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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.14 no.2 São Paulo  2012

 

Artigos

 

Jogue a escada fora: fenomenologia como terapêutica

 

Throw away the ladder: Phenomenology as therapeutics

 

 

Sandro Marcio Moura de Sena

Professor adjunto no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE
e-mail: sandrosena@gmail.com

 

 


Resumo

Este artigo visa a mostrar, por meio da interpretação das obras de juventude de Martin Heidegger, que a fenomenologia em sua versão hermenêutica, tal como exercitada em Ser e tempo e tratados imediatamente posteriores, não deve ser compreendida como uma teoria filosófica sobre a existência humana, mas tão somente como uma práxis terapêutica da facticidade. Para isso, exploro a impossibilidade do uso categorial da linguagem para expressar fenômenos vitais e investigo seu uso formal-indicativo, cuja função expressiva primária não será explicar ou esclarecer, mas exortar o existente concreto histórico para uma apropriação compreensiva de si mesmo. Com isso, tornar-se-á visível, em segundo momento, que fenomenologia não somente não é uma filosofia entre outras filosofias dadas, mas um modo de ser do ser-aí, com base no qual a própria filosofia enquanto atividade teorética pode vir a realizar-se.

Palavras-chave: Heidegger, fenomenologia, indicação formal, teoria, práxis.


Abstract

The present article aims to show, through the careful interpretation of Heidegger's early works, that the hermeneutic version of phenomenology, as exposed in Being and Time and later writings, should not be understood as a philosophical theory of human existence, but as a therapeutic praxis of facticity. In order to do so, I examine the impossibility of the categorical use of language to express the living phenomena. I also investigate its formal-indicative usage, which expressive primary function is not to explain or clarify, rather, it is to urge the existing historical concrete Dasein towards a comprehensive appropriation of itself. In a second moment, this must shed a light on the fact that phenomenology is not another possible philosophy among others. Instead, it is a way of being of Dasein; a way out of which, only then, philosophy itself as theoretical activity is allowed to come into existence.

Keywords: Heidegger, phenomenology, formal indication, theory, praxis.


 

 

"Wie gesagt: denk nicht, sondern schau! – Schau z. B. […] an"
(Wittgenstein, Logische Untersuchungen)

Os dez anos que antecederam a publicação do tratado de ontologia Ser e tempo podem ser vistos, além daquele período de maturação das análises expostas de maneira sistemática em 1927, como os anos de acentuada preocupação do jovem fenomenólogo Martin Heidegger com o modo de acesso genuíno às coisas mesmas, ainda que importantes reflexões metodológicas atravessem os principais tratados, preleções, escritos e conferências já publicados na sua Gesamtausgabe, chegando de forma discreta e fragmentária até a fase tardia de seu pensamento (Heidegger, 1987a, pp. 3-43; 1992b, pp. 86 e ss.; 1985, pp. 114 e ss.). O que podemos observar em uma primeira aproximação destas reflexões preparatórias iniciadas no final dos anos 1910 e estendidas até meados dos anos 1920 do século XX é que possuem um caráter combativo bastante surpreendente: a analítica existencial do ser-aí nascia em meio a uma luta travada contra a própria filosofia. Testemunhos disso não faltam.

Em "Problemas fundamentais da fenomenologia" (1919/20) lemos desconcertados "Nós não sabemos nada de filosofia e de teorias de explicação do mundo ou coisas similares" (Heidegger, 1993a, p. 31); em "Fenomenologia da intuição e da expressão" (1920), que traz o sugestivo subtítulo "Teoria da formação dos conceitos filosóficos", escreve Heidegger "Eu não preciso de nenhuma filosofia própria e por isso também não procuro uma […] Nós não filosofamos para mostrar que temos uma filosofia, mas justamente para mostrar que não precisamos de nenhuma" (Heidegger, 1993b, p. 191); ao final de "Introdução à pesquisa fenomenológica" (1923/1924), "De fato, o que nós conquistamos até aqui é módico e seria um mal entendido tomar o que foi conquistado no sentido de uma filosofia" (Heidegger, 1994b, p. 276); nos "Conceitos fundamentais da filosofia aristotélica", de 1924, "[...] nosso modo de tratamento [das questões] não é filosófico; o resultado, nenhuma filosofia" (Heidegger, 2002, p. 334). Ainda em 1924, nos primeiros minutos da conferência intitulada "O conceito de tempo" – exposição compacta dos temas fundamentais de um tratado homônimo –, o "filósofo" lia para os teólogos de Marburg: "A reflexão que segue só tem em comum com a filosofia não ser ela teologia" (Heidegger, 2004, p. 128). E, se quisermos consultar suas reflexões de maturidade, ricas em autointerpretações e autoavaliações retrospectivas, encontraremos sob o título "Superação da metafísica" (1938/39) um julgamento radical: "Todas as tentativas de comparação do pensamento histórico-ontológico com a filosofia tornaram-se decrépitas" (Heidegger, 1999, p. 166). Pois bem. Concedamos que essas afirmações extremamente provocativas não consistam em simples retórica com o propósito de gerar nos ouvintes e possíveis leitores a ilusão de radicalidade, mera aparência de subversão. Tomemo-las a sério e procuremos conquistar a perspectiva com base na qual a filosofia, ou pelo menos o que aí é compreendido com essa palavra, se mostra como objeto de recusa.

Em sua primeira preleção na Universidade de Freiburg, "A ideia da filosofia e o problema da visão de mundo" (1919), o então Privatdozent Heidegger, com apenas 29 anos de idade, procurava fixar um programa de pesquisa com base na apropriação original e uma consequente redefinição do conceito de fenomenologia. A tarefa filosófica criada e desenvolvida por Edmund Husserl sob o signo de ciência rigorosa1 (strenge Wissenschaft) (Husserl, 1965, pp. 71-72) ressurge como uma protociência preteorética (vortheoretische Urwissenschaft) (Heidegger, 1987c, pp. 63 e ss.), cujo domínio de investigação é a facticidade da existência humana, ou, mais precisamente – dito à época em uma terminologia tradicional pouco depois abandonada –, a vivência do mundo circundante (Umwelterlebnis) (Heidegger, 1987c, p. 70). E no semestre de inverno desse mesmo ano, no qual foi lido o conteúdo da preleção já citada "Problemas fundamentais da fenomenologia", filosofia fenomenológica é nomeada como a ciência da origem da vida fática em si (Ursprungswissenschaft des faktischen Lebens an sich) (Heidegger, 1993a, pp. 65 e ss.). Se essas designações primevas apontam, com terminologia diversa, para a tarefa de elaboração conceitual do mesmo complexo de fenômenos, por meio do mesmo método de investigação, que encontraremos bem desenvolvidos naquilo que pouco mais tarde (1923) receberia o título de "hermenêutica da facticidade" (Hermeneutik der Faktizität) (Heidegger, 1988, pp. 14-20) ou, em sua formulação definitiva (1927), "analítica existencial do ser-aí" (existenziale Analytik des Daseins) (Heidegger, 2001, p. 13), então o questionamento ontológico-fundamental levado a cabo em Ser e tempo e alguns tratados imediatamente posteriores deve ser compreendido como uma protociência hermenêutica originária da existência humana2para essa protociência fenomenológica da vida fática, a qualificação "originária" não significa outra coisa senão pré-teorética. Uma vez que esta deveria, antes de tudo, "[...] renegar qualquer resposta precedente. Para isso, é necessário tornar-se livre de uma tradição que na filosofia grega foi autêntica: o comportamento científico enquanto teoria" (Heidegger, 1994b, p. 3).

A recusa do comportamento teórico não consistia, porém, em uma decisão unilateral do pensador, mas encontra sua necessidade no modo de ser da coisa mesma a ser investigada, pois "tente eu esclarecer teoreticamente o mundo circundante, então ele se despedaça" (Heidegger, 1987c, p. 86). E mesmo a filosofia que imediatamente lhe precede, justamente aquela que, segundo o próprio pensador, lhe "pôs os olhos" (Heidegger, 1988, p. 5), deveria ser recusada, se não em sua máxima fundamental de pesquisa, em seu ponto de partida e sua meta. É que o fenômeno primário para a fenomenologia husserliana, a doação (Gegebenheit), fora considerado, desde a perspectiva da protociência da vida fática, "[...] já uma forma inteiramente teorética" (Heidegger, 1987c, p. 89) de abordagem do mundo concretamente vivido,3 e, portanto, perda imediata do seu sentido. Teoria mostra-se como a "doença" que debilita a visão para o fenômeno da facticidade, cujo sintoma mais agudo é certamente aquele "ponto cego do olhar fenomenológico", já diagnosticado com precisão por Loparic (1996, p. 140): a subjetividade.4 Aos olhos de Heidegger, porém, é o primado do teorético na filosofia o que propriamente deve ser recusado pela fenomenologia em sua versão hermenêutica.

Esse primado não apenas torna a investigação insuficiente para a apreensão do sentido da vivência circunmundana; já simplesmente ao abordá-la, a destrói. Para usar a célebre expressão de Aristóteles, a βίος θεωρητικός, o ser-aí filosófico como vita contemplativa, é ainda e essencialmente uma forma de vida (Aristóteles, 1984, p. 52), mas que possui a característica peculiar de, da vida mesma, ser uma forma desvitalizada. Enquanto forma de desvitalização da vida (Entlebung des Lebens),5 o fenômeno da "ciência" – tomado em sentido bastante amplo, o comportamento teórico (theoretisches Verhalten) em geral – decerto brota da facticidade, porém, sendo vida humana alçada a degrau mais elevado e, assim, distanciada de si mesma,6 não poderá retornar investigativamente à sua própria origem vital pré-teorética no intuito de deixar por si mesma que essa se mostre, tal como se mostra com base em si mesma (Heidegger, 2001, p. 34),7 ou seja, deixar que a existência histórica concreta revele as estruturas e o sentido de seu ser. "A vida fática vive irreflexa, ateoreticamente" (Heidegger, 1993a, p. 208); e este domínio irreflexo do originário vital (existencial), tema privilegiado da analítica, "anterior" a qualquer tomada de conhecimento, isto é, "anterior" a qualquer explicação ou esclarecimento que a vida humana possa alcançar sobre si mesma, é justamente o domínio a partir do qual a própria atividade teorética pode vir a realizar-se como modo de descoberta das propriedades dos entes e das leis fundamentais de suas regiões. Enquanto modalidade peculiar de concreção da vida humana, a "Ciência não deve ser vista como sistema de enunciados e conexões coerentes de fundamentações, mas como algo em que o ser-aí fático entra num embate consigo mesmo" (Heidegger, 1988, p. 72). Essa estranha caracterização existencial do conhecimento científico em particular e do posicionamento teorético em geral que lhe é pressuposto não encontra lugar aqui para ser explorada. Relevante neste artigo é, com base nisso, fazer notar que, para Heidegger, "filósofo" da ciência incomum, o trilho que une βίος e θεωρία só poderá ser percorrido em uma única direção: o sentido da teoria está encerrado na vida fática, mas o sentido da vida fática recusa a teoria.

2.

E então a aparência de superficialidade nos acossa. Afinal, qualquer um poderia dizer coisa semelhante. Não pode haver sabedoria filosófica alguma guardada no interior desse verdadeiro lugar-comum. Mas o lugar-comum, na maioria das vezes, somos nós mesmos. A protociência da facticidade deve ser pré-teorética não porque, como se ouve dizer, a vida é vastidão, redemoinho caótico, torrente obscura e irracional que necessariamente excederá, em sua infinita multiplicidade de configurações e movimentos concretos, nossos precários e parciais discursos científicos ou filosóficos a seu respeito. Mas porque o olhar teórico é em si mesmo já demasiado para uma primeira abordagem da simplicidade significativa da vivência mundana, que, no mais, por meio da interpretação propriamente fenomenológica do modo pelo qual esta se nos apresenta assim de maneira simples e imediata, pode revelar-se complexa ao extremo em suas estruturas fundamentais. Ao recusá-la, a fenomenologia hermenêutica não quer ser mais que uma "mera" teoria sobre a vida, ela quer menos. Pois, diante da significatividade elementar do existir, esclarecimentos conceituais generalizantes (teorético-filosóficos, biológicos, antropológicos, historiográficos, psicológicos, etc.) não se configuram como equívocos a serem definitivamente descartados. São modos sempre possíveis, mas particularmente distanciados, de apresentação. O conhecimento teórico, disparado no ato reflexivo enquanto tomada de distância de..., consumado na expressão enquanto discurso sobre..., ganhará em esclarecimento demonstrativo factual o que perderá em apropriação compreensiva possível da vida fática. Em que medida essas formas distintas de commercium que a existência humana pode estabelecer consigo mesma – as quais são designadas abreviadamente pelos termos esclarecimento e apropriação – se relacionam é uma problemática particular que também não tratarei neste artigo. Gostaria apenas de deixar um caminho aberto para as interpretações que seguem: porque esclarecimento (teorético) só se torna possível por intermédio de um distanciamento contemplativo das coisas, a apropriação (fenomenológica) pretende ser a mais pura proximidade existencial que a vida fática, ao ganhar a forma especial do questionamento "filosófico", pode estabelecer consigo mesma.

Nessa apropriação, pretende a vida tornar-se de si mesma próxima a tal ponto, que o discurso fenomenológico, numa diferenciação radical para com a objetivação característica do discurso científico-teorético, jamais poderá ser caracterizado como discurso sobre a existência. Em momento oportuno analisarei e interpretarei essa "propriedade" discursiva da fenomenologia hermenêutica com relativa suficiência. No entanto, vale ressaltar que Heidegger, mesmo que em suas análises a respeito da origem e sentido existencial do conhecimento científico rasgue um abismo entre apropriação fenomenológica (compreensão originária) e esclarecimento teorético (compreensão derivada), em momento algum se opôs às determinações conceituais objetivas porque as compreende como explicações por si mesmas já falsas:

A objetivação tem, verdadeiramente realizada, seu próprio valor. Mas existe o perigo da objetivação precipitada. Não é o caso que essa objetivação seria falsa ou não correta e a compreensão da origem, ao contrário, correta. Aqui não há tais alternativas. A norma da compreensão fenomenológica não é a verdade no sentido de "correção" ou falsidade, mas originariedade. A objetivação é uma deriva [uma perda de rumo], um desvio em um determinado estágio de um determinado degrau da pesquisa fenomenológica e, por isso, infrutífera para a fenomenologia. (Heidegger, 1993a, p. 244)

O sentido preciso dessa originariedade pré-objetiva proposta como norma da compreensão dos fenômenos vitais, e, ao fim e ao cabo, o próprio critério de sentido e verdade das sentenças fenomenológico-hermenêuticas, é ainda obscuro. Para torná-lo claro, necessitamos de uma interpretação do discurso fenomenológico adequada às pretensões da analítica da existência. Pois, uma vez desviando-se dos esclarecimentos teoréticos objetivadores por serem nem mais nem menos que infrutíferos, o desafio da absoluta aproximação conceitual da facticidade consistia no "[...] apoderar-se da vivacidade da vida enquanto vida – sua manifestação a partir de sua origem – nas manifestações mesmas" (Heidegger, 1993a, p. 145). O apoderamento, a apropriação hermenêutica do originário vital sem atalhos, sem recurso a outrem que não ele mesmo em suas manifestações. Como fazê-lo, porém? Inspirado pela simplicidade frutífera que viu no pensamento clássico grego, Heidegger praticamente prescreve em seu Platão: Sofista (1924/25) o procedimento adequado para uma primeira aproximação de caráter fenomenológico:

Fenomenal não quer dizer aqui senão aquilo que se mostra em uma primeira e simples visada das coisas […] Ela não precisa ainda, de maneira alguma, ser originária, já apreender propriamente a coisa. O essencial do estado fenomenal é que ele seja conquistado a partir de uma situação natural e certamente dominante do observar e do ver. (Heidegger, 1992c, p. 260)

O simples não é, porém, o fácil, e até "[…] esta primeira e simples visada pode mesmo ser bastante complicada" (Heidegger, 1992c, p. 260).

A situação inicial do investigar pode e – por motivos residentes na própria estrutura de uma investigação enquanto fenômeno da vida histórica – até deve estar dominada por opiniões tradicionais mais ou menos fundamentadas a respeito das coisas, assim como de seus modos de tratamento. Por isso, "a opinião sobre não ter preconceitos é ela mesma o maior preconceito. […] Não livre de preconceitos, mas livre para a possibilidade de renunciar a um preconceito no momento decisivo, a partir do confronto com as coisas" (Heidegger, 1994b, p. 2). Em virtude dessa dificuldade constitutiva para toda e qualquer investigação e no intuito de tornar o pensamento livre para as coisas, até onde isso for possível, escreve Heidegger que "[...] o sentido fundamental do método fenomenológico e do filosófico em geral é o dizer-não, a produtividade do não […]" (Heidegger, 1993a, p. 240), e em sua ultima preleção em Freiburg, "Ontologia. Hermenêutica da facticidade", adverte que a fenomenologia deve buscar apoio "[…] profilaticamente, na recusa de outros pontos de vista aparentemente afins […]" (Heidegger, 1988, p. 80); a mesma necessidade que no primeiro ano da década de 1920, em "Fenomenologia da intuição e da expressão", conheceríamos como a tarefa de destruição fenomenológica (phänomenologische Destruktion) (Heidegger, 1993b, pp. 29-39).

A protociência pré-teorética será necessariamente destrutiva, pois, como modalidade possível de investigação conceitual e, por isso mesmo, atividade transpassada por toda sorte de preconceitos, deve irromper em meio à negação enquanto uma profilaxia. Para fazer valer as pretensões radicalmente críticas de uma ciência da origem da vida fática em si, o método fenomenológico cumprirá, antes do mais, a função de preventivo contra aquela "enfermidade" que ameaça a visão das coisas. "Enfermidade" imperceptível para o próprio "enfermo", porque se apoderou de sua existência científica de maneira total, a ponto de constituí-la, determinando suas possibilidades de descoberta. A "doença", já a vimos: teoria. E aquele fenômeno vital, de cujo sentido elementar primeiro há que se apoderar e manter, não sem esforço, a distância segura de quaisquer compreensões, interpretações e discursos teoréticos previamente constituídos e fixados, e que encontraremos exposto, sem rodeios, nos "Apontamentos à 'Psicologia da visão de mundo' de Karl Jaspers" (1919/21):

Com isso, foi dada a indicação de onde o sentido da existência [...] deve ser retirado. Torna-se então decisivo que eu me tenho, a experiência fundamental na qual eu venho ao encontro de mim mesmo enquanto um si-mesmo, de tal maneira que eu, vivendo nessa experiência, posso, correspondente ao seu sentido, perguntar pelo sentido do meu "eu sou" […] O eu deve aqui ser compreendido enquanto o si-mesmo plena e historicamente fático, acessível na autoexperiência histórica concreta. (Heidegger, 1976a, pp. 29-30)

Onde, então, a hermenêutica da facticidade deve tomar seu impulso inicial, leia-se, aqui, rigorosamente, em primeira pessoa: eu, concreto-histórico, me tenho e me experimento concreta e historicamente enquanto um mesmo; – eu sou... eu mesmo; eis o ponto de partida elementar, o simplex da analítica existencial do ser-aí. Simesmidade (Selbstheit) manifesta-se previamente como o modo de ser originário da vida humana, para o qual nenhum guia ontológico-categorial legado pela tradição filosófica deve ser tomado para a compreensão do seu sentido. Mas não apenas isso. E aqui se revela a verdadeira dificuldade que enfrentaria a tarefa de compreensão estrutural desta manifestação primária da existência concreta. O que vale para o pensamento de Heidegger em 1924 em seu "Conceitos fundamentais da filosofia aristotélica", a saber, que "O ser-aí, enquanto vida, é sempre ser-aí a cada vez, não há ser-aí em geral. Ser-aí é sempre: eu sou. Nenhum ente que é, porém, o ente que eu sou [...]" (Heidegger, 2002, p. 246) continuará valendo dez anos depois, ao expressar em sua "Lógica enquanto questão pela essência da linguagem" (1934) que "Nós não questionamos e experienciamos o ser humano no setor do 'assim' ou do 'que', mas no setor do este e aquele, do esta e aquela, do nós" (Heidegger, 1998, p. 34). A partir disso, pode tornar-se visível por que o princípio metódico que guiaria as descrições e interpretações dos fenômenos existenciais, isto é, fenômenos relativos à simesmidade do ser-aí, apareceria anos antes formulado nas preleções "Fenomenologia da intuição e da expressão" e "Interpretações fenomenológicas de Aristóteles" (1921), como, respectivamente, "O retorno [à origem] fica a cargo do único [Einzelnen]" (Heidegger, 1994c, p. 134) e "Rumemos ao único [Einzelne]! Experiência fundamental da existência […]" (Heidegger, 1993b, p. 197).

O vivente humano não se manifesta para si mesmo, isto é, não se tem e não se experiencia em seu ser-si-mesmo, de início, segundo o modo de ser da res, do estado de coisas, da substância, do objeto, do que é o caso, do que pode ser o caso, do sujeito, da ocorrência, da realidade, do dado, do fato, da doação (Gegebenheit), do algo (Etwas) em geral, nem o modo de ser do processo; todos títulos ontológicos de função esclarecedora, cujo direito à aplicação será pela primeira vez conquistado por meio de um distanciamento que a vida tomará perante si própria, ao ganhar o caráter de auto-observação detida, isto é, quando a vida, engajada na tarefa de compreender-se, torna-se teorética. A vida fática não pode ser esclarecida, pois não possui o modo de ser da mera presentidade (Vorhandenheit). Fenômenos existenciais acontecem.

As investigações metodológicas do jovem Heidegger procuravam, ao fim e ao cabo, um caminho apropriado para deixar que se mostre por si mesmo o sentido da existência humana com base em sua plena mobilidade (Bewegtheit) fática (Heidegger, 1994c, p. 114), elaborando cuidadosamente um modo de expressão do caráter de acontecimento (Ereignischarakter)8 (Heidegger, 1993b, p. 59) da vida histórica, visando, pela expressão mesma, uma apropriação compreensiva do existir, pois "o vivenciar não passa diante de mim como uma coisa que eu coloco enquanto objeto, mas eu mesmo aconteço […] As vivências são acontecimentos [...]" (Heidegger, 1987c, p. 75). Possuindo o caráter de acontecimento, a vida acontece no modo de ser-sempre-a-cada-vez (Jeweiligkeit) e assim, acontecendo a-cada-vez, acontece no modo de ser-sempre-minha (Jemeinigkeit) (Heidegger, 2004, p. 112; 2001, p. 42). "Ocasionalidade" e "minheidade" são os caracteres ontológico-existenciais de um ente cujo modo de ser é ser-si-mesmo. Eu sou (aconteço como) meu ser-aí, o ser-aí é (acontece como) sempre meu. Minha existência é sempre esta existência, sou este ser-aí mesmo, concreto, histórico e próprio, sou meu próprio aí "ocasional". Então, em sentido estritamente fenomenológico hermenêutico, isto é, pré-teorético, ser como humano (existir) significa ser-o-acontecer-do-meu-próprio-aí-a-cada-vez determinado historicamente; "A vida está sempre concretamente em situações" (Heidegger, 1993a, p. 233). E, como tal, não há rigorosamente nada atrás, no fundo ou acima do acontecimento de minhas concreções situacionais. A vida humana acontece a cada vez nas situações mesmas, e, com base nessas situações, e em qualquer uma delas, há de ser fenomenologicamente arrancado o sentido originário de seu ser. Por isso, escreve Heidegger que "a filosofia pode partir de qualquer ponto da vida e ali começar com o método da compreensão originária" (Heidegger, 1993a, p. 239).

Então, antes de tudo, fora necessário afirmar como posição prévia da investigação que não há ser-aí em geral. Não há existência humana universal nem caracteres universais do existir. A existência, enquanto acontece a-cada-vez como minha existência e nesse acontecimento sempre seu se "esgota", não apresenta eidos algum. Nesse "setor" da investigação fenomenológica fracassaria necessariamente toda e qualquer eidética. Pois não há nada, nenhuma essência (Wesen), para uma possível intuição (Anschauung). Assim como não há nada, nenhum objeto (Gegenstand), para uma possível representação (Vorstellung): "As relações ekstáticas, e isso quer dizer, o ser-aí total do ente humano, não é representável. Na medida em que eu o represento, tomo dois objetos [eu representante e coisa representada] e me ponho fora das relações ekstáticas" (Heidegger, 1987b, p. 228). Ou, se quisermos falar a língua de outra quase antifilosofia: não há nada, nenhum estado de coisas (Sachverhalten), cuja forma se oferece para uma possível afiguração (Abbildung). Intuição das essências, representação de objetos e afiguração de estados de coisas são maneiras filosoficamente diversas de não ver, de perder, o sentido da existência em seu modo de ser-a-cada-vez-minha. Ou, melhor dizendo, são maneiras distintas de vê-la à distância, de vê-la teoreticamente, e, portanto, de ganhá-la em seu caráter meramente factual passível de esclarecimento; uma torção do fenômeno da vida histórica, no mais, sempre possível e até mesmo filosófica e cientificamente produtiva. Para Heidegger, fenômenos relativos ao ente que existe, relativos ao ente determinado em seu ser pelo caractere da simesmidade, possuem a modalidade ontológica do acontecimento, cujo sentido temporal deve apenas se deixar mostrar.

Compreender originariamente os fenômenos vitais significa, portanto, apreendê-los enquanto fenômenos temporais: "Todo ser no sentido de ser-aí é caracterizado pelo seu ser-a-cada-vez e, ademais, determinado por sua temporalidade […]" (Heidegger, 1994b, p. 250). A relação entre acontecimento e tempo, da qual não poderemos ocupar-nos neste artigo, está clara e brevemente exposta em uma nota do pequeno tratado "Da essência do fundamento" (1929): "A essência do acontecer: temporalização da temporalidade" (Heidegger, 1976c, p. 159). Por isso, lemos no tratado "O conceito de tempo", de 1924, que "para a filosofia (enquanto compreende a si mesma como pesquisa em suas possibilidades de questionamento) permanece apenas a possibilidade de compreender o tempo com base no tempo" (Heidegger, 2004, p. 46). E é por terem sido assim delineadas de maneira tão "restritiva" as possibilidades da fenomenologia hermenêutica que um ano depois, na preleção do semestre de inverno em Marburg, intitulada "Lógica, a questão pela verdade" (1925/26), encontraremos uma outra definição da protociência pré-teorética da facticidade ainda mais precisa, e que, curiosamente, não se repetirá em nenhuma de suas demais obras: "Essa consideração filosófica fundamental que tem por tema o tempo designamos como cronologia e certamente como cronologia fenomenológica [phänomenologische Chronologie]" (Heidegger, 1995b, p. 199). No logos (discurso), chronos (tempo) deve mostrar-se como genos (origem) dos phainomena. A analítica existencial do ser-aí pode ser compreendida como uma cronogenética fenomenológica da vida fática segundo seu caráter ontológico de ser-a-cada-vez. E todo o problema metodológico dessa cronogenética da existência ocasional e minha está encerrado justamente aí. Ora, se essa versão da fenomenologia "[...] não busca a verdadeira origem viva em uma universalidade vazia derradeira, mas nesta ou naquela forma concreta essencial [...]" (Heidegger, 1993a, pp. 147-148), então o enunciado fenomenológico, cujo propósito é articular uma compreensão conceitual explícita das conexões coerentes de significação (Bedeutungszusammenhänge) sempre implícitas já no acontecimento concreto da facticidade, será "[...] sempre mal compreendido se tomado como enunciado fixo, universal"9 (Heidegger, 1988, p. 80). Portanto, "nas primeiras preleções de Heidegger encontramos a tentativa de desenvolver uma lógica do indivíduo [Logik des Einzelnen]" (Nelson, 2006, p. 32), uma busca pela expressão conceitual da haecceitas, assim interpreta, de maneira decerto consequente, Sean Nelson.

 

3.

Dizer o único em sua unicidade.10 Salta aos olhos: tarefa nada fácil. Mostrar como esta tarefa não é fácil também não parece ser particularmente difícil. Os filósofos sempre souberam e nos ensinaram, há muito, que a estrutura de nossa linguagem, e, portanto, de nosso pensamento, não nos permite nenhum acesso à pura singularidade das coisas individuais em si mesmas. Isso se torna manifesto se tomarmos, das definições clássicas da natureza e da função do conceito, aquela de viés "representacionalista", exposta por Kant em seu compêndio de Lógica. Tomemo-la como ponto de partida não somente em virtude da concisão e clareza exemplar que alcança, mas, sobretudo, porque parece reunir em si, à sua maneira, isto é, à maneira de sua época, toda uma tradição de pensamento que lhe antecede a respeito do tema. Para esse filósofo, "repraesentatio singularis" é a própria definição da intuição (Anschauung), enquanto o conceito deve ser compreendido como uma "representação universal (repraesentatio per notas comunes) […] ou representação refletida (repraesentatio discursiva)" (Kant, 1992, p. 109); definições às quais acrescenta:

O conceito opõe-se à intuição; pois ele é uma representação universal daquilo que é comum a diversos objetos, logo uma representação na medida em que pode estar contida em diferentes objetos. 2) É uma mera tautologia falar em conceitos universais ou comuns; um erro que se baseia numa divisão incorreta dos conceitos em universais, particulares e singulares. Não são os conceitos eles próprios, mas tão-somente o seu uso que pode ser assim dividido […] Em todo conceito é preciso distinguir matéria e forma. A matéria dos conceitos é o objeto; sua forma, a universalidade. (Kant, 1992, p. 109)

Assim como falar em conceitos universais é "mera tautologia", falar em um logos do indivíduo é evidente contradição. Parece haver um compromisso inquebrantável entre conceito e universalidade, seja qual for a maneira que interpretemos essa relação, atribuindo-lhe alguma consistência ontológica ou simplesmente compreendendo-a como flatus vocis. E, mesmo no caso de um Wittgenstein tardio, que, no pragmatismo radical de suas Investigações filosóficas (1953), atacaria violentamente qualquer forma de essencialismo originado na tradição grega – inerente, para ele, a toda e qualquer filosofia, até mesmo àquela apresentada anos antes em seu próprio Tractatus logico-philosophicus (1921) –, substituindo o algo em comum pressuposto como forma rígida da expressão conceitual pela noção de semelhanças de família (Familienähnlichkeiten) (Wittgenstein, 1999, pp. 31-32), presenciaremos não mais que a nitidez dos limites de um conceito sendo borrada, ou mesmo seu completo apagamento: "Tu podes indicar um limite? Não. Tu podes traçar alguns: pois ainda não foi traçado nenhum" (Wittgenstein, 1999, p. 33).

Ainda que Wittgenstein simplesmente imploda o critério de significatividade do conceito fundado no reconhecimento prévio de uma propriedade ou conjunto de propriedades comuns a todas as entidades às quais um termo pode ser aplicado e o deposite em seu uso inteiramente determinado pelo domínio das regras de um certo jogo de linguagem inserido numa determinada forma de vida, o sentido pragmaticamente regulado do conceito guardará um certo compromisso com uma multiplicidade unida por parentesco (Verwandtschaft) (Wittgenstein, 1999, p. 32). Ainda assim uma espécie de generalidade, mas uma generalidade inteiramente difusa, mutável, não taxonômica e, o mais impressionante nesta "filosofia", não ancorada nas coisas e suas notas comunes. Ao que parece, qualquer que seja a direção que tomemos para pensar a estrutura do conceito, deparamos com a conhecida posição hegeliana extremada, segundo a qual a enunciação ou expressão conceitual do indivíduo é, de fato, impossível:

Enunciamos também o sensível como um universal; o que dizemos é: isto, ou seja, o isto universal, ou: ele é, ou seja, o ser em geral. Com isso, não nos representamos, decerto, o isto universal ou o ser em geral, mas enunciamos o universal; ou, não falamos pura e simplesmente como nós o "queremos dizer" na certeza sensível. Mas, como vemos, a linguagem é o mais verdadeiro; nela nós mesmos refutamos imediatamente nosso "querer dizer", e então, o universal é o verdadeiro da certeza sensível e a linguagem só exprime esse verdadeiro, assim, é totalmente impossível que possamos dizer o ser sensível que "queremos dizer". (Hegel, 1992, p. 76)

Esse é o estado de coisas na filosofia em relação a seus próprios meios de expressão com o qual Heidegger deparou ao estabelecer como programa de pesquisa fenomenológica expressar o sentido temporal da existência fática segundo seu modo de ser-a-cada-vez-minha: "É um ponto de vista muito defendido na filosofia contemporânea que a vida fática seja inacessível ao conceito" (Heidegger, 1993a, pp. 231-232). Mas será que, com o exposto, estamos vendo a real dificuldade que enfrentaria o pensamento heideggeriano ao reclamar para si um retorno conceitual ao único? De maneira alguma! Tão difícil quanto dizer o único em sentido existencial é percebermos qual a verdadeira dificuldade dessa tarefa. Pois não é trivial de que modo a existência fática, em torno da qual a fenomenologia hermenêutica concentraria todos os seus esforços "demonstrativos", oferece resistência aos conceitos e proposições teoréticas, proposições "fixas, universais".

Tal resistência não tem origem, como poderia parecer óbvio, na oposição filosófica clássica entre universal e particular; entre o ideal, atemporal (a-histórico), a priori, transcendental e o real, temporal (histórico), a posteriori, empírico, seja em sua fronte puramente metafísica com o problema da methexis, ou em seu correlato medieval, expresso na intricada "querela" dos universais, assim como a relação entre ambos os "setores", para a qual os grandes filósofos, desde Platão (1988a, p. 110; 1988b, pp. 42-44; cf. Aristóteles, 1982, pp. 44-49), tentaram apresentar soluções ou simplesmente dedicaram-se a denunciá-la como um falso problema, mera ilusão gramatical. O modo pelo qual cada existência, ou melhor, pelo qual o existir fático enquanto a-cada-vez-meu se opõe a qualquer espécie de universalização, deve ser deixado, de início, inteiramente suspenso. E assim o deixarei, pelo menos por enquanto. O sentido dessa oposição só poderá ser visualizado com base em uma investigação do modo pelo qual Heidegger compreende o fenômeno da facticidade, sua estrutura existencial, seu sentido temporal, e nunca tomado de empréstimo dos conceitos, problemas e soluções filosóficos tradicionais. Pois o problema do discurso fenomenológico, a saber, a possibilidade de dizer a unicidade radical da vida fática, não se confunde com o problema da relação entre o universal (do conceito teorético) e o particular (da coisa bruta). Que, de fato, não o seja, podemos suspeitar já na compreensão que Heidegger explicitamente nos apresenta de sua própria fenomenologia:

Nenhuma filosofia da mediação entre filosofia enquanto ciência rigorosa e filosofia da visão de mundo; entre validade absoluta – a priori e relatividade histórica; entre racionalismo e irracionalismo; mas recusar as divisões em geral como falsas, há muito desenraizadas e não motivadas radicalmente – intimamente ligadas e mescladas com motivos heterogêneos. (Heidegger, 1993b, p. 175)

Então, para que essa problemática se torne visível em breve de modo positivo, devemos desde já considerar bem de perto duas coisas na "filosofia" heideggeriana: se, por um lado, a) "O que possui caráter semântico, logo, expressão linguística, não precisa sem mais ser pensado teoreticamente ou mesmo de modo objetivo [...]" (Heidegger, 1987c, pp. 116-117), por outro lado, b) "[…] o ser-aí nunca pode ser apreendido como caso e exemplar de um gênero dos entes meramente presentes" (Heidegger, 2001, p. 42). Em outras palavras: nem a expressão conceitual fenomenológica necessita trazer consigo a forma da universalidade (que se refere ao comum de uma multiplicidade objetiva), nem a unicidade de meu ser-aí ocasional pode ser identificada com a mera particularidade factual. Ao enfrentar o problema do modo linguístico de acesso às coisas, Heidegger visava, sem dúvida, ao desenvolvimento de um logos, de um discurso, para a unicidade do existir histórico-fático, mas não a uma "lógica" da individualidade em sentido historiográfico-factual, do que é o caso, pois a "Facticidade não é a factualidade do factum brutum de uma mera presentidade" (Heidegger, 2001, p. 135).

No decorrer de minhas exposições, espero poder mostrar de maneira cada vez mais nítida como se relacionam "linguagem" (sentenças fenomenológicas) e "mundo" (facticidade) na fenomenologia da existência fática e as consequências, a meu ver surpreendentes, dessa relação. Com base nessa análise, deve-se-nos revelar de modo ainda mais aprofundado o motivo daquela reiterada recusa heideggeriana da filosofia enquanto teoria, exposta no início deste artigo. Com isso, confio também podermos criar condições para uma determinação relativamente precisa do significado desse tipo de investigação e de seu lugar na história do pensamento. É evidente que parto do princípio de que, ainda nos dias que correm, não sabemos ao certo o que é a fenomenologia hermenêutica, nem o lugar que esta ocupa no todo da história do pensamento ocidental, e, por isso mesmo, dispomos ainda menos de suficiente compreensão para o que, com base nela, podemos fazer, isto é, de que maneira, com ela, devemos dialogar. Essa incompreensão chega tão longe, que, mesmo um filósofo como J. Habermas, a quem devemos – além de suas conquistas no campo da filosofia, ciências sociais e políticas contemporâneas – interpretações do pensamento fenomenológico não apenas precisas e bem fundamentadas, mas, sobretudo, produtivas, pôde escrever que: "O fato de os fenomenólogos ainda não terem engendrado o seu 'pós' os torna quase suspeitos!" (Habermas, 1990, p. 11). Uma filosofia pós-fenomenológica seria, entretanto, tão ou até mais suspeita que a compreensão da fenomenologia enquanto uma filosofia ou uma escola filosófica que pudesse, justamente por ser uma entre outras filosofias dadas, engendrar o seu "pós". Tomando direção contrária, tento mostrar por que a fenomenologia existencial, como Heidegger a compreende e indica de maneira vaga, não é filosofia alguma. E que, portanto, uma filosofia ou mesmo um pensamento pós-fenomenológico só poderia ser fruto de uma incompreensão. Voltaremos ao tema, pois é o que este artigo, no fundo, visa.

Importante agora é atentar para o que segue: desde cedo, estava claro para Heidegger que a cronogenética fenomenológica da existência – assumindo como ponto de partida a significatividade elementar do "eu" histórico acima descrita (cuja "unicidade" ainda carece de interpretação suficiente) – jamais poderia ser levada a cabo como uma teoria do existir constituída por categorias, ou seja, a explicação ou esclarecimento demonstrativo dos casos factuais particulares por meio da fixação conceitual de suas propriedades essenciais (isto é, universais), articuladas hierarquicamente no interior de uma complexa conexão coerente de fundamentações (Begründungszusammenhänge). Então, se a) travar uma luta contra a filosofia significava combater o primado do teorético, combater esse primado, por sua vez, significava b) recusar a universalidade conceitual própria do uso filosófico-científico (teorético) da linguagem, assim como sua estrutura proposicional. Fenômenos da vida histórica, isto é, fenômenos cujo modo de ser é acontecimento, não se deixam expressar segundo o modelo da atribuição de propriedades, e é indiferente que estas propriedades colhidas pelo discurso sejam acidentais ou essenciais. Discurso fenomenológico-hermenêutico não se deve constituir, portanto, nem como uma lógica da essência, nem como uma lógica da "existência", em sentido clássico. A generalidade rígida ou laxa não mostra, mas oculta, vela, a existência histórica para si mesma em seu caráter de ocasionalidade e minheidade. Por isso, a mostração do sentido acontecencial (temporal) da vida fática depende diretamente da liberação dos conceitos e sentenças de sua função lógico-teorética essencialmente definitória: "Na filosofia não há definição alguma, pois nela não há nenhum objeto […]" (Heidegger, 1993a, p. 150). Ao combate contra o essencialismo e o infrutífero da objetificação, correspondia o ataque ao caráter universalista e predicativo da linguagem filosófica, caudatário, talvez, daquela ânsia de generalidade, para usar outra expressão de Wittgenstein.

A questão metodológica da hermenêutica da facticidade poderia ser reconstruída, grosso modo, por meio das seguintes formulações: como é possível dizer a unicidade da vida fática de tal maneira, que esta se mostre vívida no conceito e enunciado? Como deixar que a significatividade elementar implícita na unicidade do acontecimento de caráter temporal de minha existência sobreviva explicitamente na expressão linguística? Para essas perguntas, a trama conceitual universalista da tradição filosófica e seu modelo lógico-proposicional não poderiam prestar auxílio. Então, como certa feita se apresentou o estado da investigação para Kant, "[...] aqui vemos nós a filosofia posta de fato numa situação melindrosa, situação essa que deve ser firme, sem que possa encontrar nem no céu nem na terra qualquer coisa que se agarre ou em que se apoie" (Kant, 2000, pp. 64-65). E é por encontrar-se sem nenhum apoio, que o "filósofo" justifica-se logo no início do tratado "O conceito de tempo":

A torpeza das formulações no tratado que segue tem seu fundamento, em parte, no tipo de investigação. Uma coisa é relatar narrativamente sobre o ente, outra, é apreender o ente em seu ser. Frequentemente faltam não apenas as palavras, mas sobretudo a gramática. A linguagem possui a tendência primária de discutir e expressar o ente, não conceder descerramento sobre seu ser. (Heidegger, 2004, p. 16)

Deparando já muito cedo com uma extrema dificuldade metodológico-linguística apontada por Karl Jaspers em sua Psicologia da visão de mundo (1919), a de que "O todo da vida, a vida mesma, é algo do qual não podemos falar diretamente" (Heidegger, 1989, p. 24; grifo meu), Heidegger se viu repentinamente arremessado pelas próprias coisas contra a rocha de um problema filosófico cardinal, a saber, o problema "[...] do que pode ser expresso por proposições – isto é, pela linguagem – [...] e o que não pode ser expresso por proposições, mas apenas mostrado [gezeigt] […]" (Wittgenstein, 1980, p. 252). E o foi de maneira tão violenta, que todas as suas indagações existenciais e tentativas de resposta estão conscientemente, mas nem sempre de modo explícito11 (Papenfuss & Pöggeler, 1990, p. 36), transpassadas pela crítica dos poderes e limitações de nosso dizer.

Não se impunha, porém, agora a tarefa de construir uma nova língua para a fenomenologia hermenêutica, forjar para si mesma sua própria matéria conceitual – uma outra rede terminológica e, quiçá, outra gramática (tarefa, ademais, impossível). Também não se exigia, primariamente, prover novos significados para o acervo das palavras filosóficas fundamentais disponíveis, legadas pelas diversas ontologias dadas na história.12 No início do século XX, Martin Heidegger viu-se diante da necessidade de alterar radicalmente a maneira pela qual compreendemos conceitos e sentenças em "filosofia", ou, pelo menos, como devemos compreender aqueles conceitos e sentenças tomados para "designar" a estrutura ontológica da facticidade concreta histórica. Por isso, previne os ouvintes de seu curso de verão de 1921, intitulado "Introdução à fenomenologia da religião", de que "[…] nós devemos observar que a compreensão de conceitos filosóficos [fenomenológicos] é outra que a dos conceitos científicos [teoréticos]" (Heidegger, 1995a, p. 4).

No interior do desenvolvimento de tal "compreensão outra" está encerrada a verdadeira γιγαντομαχία que tacitamente impulsionava aquela fenomenologia extremamente heterodoxa. Foi justamente essa reflexão de caráter marcadamente metodológico-linguístico que deu origem à conhecida distinção entre existenciais (Existenzialien) e categorias (Kategorien),13 "[...] as duas possibilidades fundamentais de caracteres ontológicos" (Heidegger, 2001, p. 45), introduzida logo no início da primeira seção do tratado Ser e tempo sem discussão ulterior suficiente, e em direção à qual, de maneira lenta, caminhamos rumo a um entendimento relativamente seguro. Compreender essa distinção, em sua radicalidade e originalidade, é compreender o método fenomenológico tal qual Heidegger parece tê-lo compreendido em toda sua produtividade e, ao mesmo tempo, a abertura para uma possibilidade de apropriação compreensiva de minha própria existência com base em quaisquer de suas manifestações, tal qual eu, e apenas eu mesmo, posso compreendê-la. Em que sentido escrevo isso, e que o pensamento de Heidegger assim interpretado não o torna refém, nem a nós, de qualquer espécie de relativismo epistemológico solipsista, espero tornar claro no que segue. Até o presente momento, isto é o pouco que tenho em mãos: método fenomenológico, visualizado "negativamente", é uma profilaxia. "Positivamente", um apelo direcionado à minha vida fática concreta ocasional: "Rumemos ao único! Experiência 12 Modificação que ocorre com certa frequência nas composições dos tratados heideggerianos, por exemplo, com os termos clássicos "Existenz" (existência), "Wesen" (essência), "Sorge" (cuidado), "Wahrheit" (verdade), "Dasein" (ser-aí), "Rede" (discurso), "Welt" (mundo), "Transzendenz" (transcendência), etc. 13 "Todas as explicações que resultam da analítica do ser-aí são conquistadas com base na estrutura da existência. Porque são elas determinadas com base na existencialidade, nós chamamos os caracteres ontológicos do ser-aí existenciais. Eles devem ser nitidamente separados das determinações ontológicas dos entes que não possuem o modo de ser do ser-aí, que nós chamamos categorias" (Heidegger, 2001, p. 44). fundamental da existência" (Heidegger, 1993b, p. 197).

 

4. Falar sobre a fenomenologia hermenêutica de maneira negativa, do que ela não é e não pode ser, contra quem ou contra o que ela se levanta e como exatamente o faz, possui sua própria necessidade. Essa perspectiva exegética, até o momento dominante neste artigo, poderia estender-se indefinidamente, com ampla base nas obras tanto de juventude quanto de maturidade do próprio autor. Pois essa é a perspectiva predominante em seus escritos. A necessidade do momento negativo, não apenas para uma caracterização conceitual externa da analítica existencial do ser-aí, mas enquanto constituinte de sua própria concreção e possibilidade como investigação "filosófica", parece ser o ensinamento fundamental que a hermenêutica da vida fática recebeu da dialética hegeliana.14 Em todo caso, explorarei a partir de agora o caminho positivo de caracterização do pensamento de juventude de Heidegger. Elaborarei seus traços principais de modo esquemático e somente na medida em que atendam aos interesses do presente artigo, focando em seu trabalho acadêmico de habilitação, intitulado "A doutrina das categorias e do significado de Duns Scotus" (1915).

Escrito sob evidente fascínio pelas Investigações lógicas (1901) de Husserl, questiona o candidato ao título, por meio de uma terminologia que aos leitores mais experientes de suas obras soará inevitavelmente estranha, o seguinte: "Que haja um setor da realidade, mais ainda, que está dado em sua multiplicidade, não se deixa provar aprioristicamente pelo caminho dedutivo. Factualidades deixam-se apenas mostrar. Qual o sentido desse mostrar?" (Heidegger, 1978, p. 213). Em 1915, o jovem filósofo não dispunha dos meios para responder a essa questão de maneira satisfatória. Faltava-lhe ainda uma compreensão rigorosa dos fenômenos da vida fática em sentido estrito (e, portanto, da própria fenomenologia enquanto método de análise existencial); uma determinação decisiva que encontra em Ser e tempo, mas também já em "Ontologia. Hermenêutica da facticidade" (Heidegger, 1988, p. 67), seu desenvolvimento pleno: "Como significado da expressão 'fenômeno', deve se manter, portanto, o que se mostra em si mesmo, o que se revela" (Heidegger, 2001, p. 28). Fenômenos revelam-se, porém, em determinado "espaço" ou "elemento" de manifestação, elemento em que (Worin) podem vir a manifestar-se com base em si mesmos como são em si mesmos (fenômeno em sentido fenomenológico), ou como aquilo que em si mesmos não são (mera aparência), apresentando formas mistas (Heidegger, 2001, pp. 28-31). Este elemento em que é a própria abertura (Erschlossenheit) do ser-aí: existência (Heidegger, 1996a, pp. 132 e ss.), "lumen naturale" pelo qual o ente na totalidade e cada ente intramundano se desvela, ou seja, é e lhe vem ao encontro. E, assim manifesto, está agora exposto ao acerto e ao erro de nossos julgamentos sobre as percepções sensíveis, apreensões intuitivas e determinações conceituais; "Aparência é uma modificação do que se revela [...]" (Heidegger, 1979, p. 112).

O ser-aí, entidade ontologicamente constituída por abertura, acontece, contudo, como tal enquanto aberto para si mesmo, e assim, entre o todo dos entes, aquele que, pelo menos enquanto vive no modo de ser da existência, é ele mesmo. Só um ente para si mesmo aberto, isto é, constituído pelo modo de ser da simesmidade, diz: eu sou, tu és, ele é, ela é, nós somos: "Apenas porque sou um si-mesmo existente, sou eu um possível tu para um outro enquanto si-mesmo" (Heidegger, 1989, p. 422). A simesmidade, como (Wie) da existência fática, é, por isso, a própria origem ontológico-existencial do ego e de suas possibilidades relacionais, e, portanto, ente capaz de uma existência compartilhada com outros em um mundo público (Heidegger, 1990, p. 240). A unicidade do ser-aí não descansa, portanto, sobre a identidade formal do ente meramente presente (Vorhandenes) consigo mesmo: A = A. E, no "Princípio da identidade" (1957), o pensador avalia: "Mesmo na fórmula melhorada 'A é A', manifesta-se apenas a identidade abstrata" (Heidegger, 2006, p. 35). Heidegger sabia que esta determinação metafísica, assim como toda e qualquer determinação conceitual formal que traz consigo o status de princípio universal – por exemplo, o par conceitual "forma e matéria" (Heidegger, 1977, pp. 11-16) –, pode ser atribuída a toda entidade de maneira independente de seus modos de ser. E determinações conceituais que, por meio de um esclarecimento teorético distanciado, nos auxiliam a apreender qualquer ente em seu ser são, em uma palavra, contrafenomenológicas. "Contra", porque abstratas; abstratas, porque teoréticas ao extremo, porque extremamente teoréticas, radicalmente distanciadas e, por isso, nunca genuinamente existenciais. Ontologicamente, o ser-aí enquanto é sempre ele mesmo a-cada-vez na facticidade da situação não se confunde com o indivíduo factual a si mesmo idêntico: Eu = Eu.

O acontecimento da simesmidade, originado na abertura compreensiva do ser-aí, é um como do existir fático, não seu conteúdo quididativo, não sua constituição substancial ou transcendental. A sentença "eu sou eu mesmo", fenomenologicamente enunciada, significa o acontecimento de um (auto)pertencimento ontológico, de uma apropriação, ou, se quisermos, sou, enquanto si-mesmo existente, o "acontecimento-apropriativo" (Ereignis). Não uma coisa, nem relação entre coisas, nem mesmo a própria relação. Estou para mim mesmo manifesto no como de um pertencer a mim mesmo e tenho a mim mesmo a-cada-vez na experiência de meu próprio ser histórico concreto que perfaz a situacionalidade incontornável de meu existir ocasional. Unicidade do ser-aí, portanto, quer dizer simesmidade enquanto o acontecer do ter-a-si-mesmo (Sich-selbst-haben) (Heidegger, 1993a, pp. 246 e ss.), e não a particularidade factual da coisa bruta metafisicamente determinada pela identidade formal consigo própria. Uma pedra ou uma besta, por exemplo, entes que não possuem o modo de ser da simesmidade, ou seja, que não têm nem podem ter a si mesmos em uma abertura que lhes seja constituinte, não podem não ser eles mesmos, como nós sempre podemos e, na maior parte das vezes, segundo Heidegger, somos e permanecemos sendo. E, ao contrário de nós, que sempre podemos, a pedra e a besta não podem dizer "eu sou", "tu és", "nós somos". Pedras e bestas nunca são elas mesmas, pois não podem se ter, e, porque não o podem, não podem ser, para alguém que não elas próprias, como um outro, nem, muitas, podem ser como um nós, ou seja, pedras e bestas, em sentido rigorosamente fenomenológico-existencial, não existem.

Talvez possamos ver agora com maior nitidez por que ser-o-acontecer-do-meu-próprio-aí-a-cada-vez resiste às generalizações teoréticas. Não porque possui o modo de ser do indivíduo, que jamais encontrará expressão de sua individualidade objetiva bruta por meio de um conceito, cuja forma é necessariamente universal – essa espécie de impossibilidade pressupõe uma ontologia e um sistema categorial para um ente cujo modo de ser é mera presentidade. Mas porque, não sendo de modo algum um ente meramente presente, porém um ente cujo modo de ser é o acontecimento-apropriativo (o acontecer do ter-a-si-mesmo), não possui propriedade alguma; nem propriedades particulares nem universais que podem ser constatadas como meramente presentes ou meramente ausentes "nisto aí" que é o caso, pela intuição, representação ou afiguração. A unidade de como tenho sido, como sou e como posso ser reside em como aconteço enquanto me tenho, e é me tendo que sou eu o mesmo na multiplicidade ocasional que perfaz meu existir de fato. Poder expressar a facticidade em seu sentido profundamente acontecencial, isto é, temporal, é poder dizer, portanto, como ela é. A língua da fenomenologia hermenêutica não tem nada a dizer sobre o que (Was) em geral é a vida fática (isso é assunto das diversas teorias filosóficas e científicas), mas somente como somos nosso próprio aí. Por isso, lemos nos "Prolegômenos à história do conceito de tempo" (1925): "Não deve ser determinado nenhum aspecto deste ente, mas, desde o início e a cada passo, unicamente seus modos de ser, não no que ele consiste, mas o como de seu ser e os caracteres desse como" (Heidegger, 1979, p. 207).

Apoderar-se originariamente da origem viva da vida histórica com base em suas 56 concreções situacionais, expressando-a vívida em conceitos e sentenças, consistia, pois, na mostração pré-teorética do conteúdo-modal (Wiegehalt) dos fenômenos vitais com base em suas variadas manifestações, e não a determinação de seu conteúdo-quididativo (Wasgehalt) universal por intermédio de definições teoréticas objetivas. Porque a "filosofia" fenomenológica hermenêutica nunca procurará, e por isso mesmo jamais encontrará, determinadas propriedades discursando teoreticamente sobre o ente que nós mesmos somos, ela terá por meta não esclarecer ou explicar, mas somente agudizar ou agravar a experiência que a vida fática, enquanto minha, já sempre faz de seu próprio "como sou" e, com base nisto, isto é, com base em meu próprio aí que se me revela na (auto)experiência concreta do acontecimento de um pertencimento, arrancar seu sentido ontológico-temporal.

Esta agudização não é nenhum conteúdo quididativo, mas um conteúdo modal, no qual pode repousar qualquer conteúdo quididativo diverso. Este conteúdo modal não é uma invenção ou abstração teorética, um modo de esclarecimento, mas algo que, enquanto "conteúdo", é experienciado não teoreticamente, excepcionalmente cunhado no encontro vivaz com pessoas significativas: artistas, pesquisadores, santos, mas também na conduta de qualquer um no mundo da vida experienciável, na história, na apresentação artística literária [...]. A vida mostra e oferece conteúdos experienciáveis que nós assinalamos como conteúdos modais, porque eles, assim como a agudização, não estão ligados a um determinado conteúdo quididativo, porém este consiste naquele, na forma em "como" se dá, um modo fático, no qual transcorrem faticamente experiências, um ritmo funcional, que a vida fática mesma cunha, arranca de si. (Heidegger, 1993a, p. 85)

Como podemos ver, a expressão pré-teorética da facticidade em sua origem, compreendida como agudização (Zugespitztheit) dos conteúdos-modais experienciados pelo próprio existente em sua existência histórica, não está de modo algum restrita à pesquisa fenomenológica, nem surge pela primeira vez em qualquer modalidade de pesquisa filosófica. Algo aqui soa familiar: manifestações, ou seja, fenomenalizações agudas do como da vida fática expressas em toda sua vivacidade pelos "artistas, santos, pesquisadores", o ser-aí mesmo que se agudiza como arte, como religião e como ciência. Está implícita, na passagem supracitada, aquela que me parece ser a tese "semântica" fundamental dessa "fenomenologia do espírito" heideggeriana, que, ao mesmo tempo, é condição concreta e origem da própria fenomenologia como método de investigação da existência: a vida fática possui em si mesma o caractere da significatividade (Bedeutsamkeit). O ser-aí tem a si, seu "mundo" e seu ser-no-mundo (In-der-Welt-sein) significativamente. Significatividade é um como do próprio existir. E isso escreve Heidegger explicitamente: "'Eu mesmo' sou uma conexão coerente de significatividade na qual eu mesmo vivo" (Heidegger, 1993a, p. 248). Em outras palavras, vivo uma vida em si mesma significativa, pois sou como sou no modo de ser da compreensão (Verstehen): "O caractere da significatividade indica que a vida não flui como uma torrente surda […] mas que é compreensiva" (Heidegger, 1993a, p. 231). Vivo na compreensão de minha própria vida como a-cada-vez-minha na mobilidade, na "rítmica", das situações concretas; conexão coerente de conteúdos-modais significativos nunca apreendidos reflexivamente, mas significatividade, antes de tudo, vivida. Compreensão é o modo de ser da vida humana, pois esta é, em si mesma, um acontecimento de caráter semântico.

Esta compreensão, que cresce na interpretação, é completamente incomparável com o que de vez em quando é chamado um comportamento cognoscitivo diante da outra vida, ela não é de maneira alguma um comportar-se com... (intencionalidade), mas um como do ser-aí mesmo, terminologicamente deve ser antecipadamente fixado enquanto o estar-desperto do ser-aí para si mesmo. (Heidegger, 1988, p. 15)

Radicalmente distante do paradigma filosófico racionalista, compreensão é fixada como o estar-desperto do ser-aí para si mesmo. Guardemos isto. Nesta semântica existencial heideggeriana, porém, significado não é aquilo que, na compreensão, é compreendido. Compreendido na compreensão é o ente ele mesmo no sentido de... (cf. Heidegger, 2001, p. 151). Eu tenho o ente que eu mesmo sou e os entes que eu mesmo não sou, no como de uma compreensão. Enquanto modalidade ontológica-existencial da própria vida concreta, ter-a-si-mesmo significativamente, isto é, de modo compreensivo, será o impulso, o motor fundamental de todo pensamento fenomenológico hermenêutico. Somente por isso, Heidegger afirma que "A experiência filosófica da vida mesma é motivada, para a filosofia, a partir da vida mesma" (Heidegger, 1993a, p. 253). Uma vez que o fenômeno do ter-a-si-mesmo no como de uma compreensão perfaz todos os momentos constitutivos de meu próprio ser-aí fático, aquela específica possibilidade existenciária de ter-a-si-mesmo na expressão (ou seja, compreensão "filosófica"), enquanto tarefa de apropriação fenomenológica da vida humana com base nela mesma, por ela mesma, para ela mesma, nada mais significa que a elaboração conceitual explícita de uma compreensibilidade estrutural residente, sempre implícita e latente, no próprio acontecer compreensivo-significativo que é minha existência fática mundana.

A fenomenologia hermenêutica está, portanto, de ponta a ponta, em cada detalhe de suas escolhas terminológicas, questionamentos, assim como de suas respostas, concretamente motivada pela própria significatividade vivida no acontecimento compreensivo que constitui o meu próprio viver concreto histórico. Por isso, caracteres de acontecimento só encontrarão expressão linguística apropriada nas funções semânticas aderidas às conexões coerentes de significação já viventes e pulsantes na minha própria vida concreta "individual" e coletiva, e nunca por meio de uma análise sistemática dirigida pela universalidade conceitual, ou seja, por meio de uma conexão coerente de fundamentações realizada no comportamento teorético de caráter definitório, necessariamente distanciado da vida. Nisto reside o papel do que gostaria de chamar empiria fenomenológica. Sua função dentro da hermenêutica da facticidade está absolutamente distante de qualquer ramo de uma teoria do conhecimento possível:

Assim o que possui caráter semântico, expressão linguística, não precisa sem mais ser pensado teoreticamente ou mesmo de modo objetivo, porém é originariamente vivencial, originariamente pré-aderido ou aderido ao mundo. As funções semânticas pré-aderidas ou aderidas ao mundo têm em si o essencial de expressar os caracteres de acontecimento [Ereignischaraktere], ou seja, elas [...] vão junto com o vivenciar, vivem na vida mesma, e assim indo junto com, são elas ao mesmo tempo as originadas e que portam em si a origem. O que se apodera, que leva junto consigo mesmo o vivenciar da vivência, é o compreensivo, a intuição hermenêutica […] (Heidegger, 1987c, pp. 116-117)

A expressão "intuição hermenêutica", que designa a própria origem vital dos conceitos e proposições fenomenológicas, surge em 1920 para não mais voltar. No que se refere ao caráter genuinamente "filosófico" de (auto)apropriação da vida fática, o mais importante foi conquistado: "Na compreensão fenomenológica, a vida tem a si mesma na expressão semântico-genética de sua origem" (Heidegger, 1993a, p. 185). Mas em que consiste exatamente tal expressão semântico-genética da origem da vida fática chegará até Ser e tempo, e, provavelmente, perpassará todas as análises existenciais, ainda que de maneira tácita: expressões fenomenológicas "[…] apenas assinalam certos fenômenos, elas indicam um setor concreto, elas têm, por isso, uma caráter meramente formal (sentido da indicação formal)" (Heidegger, 1993a, p. 248). É nessa passagem da preleção de 1919, juntamente com os "Apontamentos à Psicologia da visão de mundo de Karl Jaspers" desse mesmo ano, que testemunharemos emergir pela primeira vez a expressão indicação formal (formale Anzeige) no trabalho preparatório de busca pelo modo de expressão genuíno dos fenômenos existenciais, não acidentalmente ao lado do esforço pela destruição crítica do primado da objetivação e da teoria. Damos, neste ponto, mais um pequeno e importante passo: se, como vimos, a) travar uma luta contra a filosofia significava combater o primado do teorético, e b) combater esse primado, por sua vez, significava recusar a universalidade conceitual própria do uso filosófico-científico (teorético) da linguagem assim como sua estrutura proposicional, então c) "Deva a posse [das coisas] ser principial [originária], então o objeto da definição filosófica deve vir à compreensão de maneira formal-indicativa" (Heidegger, 1994c, p. 59).

5.

Como a função formal indicativa da terminologia e sentenças fenomenológicas deve ser compreendida, é atualmente um dos mais importantes temas de estudos da literatura filosófica em torno das obras heideggerianas. Este "instrumento" linguístico – ou, melhor dizendo, essa proposta de transformação de nossa compreensão dos conceitos "filosóficos" – é de máxima importância não somente para o entendimento estrutural da própria fenomenologia hermenêutica, de suas pretensões e do sentido de suas descrições, assim como de sua posição na história do pensamento, mas, principalmente, para uma investigação independente a respeito das potências da linguagem; uma proposta alternativa que abriga possibilidades muito amplas de diálogo com o verdadeiro mundo que se abriu com essa tradição filosófica contemporânea multifacetada que chamamos "filosofia da linguagem". Todo intérprete tem seu próprio objetivo ao investigar o papel das indicações formais no pensamento de Heidegger. Para uma exposição suficiente a respeito desse tema, remeto aqui aos cuidadosos estudos de R. J. A. van Dijk (1991), T. C. W. Oudemans (1990), Eric Sean Nelson (2006), Theodore Kisiel (2006) e P.-L. Coriando (1991). No Brasil, as publicações de Róbson Ramos dos Reis (2004) e Luiz Hebeche (2001) contêm elementos importantes para a clarificação do pensamento fenomenológico hermenêutico no que se refere ao uso das indicações formais. Em todo caso, o caráter formal-indicativo da fenomenologia hermenêutica fora ressaltado já bastante cedo por O. Pöggeler (1963, pp. 269-280; p. 296), em seu livro sobre o caminho de pensamento de Heidegger, obra que em nossos dias se tornou referência obrigatória. As perspectivas desses intérpretes trazem-nos compreensões profundas das investigações metodológicas das obras de juventude desse pensador. Ainda que eu me dedique agora ao mesmo tema, tenho aqui minha própria meta: mostrar que o desenvolvimento de uma compreensão alternativa de expressões linguísticas na fenomenologia, por meio da elaboração do que Heidegger nomeou "indicações formais", além da ser um necessidade provinda da coisa mesma, guarda uma profunda ligação com o debatido tema do fim da filosofia.

Mas o que é uma indicação formal? Na preleção já citada "Introdução à fenomenologia da religião", há um capítulo inteiro (infelizmente interrompido), intitulado "Formalização e indicação formal", reservado para discussão do problema do método e discurso na fenomenologia. Apresentado como fase preparatória para as análises do fenômeno da vida religiosa, ali escreve Heidegger:

Nós chamamos a "indicação formal" o uso metódico de um sentido condutor para a explicação fenomenológica. Os fenômenos são visualizados em ligação com aquilo que o sentido formal indicativo traz em si […] O problema da "indicação formal" pertence à teoria do método fenomenológico mesmo [...]. (Heidegger, 1995a, p. 55)

Não é acidental que essa "teoria" do método e expressão fenomenológicos, girando em torno da indicação formal, se desenvolva com base em um diálogo profilático, quer dizer, crítico destrutivo, com Husserl, e certamente por este se constituir como ponto de vista aparentemente afim. Essa aparência de afinidade, encontramo-la nas "Ideias para uma fenomenologia pura e uma filosofia fenomenológica" (1913). Ali, ensina o criador dessa "corrente" de pensamento: "A subsunção de uma essência sob a universalidade formal de uma essência puramente lógica não deve ser confundida com a subsunção de uma essência sob seus gêneros essenciais mais elevados" (Husserl, 1976, p. 32). Dito positivamente, isso significa: universalização formal (Formalisierung) é fundamentalmente distinta da universalização genérica (Generalisierung). Enquanto a generalização brota de determinado setor da realidade, ou seja, é motivada com base nas regiões das coisas, a formalização brota de uma simples relação atitudinal (Einstellungsbezug). Ela é livre das circunstâncias e coisas concretas. Para ver a essência puramente lógica (formal) de um objeto, devo fazer vista grossa para seu conteúdo quididativo (Wasgehalt) e ver que o objeto é simplesmente algo dado (Gegebenes), autodoado na consciência intencional, apreendido em uma atitude de caráter espontâneo. A determinação formal arrancada de uma relação atitudinal com o objeto enquanto dado é, em sentido fenomenológico husserliano, a própria essência do teorético.

Gostaria, nesse ponto, de destacar, de modo simples e direto, apenas aquilo que para nós interessa, e, principalmente para Heidegger, interessava: a recusa profilática do momento comum nas determinações lógicas citadas: "O comum na formalização e na generalização é que elas repousam no sentido do 'universal', enquanto a indicação formal não tem nada a ver com universalidade. O significado de 'formal' na 'indicação formal' é mais originário" (Heidegger, 1995a, p. 59). Em que sentido o "formal" fenomenológico hermenêutico é "mais originário" que o fenomenológico teorético, não é dito. Mas algo importante surge ainda nesta preleção: "Ela [a indicação formal] tem o significado de pôr em condições, de preparar, a explicação fenomenológica" (Heidegger, 1995a, p. 64). Será nas "Interpretações fenomenológicas de Aristóteles", na qual a expressão "indicação formal" está definitivamente fixada, que obteremos esclarecimento mais preciso: "O 'formal' não é 'forma' e indicação seu conteúdo, mas 'formal' é o ponto de partida de determinação; tem o caráter de ponto de partida!" (Heidegger, 1994c, p. 34). Segundo o exposto, a indicação formal apenas sugere, assinala, põe na pista, dos fenômenos vitais: "Por isso é particularmente difícil introduzir-se no método filosófico. Ele deve trabalhar com sugestões […]" (Heidegger, 1993a, p. 239).

Se conceitos fenomenológicos, porém, são indicações formais sugestivas (enquanto ponto de partida de uma mostração essencialmente não definitória), são o que são para, partindo deles, seguirmos em frente e apropriarmo-nos de seu conteúdo. E justamente aqui se anuncia o conteúdo surpreendente do conceito fenomenológico: "O conteúdo é tal, cuja apropriação é uma tarefa de realização concreta própria. Seguir a indicação quer dizer: trazer esta tarefa concreta para o olhar; perseguir o que conta para algo aqui, e que é importante" (Heidegger, 1994c, p. 61). O conteúdo objetivo não está dado já com o conceito, isto é, ele não nos entrega, por si mesmo, um "objeto" designado. Isso é manifesto, pois já sabemos que para a fenomenologia hermenêutica não há objeto algum! O conteúdo da expressão fenomenológica formal-indicativa só pode ser encontrado por meio de uma tarefa de realização (Vollzugsaufgabe). Mas o que há para realizar aqui? Realizar uma simples palavra ou conjunto de palavras? O problema da indicação formal resume-se, então, em "como fazer coisas com palavras"? Não. A pragmática fenomenológico-semântica de Heidegger parece ir mais longe. Uma vez que vivo implicitamente os conteúdos-semânticos-modais formalmente indicáveis já no acontecimento da minha própria vida fática, compreender o conteúdo de um conceito fenomenológico, realizando-o, quer dizer, simplesmente, vivê-lo!

Mas o que diz viver em sentido estritamente existencial? Sabemos: viver como humano é viver no como da compreensão. Compreensão, por sua vez, foi fixada como o estar-desperto do ser-aí para si mesmo. Então, realizar o conteúdo-modal desta espécie de conceito, vivendo-o, significa vivê-lo concreta e explicitamente no estado agudo de vigília. Agudizar meu próprio como compreensivo dentro de um contexto conceitual é tornar-me desperto e atento para mim mesmo em cada "canto" de meu existir "pessoal" e coletivo, enfim, permanecer, de fato, diante de mim mesmo, com os outros e junto ao ente intramundano, acordado. Compreender originariamente minha vida fática é, pois, vivê-la de modo agudo. Isso de alguma maneira diz que, para Heidegger, o ente que eu mesmo sou, de início e na maior parte das vezes, dorme, isto é, tende a não se compreender como ele mesmo é, tende a velar-se para si mesmo, e nesse velamento arraiga sua existência de maneira total.15 Compreender fenomenologicamente é situar-se na contracorrente de um (auto)velamento. Diante disto, proponho: fenomenologia hermenêutica não é uma filosofia, não deve ser compreendida como uma teoria sobre o existir humano. .Fenomenologia hermenêutica é uma práxis existencial, um exercício de apropriação compreensiva concreta do existir fático, por ele mesmo, para ele mesmo. Existência essa que, de início e na maior parte das vezes, não se tem propriamente, isto é, que tem a si mesmo no como de uma compreensão imprópria. E, enquanto tal práxis compreensiva concreta, ela é uma terapêutica da facticidade

Que essa interpretação do pensamento fenomenológico com base na análise sucinta do discurso existencial formal-indicativo não é de modo algum apressada, pode-se atestar na preleção "Fenomenologia da intuição e da expressão", quando o próprio Heidegger acentua que "A função do tornar-atento [Aufmerksam-machen] – da existência pessoal a partir dela e para ela – é codeterminante para a estrutura do conceito" (Heidegger, 1993b, p. 197). E isso porque, ainda antes, já em 1919, estava claro para o pensador que

Ao filosofar – tal como eu [Heidegger] compreendo sua tarefa – cabe apenas o tornar-atento com todo o rigor, e certamente não nas determinações objetivas conceituais e reflexivas das ciências particulares, mas no rigor que está pré-delineado na tarefa e na meta do tornar-atento. (Heidegger, 1993a, p. 188)

Essa meta fenomenológica encontrará sua versão mais precisa, e, a meu ver, definitiva, dois anos após a publicação de Ser e tempo, no tratado "Conceitos fundamentais da metafísica. Mundo. Finitude. Solidão" (1929/30): "[...] isto de que trata a filosofia se abre principalmente apenas em e a partir de uma transformação do ser-aí humano" (Heidegger, 1992a, p. 423). E não é acidental que Heidegger exponha esse caráter terapêutico da fenomenologia no contexto de discussão dos conceitos fenomenológicos enquanto indicações formais:

O conteúdo semântico destes conceitos não intenta e não diz diretamente com o que ele se relaciona, ele dá apenas uma indicação, uma dica a respeito de que o que compreende é requisitado, neste contexto conceitual mesmo, a empreender uma transformação de si mesmo no ser-aí. (Heidegger, 1992a, p. 430)

Enquanto o esclarecimento propiciado pelo conceito científico-teorético efetiva-se com a apresentação discursiva da coisa à distância em sua pura configuração essencial (eidos), ou seja, é discurso proposicional universal sobre... a apropriação compreensiva propiciada pelo conceito fenomenológico hermenêutico nunca está simplesmente dada no próprio discurso; ele indica um modo de ser da vida fática, para que, na vida fática, seja realizada uma transformação do próprio ser-aí que compreende.

O discurso fenomenológico abre, pois, um caminho, através do tornar-atento, para uma tarefa de realização própria de compreensão, partindo da existência humana, que em si mesma acontece concretamente no como de um pertencer a si próprio compreensivo (simesmidade), para uma apropriação compreensiva do existir concreto por ele próprio. Seguindo a indicação formal, abre-se a possibilidade de um ter a mim mesmo em vigília de maneira aguda. Por isso, a sentença fenomenológica nunca discursa sobre... ela exorta para..., a saber, para a compreensão explícita do acontecimento temporal que eu mesmo sou a-cada-vez com base nas conexões coerentes de significação que vivo faticamente nas situações que constituem meu próprio existir. Compreensão essa que eu, e apenas eu, enquanto um si-mesmo desperto e atento de modo agudo, posso realizar. Em "Lógica. A questão pela verdade", essas relatas estão reunidas com total concisão e transparência: "Toda afirmação sobre o ser do ser-aí, toda sentença sobre o tempo, toda sentença dentro da problemática da temporalidade tem, enquanto sentença pronunciada, o caráter da indicação: ela apenas indica ser-aí" (Heidegger, 1995b, p. 410). E uma vez que o ter-a-si-mesmo com base na expressão formal indicativa é originariamente provindo do ter-a-si-mesmo significativo pertencente à própria vida fática, porém, no mais das vezes velado, o "Ter-a-mim-mesmo não é um mirar fixamente o eu enquanto um objeto, mas é o processo de conquista e perda de uma certa familiaridade da vida consigo própria" (Heidegger, 1993a, p. 258). Provocar uma familiaridade comigo mesmo, com minha própria vida, é outra maneira de dizer a meta transformadora, prefiro dizer, terapêutica, das indicações formais. E, somente por isso, a tarefa exortativa da fenomenologia fora descrita de maneira desconcertante em "Conceitos fundamentais da filosofia aristotélica" como uma tarefa de "Plantar […] o instinto para o óbvio" (Heidegger, 2002, p. 6).

Trata-se, pois, por meio da expressão fenomenológica, de simplesmente acompanhar a vida em seu acontecimento significativo: "[...] no estilo fundamental da experiência fática, a tomada narrativa de conhecimento é um pleno ir-junto-com a vida" (Heidegger, 1993a, p. 111). A expressão deve entrar em consonância com a rítmica das vivências, vibrar na mesma frequência que ela, e em sua maior ou menor intensidade de vibração consistirá sua maior ou menor "adequação" aos fenômenos vitais, ou seja, seu maior ou menor poder para exortar à compreensão. E tendo como meta esse tornar-atento, a expressão formal-indicativa, enquanto não discursa sobre..., ou seja, enquanto não é filosófica, enquanto não é teorética, ela nada demonstra, nada regula, nada ordena, nada representa, nada afigura, nada fundamenta e nada "reproduz". A sentença fenomenológica não tem referente direto; a ela não corresponde nada:

Os conceitos da filosofia têm uma estrutura outra que os conceitos objetivos e regulativos. Todos os conceitos têm a função formal da determinação. Mas determinar por meio da expressão não é determinar através de esquemas regulativos. […] Intuições filosóficas não são as mais adequadas se elas reproduzem a ocorrência. (Esta ideia de adequação é transladada desde a esfera do objeto). Adequação da expressão pode estar inteiramente distante de uma reprodução; isto é, distante daquilo que antes de tudo é visto. Nunca se encontra o fenômeno através da compreensão do discurso expressivo. A adequação da expressão determina-se pela originariedade dos motivos que estão vivos na apresentação. (Heidegger, 1993a, p. 263)

Caracteres de acontecimento (fenômenos existenciais) não se tornam visíveis na própria sentença fenomenológica pelo simples fato de os conteúdos-modais não serem expressáveis proposicionalmente. O logos, a "fala" da fenomenologia não tem como referente nada de meramente presente no mundo nem fora dele, não representa ou afigura factualidades empíricas nem as condições a priori de tais factualidades, isto é, não designa estruturas necessárias e universais, seja em sua versão dogmática-substancial, seja em sua versão crítica-transcendental enquanto condição estrutural a priori de possibilidade. Por isso, fenomenologia existencial, enquanto práxis terapêutica da facticidade, pode ser interpretada como uma das formas mais potentes de destranscendentalização do pensamento. Pois seu discurso não é discurso de primeira ordem, de segunda ordem, ou sejam lá quais forem as infinitas ordens através das quais possamos subir cada vez mais alto para tomarmos distância da vida fática. As conexões significativas vitais não são compreendidas na própria apresentação (Darstellung) discursiva, mas são vividas concretamente, através dela, de modo agudo, e, o mais importante,

[...] não enquanto normas e leis, segundo as quais algo se regula, também não enquanto ideias, que são ambicionadas, e não enquanto a priori, que é individualizado, mas vividas na realização da vida fática na existência pessoal assim como na existência coletiva. (Heidegger, 1993b, p. 196)

É somente em virtude de sua função terapêutica de despertar, exortar para uma apropriação compreensiva aguda de mim mesmo, por mim mesmo, que as funções semânticas "aderidas ao mundo" possuem a capacidade de expressar o caráter de acontecimento dos fenômenos existenciais provocando, no "interior" do ser-aí, uma transformação. E, na medida em que aquelas sugerem um caminho para uma apropriação explícita do existir fático histórico por ele mesmo, esta é sempre e apenas possível e provisória.

Não vejo outra possibilidade de tornar mais transparente, senão através disso, aquela tão comentada quanto obscura afirmação de Heidegger em Ser e tempo, na qual expressa que o essencial para a fenomenologia: "[...] não consiste em realizar-se como 'movimento' filosófico. Acima da realidade está a possibilidade. O compreender da fenomenologia repousa unicamente em sua captação como possibilidade" (Heidegger, 2001, p. 38). A mesma concepção de método que, anos depois, no texto autobiográfico "Meu caminho para a fenomenologia" (1963) seria fielmente reproduzida: "[...] fenomenologia, naquilo que lhe é mais próprio, não é nenhum movimento. Ela é a possibilidade do pensamento, que periodicamente se transforma e somente assim permanece, de corresponder ao apelo do que deve ser pensado" (Heidegger, 1976b, p. 101). Captar a fenomenologia como possibilidade significa apreendê-la como práxis terapêutica do ser-aí fático que se põe como tarefa, com base em sua liberdade, o apropriar-se de si mesmo e existir no modo de ser do estar-desperto agudo na facticidade de suas situações para essas situações mesmas. O estar-desperto para si mesmo, ou seja, a compreensão de si mesmo enquanto como originário do ser-aí fático, é a origem e, ao mesmo tempo, é a finalidade última da fenomenologia.

Enquanto possibilidade de autoapropriação, realizável na contracorrente da tendência para o velamento que marca meu próprio modo de ser (Verfallen), a cronogenética fenomenológica formal-indicativa do ser-aí (analítica existencial) não é uma filosofia, nem uma corrente filosófica, nem, primariamente, um método para conhecer objetivamente as coisas em seu ser, ao lado da dialética ou do método matemático-experimental. Como terapêutica da facticidade, ela não se realiza primariamente nas proposições universais ou mesmo ocasionais. Fenomenologia como possibilidade é originariamente um como, um modo de ser possível que pertence à própria vida fática. Por isso, ao estabelecer como tarefa a autoapropriação compreensiva concreta, a protociência é a maior proximidade que a vida pode alcançar de si mesma, pois ela é a "coisa", ela é o "método", ela própria é uma modalidade do acontecimento-apropriativo, ou seja, fenomenologia é um modo de sermos nós mesmos. Uma forma de vida entre as diversas outras formas de vida. Formas outras (por exemplo, a animalidade) que, por princípio, não podem ser trazidas à compreensão por intermédio dos conceitos fenomenológicos formais-indicativos, pois não são, em si mesmas, formas compreensivas de viver. Fenomenologia só compreende o que já é, em si mesmo, como compreensão, só interpreta o que já é, em si mesmo, como interpretação. Por isso,

A relação entre hermenêutica e facticidade não é aqui a relação entre apreensão do objeto e objeto apreendido, pelo qual aquela apenas se mediria, mas a interpretação mesma é um possível e privilegiado como do caráter ontológico da facticidade. A interpretação é um ente que tem o ser da vida fática mesma. (Heidegger, 1998, p. 15)

Notadamente, tudo gira em círculos, mas isso é o essencial. Sabemos, há muito, que essa é a compreensão heideggeriana do pensamento "filosófico": "Então, movimentamo-nos aqui constantemente em círculos. Isso é sinal que nós nos movimentamos no setor da filosofia. Sobretudo um andar em círculos" (Heidegger, 1992a, p. 266). Mas esse círculo não é vicioso, pois tais sentenças não possuem caráter científico-filosófico, isto é, não pretendem representar ou afigurar estados de coisas nem condições transcendentais de possibilidade de estados de coisas. E, portanto, sua serventia terapêutica nos mostra que, se corretamente compreendidas em sua função eminentemente exortativa, cabe, por meio delas, saltar para fora delas. Por esse motivo, convido o leitor a escutar a voz de Heidegger na conhecida fala de Wittgenstein:

Minhas sentenças são esclarecedoras deste modo; que quem me compreende acaba por reconhecê-las como sem sentido; sempre que aquele que as compreenda haja saído, através delas, para fora delas (Deve, pois, por assim dizer, jogar a escada depois de haver por ela subido). Ele deve superar estas sentenças; e então, verá o mundo corretamente. (Wittgenstein, 1984, p. 85)

Mas entenda-se bem: "reconhecê-las como sem sentido", enquanto proposições filosófico-teoréticas, pois não há nada, nenhum estado de coisas, para afigurar; e somente então, "através delas, saltar para fora delas", enquanto proposições filosófico-teoréticas, para, por assim dizer, cair em mim mesmo. E através de tais proposições, nesse retorno atento à minha própria vida fática mundana, a facticidade da situação mostra-se de modo agudo para si mesma, mostra-se "corretamente", isto é, originariamente como ela é. E, se ainda quisermos considerar formal e secundariamente que conceitos e proposições fenomenológicas formam uma espécie de conjunto instrumental utilizado pelos filósofos para a compreensão do ser vida fática, então esse instrumento não tem, nem nunca poderá ter, o modo de ser, por exemplo, de um microscópio, através do qual podemos somente agora ver o que nunca havia sido visto antes, fazer entrar para o campo da visão o que antes não estava aí para o olhar, perscrutar estruturas rígidas, estáveis, que estavam antes completamente cerradas. O "instrumento" fenomenológico, enquanto discurso formal-indicativo, aproxima-se muito mais da serventia de um despertador. Ele exorta cada existência, em sono, para a vigília. E uma vez que a existência se transforma e alcança a condição desperta, a condição diurna, a fenomenologia enquanto um método, enquanto uma filosofia, pode simplesmente desaparecer. Porque, de alguma maneira, já somos a própria fenomenologia, isto é, porque está inscrita em nosso ser-aí como possibilidade, nós, heideggerianos, somos uma impossibilidade. Jogue a escada fora.

 

 

Referências

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Recebido em 01/12/2011.
Aprovado em 10/04/2012

 

 

1 Escreve Husserl: "Certamente descansa na essência da filosofia, na medida em que retorna às origens últimas, que seu trabalho científico movimente-se na esfera da intuição direta, e o maior passo que nosso tempo tem para dar é reconhecer que, com a intuição filosófica em sentido correto, o da apreensão fenomenológica da essência, irrompem um campo de trabalho infinito e uma ciência que, indiretamente, mesmo sem qualquer método matematizante e simbolizante, mesmo sem o aparato das conclusões e provas, alcança uma plenitude de conhecimentos dos mais rigorosos e decisivos para todas as demais filosofias".
2Cuja meta é preparar o terreno para a formulação da questão pelo sentido do ser em geral. Por motivos que não serão tratados aqui, essa meta não pôde ser alcançada por meio das reflexões ontológico-existenciais.
3"Como eu vivencio o circunmundano, me é ele 'dado'? Não, pois o circunmundano dado já está abordado teoreticamente, ele já está afastado de mim, do eu histórico, o 'mundar' [es weltet] não é mais primário. Mesmo que não pareça, 'dado' é já vaga e indistintamente uma verdadeira reflexão teorética [...] A doação significa a primeira abordagem objetificadora do circunmundano" (Heidegger, 1987c, pp. 88-89).
4Com Loparic, afirmamos que o pensamento de Heidegger, tanto em sua "primeira" fase, quanto, obviamente, na "segunda", não deve ser lido com Husserl, mas contra Husserl. No entanto, vale apontar que a simesmidade do ser-aí autoexperienciada (compreendida e interpretada) como subjectum é já originada no comportamento teórico como sua posição prévia, ou seja, o sujeito das vivências intencionais brota do teorético mesmo enquanto forma de vida. Subjetividade é sintoma, e, de fato, "ponto cego", mas não a "doença". O distanciamento da vida não precisa ter o caráter da objetivação em sentido filosófico moderno.
5
"Através da ciência, mundos vitais são tomados em uma tendência de desvitalização" (Heidegger, 1993a, p. 77). O fenômeno da "desvitalização", característico do conhecimento teórico enquanto derivado da vida fática mundana, é visualizado já no início da década de 1920 nas interpretações dos tratados de Aristóteles e expresso na terminologia do tratado Ser e tempo como "desmundanização" (Heidegger, 2001, p. 65).
6
"Em todas as ciências os homens vivem; e decerto vivem de modo sistemático cognoscente aquilo que é vivido de maneira prático-ingênua, em uma determinada perspectiva, alçados a um degrau mais elevado" (Heidegger, 1993a, p. 35).
7 O conceito formal de fenomenologia, tal como apresentado em Ser e tempo.
8
Ereignisdenken – ainda que se desenvolva diversamente a partir da década de 1930 com o difícil "Beiträge zur Philosophie (vom Ereignis)" (1936) – tem seu início já no final do primeiro decênio do século XX.
9
Omito, intencionalmente, na tradução da passagem presente no corpo do texto, o termo "formale Anzeige" [Indicação formal] por preferir introduzi-lo e discuti-lo à frente, em ocasião oportuna.
10 Evito, nesta tradução para o português, por não corresponder a seu significado existencial rigoroso, os termos "indivíduo", "individualidade", e traduzo "Einzeln" e "Einzelheit" por "único" e "unicidade", reservando "singularização" para traduzir "Vereinzelung", e, assim, designar, de acordo com Heidegger, um modo de ser possível de meu ser-aí no qual não me encontro de início e na maior parte das vezes (Heidegger, 2001, pp. 18 e ss., assim como, pp. 263 e ss.).
11 "Eu devia, antes de tudo, me desprender ao extremo do fático para conquistar principalmente a facticidade como problema. Indicações formais, crítica à doutrina habitual do a priori, formalização e coisas semelhantes; tudo está ainda presente para mim, ainda que eu também agora não fale disso."
12 Modificação que ocorre com certa frequência nas composições dos tratados heideggerianos, por exemplo, com os termos clássicos "Existenz" (existência), "Wesen" (essência), "Sorge" (cuidado), "Wahrheit" (verdade), "Dasein" (ser-aí), "Rede" (discurso), "Welt" (mundo), "Transzendenz" (transcendência), etc.
13 "Todas as explicações que resultam da analítica do ser-aí são conquistadas com base na estrutura da existência. Porque são elas determinadas com base na existencialidade, nós chamamos os caracteres ontológicos do ser-aí existenciais. Eles devem ser nitidamente separados das determinações ontológicas dos entes que não possuem o modo de ser do ser-aí, que nós chamamos categorias" (Heidegger, 2001, p. 44).
14
Testemunho está na preleção "Problemas fundamentais da fenomenologia" (1919), na qual Heidegger chega a afirmar, sobre o "Conceito de filosofia. [que] Sua dialética é dia-hermenêutica" (Heidegger, 1993a, p. 262)
15 "Verfallen", um modo de ser no qual o ser-aí encontra-se para si mesmo velado. Não posso desenvolver aqui toda a riqueza metodológica que exerce este existencial, descrito no parágrafo 38 de Ser e tempo.