitude particular". Logo, essa tese pode ser criticada como tese, contrapondo-se a ela uma série de reparos "razoáveis". Quem procede desta maneira, afirma Heidegger, quem se encarrega assim de um texto e quem desdobra assim seu discurso, nem sequer entra no plano do filosoficamente problemático.

Assim, Heidegger caracteriza duas formas de má interpretação dos conceitos filosóficos, que consistem na tendência conceitual do entendimento vulgar de tomar o que é significado como um ente simplesmente dado (Vorhanden), e, a segunda forma, de tomar o que é significado a cada vez como algo isolado. A primeira forma já havia sido bem caracterizada em formulações anteriores. Quanto à segunda, Heidegger postula que

a conexão originária e única dos conceitos já é instituída através do ser-aí mesmo. [...] A conexão é em si histórica: ela está oculta na história do ser-aí. Portanto, para a interpretação metafísica do ser-aí, não há nenhum sistema do ser-aí (Heidegger, 1983, p. 432).

Então, do exposto podemos aventar a hipótese de que a interpretação dos conceitos filosóficos por meio do procedimento da indicação formal constitui um recurso metodológico original criado por Heidegger e que perpassa todo seu caminho filosófico. Se esta afirmação é plausível, caberia então examinar como este procedimento se mostra ao longo de sua obra. As duas interpretações equivocadas dos conceitos filosóficos podem orientar-nos: sempre que se faz o movimento de retorno ao nível antepredicativo, do ente subsistente (Vorhanden) para o ente disponível (Zuhanden), entramos no nível da indicação formal. Da mesma forma, sempre que se considera o fenômeno originariamente em sua totalidade e conexão, temos a presença da indicação formal, ainda que não seja explicitamente nomeada. Por isso, podemos supor que ela tenha se transformado e recebido outras denominações. Acreditamos que em Sein und Zeit, no qual ocorrem 26 vezes o termo Anzeige e seus derivados, os termos Struktur strukturell, Strukturmomment, Strukturganzheit, Existenzialien, correspondem à indicação formal. De forma semelhante, parece que esta terminologia é posteriormente substituída por termos como Fuge. E, sem pretensão de sermos exaustivos neste ponto, observamos que a tautologia heideggeriana é uma estratégia especialmente sutil, pois se trata precisamente de um não dizer que diz.

Para concluirmos, propomos que nos detenhamos um momento nesse enigmático recurso heideggeriano.

O recurso da tautologia já se mostra recorrente na obra capital de 1927, especialmente na explicitação do sentido ontológico do cuidado como temporalidade, que implica a formulação da primeira das quatro teses fundamentais (tautologia, transcendência, abertura e finitude). Ele afirma que, "originariamente, tempo é enquanto temporalização da temporalidade que, como tal, possibilita a constituição da estrutura do cuidado. A temporalidade é, essencialmente, extática. Temporalidade temporaliza-se, originariamente, a partir do porvir. O tempo originário é finito" (Heidegger, 1927/1977a, p. 331). Nesta afirmação salientamos apenas que os enunciados ontológicos dão-se na forma de tautologia, como "o tempo temporaliza", consistindo em um dos mais importantes dispositivos formais utilizados por Heidegger para não entrar na interpretação vulgar do tempo, como uma espécie de receptáculo em que o Dasein cairia como um ente subsistente, que transcorreria no tempo. Deste modo, passado, presente e futuro, concebidos como partes do tempo que se ajuntam, escondem o fenômeno da temporalidade enquanto estruturado ontologicamente. Contra o discurso que trata o tempo como um ente ao qual se atribuem propriedades, Heidegger defende a tese do "tempo enquanto temporalização da temporalidade". "A temporalidade não 'é', de forma alguma, um ente. Ela nem é. Ela se temporaliza" (Heidegger, 1927/1977a, p. 328). Na conclusão das preleções do verão de 1925/1926, Heidegger refere sua tentativa de pôr um limite à lógica e à ontologia tradicional e apreender as "possibilidades temporais mais radicais contidas na temporalidade do Dasein" (Heidegger, 1976, p. 415). Os limites da lógica têm sua raiz na prevalência do enunciado que, enquanto enunciado de um ente subsistente, funda-se no presente. A insuficiência da lógica tradicional está intimamente ligada com a interpretação vulgar do tempo, como o presente constante – a ousia grega –, como presente subsistente na forma da eternidade.

O recurso à tautologia, como um modo de dizer que se enraíza no não dizer, como sigética ou silenciação, determina a explosão da lógica metafísica, como encontramos em Contribuições à filosofia (Heidegger, 1989, pp. 78-79). As tautologias heideggerianas multiplicam-se (apenas alguns exemplos: "O mundo mundaniza" (Die Welt weltet); "A linguagem fala" (Die Sprache spricht); "O tempo temporaliza" (Die Zeit zeitigt); "O espaço espacializa" (Der Raum räumt); "A coisa coisifica" (Das Ding dingt); "O acontecimento-apropriação acontece-apropriando" (Das Ereignis ereignet); "Trazer a linguagem enquanto linguagem à linguagem" (Die Sprache als Sprache zur Sprache bringen), buscando sempre escapar do regime do enunciado assertórico. A linguagem é, num sentido preciso, essencialmente tautológica. Ela diz e se diz em sua capacidade de nomeação e mostração: "De um modo geral, a linguagem não é isso ou aquilo, isto é, não é qualquer coisa de outro e mais do que ela mesma. A linguagem é linguagem" (Heidegger, 1954, p. 99).

Deste modo, a regra de precaução contra o domínio da lógica metafísica implica igualmente sair do correspondente predomínio do conceito, o que resulta na entrada na fenomenologia do inaparente, como propõe Heidegger.

Assim compreendida, a Fenomenologia é um caminho que leva para, diante de [...]; e se deixa mostrar esse diante do que é conduzido. Essa fenomenologia é uma fenomenologia do inaparente. Aí somente torna-se compreensível que para os gregos não há conceitos. No con-ceber, com efeito, reside o modo de comportamento de uma captura. O orismos grego, ao contrário, envolve firme e ternamente o que o ver toma no olhar; ele não con-cebe (Heidegger, 1977b, p. 137).

Vemos então que a utilização da noção metodológica de indicações ou indícios formais concerne à introdução de um novo conceito de experiência, que se caracteriza com base no termo "caminho" (Weg), e todos seus derivados. A própria obra completa deveria ser apresentada, conforme indicação de Heidegger pouco antes de morrer, como "caminhos, não obras" (Heidegger, 1981, p. 437).

Talvez agora estivéssemos prontos para percorrer repetitivamente o caminho trilhado por Heidegger e fazer a experiência com a linguagem que, de um lado, nos torne precavidos contra as armadilhas do significado que a tradição metafísica nos impõe, e, de outro lado, nos permita apreender o novo horizonte, mostrativo mais do que demonstrativo, que fornece as condições da produção de sua obra.

 

Referências

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1 Psicanalista e professor titular do Dep. de Filosofia da Unisinos