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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.14 no.2 São Paulo  2012

 

Artigos

 

A função proibitivo-referencial do indício formal

 

The referential-constraining function of the formal indications

 

 

Fábio François M. da Fonseca

Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Lógica e Metafísica da UFRJ
e-mail: fitak7@gmail.com

 

 


Resumo

Este trabalho é parte de um esforço maior para se elucidar em termos claros e precisos o que Heidegger pretende quando propõe que as alegações da analítica existencial devem ser compreendidas como indícios formais. Neste exercício, tento explicar a chamada função proibitivo-referencial dos enunciados formalmente indiciadores. Por tal função, presume-se que o indício formal deixa em suspenso a tendência natural em se compreender os enunciados como correspondendo a objetos e refere de modo não objetificante ao existencial do ser-no-mundo. Não é claro o teor desta referência, uma vez que ela se dá mediante enunciados que têm a mesma forma gramatical dos enunciados ordinários. Tento suprir algumas ambiguidades na "semântica" de Ser e tempo (§ 17) com a noção de remissão (Bezug), que pode ter em vistas tanto o ente na efetividade de seus atributos, como nos enunciados ordinários, quanto o ente em suas possibilidades de ser num todo conjuntural presumido entre os falantes, tal como nas exemplificações pragmáticas, artísticas e poéticas, e nas orientações da manualidade. Minha proposta é que a função referencial do indício formal é um caso de remissão modalizada na possibilidade e consiste numa prescrição hermenêutica específica: tomar o enunciado em suspensão da pretensão de atualidade, e atentar às presunções modais implícitas na compreensão de ser em que ele tem lugar e sentido.

Palavras-chave: Heidegger, indício formal, enunciado, remissão, possibilidade.


Abstract

This work is part of a broader effort to elucidate in clear and precise terms what Heidegger means when proposing that the claims of the existential analysis should be understood as formal indications. In this exercise I try to explain the so named referential-constraining function of statements uttered with this qualification. By this function, it is assumed that the formal indication puts off the natural tendency to understanding statements as corresponding to objects and refers in a non-objectifying way to the existential of being-in-the-world. It is not clear which sort of reference is that, for it occurs trough statements that have the same grammatical form of ordinary ones. I try to overcome some ambiguities in the "semantics" of "Being and Time" (§ 17) with the notion of regard (Bezug), which can be aimed both at the effectiveness of the entity's attributes, as it happens with the ordinary statements, and at the entity in its possibilities of being in a conjunctural whole that is assumed between speakers, as we can see in pragmatic, artistic and poetic exemplifications, and in the "how to" instructions. My proposal is that the referential function of the formal indication is a case of regard in the modality of possibility and comprises a specific hermeneutic prescription: take the statement passing over actuality, and pay attention to the modal assumptions that are implicit in the understanding of being where it takes place and has its meaning.

Keywords: Heidegger, formal indication, statement, regard, possibility.


 

 

"Para desenhar o céu, não é preciso desenhar o céu.
Desenhamos uma ave voando e... o papel é o céu!" Quino,
"Que Presente Inapresentável"

1. Introdução

Para conduzir o questionamento pelo sentido de ser na continência inspirada pela diferença ontológica, ou seja, para perguntar pelo ser sem tomá-lo inadvertidamente como um ente, Heidegger precisa sustentar uma expectativa de verdade que não se resolva na noção tradicional, a correspondência entre enunciado e ente subsistente. Dada a prioridade ontológica da questão de ser sobre todas as outras, esta expectativa peculiar de verdade, em vista da qual o sentido de ser poderia ser devidamente questionado, precisa ser proposta como condição transcendental da noção tradicional de verdade. Esta noção pretensamente mais fundamental de verdade, que Heidegger vai propor sob o termo "desvelamento", parece ter sua plena elucidação condicionada à condução satisfatória da analítica do ente que pergunta pelo ser, o ser-aí (Heidegger, 1927/2006, p. 230).

Seja como for, mesmo como a mera suposição indeterminada de um conceito de verdade que não seja entendido em termos de correspondência categórica entre sentença e estado de coisas, a noção de verdade como desvelamento já mobiliza uma nuvem de problemas que Daniel Dahlstrom reúne sob o que chama de paradoxo da tematização (2001/2009, p. 236), e que de modo geral giram em torno do fato da própria analítica existencial se fazer explicitar por meio de enunciados. Faz-se necessário esclarecer em que sentido peculiar os enunciados de Ser e tempo se pretendem eles próprios verdadeiros.

Alguns comentadores têm julgado encontrar, nas considerações dos cursos da década de 20 a respeito dos chamados indícios formais, o material mais promissor para sustentar que Heidegger não precisa fazer uso em suas alegações da própria noção de correspondência que ele pretende ser derivada e imprópria aos temas que se propõe elucidar, a saber, o sentido de ser e, preliminarmente, o ser-aí (por exemplo, Dahlstrom 2001/2009, Streeter 1997, Reis 2001). De algum modo, os enunciados e conceitos da analítica existencial não teriam um significado objetivo a ser remetido a fatos e coisas determinados, mas funcionariam como meras indicações iniciais para uma tarefa de concretização do seu próprio sentido por parte do intérprete.

Ocorre que o teor dessas passagens, em que Heidegger parece estar ainda esboçando as hipóteses a serem propostas em Ser e tempo, é predominantemente obscuro e pouco conclusivo, o que torna a própria concepção do que seria um indício formal um tema digno de elucidação. De modo geral, Heidegger parece oscilar entre duas ideias não claramente equivalentes: por um lado a pretensão de estar de posse de um recurso epistêmico extraordinário, que seria peculiar e exclusivo da filosofia, e por outro a expectativa de dispor de meios discursivos exortativos que convidariam o interlocutor a converter-se a um modo de existência que por si só instauraria o próprio sentido de verdade como desvelamento ora em questão.

A primeira alternativa é bastante problemática, na medida em que parece vincular a analítica existencial a alguma doutrina da evidência inefável, íntima ou messiânica, e é sobretudo ociosa, pois reincide no paradoxo da tematização. Qualquer compreensão de ser que toma um ente como uma evidência, toma este ente como algo que, uma vez destacado da lida manual e tomado na percepção do ente subsistente, corresponde a um enunciado (Heidegger, 1927/2006, p. 61-62). Se o próprio ser-no-mundo pudesse ser trazido a qualquer tipo de evidência, não haveria por que não presumirmos que esta confirmaria os próprios enunciados de Ser e tempo no sentido tradicional de verdade.

Os comentadores têm optado pela segunda alternativa e procuram superar o sotaque epistêmico. É provável que o próprio Heidegger abrisse mão dele se fosse consequentemente confrontado com os problemas de tal posição. No entanto, por estar fortemente sugerido no modo como Heidegger muitas vezes expressa-se, e de certo modo implicado na concepção de filosofia e de fenomenologia que o pensador cultiva durante o período de elaboração de Ser e tempo, ele não é tão facilmente eliminável e precisa ser expressamente vencido, se a literatura secundária espera obter uma elucidação consequente do caráter formalmente indiciador das enunciações usadas na analítica existencial. A tarefa fica especialmente difícil enquanto não se enfrentar com seriedade o sentido que "indiciar" e os correlatos que surgem nesta discussão, tais como "apontar" e "mostrar", recebem aqui. Sobretudo, é preciso resistir à tentação de dispensar a essas palavras um sentido metafórico e mal explicado em seu alcance e pertinência.

 

2. A Função Proibitivo-referencial

De modo geral, o comentário tem se mostrado confiante em aprofundar o tema dos indícios formais alegando-se duas supostas funções metodológicas, como foram propostas por Daniel Dahlstrom (2001/2009, p. 245): uma função proibitivo-referencial, que apontaria a direção de apropriação do tema e preveniria a tematização precipitada em termos de um ente subsistente; uma função reversivo-transformacional, que conduziria o ser-aí dos interlocutores a superar a imersão na impessoalidade e a assumir suas possibilidades mais próprias de ser. Entretanto, antes de seguir com tais especificações, é preciso perguntar com propriedade o que temos em mente quando dizemos que o indício formal tem "funções". Particularmente é preciso evitar a tentadora imagem de uma palavra-instrumento, cujo proferimento produziria os dois resultados esperados. O perigo de tal imagem é dar a entender que o indício formal é um instrumento concreto e disponível, cuja natureza está claramente definida, e que poderíamos, conforme a ocasião, usar para uma tarefa ou outra, mascarando desse modo a incerteza crucial que ronda o tema. É difícil ter um ponto de partida aqui, enquanto não se souber propriamente se o indício formal é um tipo específico de palavra ou enunciado, ou, ao contrário, apenas um modo peculiar de se usar palavras e enunciados.

Há um sentido matemático para "função" que surpreendentemente pode ser útil aqui. Poderíamos falar de uma regra que, a partir de certa informação ou argumento, prevê um procedimento específico. Podemos propor que o indiciamento formal consiste num procedimento hermenêutico, o qual se articularia em dois passos, correspondentes às funções propostas por Dahlstrom, apropriadamente elucidadas. A plausibilidade dessa hipótese pode ficar por se decidir no exame em pormenor das duas operações, se a partir destas pudermos elaborar uma noção de indício formal que seja consequente para a argumentação de Ser e tempo e que ponha em suspenso o paradoxo da tematização.

No presente artigo, tentarei trazer a termos concretos a chamada função proibitivoreferencial, que supostamente preveniria abordagens que, a pretexto de apreenderem determinações teóricas, prejudicariam o acesso apropriado à peculiaridade do tema da analítica existencial. Num texto prévio a Ser e tempo, Heidegger coloca o problema metodológico que tem em mãos e propõe ele mesmo o que chama então de "função proibitiva": O indício formal tem em si mesmo, junto com seu caráter demonstrativo, um caráter proibitivo. (…) A referência ao caráter proibitivo do indício formal é aqui motivada pelo fato de que os acima mencionados caráteres da ruinância podem ser facilmente tomados como propriedades fixas de um ente, e desse modo, disponibilizados a partir da vida como determinações fundamentais do ser-aí, poderiam instaurar uma metafísica ontológica da vida – por exemplo, no sentido de Bergson ou Shelers. Isso seria um cômodo mal entendido e um uso indevido e fútil dos chamados caráteres da ruinância, já e simplesmente porque tal rotulação isolada "da vida" se desincumbe do contexto de interpretação, e desse modo, da "validade" peculiar e característica da interpretação.

O indício formal impede qualquer manobra de desvio por fixações cegas e dogmáticas do sentido categorial, fixações desligadas da pressuposição, da concepção prévia, do nexo conjuntural e do tempo da interpretação, e que pretenderiam apurar determinidades em si de uma objetividade cujo sentido de ser não foi discutido. (Heidegger, 1994, pp. 141-142)

O que está em questão é o risco de reificação dos existenciais e, com tal advertência, Heidegger quer se distanciar de formalizações de teor estruturalista, que são comuns mesmo na chamada tradição continental. Tratando de estruturas supostamente subsistentes, perdemos de vista que os diversos modos de comportamentos intencionais, e suas sutilezas respectivas, precisam ser considerados na temporalidade histórica em aberto, como possibilidades de ser, perante as quais os debatedores precisam se posicionar em seu próprio ser-aí. Heidegger deixa claro que a possibilidade de tal reificação é tentadora e, por isso, precisa ser prevenida na continência do indício formal. O problema está radicado na forma do enunciado predicativo, que atende a demanda niveladora da impessoalidade. Heidegger precisa evitar a abordagem que é própria ao ente subsistente, e a possibilidade de tal abordagem é constante onde se faz uso de enunciados determinantes.

Porém, como mencionado por Heidegger, o indício formal de algum modo ainda refere, indica ou mostra, não um objeto, mas o campo ou ponto de vista do questionamento filosófico tomado aqui como ser-no-mundo, em que os interlocutores existem e se comportam no sentido qualificado de Ser e tempo. Tal indicação remeteria então a uma tarefa de reinstauração destes horizontes a ser implementada pelo interlocutor de Ser e tempo (Dahlstrom, 2001/2009, p. 437), do mesmo modo que as orientações da manualidade se expressam em descrições que não dispensam que o receptor desempenhe por si mesmo o comportamento orientado (Dahlstrom, 2001/2009, p. 244; Inwood, 2002, p. 34).

A ideia de uma tarefa não é conclusiva se não compreendermos no que ela consiste, o que propriamente espera-se que seja feito. Precisamos esclarecer de que maneira peculiar o indício formal refere ou mostra, assim como qual a maneira de referir e mostrar que deve ser evitada aqui. O problema só pode ser desatado uma vez que se possa sustentar que há um exercício consequente e significativo da linguagem além daquele que consiste na asserção de estados de coisas mediante enunciados.

 

3. Mostrar, Demonstrar, Indiciar: A Remissão

Há uma série de sutilezas e ambiguidades na "semântica" de Heidegger que comprometem uma resposta clara a esse problema. Em Ser e tempo são empregados os seguintes termos quando se deseja explicar o que fazem os signos em geral: "zeigen", a ação de mostrar do sinal, "Anzeigen", a ação de indicar, indiciar, anunciar, denunciar ou dar notícia, aludida no indício formal, e "aufzeigen", a demonstração ou o apontar que seria a função primordial do enunciado. Em particular, quando falamos numa função proibitiva, mas referencial do indício formal, nem sempre está suficientemente claro se o que há de referencial aqui deve ser entendido em um dos três sentidos aludidos. Além disso, o teor epistêmico das três expressões é um desafio a qualquer pretensão não-reificante da linguagem que possa servir ao indício formal e tal teor precisa ser ao menos amenizado através de uma expressão mais neutra neste sentido. Provisoriamente tentarei arrumar estes conceitos de um modo minimamente manejável para o questionamento em curso e atenuar o acento epistêmico com a noção de remissão (Bezug).

O mostrar de qualquer sinal se funda em referências, no sentido de "Verweisung", já prévia e implicitamente sustentadas na manualidade (Heidegger, 1927/2006, p. 78). O sinal é ele próprio um ente manual cuja serventia é chamar a atenção dos envolvidos para esses remetimentos (Heidegger, 1927/2006, p. 79). Pode-se dizer que o sinal é a referência expressa. A aptidão para propor e captar referências já presume o existencial da fala, mesmo que não venha a se explicitar em sinais (Heidegger, 1927/2006, p. 161). A ação de mostrar do sinal é uma referência peculiar, já que nem toda referência é um sinal. O martelo remete ao prego, mas o martelo não é sinal do prego. O martelo pode se tornar sinal justamente a partir das referências que lhe permitem ser interpretado como martelo (Heidegger, 1927/2006, p. 80). Referências deveriam ser pensadas primordialmente como possibilidades de emprego do ente manual, que podem ou não se atualizar. O sinal consiste numa referência específica cuja atualização nos faz atentar para as outras possibilidades de emprego disponíveis na totalidade instrumental em curso. Sinais asseguram a publicidade e compartilhamento da lida instrumental, pelo que parecem ser imprescindíveis à própria manualidade.

Ao empreender a consideração dos sinais, Heidegger busca primordialmente uma abordagem que ele pretende direta para o tema da mundanidade. Sua estratégia é argumentar que a aptidão semântica dos sinais, ou seja, como eles são entendidos como sinais de algo, se funda na serventia de um manual e que essa por sua vez se funda num todo conjuntural articulado, a conjuntura (Bewandtnis). A cada nexo que vigora nesse todo conjuntural Heidegger chama remissão (Bezug) (1927/2006, p. 84). O manual tem seu emprego específico, mas esse só se concretiza num contexto adequado, combinado com outros instrumentos, dirigido a uma finalidade etc. (Dreyfus, 1991/1993, p. 92). Enquanto momento constituinte do descerramento do ser-aí, o compreender consiste em sustentar tais remissões (Heidegger, 1927/2006, p. 87). Isso tem implicações para o próprio sinal que, sendo ele próprio uma referência, ganha sentido também num todo de remissões. Ou seja, tanto o sinal quanto o ente intramundano na manualidade ganham significação quando o ser-aí os compreende em termos de remissões conjunturais abertas previamente. Com isso podemos insinuar que essa noção tem implicações semânticas mais abrangentes e fundamentais do que a mera referência.

A diferença entre referência (Verweisung) e remissão (Bezug) é tão sutil que mereceria um artigo próprio e não pode ser satisfatoriamente traçada nesta oportunidade. Para os fins do presente exercício, posso propor que enquanto a referência é sustentada de modo mais específico entre entes intramundanos na manualidade, inclusive sinais, a remissão é sustentada entre tais entes e a conjuntura que lhes é pertinente, o arcabouço ontológico a partir do qual o ente pode ser compreendido como aquilo que ele é. Para a sorte da expectativa em torno do indício formal, podemos propor que a remissão pode ainda ser sustentada entre sinais e entes tomados na própria conjuntura em que podem se dar, ou seja, não em isolado, mas no entrelaçamento dos remetimentos que compõem o arcabouço ontológico mencionado. A peculiaridade semântica da remissão dependeria, obviamente, da expectativa de que tal arcabouço não é tão somente outro ente intramundano ao lado, ou contendo, os demais. Essa expectativa se encontra em aberto em Ser e tempo, já que tal arcabouço tem o modo de ser do ser-aí, donde a dificuldade em manter-se a distinção. Tal dificuldade só pode ser vencida em se estabelecendo que a remissão é primordialmente um comportamento que toma os entes como aquilo que eles são, mas que permanece fora de foco quando nos atemos aos próprios entes e às referências que os constituem, e que só pode ser apropriadamente explicitado, ou seja, como comportamento, mediante um regresso a partir desses próprios entes, e não num acesso epistêmico de segunda ordem (Heidegger, 1975, p. 227). A instância concreta para essa pretensão Heidegger espera obter justamente no indício formal, o que torna as colocações provisórias em certa medida.1

Em todo caso, é a noção de remissão que permite a Heidegger sugerir que, além daquilo que o sinal mostra ordinariamente, por exemplo, a direção em que um veículo vai fazer uma curva, o sinal mostra de um modo mais abrangente, na medida em que tornaria explícita a totalidade instrumental em que tem lugar (1927/2006, p. 79-80). Heidegger pode pretender que um sinal mostra a totalidade contextual em que tem lugar porque os envolvidos só podem interpretar o sinal satisfatoriamente, seguindo o que ele mostra em sentido estrito, se forem competentes nesta totalidade contextual, ou seja, se forem aptos a se orientarem no todo referencial em curso. A competência para compreender o sinal presume a competência para se comportar de modo compreensivo no contexto em que o sinal ganha seu sentido. Isso é mais claro e menos surpreendente do que dizer que o sinal mostra a estrutura ontológica da mundanidade, como se essa fosse qualquer tipo de arcabouço armado por trás das coisas. Heidegger pode, de fato, usar o sinal para chamar a atenção a esta aptidão, mas não é tão simples dizer que qualquer sinal já a desempenha naturalmente. Na verdade, parece mais o contrário, a atualização do uso competente do sinal na verdade exclui a tematização explícita da totalidade conjuntural (Heidegger, 1927/2006, p. 75). A ambiguidade aqui é que, tanto para a referência ordinária do sinal como para a remissão do sinal ao nexo conjuntural em que ele e o ente manual referido têm seu lugar e podem ser o que são, Heidegger usa sem ressalvas o termo "mostrar", o que é de certo modo um abuso da metáfora. O que acontece é que, no mais das vezes, essa remissão se encontra implícita e não é qualquer uso do sinal que a retira dessa inconspicuidade, embora possamos deixar em aberto que um uso específico de sinais o faça. Para tal hipótese, o termo "mostrar" deveria ser evitado em favor de uma expectativa de remissão expressa.

Num momento especialmente infeliz em Ser e tempo, Heidegger sugere que remissões já estão previamente estabelecidas em suas significações antes de haver linguagem e, portanto, sinais, palavras etc. (1927/2006, p. 87). A ideia apressada aqui é que como sinais explicitam referências até então implícitas, estas, e as remissões em que têm lugar, dar-se-iam num domínio pré-linguístico. Acontece que não é porque algo jaz na inconspicuidade que se pode pressupor que este algo foi primeiramente significado como aquilo que ele é sem algum tipo de sinal, o que seria não só incoerente como comprometeria a publicidade que se presume em qualquer totalidade instrumental. O próprio Heidegger acrescenta numa anotação marginal a correção pertinente: "A linguagem não é sobre-edificada, mas é a essência originária da verdade como aí" (2006, p. 442). O todo de remissões a partir do qual o ente vem a ser o que é não repousa inefável por sob a camada da linguagem, mas é ele próprio instaurado mediante sinais, e por isso é também a qualquer tempo explicitamente articulável, o que por seu lado constitui o outro caráter do descerramento, a fala (Rede). A questão decisiva para o problema dos indícios formais é se essa articulação tem sempre que assumir a forma de um enunciado determinante sobre entes subsistentes.

Há diversos tipos de sinais (Heidegger, 1927/2006, p. 77). O enunciado, enquanto um manual que refere à descoberta do ente intramundano (Heidegger, 1927/2006, p. 224), é ele próprio um sinal, mesmo que isso soe um tanto nominalista para um filósofo como Heidegger. O que o enunciado supostamente mostra, ou aponta segundo o sentido de "aufzeigen", é um ente no modo da subsistência, ainda que esse, na maior parte das vezes, esteja previamente entranhado na manualidade. Heidegger sugere haver ambos os casos, mas talvez não esteja atento à conversão ontológica do "como" hermenêutico no "como" apofântico, que está na base da possibilidade do enunciado, e que envolve o nivelamento do ente no modo da subsistência (Heidegger, 1927/2006, p. 157-158). Melhor admitir-se que, uma vez referido por um enunciado, mesmo o ente entranhado na manualidade é trazido à subsistência. Heidegger é mais consequente nesse pormenor em outras obras (Por exemplo, 1983, p. 438).

Ao considerar o problema da pretensão de verdade dos enunciados, Heidegger fala novamente na remissão, nesse caso, remissão ao ente sobre o qual o enunciado se pronuncia no modo de sua descoberta (Heidegger, 1927/2006, p. 224). O enunciado não somente se refere a um ente intramundano e nem sempre o mostra, mas remete a esse ente no contexto em que ele vem a ser o que é, no caso, na subsistência. A prática discursiva em questão aqui é aquela em que se diz que alguém que profere um enunciado remete a si e ao ouvinte em direção a um estado de coisas, estejam ou não as coisas em questão acessíveis a uma ostensão. Essa remissão, no caso, fornece o procedimento de verificação do enunciado a quem o compreende. Quem compreende o enunciado "O quadro na parede está torto" orienta-se a partir da expressão "O quadro na parede", para identificar o objeto de que trata o enunciado como um objeto apreciável segundo parâmetros de harmonia espacial e assim verificar a predicação atribuída, no caso, "torto". Ou seja, quem compreende o enunciado, seja o remetente ou o destinatário, precisa ser apto a apontar num sentido estrito aquilo de que o mesmo trata para poder proceder à verificação, o que não quer dizer que precise efetivamente fazê-lo para ser bem sucedido na compreensão. Logo, quando Heidegger diz que o enunciado mostra, isso merece uma ressalva. O enunciado remete a algo, ou seja, dá um procedimento mediante o qual algo pode ser acessado no modo que interessa, ou seja, mostrado.

No contexto do enunciado, a remissão se destina à descoberta do ente intramundano na sua subsistência e à disponibilização pública desta descoberta. A remissão do enunciado consiste no ato de identificar e determinar um ente subsistente, quer dizer, efetivo ou atual, e preservar a descoberta do mesmo enquanto tal para ser passada adiante, para além do contexto originário de descoberta. Se tomarmos aqui o que Heidegger chama apontar como remetimento expresso, não precisamos nos desdobrar em justificar como enunciados mostram aquilo de que tratam de modo análogo ao que alguém aponta um objeto, o que na maior parte das vezes não é mesmo o caso, uma vez que o enunciado é geralmente empregado quando tal procedimento não está imediatamente disponibilizado. A imagem da ostensão aqui é particularmente infeliz, porque esse tipo de gesto parece mais pressupor os termos em que se articula a discursividade categorial do que o contrário, por exemplo, saber ao certo para o que alguém está apontando envolve poder compreender o gesto segundo algum termo sortal, por exemplo, compreender que alguém aponta a cadeira, e não o forro ou encosto da mesma. Tanto quanto possível, o melhor seria que preservássemos a ostensão como um tipo específico de sinal, quer dizer, um modo específico de referência expressa (mostrar em sentido literal), distinta do enunciado, que não envolve mera referência, mas remissão expressa ao ente no modo da subsistência, esteja ou não este ente diretamente acessível a uma indicação ostensiva. Chamarei a seguir o aspecto semântico do enunciado de remissão denotativa, no sentido de que o enunciado remete a um ente no modo da subsistência.

No período que antecede Ser e tempo, "remissão" surge também no contexto da discussão do indício formal, para se reinterpretar a relação intencional tematizada pela tradição em novos termos, uma remissão performativa de configuração, a Einstellungbezug (Heidegger, 1995, p. 58 e seguintes). A remissão implícita do sinal e do instrumento às suas respectivas conjunturas de significação e a remissão expressa do enunciado ao ente intramundano subsistente podem ser desse modo fundamentadas em sua possibilidade num comportamento prévio e inconspícuo de remissão que configuraria esse ente intramundano segundo um sentido apto a receber, seja o emprego que a conjuntura lhe reserva, seja o procedimento de verificação do enunciado, por exemplo, um modo cotidiano e implícito de interpretar-se as coisas como martelos de modo a martelar-se no momento, local e modo apropriados, ou como quadros na parede e como coisas tortas, de modo a poder-se compreender e verificar enunciados como "O quadro na parede está torto". Heidegger vai apresentar a elucidação mais consequente dessa remissão primordial no existencial do compreender (1927/2006, p. 142 e seguintes).

"Anzeigen" tem um sentido de indicar próximo de "zeigen", mas também de anúncio, ou mesmo um sentido jurídico de denúncia de um crime à polícia. Em nosso idioma, fala-se em indiciar alguém quando se pretende fazer constar essa pessoa como suspeita numa investigação criminal. Nessa acepção, o indiciar remete a algo do qual uma determinação está por se apurar, por exemplo, ser autor de um delito. Como anunciar diz respeito a um remeter-se a algo que não está presente para ser mostrado numa ostensão, ou seja, algo que não está presente no sentido de Anwesenheit. Esse parece ser o sentido que mais interessa a Heidegger na discussão dos indícios formais. A confiança por sua parte de que o indiciamento ou anúncio do indício formal não se resolve nos sentidos não filosóficos de indiciamento, que são ainda ônticos, funda-se no mesmo abuso de metáfora que lhe permitia dizer que qualquer sinal "mostra" o contexto instrumental em que é interpretado. A referência a algo que não está presente presume que o falante e o receptor sejam aptos a orientarem-se no contexto em que esse algo pode vir a fazer-se presente. O primeiro pode, portanto, ser utilizado para nos fazer atentar ao segundo. Heidegger está particularmente tentando vencer a tendência imposta pelo uso de enunciados a deixar-se para trás o contexto originário de desvelamento dos entes acerca dos quais se trata por um contexto desmundanizado na subsistência (1927/2006, p. 158), o que é com justiça esperado no que concerne ao ente intramundano, mas tem implicações severas com relação ao ser-aí. Se considerarmos que Heidegger pretende que o modo de ser do ente que nós mesmos somos é primordialmente singular e histórico, ganha importância recuperar a aptidão para nos remetermos a acontecimentos significativos e decisivos que nos inspiram possibilidades não triviais de comportamento, o que implica em não se deixar que tal aptidão se reduza à mera descrição indiferente e generalizante destes acontecimentos e comportamentos, em termos de fatos e estados de coisas no primeiro caso, e de estruturas e objetos mentais ou platônicos no segundo.

Que indícios sejam também sinais permite suspeitar que dizer que toda referência expressa por sinais é um mostrar também não é exato. Ao que parece, referimos-nos a muita coisa que ainda não se pode mostrar. Se toda cena de um crime já literalmente mostrasse quem é o criminoso, a investigação criminal seria uma banalidade. Ainda que Heidegger não o faça expressamente, podemos novamente trazer aqui a remissão, no sentido de comportamento intencional, como condição de toda referência expressa. Com isso temos um termo mais neutro e livre de suposições platônicas para falar do aspecto discursivo da intencionalidade. Num trecho, pelo menos, Heidegger parece mostrar que está ciente dessa dificuldade com relação às manifestações ou sintomas, e utiliza justamente o termo remissão referencial (Verweisungsbezug), o que recomenda nossa proposta (1927/2006, p. 31)2. Eis um sumário do que é útil reter no que se segue. Os entes intramundanos estão originariamente dados na manualidade mediante referências recíprocas dentro de uma totalidade instrumental discursivamente articulada, que permanece na maior parte das vezes inconspícua. Com sinais tornamos explícitas não só essas referências, mas também, espera-se demonstrar, a totalidade conjuntural em que elas têm lugar. Num e noutro caso, Heidegger diz que mostramos, o que tomado literalmente é particularmente difícil de sustentar no segundo caso, assim como na referência de enunciados e indícios. Eliminando essa metáfora, proponho falarmos em referência expressa em geral, que se funda numa remissão mais ou menos implícita, e que pode nem sempre ser um mostrar efetivo, como se dá no caso dos indícios.

O enunciado remete expressamente a um ente no modo da subsistência, ou seja, refere determinando e generalizando. Utilizarei a expressão remissão denotativa para a remissão própria do enunciado, para sumarizar que se trata de uma referência ao ente intramundano no modo da subsistência, a atualidade disponível a uma verificação (mostrar). O enunciado remete ao ente no sentido de que esse ente está por princípio acessível a uma verificação, ele pode ser mostrado ou apontado num sentido estrito, senão na circunvisão imediata compartilhada pelos interlocutores, no descerramento da comunidade de falantes em que o enunciado é tido por compreensível. Uma presunção desse tipo, por exemplo, é o princípio lógico do terceiro excluído. Dado o sentido de "Anzeigen", o indício formal envolve uma ação de indiciar, remeter-se a um ente que não está imediatamente presente, a fim de agendar-se a apuração de uma determinação ulterior. Indiciamentos ordinários presumem que a apresentação do ente está disponível no descerramento compartilhado pela comunidade de falantes em questão, ou seja, remetem à obtenção de enunciados sobre entes subsistentes. Mas a analítica existencial é um indiciamento extraordinário, pretende Heidegger, pois o que ela indicia não se deixa apreender no modo da subsistência, ou seja, não é passível de ser apresentado e mostrado no sentido estrito.

 

4. O passo proibitivo: uma operação sobre enunciados

É preciso perguntar de modo incisivo, o que está sendo proibido ou evitado no indício formal. Heidegger não pode simplesmente proscrever todo e qualquer uso de enunciações categóricas. Num curso prévio a Ser e tempo, ele tenta precisar o sentido que tem em mente de "formal", e sugere que ao contrário das formalizações, que abstraem do conteúdo casuístico das determinações reais, mas ainda pretendem apurar e determinar um suposto conteúdo a priori, categorial, ou de segunda ordem, os indícios formais fazem uso do conteúdo predicativo, mas adicionalmente o mostram como impróprio, ou insuficiente em relação ao que se pretende indiciar, como que argumentando de modo inverso a partir das próprias predicações propostas:

A definição fundamental, ou de princípio (no sentido formalmente estabelecido) do objeto que chamamos 'filosofia', e com isso a definição de princípio de todos os 'objetos filosóficos', deve ser tal que por ela, na determinação do o-que-como do objeto (temporalização, início, acesso, apropriação, retenção, renovação), seja enfatizado em sentido decisivo a função fundamental de ser deste, de tal modo que o conteúdo definitório 'indicie' a concreção genuína que se precisa apropriar; isto é, (...), o que é dito na definição, o conteúdo definitório, tem que ser compreendido 'como indiciador'; no compreender eu preciso também pôr o conteúdo definitório precisamente em relação a... , o que significa que o conteúdo, as determinações dadas pelo objeto, justamente não podem se tornar enquanto tais o tema; ao contrário, o compreender apreendedor deve seguir a direção de sentido indiciada. (Heidegger, 1994, pp. 31-32).

[…] 'Formalmente indiciado' não significa meramente representado, tido em mente, insinuado, que deixaria inteiramente em aberto que o objeto fosse apropriado em qualquer como e onde, ao contrário, indiciado tal que, o que é dito é do caráter do 'formal', impróprio, mas precisamente neste 'im' e de modo igualmente positivo é dada a instrução. Em sua estrutura de sentido, o conteúdo vazio é ao mesmo tempo o que dá a direção de execução. (Heidegger, 1994, p. 33)

Isso sugere que o indiciamento formal é uma abordagem eminentemente privativa e pode explicar por que Heidegger é insistente em argumentar a partir de termos que designam algum tipo de esvaziamento de um conteúdo positivo que a tradição tende a pensar como primordial, e aqui tratamos de todas célebres e criticadas incursões nos temas do nada, do vazio, da ausência etc. Heidegger é especialmente incisivo no ganho metodológico que espera obter nesse tipo de abordagem em "Problemas Fundamentais da Fenomenologia". Ali sugere que precisamente a falta de um ente nos permite atentar para o próprio horizonte em que a presença desse ente era esperada e então frustrada, e para a discussão que empreende naquele momento, para o caráter dêiticotemporal desse horizonte, ou seja, ser articulado num agora em que o ente se recusa (1975, p. 439 e seguintes).

Um resultado importante pode ser delineado aqui. O indício formal não é uma expressão ou enunciação específica, mas um modo de interpretar-se os próprios enunciados ordinários. Logo, não se trata de elaborar enunciações formalmente esvaziadas, como as formalizações tradicionais, mas sim de tomar-se as enunciações dotadas de um conteúdo proposicional determinado, mas de tal modo que a partir desse mesmo conteúdo se proponha o que Heidegger parece pretender ser uma espécie de desvio para o contexto em que tal conteúdo pode dar-se. Heidegger precisa conceder que suas enunciações têm a mesma estrutura gramatical das asserções ordinárias sobre entes subsistentes, mas sob a ressalva de que o interlocutor deve tentar reverter a interpretação em direção ao que se pretende indiciar, em todo caso, algo que não se deixa reduzir a algo subsistente (1976, p. 410).

O enunciado, consta em Ser e tempo, é um demonstrar que determina e comunica (ST, 156). Como em muitas vezes, Heidegger é ambíguo por não ser suficientemente consequente em seu postulado de não reificar o elemento comportamental dos existenciais. Em Ser e tempo, fala em três significados da palavra "enunciado", como se tivesse três definições diferentes para uma mesma palavra, ou estivesse lidando com alguma polissemia, mas que ao fim serão reunidos numa definição mais completa, o que sugere que na verdade são notas definitórias. "Mamífero" e "aquático" não são significados da palavra "golfinho", mas são elementos que podem entrar numa definição, essa sim, que estabeleça esse significado. Em "Problemas Fundamentais da Fenomenologia" (1975, p. 298), Heidegger fala em caráteres do enunciado, a um passo da reificação. O que é preciso assegurar aqui é que o enunciado não é uma sequência autocontida de signos, mas um comportamento específico e complexo perante o ente, que envolve inclusive um modo peculiar de se interpretar uma sequência de signos. Reconhecido como complexo, esse comportamento envolve diversos passos que podem ser discriminados no que são presumidos em qualquer asserção concreta de um enunciado.

Por "demonstrar" (aufzeigen) Heidegger quer resgatar o que considera o sentido originário do discurso apofântico: deixar o ente se mostrar em si mesmo e a partir de si mesmo. Em particular, Heidegger quer contornar as mediações intencionais ou mentalistas que a tradição costuma propor aqui entre o enunciado e o fato asserido e que perdem de vista que ambos ganham seu sentido pertinente num contexto discursivo comum aberto previamente na curadoria do ente intramundano no modo da manualidade, e que por isso distorcem o comportamento intencional que sustenta a possibilidade de remetimento do enunciado ao estado de coisas sob a miragem de outro estado de coisas presumido como atual e disponível a um acesso epistêmico qualificado, por exemplo, uma representação mental, pensamento, proposição etc. O que o enunciado exibe, ou presume a exibição possível, não é uma mediação epistêmica mas sim um ente já descoberto, ou seja, acessível num horizonte de familiaridade discursivamente compartilhado.

Esse é o elemento fundamental da asserção e que orienta os outros dois, a predicação e a comunicação (Heidegger, 1975, p. 297). Aqui está radicado o comportamento intencional que dá sustentação ontológica à pretensão do enunciado, a saber, tomar ou interpretar o ente de um modo específico. Enunciados não funcionam do modo que se espera por si próprios, mas somente na medida em que são interpretados como enunciados que descobrem um ente subsistente cuja essência real é efetiva. No enunciado está em curso uma peculiar compreensão de ser, o comportamento teórico ou descritivo que interpreta o ente como determinado em si mesmo e acessível publicamente em qualquer ocasião.

Já apontei as limitações da metáfora que fala aqui em "apontar" ou "demonstrar". Nem sempre o comportamento intencional aponta em sentido estrito ou apresenta ostensivamente. Mas a remissão do enunciado refere algo pensado como um ente subsistente e que pode, portanto, em princípio, ser objeto de tal apresentação, ainda que não esteja acessível à circunvisão imediata dos interlocutores, ou seja, ainda que não esteja presente. Neste sentido Heidegger gosta de observar que um ente se encontra momentaneamente encoberto mas é acessível a partir do descerramento dos falantes, os quais podem atualizar esta descoberta. O melhor aqui é tomar a função apofântica do enunciado como remissão expressa ao ente subsistente, ou remissão denotativa, que pode inclusive se fazer valer de uma ostensão, mas não necessária e muito menos geralmente.

A remissão do enunciado é uma remissão específica que determina segundo predicados gerais, diz que estes predicados são efetivos no ente subsistente. Heidegger nem sempre é claro sobre isso, mas o que permite este passo da enunciação é a ação previamente normalizadora da medianidade impessoal (Heidegger, 1927/2006, p. 127), que dá as perspectivas gerais prévias pelas quais o ente é publicamente acessível na curadoria manual (Heidegger, 1927/2006, p. 157; Dreyfus, 1991/1993, p. 153). Os aspectos gerais caracterizados por predicados já estão previamente articulados na totalidade conjuntural em que o enunciado ganha sentido segundo parâmetros de generalização ditados pela manualidade. Podemos asserir o que é efetivo a partir de uma competência implícita para dizer o que é possível.

Por fim, o enunciado comunica para além do contexto originário de descoberta do ente acerca do qual se trata o enunciado. Mais uma vez, recusa-se a imagem do transporte de conteúdos intencionais através de algum tipo de mediação. O que a comunicação permite "passar adiante" é o próprio ente no modo da subsistência e, consequentemente, um mesmo comportamento compreensivo que consiste num procedimento de verificação executável sem qualificações existenciais, quer dizer, manejáveis, presume-se, por qualquer um e em qualquer circunstância. Nesse passar adiante, encobre-se o contexto originário de descoberta, em proveito da otimização do acesso ao ente intramundano. Na sua própria circulação, os enunciados encobrem seu aspecto performativo aqui discriminado, donde podem ser posteriormente formalizados e difundidos como estruturas, por exemplo, sujeito e predicado, ou função e argumento, que podem depois ser trazidas a silogismos, cálculos e computações.

O enunciado "O quadro na parede está torto" remete a um ente intramundano aberto no acesso público e o traz à consideração determinadamente, a saber, como torto. A possibilidade de apresentação do ente já é por si compartilhada, pois aquilo de que se trata o enunciado é algo já disponível num mundo familiar aos interlocutores que compreendem o enunciado. O ente é apresentado no enunciado como algo que, em princípio, subsiste em si mesmo para além de qualquer acesso específico, segundo determinações gerais que podem ser, desse modo, passadas adiante para além do contexto originário de descoberta e de proferimento do enunciado. Mediante a predicação, portanto, o enunciado propõe um modo de acesso generalizante e, por excelência, impessoal, fazendo abstração do que a descoberta do ente intramundano tem de existencial e histórica.

Heidegger não pode abrir mão do aspecto apofântico nem comunicativo do enunciado, se não quiser tornar o indício formal destituído de qualquer interesse. Podemos então concluir que o passo proibitivo deve primordialmente pôr em suspenso a força generalizante imposta pela postulação da atualidade da predicação. É preciso, portanto, invocar outros recursos apofânticos no sentido mais primordial que Heidegger pretende, outros modos de compreensão que não sejam denotativos e determinantes mas que sejam ainda discursivos, ou seja, modos de se remeter expressamente ao ente mas sem tomá-lo como uma coisa subsistente e atualizada em si mesma. Precisamos aqui perguntar por recursos discursivos (remissivos) porém não denotativos.

 

5. Remissão modalizada na possibilidade

O aspecto apofântico do enunciado se especifica na remissão denotativa, a remissão ao ente subsistente. O ente subsistente é o que a tradição metafísica entende por existência ou positividade, ou o que em termos modais propôs como uma atualidade, efetividade, algo que é o caso, um fato, aquilo a que corresponde um enunciado verdadeiro no sentido tradicional. Se perguntamos por recursos discursivos não denotativos, desviamo-nos de qualquer descrição de estados de coisas efetivos, esquivamo-nos de dizer o que é o caso. Se, no entanto, ainda perguntamos por recursos discursivos, ou seja, em algum sentido ainda remissivos, reivindicamos ainda algum modo de intencionalidade ou consideração de algo. Perguntamos, portanto, por práticas discursivas em que falamos das coisas sem no entanto dizer como as coisas efetivamente são ou estão. A seguir tentarei propor alguns exemplos de tais práticas retirados da linguagem natural.

Nelson Goodman se esforçou para chamar a atenção para o que ele chama representação por exemplificação (2006, p. 80-84). Esse modo de simbolização é bastante difundido na cotidianidade. Trata-se aqui de amostras de tecido de alfaiates, maquetes de incorporações, modelos de cores num livro infantil e assemelhados. O que temos neste caso são objetos que possuem uma propriedade, mas que não estão sendo apresentados para que tal atribuição seja asserida como um fato. Que um dos retalhos da amostra de tecido seja vermelho é o que menos importa para um cliente do alfaiate, porque não é desse retalho que se trata ali mas sim da exemplificação de uma determinada propriedade que pode ser conferida à peça que se vai encomendar, no caso, ser vermelho numa certa tonalidade. Vê-se claramente isso quando se observa que o cliente que aponta para o retalho e diz, "quero este", não está comprando o retalho. Estes jogos não se destinam a determinar as propriedades de uma coisa atual e efetiva mas sim a orientar o interlocutor nas propriedades de alguma coisa que ainda pode dar-se, por exemplo, um terno ou um edifício, exibindo essas propriedades em outras coisas atuais, respectivamente, retalhos ou maquetes.

Para Heidegger, isso nada mais é do que explicitar a compreensão do modo de ser de um ente, antes de se decidir se tal modo de ser se encontra ou não atualizado na subsistência. Em uma anotação feita à margem de Ser e tempo, ele observa que é um mal entendido tomar o ser-aí como o ente exemplar na investigação no sentido de servir apenas como um exemplo de ente: "O ser-aí é exemplar porque, em sua essência enquanto ser-aí (assegurada a verdade do ser), joga [spiel] para e junto ao ser o jogo-junto-a [Bei-spiel] – traz o ser ao jogo da ressonância [ou ainda eco, repercussão]" (Heidegger, 2006, p. 439). Ser-aí é exemplar no sentido literal de Beispiel, jogo junto, no caso, junto ao ser de um ente que recebe um "espaço de jogo", dentro do qual pode se atualizar numa posição ou noutra. Noutras palavras, ser-aí é exemplar no sentido de ser capaz de "dar exemplos", quer dizer, exemplificar o ente em suas possibilidades de ser, antes que se decida, como base no que aqui é chamado "ressonância", que e como o ente efetivamente é. Quem diz em alemão "zum Beispiel" anuncia que o que se segue não é uma asserção ou denotação de uma coisa efetiva mas a menção de modelos para o treinamento na competência em um predicado possível.

A exemplificação tem ainda especial importância e predomínio na representação artística, como se pode ver no caso da arte abstrata e da ficção. Mesmo onde há alguma denotação na obra artística, o suficiente para dizermos que certo quadro de Van Gogh retrata um par de sapatos de camponês, não é o sapato específico que serviu de modelo ao pintor o que interessa na apreciação do quadro, mas sim propriedades que um objeto desse tipo pode apresentar no contexto instrumental e existencial que lhe é próprio, o que permite, por seu lado, que por meio de ilações metafóricas, esse próprio contexto venha à consideração, como o próprio Heidegger tenta argumentar a respeito desse mesmo quadro em "A Origem da Obra de Arte" (1977, p. 22-23). Heidegger é especialmente confiante que a arte e a poesia podem ter maior poder conclusivo em favor de suas teses do que argumentos, inferências e asserções. Ao que parece, essa presunção está implicada por sua noção peculiar de verdade. Em todo caso, qualquer que seja a noção de verdade que se possa sustentar ser pertinente à arte e à poesia, ela não pode se tratar de uma mera evidência de segunda ordem, sublime ou inefável que o seja, ou não avançaremos muito em relação ao conceito tradicional de verdade. A representação por exemplificação pode ser um início de elucidação do poder remissivo e não denotativo que Heidegger pretende estar em curso aqui. O desenvolvimento promissor é aduzir que, como nos outros casos de remissões não denotativas, a representação artística nos proporciona explicitação e reflexão acerca das presunções modais em curso numa dada comunidade, algo que já Aristóteles chegou perto de sugerir no capítulo IX da "Poética" (1991, p. 256).

Orientações da manualidade também não se esgotam em meras descrições dos objetos envolvidos. Quem explica o manejo adequado de um martelo não pretende primordialmente apurar determinações reais desse objeto mas sim propiciar ao interlocutor um acesso bem sucedido ao contexto comportamental em que o martelo tem lugar enquanto martelo, ou seja, martelar de modo eficiente e seguro. Tal acesso não é suprido por uma descrição teórica do martelar, por mais detalhada que seja, mas só se efetiva com o aprendizado satisfatório por parte do interlocutor, o que só pode ser aferido no desempenho comportamental por parte deste.

Não é sustentável dizer que o indício formal consiste em uma dessas práticas, pois todas elas têm um uso ordinário sem repercussão filosófica imediata. No entanto, cada uma delas têm em comum um modo de abordagem que é de especial interesse para Heidegger. Elas remetem o interlocutor a uma consideração do ente intramundano que é modalizada na possibilidade. Ainda que inequivocamente ônticos, esses recursos treinam o interlocutor na competência num horizonte compartilhado em que as coisas podem se dar como sofás, martelos ou temas de uma palestra. Para tanto, as próprias coisas precisam ser consideradas não em si mesmas, como o seriam se pensadas como desligadas de todo e qualquer horizonte, mas no entrelaçamento dos remetimentos significativos compartilhados pela comunidade, dentro do qual a coisa pode dar-se ao acesso público. Explicar o uso de um martelo não é atribuir propriedades a um objeto subsistente mas instruir ou posicionar-se sobre a empunhadura, a posição do prego, o ritmo das batidas, em suma, é reunir e manter coeso o entorno em que o martelo pode se dar como algo para martelar.

Agora temos melhores elementos para dizer quando um sinal mostra o contexto em que ganha significado. A resposta mais precisa é: quando é expressamente usado para este fim. Tanto na exemplificação, pragmática ou artística, quanto na orientação da manualidade, se utiliza os mesmos signos da remissão denotativa para apresentar ou treinar o interlocutor nas intuições modais em que as coisas denotadas podem atualizar-se em fatos. Como espera Heidegger, essa exibição não é uma teorização ou formalização acerca dessas possibilidades, as quais são um trabalho de elaboração já bastante ulterior em relação a tais práticas, mas sim procedimentos empregados para a aquisição por parte do interlocutor de uma aptidão, um modo bem sucedido de compreender o ente intramundano na manualidade.

Assim, a remissão não denotativa, ainda que seja uma referência expressa ao ente intramundano, é modalizada na possibilidade, ao invés da remissão do enunciado, que é modalizada na atualidade. Possibilidades de ser são aquilo através de que se conduz o existencial do compreender (Heidegger, 1927/2006, p. 143 e seguintes). Os recursos discursivos apontados são os meios simbólicos pelos quais o existencial da fala articula o existencial do compreender numa totalidade instrumental publicamente acessível, eles dão expressão ao "como" hermenêutico da compreensão e mostram que a transcendência da intencionalidade em direção ao ente intramundano já é previamente posta em termos pela manualidade antes de qualquer abordagem teórica.

Podemos ainda dar mais concretude à Einstelungbezug, a remissão primordial de configuração de um ente intramundano enquanto tal, remissão essa que é o próprio existencial do compreender e que Heidegger não queria ver esvaziada na formalização de uma relação intencional, nem precipitadamente restringida à abordagem epistêmica (1995, p. 63). As práticas discursivas apontadas mostram que nos presumimos capazes de considerar explicitamente o ente intramundano por modos de acesso não teóricos e sugerem que esses são previamente estabelecidos e difundidos na cotidianidade antes de qualquer enunciação categórica já que são as condições específicas de possibilidade para que algo seja atualizado na subsistência que corresponderia a enunciados verdadeiros no sentido tradicional. O comportamento intencional discursivamente articulado não se esgota na remissão denotativa mas já está em curso como projeção de possibilidades antes de qualquer enunciação de um estado de coisas.

Cumpre agora esclarecer uma imprecisão na expressão "remissão não denotativa", que teve de ser tolerada em proveito da ordem de exposição. É que ela dá a entender que se trata de uma privação ou abstração em relação a um parâmetro de completude pretendido no enunciado, o que é justamente o inverso do que Heidegger pretende demonstrar em Ser e tempo. Se algo é abstraído, tal se dá justamente na direção da remissão do enunciado, o qual desmundaniza o ente intramundano das significações culturais imediatas em que ele comparece de início na lida cotidiana em proveito do ideal da mera subsistência a ser projetado pelo acesso científico. Primordialmente a remissão é plena como existência do ser-aí que projeta possibilidades concretas de ser e o enunciado que assere um estado de coisas atual é uma remissão mais restringida e dele derivada. Esta é uma das razões porque Heidegger recusa com razão que o existencial do ser-no-mundo possa ser reconstruído a partir de um acesso teórico e é neste sentido que pretende que a possibilidade é mais elevada do que a efetividade.

 

6. Desenhar o céu

A possibilidade de uma remissão não denotativa restou presumida na cotidianidade mais próxima mediante a consideração dos jogos de linguagem mencionados. Cabe agora explicar como tal possibilidade é propriamente conduzida na remissão expressa do indício formal. Já afastamos a assimilação do indício formal às tarefas da manualidade. Mesmo compreensivas em seu desempenho, tais tarefas de um modo ou de outro sempre giram em torno de um ente intramundano específico e não atendem à amplitude do questionamento ontológico. A exemplificação pragmática também parece muito restrita a tipos e grupos de coisas e parece mais presumir a ontologia setorizada do ente subsistente do que o contrário. Será que a remissão não denotativa em uso na arte e na poesia pode suprir a sublime tarefa de uma ontologia fundamental? Será que a questão do sentido de ser encontrará sua resposta numa obra de arte ou num poema?

Voltemos por um momento ao ensinamento do cartunista Quino, mencionado ao início deste trabalho. O procedimento sugerido, no fim das contas, não é propriamente desenhar o céu mas deixar que ele seja presumido a partir do pássaro. Quem compreende o pássaro o interpreta como algo que tem o céu por pano de fundo. Sublinhamos uma totalidade conjuntural implícita no ente mostrado, o qual então serve de indício do contexto em que pode ter lugar. O céu é, por assim dizer, suscitado como um comportar-se implícito e inconspícuo que sustentamos perante coisas como pássaros e nuvens. Isso não quer dizer que o céu não possa ser denotado, por exemplo, pela palavra "céu" e então referido por um enunciado verificável como "O céu hoje está encoberto." Quer dizer apenas que antes que tal denotação venha à palavra como denotação de um ente subsistente, o céu já é compreendido como um horizonte de possibilidades perante o qual cotidianamente nos posicionamos. Do mesmo modo a descrição da parede de um prédio em ruínas n"Os Cadernos de Malte Laurids Brigge" é ocasião para Rainer Maria Rilke nos fazer considerar a infinidade de episódios, acontecimentos e expectativas que mobilizam nossas vidas, o que leva Heidegger ao entusiasmo de dizer que a poesia é a emergência em palavras da existência como ser-no-mundo (1975, p. 244).

Lembremos que o indício formal deve ser um modo peculiar de se interpretar os próprios enunciados predicativos, ressalva feita à atualidade desta predicação. Um modo bastante prosaico de se fazer isso é dizer que o que está sendo enunciado é meramente possível. Sobre este setor da linguagem natural se elaboram as formalizações da lógica modal. Porém, um operador modal tal como "◊" não é o bastante aqui, pois Heidegger recusa que o poder ser da compreensão se resolva na mera contingência do ente intramundano, a potencialidade subsistente nas coisas (1927/2006, p. 143). Entre as muitas reservas que estão sendo levantadas aqui ao tratamento metafísico das modalidades, o que se quer assegurar é que o compreender do ser-aí não se esvazie numa projeção indiferente de meras possibilidades e guarde a expectativa de um poder ser próprio em que o ser-aí se veja empenhado segundo uma disposição afetiva, possibilidades de ser que nos solicitam como significativas e importantes para alguém3.

Entre outros interesses, a arte é uma das ocasiões em que certas possibilidades de configuração são sugeridas como mais significativas para alguém, um povo, uma comunidade, uma época ou uma cultura. É isso o que nos recomenda a intuição de que retalhos de alfaiate, no seu contexto originário, não sejam obras de arte, ou que exercícios de gramática não sejam poesia. Sob esse aspecto, a arte e a poesia, mesmo quando empreendidas dentro de uma temática setorizada como é o mais comum, podem ser remissões não denotativas com uma repercussão mais abrangente e fundamental tal qual a desejada no questionamento ontológico colocado por Heidegger, na medida em que suscitam a indagação por um horizonte primordial em que possibilidades concretas de ser são comparadas e selecionadas como próprias ou impróprias. Uma das implicações da noção de desvelamento é que na criatividade artística está em jogo um critério de verdade que não se assimila à correspondência tradicional e que, no entanto, não é trivial, mas é o próprio parâmetro de questionamento para o poder ser mais próprio do ser-aí e para o sentido de ser em geral. Porém, decidir se tal pretensão de verdade para a arte e a poesia pode ser sustentada é algo que depende dos resultados da analítica existencial de Ser e tempo. Portanto, por si só a arte e a poesia não são recursos conclusivos, enquanto Heidegger não tiver elucidado a decisividade antecipadora como horizonte de verdade do existir mais próprio do ser-aí (1927/2006, p. 307).

Por ora, podemos propor que a remissão não denotativa que se pretende pôr em ação no indício formal não precisa ser a da arte ou da poesia. O que acontece é que tanto nestas práticas, como nas tarefas da manualidade e outras remissões não denotativas, agimos sob presunções modais implícitas que merecem elucidação e que estão sujeitas a questionamento. A elucidação dessas presunções se reivindica uma pretensão de verdade derivada e condicionada àquela que é reivindicada pelas mesmas, e que não pode, portanto, ser postulada em termos de atualidade. Há aqui uma tarefa hermenêutica que é, ela própria, proposta como uma remissão não denotativa, enquanto não se decide que a correspondência a um estado de coisas é o único parâmetro consequente de verdade. Uma noção econômica de filosofia como analítica das presunções implícitas da cotidianidade é aqui adequada, na medida em que tal noção ainda não se pretende uma descrição de fatos e determinações reais de objetos. O primeiro passo do indício formal assinala uma reserva a ser observada na analítica existencial: não abortar logo de início a consideração de um ente cujo modo de ser não se deixa determinar na atualização de predicações e que se reivindica apenas como constante possibilidade. Que tal ente exista, não no sentido da tradição mas no sentido de Heidegger, ou seja, que esse ente seja-aí depende de se apurar na analítica existencial que o ente que nós mesmos somos tem este caráter modal peculiar.

Para não nos afastarmos do poder ser que é elaborado no existencial do compreender, preferi não especificar se o procedimento toma enunciados nas modalidades lógicas, físicas ou metafísicas, ou ainda se a possibilidade diz respeito à predicação ou a mera existência efetiva, no sentido tradicional, do objeto, pois o existencial em questão é justamente proposto como o comportamento primordial a partir do qual essas sutilezas podem ser traçadas.

Na discussão de Ser e tempo, essas questões ganham encaminhamentos que não são triviais. Kripke sugeriu que nos orientamos ordinária e discursivamente segundo a possibilidade metafísica que recomenda o essencialismo presumido pelas ciências da natureza (2011, p. 15-16, 22-23). Heidegger receberia bem esse resultado, traduzido para seus termos, concordando que a cotidianidade imediata é orientada em torno do ente intramundano e persegue sistematicamente o compartilhamento desse em sua subsistência mediante normalizações discursivamente instauradas e passadas adiante pela impessoalidade. Apontaria apenas que, seguindo como fio condutor a afinação do encontrar-se na angústia, pode-se sugerir que esse modo ordinário de se compreender as coisas não dá conta do nosso próprio modo de ser, ou seja, que embora nos orientemos ordinariamente pela modalidade metafísica, não somos um ente cujo modo de ser possa ser satisfatoriamente elucidado mediante este modo de compreensão e suas presunções essencialistas. Esse poder ser primordial, irredutível à modalidade metafísica, Heidegger pretende ter elucidado nos termos da temporalidade própria a partir da qual nos consideramos históricos. Um ponto a favor de Heidegger é que, uma vez fixadas as referências dos nomes, o essencialismo metafísico pode ser conduzido sem expressões ocasionais, pensa-se que propriedades essenciais são aquelas que aquilo que é nomeado possui em todos os mundos possíveis, ao passo que tais expressões são imprescindíveis para nos reivindicarmos uma temporalidade histórica. Esta proposta não seria ainda tão estranha a Kripke, se pensarmos que a implementação de nossas intuições essencialistas depende da fixação da referência do nome enquanto um designador rígido, a qual se dá ainda sob o pano de fundo da cadeia histórica que remete a uma situação de batismo, cadeia esta que é preciso se resgatar e propor como apropriada num esforço hermenêutico (Kripke, 1980/2001, p. 96-97, e nota 44). Outro ponto a favor de Heidegger é que, tanto para o batismo quanto para o resgate da cadeia histórica de referência, expressões dêiticas parecem indispensáveis

 

7. Considerações Finais

Enquanto um recurso discursivo, o indício formal envolve num primeiro momento um modo extraordinário de se interpretar-se enunciados, a saber, pondo-se em suspenso a atualidade dos mesmos e os considerando nas possibilidades informadas pelo modo de ser dos entes de que trata o enunciado. Esse passo, mesmo necessário, é ainda insuficiente para os fins da analítica existencial. Como mencionado, Heidegger adverte que não tomemos o existencial do compreender como mera possibilidade lógica ou contingência do ente subsistente e o faz porque é forte a tendência nessa direção. Toda intuição modal está sujeita a ser considerada numa teorização, seja através de formalizações, seja por meio de predicados potenciais, como "inflamável" ou "transparente", o que novamente recoloca o paradoxo da tematização.

Heidegger precisa de um parâmetro a partir do qual possa propor certas possibilidades de ser como mais significativas ou prementes que outras, sem que esse parâmetro no entanto se resolva na mera correspondência com o que é atual. A modalização na possibilidade precisa ser qualificada no diferencial da singularidade mais extrema, o caráter do ser-aí ser a cada vez meu (Jemeinigkeit), ou seja, precisa ser tomada como uma possibilidade em aberto para alguém que a questiona como mais própria e que, portanto, não se deixa resolver num fato indiferentemente apreciável (Heidegger, 1927/2006, p. 41-43 e 143-145).

O comentário tem tentado suprir esta tarefa propondo ao indício formal uma função adicional chamada reversivo-transformacional, em que o ser-aí do intérprete da analítica existencial se vê solicitado a pôr em suspenso as interpretações niveladas legadas pela impessoalidade na generalidade do ente subsistente e a apropriar-se de suas possibilidades mais próprias de ser como condição para a compreensão dos próprios enunciados de Ser e tempo (Dahlstrom, 2001/2009, p. 248 e seguintes; Reis, 2004, p. 174; Fragozo, 2011, p. 59-60). Donde se tem argumentado que o sentido dos indícios formais é eminentemente exortativo ao invés de descritivo.

O apoio textual é inequívoco (Heidegger, 1983, p. 422), mas pretendo sugerir num próximo exercício que esta pretensão ainda tem problemas. Por um lado, a própria presunção de que o ser-aí tem um modo de ser mais próprio está em questão na analítica existencial, o que tem implicações até mesmo para a expectativa de que faça algum sentido proferir exortações. Por outro lado, se a efetivação da autenticidade existencial no ser-aí do intérprete é condição ou consequência da compreensão de Ser e tempo, não há por que não se concluir que tal efetivação funcionaria como a confirmação das próprias teses da obra, recolocando-se o paradoxo da tematização4. Diante disso, Heidegger e seus comentadores precisam se contentar nesse ponto com uma expectativa mais modesta

A proposta a ser desenvolvida é então a seguinte. O segundo passo do indiciamento formalé tão somente a instanciação dos enunciados de Ser e tempo na situação discursiva de questionamento em que os interlocutores ora se encontram empenhados, empenho esse que deve ser abordado de início como a estrita aptidão para nos conduzirmos segundo expressões dêiticas. Ficaria então em aberto se tal empenho pode ser conduzido a possibilidades mais próprias de ser em termos irredutíveis a qualquer teorização, que é o que Heidegger pretende dar-se no descerramento modalizado na decisividade antecipadora que se articula nos termos da temporalidade própria (1927/2006, p. 325 e seguintes). Tal pretensão, por seu lado, só pode ser sustentada uma vez aduzidos outros elementos de argumentação, em especial, a elucidação das presunções discursivas do encontrar-se na angústia e do poder ser para a morte.

 

 

Referências

Aristóteles (1991). Ética a Nicômaco; Poética (José Américo Mota Pessanha, seleção de textos; 4ª ed.). São Paulo: Nova Cultural (Celeção Os Pensadores).         [ Links ]

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Recebido em 16/01/2013
Aprovado em 18/03/13

 

 

1 Outra hipótese, que não compromete os resultados seguintes, é que a distinção é meramente metodológica e tende a esfumar-se conforme "referência" (Verweisung), introduzida como um conceito em aberto para seguir o caráter não predicativo da empregabilidade de um manual, venha a ser elucidada em termos de "conjuntura" (Bewandtnis) e "remissão" (Bezug) (Heidegger, 1927/2006, p. 83/84). Nesse caso, o que doravante se propõe para remissão pode ser também estendido para a referência em geral. 2 Heidegger não pode ser mais consequente aqui porque ainda persiste num platonismo fenomenológico inspirado numa ideia irrestrita de intuição categorial, donde espera que tudoque é presumido na compreensão do fenômeno ordinário vai de algum modo mostrar-se, ou seja, tornar-se ainda algum tipo de fenômeno (1927/2006, p. 31), sem nem mesmo desconfiar da proximidade dessa expectativa com a compreensão totalizante de ser em termos da presença de uma substância (Anwesenheit), a qual apontou criticamente em toda a metafísica que lhe antecedeu. Não há ocasião agora para criticar-se o conceito fenomenológico de fenômeno que Heidegger quer empurrar nesta discussão, mas deve ficar claro nestes esforços que as dificuldades e obscuridades que perseveram na noção de indício formal se devem em grande parte a essa ingrata expectativa.
3 Embora não tenhamos aqui dois tipos de possibilidades que se sobrepõem, mas dois modos extremos de leitura das mesmas contingências, se pudermos adaptar a tese da dualidade de Blattner (1999/2005, p. 37) ao tema das modalidades. A gradação que vai do poder ser existencial à contingência da potencialidade indiferente das coisas é a mesma desmundanização que reduz o totem sagrado ao ente subsistente objeto da abordagem teórica, a gradação que leva do "como" hermenêutico ao "como" apofântico (Heidegger, 1927/2006, p. 158). A expectativa de uma tempestade de verão pode ser lida como uma potencialidade subsistente e calculável nos fenômenos meteorológicos ou como possibilidades significativas para quem espera uma boa colheita ou se esqueceu de trazer um guarda-chuva.
4
Isso por si só prejudica qualquer abordagem do indício formal como um tipo de aposta, como Streeter sugere (1997, p. 426). Uma aposta é tão comprometida com a expectativa de um ente subsistente futuro que presume inclusive o princípio do 3° Excluído.