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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.17 no.1 São Paulo  2015

 

ARTIGOS

 

Paul Ricoeur, leitor de Freud: contribuições da psicanálise ao campo da filosofia hermenêutica

 

Paul Ricoeur, reader of Freud: contributions of psychoanalysis to the field of hermeneutic philosophy

 

 

Jonas Torres Medeiros*

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho visa explicitar as tensões manifestas pelo encontro entre o projeto de uma filosofia reflexiva e a psicanálise a partir de um evento bastante específico: a publicação, em 1965, da tese De l'interprétation: essai sur Freud, de Paul Ricoeur. Nossa indagação surge do fato de que a psicanálise introduziu um dos maiores embaraços às filosofias da consciência, na medida em que estabeleceu o inconsciente psíquico como fundamento e matriz da subjetividade. Em contraste, Paul Ricoeur reforça sua pertença à tradição reflexiva iniciada por Husserl, mas com um desvio fundamental: em seu acesso à subjetividade, essa filosofia reflexiva deve assumir a forma de uma hermenêutica que interprete os signos da existência do homem. Diante disso, o presente estudo busca indagar que dificuldades, tensões e contribuições a leitura de Freud oferece ao projeto de hermenêutica proposto por Ricoeur. O artigo visa mostrar como a leitura filosófica de Freud permitiu a Ricoeur arbitrar as diferentes e por vezes conflitantes abordagens hermenêuticas em torno do problema do símbolo.

Palavras-chave: psicanálise; hermenêutica; Sigmund Freud; Paul Ricoeur.


ABSTRACT

This work aims to spell out clear the tensions manifested by the meeting between the project of a reflexive philosophy and psychoanalysis, from a very specific event: the publication, in 1965, of the thesis De l'interprétation: essai sur Freud by Paul Ricoeur. Our question arises from the fact that psychoanalysis has introduced one of the greatest embarrassments to the philosophies of consciousness, as it established the unconscious psychic as foundation and array of subjectivity. In contrast, Paul Ricoeur strengthens its belonging to the reflective tradition initiated by Husserl, but with a fundamental deviation: in your access to subjectivity, this reflexive philosophy must take the form of a hermeneutics that interprets the signs of man's existence. Given this, the present study seeks to find out what difficulties, tensions and contributions the reading of Freud offers to hermeneutic project proposed by Ricoeur. The article aims to show how the philosophical reading of Freud allowed Ricoeur to arbitrate the different and sometimes conflicting hermeneutics approaches around the problem of symbol.

Keywords: psychoanalysis; hermeneutics; Sigmund Freud; Paul Ricoeur.


 

 

Para um filósofo formado na escola da fenomenologia, das filosofias existenciais e do retorno aos estudos hegelianos, o encontro com a psicanálise constitui um abalo considerável. Tal é o caso de Paul Ricoeur, cuja obra publicada em 1965, De l'interpretation: essai sur Freud, expressa de forma significativa o projeto da reflexão filosófica posto em questão em seu conjunto pela demolição psicanalítica: "o que é posto em questão de maneira geral e radical é aquilo que nos aparece, a nós bons fenomenólogos, como o campo, como o fundamento, como a própria origem de toda significação, quero dizer, a consciência" (Ricoeur, 1969/1988, p. 100). Assim como Marx e Nietzsche, Freud levanta-se diante dos filósofos como um mestre da suspeita (expressão comum tanto a Michel Foucault quanto a Paul Ricoeur), fazendo despontar o problema da consciência como ilusão. Importa, na presente reflexão, avaliar a importância da leitura de Freud para o desenvolvimento do projeto hermenêutico em filosofia, tal como concebido por Ricoeur.

É possível considerar duas atitudes possíveis para um filósofo diante da obra do psicanalista: por um lado, é exequível uma leitura rigorosa e objetiva de Freud e, de outro, uma interpretação filosófica deste. A primeira postura é aquela que trata de ler Freud de forma tal a não colocar problemas diferentes daqueles que encontraríamos numa leitura de Platão, Descartes, Espinosa ou Kant: trata-se de uma reconstituição objetiva do pensamento do autor. Uma interpretação filosófica, por outro lado, é um trabalho de filósofo: conquanto pressuponha uma leitura que tenha pretensões à objetividade, ela também toma posição relativamente à obra em questão.

Esta última é a postura de Ricoeur em De l'interpretation. Aqui, o filósofo acrescenta, sobre a reconstituição da arquitetônica do pensamento freudiano, uma reposição em outro discurso, o do filósofo que pensa a partir de Freud: "isto é, depois dele, com ele e contra ele. É 'uma' interpretação filosófica de Freud que se propõe aqui à discussão" (Ricoeur, 1969/1988, p. 159). A questão que serve de provocação inicial à nossa reflexão é: pode uma filosofia reflexiva, um projeto hermenêutico de reflexão, explicar a experiência e a teoria psicanalíticas? Ricoeur tomará como guia a proposição de compreender Freud a partir do conceito de arqueologia do sujeito. Esse conceito nos possibilitará encontrar o lugar filosófico do discurso psicanalítico. Não se trata, contudo, como lembra Ricoeur, de um conceito de Freud, mas do filósofo que o interpreta: "formo-o a fim de me compreender a mim próprio compreendendo Freud: é na reflexão e pela reflexão que a psicanálise é uma arqueologia" (Ricoeur, 1969/1988, p. 160).

Para cumprirmos o intento a que nos propomos neste estudo, retomaremos os resíduos deixados por uma obra anterior de Paul Ricoeur, A simbólica do mal (1960/2013), considerando, a partir dela, o impacto causado pelo universo dos símbolos e dos mitos à reflexão filosófica para, a partir daí, melhor compreender esse desvio inesperado que ela suscitará no percurso de Paul Ricoeur: o de uma interpretação filosófica de Freud. Por fim, avaliaremos como é possível, com e contra a crítica psicanalítica, arbitrar o conflito entre duas formas distintas de interpretação aparentemente incompatíveis: a primeira provém de uma hermenêutica da confiança ou da restauração do sentido, que se opõe, contudo, a uma segunda, a hermenêutica da suspeita, que desconfia do sentido tal como ele aparece.

 

1) Filosofia e símbolo

Com o livro A simbólica do mal (1960/2013) – segundo volume de "Finitude e culpabilidade" –, Ricoeur nos mostra que um discurso meramente especulativo sobre a possibilidade do mal humano tem de ceder lugar a um discurso filosófico capaz de compreender o mal através da mediação dos mitos e símbolos. A obra representa o momento da viragem hermenêutica na orientação fenomenológica do autor. Ela tem como objeto de investigação os símbolos, aqueles que nos estão disponíveis em diversas religiões, mitos e tradições culturais, do mundo babilônico ao mundo grego, passando pelo mito hebraico e pela análise minuciosa dos mitos do início e do fim. Para Ricoeur, os símbolos dão que pensar: eis a máxima que dá título à bela conclusão de A simbólica do mal (1960/2013), propondo que é possível à filosofia não só interrogar os símbolos – como o faz a obra citada com os símbolos e mitos das tradições hebraica e helênica –, visando o sentido que está por trás deles, mas também servindo-nos deles para levar mais longe a reflexão.

O resultado da pesquisa de Ricoeur sobre esse tema é uma reflexão concreta, bem documentada do ponto de vista histórico e cultural, mas que visa, antes de tudo, revitalizar uma orientação central da fenomenologia. Esse intuito só pode ser cumprido, como Ricoeur tantas vezes defendeu, a partir de um "enxerto" do problema hermenêutico no método fenomenológico. A simbólica do mal marca o momento da viragem hermenêutica na orientação de Ricoeur, mostrando-nos que apenas uma atenção extrema à linguagem pode nos permitir compreender a consciência de falta e as noções de culpa, mancha ou pecado. A consciência do mal humano não existiria, portanto, se não se movesse já e sempre na linguagem. É no seio de uma filosofia da palavra que o símbolo deve ser retomado; em outras palavras, é a constatação dos mitos e símbolos como acontecimentos de linguagem que justifica a necessidade de uma hermenêutica: "Como dissemos anteriormente, a confissão desenvolve-se sempre no elemento da linguagem; ora, essa linguagem é essencialmente simbólica" (Ricoeur, 1960/2013, p. 26).

Pensar o símbolo é então pensar a linguagem em que este se move. Ou, em outras palavras, a hermenêutica deve procurar revivificar a filosofia a partir da reflexão sobre os símbolos primários que se apresentam à consciência. Portanto, o objetivo de A simbólica do mal é o de rastrear o solo da pré-compreensão humana, no local onde habita o mito e essa rica linguagem originária que a reflexão filosófica deverá retomar para se fortalecer enquanto discurso. Desse modo, A simbólica do mal acaba por defender o valor da interpretação, pois, para Ricoeur, é na hermenêutica que se liga a doação de sentido pelo símbolo e a iniciativa inteligível da decifração (Ricoeur, 1960/2013, p. 365). O pensar capaz de apostar na riqueza do símbolo é necessariamente dinâmico, e Ricoeur acaba por justificar, na conclusão de sua reflexão, uma "dedução transcendental" do símbolo1, que nos orienta para a ideia de que a justificação do símbolo pelo seu poder de revelação constitui um simples aumento da consciência de si, uma espécie de "extensão da circunscrição reflexiva" (Ricoeur, 1960/2013, p. 237), que vai se tornar uma filosofia instruída pelos símbolos.

Contudo, a tarefa dessa filosofia é gerar uma transformação qualitativa da consciência reflexiva (mais radical do que sua mera "extensão"). É por esse motivo que mesmo a expressão "dedução transcendental do símbolo" não será, ainda, absolutamente satisfatória. Pois se trata de captar o símbolo também na sua função ontológica: para além de simples revelador da consciência de si, que ultrapassa um simples "conhece-te" puramente reflexivo, o símbolo é, antes de tudo, "um apelo através do qual todos são convidados a posicionarem-se melhor no ser, a 'ser sensatos', para usar a expressão grega" (Ricoeur, 1960/2013, p. 373). O término de A simbólica do mal é marcado por uma "aposta" hermenêutica: com efeito, a hermenêutica dos símbolos torna-se "aposta" na medida em que uma interpretação filosófica só pode pensar o símbolo na sua criatividade. Ao ter também uma função ontológica, o símbolo fala sempre na concretude da existência humana e no modo como o homem compreende a si e ao seu sagrado. É nos seguintes termos que o autor formula a aposta:

Eu aposto que compreenderei melhor o homem e a ligação entre o ser do homem e o ser de todos os entes se seguir a indicação do pensamento simbólico. Esta aposta torna-se então na tarefa de verificação da minha aposta e de saturá-la, de uma certa forma, de inteligibilidade; em contrapartida, essa tarefa transforma a minha aposta; apostando na significação do mundo simbólico, eu aposto ao mesmo tempo que a minha aposta me trará dividendos na forma de capacidade de reflexão, no elemento do discurso coerente. Abre-se, assim, diante de mim, o campo da hermenêutica propriamente filosófica: já não se trata de uma interpretação de caráter alegórico que ambiciona encontrar uma filosofia disfarçada sob as vestes imaginativas do mito; é uma filosofia a partir dos símbolos que se dá a si mesma a tarefa de promover, de formar o sentido, mediante uma interpretação criadora. (Ricoeur, 1960/2013, pp. 372-373, grifos do autor)

Ao analisar os símbolos primários e os mitos do princípio e do fim do mal, nas civilizações hebraica e grega, Ricoeur visara conferir um locus ao símbolo. Se A simbólica do mal relaciona-se mais diretamente com a manifestação cósmica do sagrado, é somente em outra obra, de 1965, que Ricoeur trabalhará o símbolo psíquico e, como consequência, também os símbolos poéticos: Da interpretação: ensaio sobre Freud (1965/1977), grande painel sobre o estatuto da interpretação a partir da obra do psicanalista. O que devemos guardar, até este ponto, é, sobretudo, a relação entre símbolo e linguagem e o modo como a hermenêutica de Ricoeur tenderá progressivamente a pensar a última.

Podemos antecipar, contudo, o questionamento acerca do que Ricoeur realmente espera desse encontro entre a hermenêutica dos símbolos e a obra de Freud. O que podemos dizer, provisoriamente, é que ele espera ao menos duas coisas. Em primeiro lugar, que a filosofia arbitre a disputa entre duas hermenêuticas rivais, que competem por espaço na cultura. A expressão "hermenêuticas rivais" tem um sentido preciso no pensamento de Ricoeur, que se refere a uma oposição básica. Para o autor, há uma hermenêutica da suspeita, assim como uma hermenêutica da restauração do sentido. A obra de Freud será, em 1965, o grande paradigma da hermenêutica da suspeita, embora ele mencione também o pensamento de Marx, Nietzsche e Feuerbach, e trabalhe esses múltiplos e concorrentes métodos de interpretação no primeiro tomo de seus ensaios de hermenêutica, O conflito das interpretações (Ricoeur, 1969/1988). Já o paradigma da hermenêutica da restauração é o da fenomenologia da religião, bem como de toda interpretação que participe, pelo menos em simpatia e imaginação, da consciência e de suas significações intencionais reveladas nos mitos e nos símbolos. Podemos, por um lado, abandonarmo-nos à imediaticidade do sentido tal como ele se dá, segundo o que parece ser a orientação fundamental da exegese bíblica e que Ricoeur ainda seguia na virada hermenêutica da A simbólica do mal, de 1960. Contudo, como atesta a obra de ensaios O conflito das interpretações (1969/1988), o autor viu-se confrontado com outros métodos de interpretação, mais redutores, que questionam justamente a leitura ingênua do sentido.

Tendo articulado a hermenêutica à teoria das significações de Husserl, Paul Ricoeur vai dar relevo à questão da dimensão histórico-cultural do ser e da consciência, relacionando o ser à linguagem e às condições de sua existência no mundo. Criticando, por outro lado, o idealismo de Husserl e seus seguidores acerca da intuição direta e do acesso imediato à consciência, ele considera necessário passar por uma exegese contínua das significações do mundo e da cultura para que a existência possa ter sentido e chegar à reflexão. Ricoeur propõe que o conhecimento do ser e da consciência passe pelo aprofundamento da interpretação, no campo das várias disciplinas, entre elas a psicanálise (no que diz respeito à arqueologia do sujeito) e a fenomenologia da religião (no que toca à compreensão dos sinais do sagrado). Portanto, sem a compreensão da espessura do símbolo e dos conflitantes métodos de interpretá-lo não poderíamos entender a proposta hermenêutica defendida por Ricoeur. Para tanto, o embate com a teoria e o método psicanalíticos serão fundamentais.

 

2) O símbolo nas suas vias longa e curta de aproximação

O livro Finitude et culpabilité (1960/2009) já deixara bem assente que a questão do mal e da culpabilidade são eixos importantes do pensamento de Ricoeur2, que continuou aprofundando a reflexão sobre essa problemática tanto no nível pessoal como no de sua configuração pública e política. Essa preocupação fez de Ricoeur um interlocutor privilegiado no debate em torno dessa temática no quadro de pensadores contemporâneos, dentro e além das fronteiras da filosofia e, simultaneamente, para além de qualquer pertença religiosa específica. Contudo, em 1965, com a publicação da volumosa tese Da interpretação: ensaio sobre Freud, sua reflexão em torno da temática recebe um desenvolvimento inesperado. É conhecida, inclusive, a grande polêmica gerada em torno dessa obra, pois, ao demarcar sua posição acerca da obra do fundador da psicanálise, Ricoeur assume um desafio que acaba por repercutir naqueles que se consideram os herdeiros mais legítimos de Freud3. Ricoeur afirma que seu interesse pela psicanálise era antigo e remontava aos tempos de estudante de filosofia, através da figura do professor Roland Dalbiez, como ele relembra em sua "Autobiografia intelectual" (1995, p. 48): "Deve-se dizer que o nosso professor foi o primeiro filósofo francês a escrever sobre Freud e a psicanálise". Nesse texto autobiográfico, Ricoeur reitera o débito para com esse primeiro professor, associando suas lições à própria resistência que ele mesmo veio a desenvolver, nas suas obras de maturidade, em relação ao apelo do imediatismo, a sedução da apoditicidade do Cogito.

Da interpretação: ensaio sobre Freud (1965/1977) é resultado de três conferências que Ricoeur proferiu na Universidade de Yale em 1961. Assumindo deliberadamente uma posição filosófica, o autor diz que seu problema é a consistência do discurso freudiano e seus rendimentos para a construção de uma hermenêutica crítica. O problema é abordado numa vertente tripla: epistemológica (em que pretende interrogar o que é a interpretação na psicanálise), reflexiva (na medida em que tem como objetivo a compreensão de si) e dialética (pois questiona se podemos ou não considerar a interpretação freudiana de modo exclusivo), como o anuncia Ricoeur já no prefácio da obra: "Essas três questões constituem o longo desvio pelo qual retomo com maior empenho o problema deixado em suspenso no fim de minha A simbólica do mal, a saber, o da relação entre uma hermenêutica dos símbolos e uma filosofia da reflexão concreta" (Ricoeur, 1965/1977, p. 12). Ricoeur também nos chama a atenção para a linguagem, âmbito que naquele período começava a se estender por diversos domínios da investigação filosófica contemporânea (linguisticturn). A grande questão posta aqui é a estrutura de duplo sentido a revelar-se na linguagem humana, seja na simbólica do mal, no texto do sonho, na fala do desejo ou na dimensão religiosa.

É nesse jogo de implícito/explícito, manifestar/dissimular que encontramos um traço fundamental da linguagem humana. Por essa razão, afirma Ricoeur: "A interpretação é a inteligência do duplo sentido" (Ricoeur, 1965/1977, p. 18, grifo nosso). É isso que justifica, a princípio, a necessidade de uma hermenêutica da suspeita. Assim, já podemos começar a compreender o lugar de inserção da psicanálise nesse grande debate acerca do símbolo e sua interpretação. Já que foi no tema do primeiro grande livro de Freud, A interpretação dos sonhos (1900/2001), que Ricoeur encontrara o problema, é ainda nesse livro que ele buscará uma primeira indicação sobre o programa da psicanálise.

No próprio título do referido livro de Freud, Traumdeutung, encontramos uma divisão em duas vertentes — de um lado, sonho; de outro, interpretação — duas temáticas fundamentais da investigação de Ricoeur. Vimos no tópico anterior que o onírico constitui uma das zonas de emergência do símbolo, e é nesse sentido que Ricoeur explicita a amplitude de significação do sonho:

[...] esse termo – sonho – não é um termo que fecha, mas que abre. Não se fecha sobre um fenômeno até certo ponto marginal de nossa vida psicológica, sobre a fantasia de nossas noites, sobre o onírico. Ele se abre a todas as produções psíquicas enquanto são análogas ao sonho, na loucura e na cultura, quaisquer que sejam seu grau e o princípio desse parentesco. Com o sonho, afirma-se o que acabo de chamar de a semântica do desejo. Ora, essa semântica gira em torno de um tema de certa forma nuclear: como homem do desejo, empenho-me mascarado – larvatus prodeo –; ao mesmo tempo, a linguagem é, antes, e na maioria das vezes, distorcida: quer dizer outra coisa do que aquilo que diz, tem duplo sentido, é equívoca. (Ricoeur, 1965/1977, pp. 17-18)

O sonho e seus análogos (o delírio, o mito, as figuras do folclore etc.) se inscrevem, assim, numa região da linguagem que se anuncia como lugar de significações complexas, onde outro sentido a um só tempo se revela e se oculta num sentido manifesto ou imediato4: "Chamemos de símbolo essa região de duplo sentido" (Ricoeur, 1965/1977, p.18). Esse problema do símbolo, complementa Ricoeur, não é específico da psicanálise: a fenomenologia da religião também o conhece: "os grandes símbolos cósmicos da terra, do céu, das águas, da vida, das árvores (...), e esses estranhos relatos sobre as origens e o fim das coisas que são os mitos, também são seu pão cotidiano" (Ricoeur, 1965/1977, p. 18). Portanto, no interior desse grande debate da linguagem esboça-se um debate que abrange o conjunto das expressões de duplo sentido. É no interior desse debate que se impõe uma questão chave: será que o jogo do implícito-explícito, o mostrar-ocultar do duplo sentido é sempre uma dissimulação do que pretende dizer o desejo (hermenêutica da suspeita), ou será que ele pode ser, às vezes, manifestação, revelação de um sagrado? Mais ainda, questiona-se Ricoeur: "Seria essa própria alternativa real ou ilusória, provisória ou definitiva?" (Ricoeur, 1965/1977, p. 18). Essa questão atravessa todo o Da interpretação: ensaio sobre Freud.

Assim, podemos compreender a definição que Ricoeur nos dá de hermenêutica, numa circunscrição mais vasta que o permitido pelo método psicanalítico: "teoria das regras que presidem a uma exegese, isto é, a interpretação de um texto singular ou de um conjunto de signos suscetível de ser considerado como um texto" (Ricoeur, 1965/1977, p. 19). Sem a equivocidade da linguagem, não haveria necessidade de hermenêutica. O símbolo implica em um duplo sentido que exige interpretação: "A nosso ver, o símbolo é uma expressão linguística de duplo sentido que requer uma interpretação; a interpretação é um trabalho de compreensão visando a decifrar os símbolos" (Ricoeur, 1965/1977, p. 19).

Mas é preciso – tanto da parte do símbolo como da parte da interpretação – evitar duas definições extremas: uma definição mais larga e outra mais restrita. No que se refere ao símbolo, a definição mais lata pode ser representada pela posição de Cassirer (2004), que defende a ideia de que "o simbólico é a mediação universal do espírito entre nós e o real" (Ricoeur, 1965/1977, p. 20). Assim pretende exprimir a não imediaticidade de nossa apreensão da realidade. Para Ricoeur, contudo, é de todo interesse distinguir o símbolo de signo e função significante:

Façamos justiça a Cassirer: ele foi o primeiro a colocar o problema do remembramento da linguagem. A noção de forma simbólica, antes de constituir uma resposta, delimita uma questão: a da composição de todas as "funções mediadoras" numa única função que Cassirer chama das Symbolische. O "simbólico" designa o denominador comum de todos os modos de objetivar, de dar sentido à realidade. (Ricoeur, 1965/1977, p. 20)

Contudo, "ao unificar todas as funções de mediação sob a denominação do simbólico, Cassirer atribui a esse conceito uma amplitude igual, de um lado, ao conceito de realidade e, do outro, ao de cultura" (Ricoeur, 1965/1977, p. 21). Assim, perde-se uma distinção fundamental que constitui a linha de demarcação entre expressões unívocas e equívocas: "É essa distinção que cria o problema hermenêutico" (Ricoeur, 1965/1977, p. 21). Portanto, em Ricoeur, só podemos falar em símbolos propriamente ditos quando a linguagem produz signos de grau composto em que o sentido, para além de designar qualquer coisa, designa outra que não seria atingida fora de sua intenção: dizer algo diferente do que se diz, eis a função do símbolo. "A interpretação se refere a uma estrutura intencional de segundo grau que supõe que um primeiro sentido seja constituído onde algo é visado em primeiro lugar, mas onde esse algo remete a outra coisa visada apenas por ele" (Ricoeur, 1965/1977, p. 21).

No entanto, além dessa definição alargada de símbolo, há também outra mais restrita, que pretende ver o símbolo a partir da noção de analogia. O trabalho do sonho5, por exemplo, é bem mais complexo do que a via de analogia, o que faz com que Ricoeur sugira que a analogia seja "uma das relações estabelecidas entre o sentido manifesto e o sentido latente" (Ricoeur, 1965/1977, p. 25). Portanto, trata-se de buscar uma definição de símbolo situada entre a forma simbólica de Cassirer e a analogia da tradição platônica e do simbolismo literário, no sentido de uma via intermédia em que o símbolo seja visto em sua estrutura intencional, que faz apelo ao trabalho de interpretação.

Não podemos nos esquecer de que a intenção de Ricoeur é inserir a psicanálise no conflito das interpretações, motivo pelo qual a necessidade de extremar os dois campos e "arbitrar essa discórdia" está bem presente na reflexão do autor. É possível, então, falar numa via longa e numa via curta de abordagem do símbolo, da interpretação e da própria hermenêutica, como podemos ver no ensaio "Existência e hermenêutica", inserido no livro O conflito das interpretações (Ricoeur, 1969/1988, pp. 5-26). Também o Cogito tem suas vias longa e curta de aproximação, como indica o prefácio de O si-mesmo como outro, embora essas vias se refiram à "exaltação" e à "humilhação" do Cogito (Ricoeur, 2014). Assim, destacamos a intenção de Ricoeur de pensar a partir da difícil mediação de extremos, para que o "meio" e a "mediação" se fortaleçam.

Algumas das reflexões epistemológicas de Ricoeur incidem sobre a concepção de ciência a que corresponde a psicanálise, seu estatuto enquanto ciência. Trata-se de demonstrar que a psicanálise não corresponde a uma ciência no sentido estrito do empirismo – apoiada na observação – nem num sentido atenuado que vê a ciência constituída por dois níveis: o da observação e o teórico. A psicanálise, conforme a discussão de Ricoeur na porção epistemológica de seu estudo, não se assenta em nenhum dos dois modelos extremos. No primeiro caso, porque a interpretação do processo psíquico não pode ser resumida à observação, possuindo, em vez disso, um sentido "subjetivo" que não podemos contornar. Por outro lado, o segundo modelo não serve justamente porque não dá conta de intermediar os dois fatores inseparáveis no discurso freudiano: a força e o sentido. Trata-se da premissa fundamental de Ricoeur: ao longo de toda a sua tese sobre o discurso freudiano, o autor vê na obra de Freud a inseparabilidade de uma hermenêutica e de uma energética, isto é, um sentido e uma força. É essa inseparabilidade entre os dois níveis do discurso freudiano que torna os modelos empiristas de uma ciência da observação ou de uma ciência teórica inaplicáveis à psicanálise. Ricoeur retomará essa argumentação numa conferência chamada "A questão da prova em psicanálise" (2010), em que problematiza os critérios do fato em psicanálise e mostra como eles são irredutíveis às ciências de observação. O fato em psicanálise é uma narrativa, ele situa-se na tensão viva entre o narrado e o vivido.

A questão da cientificidade ou não da psicanálise é tema vasto e não nos interessa desenvolvê-lo em detalhes. Há, com relação a isso, um interessante paradoxo na obra do próprio psicanalista que não escapara à análise atenta de Ricoeur. Influenciado pela Aufklärung, Freud busca para a psicanálise uma filiação no campo das ciências naturais. Por outro lado, também estabelece como um dos articuladores centrais da psicanálise a noção de fantasia. Afirma Freud: "Porque destruímos as ilusões acusam-nos de colocar em perigo os ideais" (Freud, 1910/1996, p. 132). Ora, se por um lado Freud se qualifica como destruidor das ilusões da humanidade — um dos mestres da suspeita, como o dirá Ricoeur —, por outro, reconhece o papel fundamental da fantasia, do sonho, do mito e de seus correlatos, não só no processo de construção do saber que define a especificidade epistêmica da psicanálise, como também na constituição do psiquismo e da subjetividade humana. Esse aparente paradoxo pode ser melhor discutido se o articularmos à leitura que Ricoeur faz de sua obra, identificando na teoria de Freud uma articulação entre energética e hermenêutica, entre interpretação e explicação causal. A energética já está presente desde o "Projeto para uma psicologia científica" (1895/1996), de nítido viés fisicalista e neuronal, que se articula posteriormente com a interpretação (Deutung), que desponta desde a já mencionada obra sobre os sonhos, de 1900. Essa articulação ganhará corpo em seus trabalhos posteriores, sobretudo nos escritos de metapsicologia (Freud, 1915/1996). Esse é apenas um exemplo das cambiantes relações entre o campo da ciência moderna e o das ficções lógicas da fantasia. O que Freud concebia como "ciência", aliás, tem necessariamente o caráter de uma mitologia, como ele mesmo afirma em uma carta a Einstein: "Todas as ciências, porém, não chegam, afinal, a uma espécie de mitologia? Não se pode dizer o mesmo, atualmente, a respeito da sua física?" (Freud, 1932/1996, p. 204).

É interessante notar como a posição de Freud acerca da cientificidade da psicanálise antecipa e guarda certas semelhanças com os debates travados posteriormente por Ricoeur no campo hermenêutico. Freud construiu a psicanálise diante da querela dos métodos (Methodenstreit) que marcou o fim do século XIX. Nesse contexto de debate metodológico, conforme a distinção estabelecida por Wilhelm Dilthey (2010) – importante renovador da hermenêutica –, o método da Naturwissenchaft (ciência da natureza) baseava-se na explicação, enquanto as Geisteswissenschaften (ciências do espírito) tinham como fundamento a compreensão. Dilthey adota aqui a distinção entre "explicar" (erklären) e "compreender" (verstehen) como marcos distintivos das duas formas de ciência. De acordo com Paul-Laurent Assoun (1983), para Freud, por outro lado, a interpretação é uma explicação. Assoun (1983, p. 49) explica que a Deutung (interpretação) de Freud é "um procedimento intelectual que explica de modo interpretativo e interpreta fornecendo a causa". A inovação de Freud em relação a esse debate está em sempre exigir que o ato interpretativo nunca se liberte totalmente do ato explicativo, pelo qual se remonta dos efeitos às causas: Freud está sempre a exigir que, no esforço do estabelecimento de sua "ciência", "não se pare antes de ter detectado o nexus entre o acontecimento e o processo" (Assoun, 1983, p. 50). Essa constatação que o estatuto da Deutung tem no próprio Freud pode servir-nos para confirmar a validade da leitura que Ricoeur (1965/1977) faz da psicanálise. Também o próprio Ricoeur mostrará que explicação e compreensão são momentos inseparáveis do ato interpretativo, argumentando que a compreensão precede, acompanha e encerra a explicação; e, em contrapartida, a explicação desenvolve analiticamente a compreensão6.

Ricoeur é atento às nuances que fazem do discurso freudiano uma ampla articulação entre esses dois níveis de interpretação: o energético e o hermenêutico. Para tanto, ao iniciar a "Analítica" em Da interpretação: ensaio sobre Freud, Ricoeur (1965/1977) retoma o "Projeto para uma psicologia científica"7 (Freud, 1895/1996) – texto pré-psicanalítico que tentava dar uma explicação de base energética e neurofisiológica ao "aparelho psíquico" – a fim de passar em seguida para A interpretação dos sonhos (Freud, 1900/2001) e aos escritos metapsicológicos (1915/1996), textos fundamentais para a compreensão da estrutura do discurso freudiano.

Todo esse longo percurso analítico servirá para mostrar, na coerência interna do discurso freudiano, o que Ricoeur considera "a dificuldade central da epistemologia psicanalítica" (Ricoeur, 1965/1977, p. 67). Como já dissemos, os escritos de Freud apresentam-nos, de imediato, um discurso misto, até mesmo ambíguo, que ora apresenta conflitos de força entre as instâncias psíquicas, justificando uma explicação energético-causal, ora apresenta relações de sentido justificando uma hermenêutica: "Gostaria de mostrar que essa ambiguidade aparente é bem fundada, que esse discurso misto é a razão de ser da psicanálise" (Ricoeur, 1965/1977, p. 67). Ao longo dos quatro capítulos que constituem a "Analítica", Ricoeur mostrará sucessivamente a necessidade de ambas as dimensões desse discurso. Eis a aporia explorada pelo filósofo: se, por um lado, a dimensão tópico-econômica constitui uma feição antifenomenológica por excelência, por outro, é ela que fornece toda a base para a leitura da psicanálise como uma hermenêutica. A tarefa a que Ricoeur se propõe, em sua leitura, é a de superar a distância entre essas duas ordens de discurso para, a partir daí, "atingir o ponto em que se compreenda que a energética passa por uma hermenêutica e que a hermenêutica descobre uma energética" (Ricoeur, 1965/1977, p. 67). É a dinâmica entre essas duas ordens que evidenciam a semântica do desejo, que se anuncia por um processo de simbolização. A dimensão hermenêutica da interpretação psicanalítica vai ser cada vez mais aprofundada, sobretudo com a análise que Ricoeur empreende dos textos culturais de Freud, ponto em que se torna mais clara a dimensão hermenêutica da psicanálise: "não é por acaso, mas por destino, que ela visa a dar uma interpretação da cultura em seu conjunto" (Ricoeur, 1965/1977, p. 67).

A segunda parte do livro empreende, pois, a interpretação da cultura. Trata-se de "aplicar" o que se disse sobre o sonho e a neurose à cultura. A preocupação em analisar as ficções da fantasia neurótica, as ilusões e os ideais da cultura como "rebentos" deformados das expressões psíquicas do desejo será a marca das investigações freudianas da cultura. "Nesse sentido, a teoria analítica da cultura é uma 'psicanálise aplicada'" (Ricoeur, 1965/1977, p. 130). Mas, trata-se de uma simples "aplicação"? A analogia do sonho com a arte, os mitos, o folclore, o simbolismo cósmico etc. leva Ricoeur a escrever páginas importantes sobre a criação artística a partir de sua leitura de Freud. Este faz uma analogia interessante entre a criação artística e o jogo infantil num de seus ensaios mais importantes sobre a fantasia neurótica em sua vinculação com o campo da arte: se a criança tem o jogo, o artista tem a fantasia, esse universo peculiar que podemos ver espraiado na obra de arte. Freud valorizou bastante o mundo do brincar e do fantasiar das crianças. Em "Escritores criativos e devaneio" (1908/1996) – seguramente um dos textos que melhor destaca a dimensão criativa da fantasia –, o psicanalista afirma que a criança, enquanto brinca, cria um mundo que lhe é próprio e povoa-o com as invenções de sua imaginação, constituída por realizações de um desejo narcísico que se acredita onipotente, porque ainda não foi confrontado com as desilusões da realidade. É com suas fantasias que as crianças criam pontes entre o mundo de sua subjetividade e a "realidade externa". A atitude do artista consiste em algo semelhante: uma tentativa de estabelecer relações entre o desejo e a "realidade", pois a arte, como toda produção de cultura, também é reveladora dos rastros do desejo. A arte pode, portanto, ser entendida como uma espécie de "figura do noturno, embora desperta" (Heleno, 2001, p. 125). Os capítulos que Ricoeur dedica à interpretação psicanalítica da cultura são uma verdadeira análise do desejo e seu confronto com o mundo histórico: o complexo de Édipo, a formação do supereu, a questão das identificações, o paralelismo entre filogênese e ontogênese, os ideais de eu etc. É a essa leitura que nos dedicaremos a seguir.

 

3) Psicanálise e cultura: a imaginação como ilusão

Dos textos que Ricoeur dedicou à relação entre hermenêutica, psicanálise e cultura, destacam-se dois: a segunda parte do segundo livro de Da interpretação, intitulada "A interpretação da cultura" (1965/1977), e o ensaio "A psicanálise e o movimento da cultura contemporânea" (1969/1988), que aparece em segundo lugar na seção de O conflito das interpretações reservada aos textos que abordam o debate hermenêutico em torno da psicanálise. O que Ricoeur pretende nesses dois textos é efetuar uma releitura das investigações de Freud sobre a cultura e mostrar que uma hermenêutica freudiana da cultura não é uma disposição fortuita nem uma eventualidade. Pelo contrário, essa interpretação da cultura constitui uma verdadeira intenção.

Novamente, o discurso freudiano acerca da cultura (da arte, da moral, da religião, da culpabilidade) é duplamente determinado: "em primeiro lugar, pelo modelo tópico-econômico que constitui a 'metapsicologia' freudiana; em seguida, pelo exemplo do sonho, que fornece o primeiro termo de uma sequência de análogos, suscetível de ser indefinidamente estendida, do onírico ao sublime" (Ricoeur, 1965/1977, p. 129). Aqui somos reenviados à dialética entre as linguagens do sentido e da força, hermenêutica e energética. É partindo do ponto de vista econômico, que vê o "aparelho psíquico" em termos de investimento e contrainvestimento, que Ricoeur destaca o contributo da psicanálise à compreensão da cultura. É preciso, pois, destacar que a perspectiva freudiana sobre a cultura é necessariamente parcial – o que, para Ricoeur, é mais um mérito do que uma limitação8 –, pois subordina a interpretação cultural aos pontos de vista dinâmico e econômico da metapsicologia9, quer mostrando a dinâmica das pulsões de vida e de morte (Eros e Thanatos), quer sublinhando a homologia entre as obras de arte e o fenômeno dos sonhos. Ou seja, é a metapsicologia, o rendimento teórico da psicanálise, que funciona como o articulador central dos textos sociais, pois são conceitos metapsicológicos como os de pulsão de vida e de morte, identificação, supereu, inconsciente etc. que facultam o entendimento propriamente psicanalítico da cultura.

O que destacamos, aqui, é que a análise de Ricoeur sobre Freud enfatiza, pelas razões já apresentadas, o fato de a etiologia das neuroses ser aparentada à hermenêutica da cultura. Também na arte, a semelhança entre o processo criativo e o sonho mostra o parentesco entre os vários modos pelos quais o aparelho psíquico consegue se exprimir. Talvez seja mesmo necessário enfatizar que outro elemento articulador das várias modalidades de expressão do psiquismo seja o campo da linguagem: donde a justificativa e o propósito vital de articular psicanálise e hermenêutica. Além disso, e reiterando argumentos já referidos em nosso trabalho, Ricoeur insiste no fato de a obra de arte evidenciar a relação entre regressão e progressão, processos estes que pressupõem duas hermenêuticas e a concomitante valorização do futuro através da prospecção, e não apenas do passado e do regresso às lembranças infantis. O trabalho filosófico, presidido por uma fenomenologia hermenêutica, visa constituir a estrutura de um sujeito reflexivo, capaz de acolher ou de ser a condição de possibilidade de uma semântica do símbolo e daquilo que essa semântica decifra do ser existente. O pensamento filosófico é reflexivo, e deve acolher uma arquitetura de sentido que constitua um sujeito que se reflete a si mesmo.

O movimento dessa reflexão, para Ricoeur, deve ser dialético. Na busca de uma lógica da polissemia do símbolo, Ricoeur elabora dois conceitos opostos dialeticamente: arqueologia e teleologia. O conceito de arqueologia é elaborado a partir da leitura de Freud à qual ora nos dedicamos. Não é um conceito de Freud, mas uma forma de compreendê-lo reflexivamente, ou, nas palavras de Ricoeur (1965/1977, p. 343): "É um conceito que formo a fim de me compreender a mim mesmo lendo Freud". Como a consciência atual pode voltar-se para suas raízes pulsionais e infantis investigadas pelo psicanalista? Como entender que a consciência, em psicanálise, tem suas determinações não nela mesma, mas no inconsciente? O conceito de teleologia, por seu turno, é formulado a partir da Fenomenologia do espírito de Hegel. A progressão das figuras se dá sempre em vista da figura seguinte, o sentido de uma figura sempre se revela numa figura posterior (Ricoeur, 1965/1977, p. 343).

É nesse mesmo sentido que Ricoeur concorda com a análise de Merleau-Ponty que, no seu importante prefácio ao livro de Hesnard, a "Obra de Freud", depois de ter exposto suas reservas em relação ao aparelho conceitual da psicanálise, reconhece: "Pelo menos as metáforas energéticas ou mecanicistas mantêm contra toda a idealização o limiar de uma intuição, que é uma das mais preciosas do freudismo: a da nossa arqueologia" (MerleauPonty apud Ricoeur, 1969/1988, p. 181, grifo nosso). A arqueologia do sujeito é compreendida como a busca incessante dos fundamentos e das origens inconscientes de sua situação atual. A psicanálise ensina que na raiz do dizer está o inominável do desejo, com sua semântica de disfarces e múltiplos sentidos. Essa marcha regressiva só tem sentido ao se considerar o sujeito como um existente que tem uma arqueologia a partir da qual se pode estabelecer o liame entre intencionalidade e desejo: a arqueologia, portanto, é o movimento regressivo da intencionalidade ao encontro do desejo em suas fontes pretéritas (Ricoeur, 1965/1977, p. 373, passim). A teleologia é o movimento inverso, para frente de si. O movimento teleológico dirige-se sempre para diante de si, encontra o sentido na figura seguinte. É a existência que se põe como esforço rumo a um telos como meta de cultura, como plena realização do espírito. Em outras palavras, podemos articular arqueologia e teleologia do seguinte modo: o desejo é inominável e tem sua fonte num passado, mas esse mesmo desejo quer ser dito, está em potência de palavra. Uma hermenêutica que tem uma arqueologia e uma teleologia está como que num quadro duplo de existência que faz o sujeito mover-se dialeticamente para trás e para frente de si, num movimento simultâneo de constante ultrapassagem de seus limites no inalcançável da arché e do telos. Desse modo, um pensamento da reflexão abstrata passa para uma reflexão concreta por uma mediação que o efetiva em suas raízes como anterioridade do ser:

[...] como a Fenomenologia do espírito de Hegel, mas em um sentido inverso, ela [a metapsicologia freudiana] opera um descentramento10 do foco das significações, um deslocamento do lugar de origem do sentido. Mediante esse deslocamento, a consciência imediata vê-se desapossada em proveito de uma outra instância do sentido, transcendência da palavra ou posição do desejo. Esse desapossamento ao qual a sistemática freudiana obriga a seu modo deve ser operado como uma espécie de ascese da própria reflexão, cujo sentido e necessidade só aparecem depois, como a recompensa de um risco não justificado. (Ricoeur, 1965/1977, p. 345)

Em "O consciente e o inconsciente", primeiro ensaio sobre a questão psicanalítica a figurar em O conflito das interpretações, Ricoeur parte do pressuposto de que "a questão da consciência é tão obscura como a questão do inconsciente" (Ricoeur, 1969/1988, p. 100). Essa confissão é feita na honestidade de quem declara: "Para quem foi formado pela fenomenologia, a filosofia existencial, o regresso aos estudos hegelianos, as investigações de tendência linguística, o encontro da psicanálise constitui um abalo considerável" (Ricoeur, 1969/1988, p. 100). É aqui, diz Ricoeur, que encontramos o que chama de "aflição fenomenológica", isto é, um ponto de vista antifenomenológico que é defendido por Freud ao ver no inconsciente o outro da consciência. Embora, como já destacamos, Husserl tenha pensado o pré-reflexivo da consciência, mostrando um pré-dado e um pré-constituído (a síntese passiva), há, no entanto, uma consciência "inatual" e, por isso mesmo, uma potência de tornar-se consciente.

Com a psicanálise deparamo-nos com uma radicalidade do inconsciente que não pode ser reduzida a um mero pré-reflexivo. Na terceira parte do referido ensaio, intitulada "A consciência como tarefa", Ricoeur aponta o fato de que, à semelhança de Hegel, para quem a consciência não podia igualar os seus próprios conteúdos, também a psicanálise mostra que a consciência não pode ser tomada como critério absoluto: recusa-se, a um só tempo, a tese da simplicidade indecomponível do Cogito e a tese de sua imediatez. Freud (1915/1996), nos seus escritos de Metapsicologia, diz-nos que as pulsões11 nunca se dão por si mesmas, mas que só são conhecidas pelos seus representantes, permanecendo a pulsão enquanto tal "o incognoscível". Essa "obscuridade" da energética freudiana, da teoria das pulsões – como o próprio Freud destacou em 1926 em "Inibições, sintomas e ansiedade" (1926/1996) –, faz da doutrina das pulsões uma área obscura até mesmo para a psicanálise. Freud reivindica essa obscuridade como uma característica da pulsão: "A teoria das pulsões é, por assim dizer, nossa mitologia (...). As pulsões são seres míticos, magníficos em sua imprecisão" (Freud, 1933/1996, p. 119, grifo nosso). Por esse motivo, dirá Ricoeur (1969/1988, p. 104) que "uma crítica dos conceitos da metapsicologia freudiana deve ser completamente não fenomenológica". Evitando, muito embora, recair em qualquer "psicologia da consciência", Ricoeur propõe a necessidade de cotejar, deliberadamente, a psicanálise freudiana com um método aparentado com o de Hegel na Fenomenologia do espírito:

Um tal método não é um refinamento da introspecção, visto que não é de modo nenhum no prolongamento da consciência imediata que Hegel desenrola o prolongamento de suas "figuras". Esta gênese não é uma gênese da consciência ou na consciência, é uma gênese do espírito num discurso. Por si só, figuras semelhantes àquelas que balizam a Fenomenologia do espírito são irredutíveis aos significantes-chave – Pai, Falo, Morte, Mãe – nos quais se ancoram todas as cadeias de significantes, segundo a psicanálise. Direi, portanto, que o homem apenas se torna adulto ao tornar-se capaz de novos significantes-chave, próximos dos momentos do Espírito na fenomenologia hegeliana, e que regulam esferas de sentido absolutamente irredutíveis à hermenêutica freudiana. (Ricoeur, 1969/1988, p. 110)

Compreende-se, então que só mediante o desapossamento da consciência, retirada do centro da reflexão, é que se pode ter acesso às ramificações do inconsciente e sua articulação com o sistema consciente-pré-consciente. Uma vez mais, essa tarefa é dialética. Socorrendose, como já dito, em Hegel, Ricoeur passa então a defender o mérito de uma análise indireta e mediata da consciência. Daí, também, a noção de duas hermenêuticas, uma voltada para a descoberta de figuras posteriores – hermenêutica da consciência –, e outra voltada para as figuras anteriores – hermenêutica do inconsciente. "Parece-me que o conceito de arqueologia do sujeito continuará ainda abstrato enquanto não for colocado numa relação dialética com o termo complementar de teleologia. Somente tem uma arché um sujeito que tem um telos" (Ricoeur, 1965/1977, p. 373). Ricoeur tenta conciliar a posição crítica de Freud com sua própria leitura de A simbólica do mal através da dupla interpretação que propõe do complexo e do mito de Édipo na última parte de A interpretação dos sonhos.

Freud se inspira na tragédia Édipo-Rei, de Sófocles, para designar o "complexo nuclear das neuroses", tomando a fantasia do neurótico como figurações encobridoras e ilusórias de representações inconscientes: esse processo seria presidido pelo que Freud denominou Ödipuskomplex (complexo de Édipo)12. Ricoeur tenta conciliar a arqueologia freudiana do Cogito aliada a uma teleologia da consciência de si, inspirada na Fenomenologia do Espírito de Hegel, fornecendo desse modo uma mediação ao conflito dessas duas hermenêuticas rivais: a da suspeição (ou redução) e a da amplificação.

De certo modo, é possível dizer que, a partir desse confronto com Freud, podemos começar a entender de que maneira a filosofia de Ricoeur ocupa um espaço – para falar com termos de "Soi-même comme un autre" – equidistante de uma apologia do Cogito e de sua destituição. Já na linguagem que será a da "Dialética" (terceira e última parte do livro Da interpretação), no segundo capítulo, Ricoeur argumenta que é esse falso Cogito destituído pelo freudismo que se interpõe entre a realidade e nós: "ele obtura nossa relação com o mundo, impede que se deixe a realidade ser tal como é" (Ricoeur, 1965/1977, p. 207).

É justamente no Édipo-Rei de Sófocles que Ricoeur vê a articulação das duas hermenêuticas, acima de tudo porque a dualidade das hermenêuticas recai sobre a própria dualidade dos símbolos: não só repetem a infância como "exploram" a vida adulta. Os símbolos encontram-se nesse espaço de mediação entre a reminiscência e a expectativa. Há, pois, um efeito recíproco da dialética de duas hermenêuticas e das duas vias de simbolização sobre essa outra dialética visada em Da interpretação (1965/1977): a da consciência e do inconsciente. Em síntese, pode-se dizer que essas duas dialéticas nos falam do homem em "totalidade": não de duas metades do homem, mas sim do homem como um todo e, por isso mesmo, são igualmente necessárias.

Se o ponto de vista da consciência, de acordo com Freud, é – inicialmente e quase sempre – um ponto de vista falso, uma ilusão, Ricoeur propõe que usemos a sistemática freudiana como uma ascese da reflexão, uma "'disciplina' destinada a me desorientar inteiramente, a me desapossar desse Cogito ilusório, que ocupa inicialmente o lugar do ato fundador do Penso, existo" (Ricoeur, 1965/1977, p. 345). A passagem pela metapsicologia freudiana implica, desse modo, uma hermenêutica da suspeita que Ricoeur também formulará como a "necessária disciplina de uma antifenomenologia" (Ricoeur, 1965/1977, p. 345). Esse processo visa desfazer as pretensas evidências da consciência e problematizar o acesso ao Ego Cogito Cogitatum. É preciso, portanto, abandonar tanto o imediatismo do Cogito preconizado pelas filosofias da consciência quanto esse "Cogito-anteparo" de fantasias ilusórias que a psicanálise nos revela, a fim de chegar a um Cogito intermediário dessas duas posições.

Nas palavras de Jeanne Marie Gagnebin (2009), a discussão filosófica que Ricoeur empreende nas décadas de 1960 e 1970 (período de publicação das obras abordadas em nosso estudo) é marcada "por várias tentativas de destronar não só a filosofia clássica do sujeito autônomo (Descartes e Kant), mas também seus sucedâneos contemporâneos, o existencialismo e o personalismo, com sua ênfase nos conceitos de responsabilidade e de decisão" (Gagnebin, 2009, p. 166). À "exaltação do Cogito", portanto, Ricoeur oporá um Cogito "quebrado" (brisé) ou "ferido" (blessé), como escreverá no prefácio a Soi-même comme un autre. "Mas essa quebra é, simultaneamente, a apreensão de uma unidade muito maior, mesmo que nunca totalizável pelo sujeito: a unidade que se estabelece, em cada ação, em cada obra, entre o sujeito e o mundo" (Gagnebin, 2009, p. 165).

Retomando o fio da discussão sobre a relação entre psicanálise e cultura, podemos apontar o ensaio "A psicanálise e o movimento da cultura contemporânea", do livro O conflito das interpretações, como outra linha fundamental para nossa discussão. Perguntamo-nos, com base no texto mencionado: de que modo podemos interpretar a cultura? Fundamentalmente, com referência ao antagonismo entre as pulsões eróticas e as pulsões de morte13. Se o homem fracassa em ser feliz, é porque existe uma pulsão de morte que indica "a hostilidade primordial do homem para com o homem" (Ricoeur, 1969/1988, p. 126). Ora, o meio que a civilização utiliza para sustentar essa agressividade é o sentimento de culpabilidade:

A interpretação cultural é levada tão longe que Freud pode afirmar que a interpretação expressa do seu ensaio [O mal-estar na civilização] "era precisamente apresentar o sentimento de culpabilidade como o problema capital do desenvolvimento da civilização", e fazer ver, além disso, por que é que o progresso desta deve ser pago com uma perda de felicidade devida ao reforço desse sentimento. Ele cita em apoio desta concepção o famoso dito de Hamlet: "Thus conscience does make cowards of us all..."14. (Ricoeur, 1969/1988, p. 129)

Deste sentimento somos remetidos para a analogia fundamental entre a etiologia das neuroses e a hermenêutica da cultura. Ricoeur mostra, a esse respeito, como a religião pode ser uma ocasião para uma releitura da neurose, como a culpabilidade a que está remetida torna a mergulhar na dialética das pulsões de vida e de morte. Portanto, aqui se insere um ponto crítico fundamental que separa Ricoeur de Freud. Se para este a religião se refere ao retorno do recalcado, ela também é inovação, pois o símbolo, como vimos, não aponta apenas para o que o precedeu, como também em um sentido prospectivo. Podemos, portanto, com Ricoeur, indagarmos se o sentido da religião estará contido num retorno do recalcado ou na retificação do antigo pelo novo. Em primeiro lugar, a religião é lida pelo fundador da psicanálise como ilusão. Diz Ricoeur: "A chave da ilusão é a dureza da vida, mal suportada pelo homem, por esse homem que não só compreende e sente, mas que o seu narcisismo inato torna ávido de consolação" (Ricoeur, 1969/1988, p. 131). Ora, para Freud a cultura não tem apenas como tarefa reduzir o desejo do homem, mas defendê-lo contra a superioridade esmagadora da natureza. A ilusão, pois, é também um método que a cultura emprega quando a luta efetiva contra os males de existência malogrou provisória ou definitivamente. Os ideais de cultura, entre eles os da religião, são criados com esse fim: "ela cria os deuses para exorcizar o medo, reconciliar com a crueldade da sorte e compensar o sofrimento de cultura" (Ricoeur, 1969/1988, p. 131). Portanto, essas ilusões introduzem na economia das pulsões um núcleo ideacional ou representativo sobre os quais se pronuncia dogmas que pretendem apreender uma realidade. É problematizando a diferença entre os tratamentos que Freud dá, simultaneamente, à arte e à religião, que Ricoeur divisa os limites da interpretação psicanalítica. O problema, para Ricoeur, está na própria definição freudiana de ilusão e imaginação. Ele expõe isso à luz dos rendimentos deixados por seu A simbólica do mal (1960/2013). Ricoeur retoma esse debate num ensaio de O conflito das interpretações chamado "A psicanálise e a cultura contemporânea", no qual afirma:

Precisarei ainda um pouco mais aquilo que, a meus olhos, falta à interpretação freudiana do problema cultural no seu conjunto e da ilusão em particular: uma ilusão, para Freud, é uma representação à qual não corresponde nenhuma realidade: a sua definição é positivista. Ora, não existe uma função da imaginação que escapa à alternativa positivista do real e do ilusório? Aprendemos, paralelamente ao freudismo e independentemente dele, que os mitos e os símbolos são portadores de um sentido que escapa a essa alternativa. Uma outra hermenêutica, distinta da psicanálise, e mais próxima da fenomenologia da religião, ensina-nos que os mitos não são fábulas, isto é, histórias "falsas", "irreais". Essa hermenêutica pressupõe, contrariamente a todo positivismo, que o "verdadeiro", que o "real" não se reduzem àquilo que pode ser verificado por via matemática ou experimental, mas diz respeito também à nossa relação com o mundo, com os seres e com o ser. É esta relação que o mito começa por explorar de modo imaginativo. (Ricoeur, 1969/1988, p. 145)

Ricoeur valoriza, aqui, essa função da imaginação que, segundo ele, Espinosa, Hegel e Schelling, de maneiras diferentes, reconheceram bem (Ricoeur, 1969/1988, p. 145). Em relação à importância da imaginação, Ricoeur assinala um paradoxo na obra do psicanalista: "Freud está ao mesmo tempo muito perto e muito longe de a reconhecer" (Ricoeur, 1969/1988, p. 145). Conquanto valorize a teoria das ilusões de Freud, o filósofo francês, por seu turno, insiste na história progressiva da função simbólica, da imaginação, que não coincide inteiramente com o "retorno do recalcado" ou com a mera ilusão consoladora. Mas estamos nós em estado de distinguir essa repetição e essa inovação, de distinguir entre regressão e progressão? Significativamente, Ricoeur fala cada vez mais da via curta e da via longa, mas o faz agora em relação à psicanálise e às reações que ocasiona. Se a via curta conduz a mal-entendidos, a via longa deve ser entendida como uma transformação da consciência de si pela compreensão mediada pelos símbolos e mitos que narram a situação existencial do homem.

Aqui, pois, surge uma questão fundamental ao ensaio de Ricoeur de 1965 e aos demais textos que se debruçam sobre a psicanálise: será possível interpretar Freud filosoficamente? Podemos ler Freud como um pensador, tal como o fazemos com qualquer outro autor da história da filosofia? Não será a técnica psicanalítica, a necessidade incontornável da experiência clínica, tão destacada por Freud e seus epígonos, um obstáculo a esse tipo de empreitada? No ensaio "Uma interpretação filosófica de Freud" (1969/1988, p. 159), Ricoeur defende que uma leitura filosófica não só é possível, como também desejável. Por paradoxal que possa parecer, para Ricoeur é justamente a partir dos dados da filosofia reflexiva que a teoria psicanalítica se torna mais profícua. De fato, é ao longo desse percurso que reconstitui o edifício teórico do freudismo que podemos considerar como arqueologia, como modo de investigar as origens do sujeito. Há três direções fundamentais pelas quais podemos dividir a investigação de Freud: (1) a interpretação do sonho e do sintoma neurótico; (2) a interpretação da cultura; e (3) a introdução das pulsões de morte. Ricoeur mostra ainda nesse ensaio que há sempre dois universos de discursos a percorrer em psicanálise, reafirmando o aspecto fundamental de seu texto de 1965: a linguagem da força e a linguagem do sentido (Ricoeur, 1969/1988, p. 163).

Ora, é a esse propósito que Ricoeur recusa muitas das interpretações lacanianas, insistindo no fato de que o freudismo não se pode reduzir a uma semiologia. "É que são as palavras que são tratadas como coisas e não o inverso" (Ricoeur, 1969/1988, p. 168). Um pouco antes, Ricoeur escrevera que "se o discurso misto impede a psicanálise de oscilar para o lado das ciências da natureza, impede-a também de se virar para o lado da semiologia: as leis do sentido, em psicanálise, não podem reduzir-se às da linguística proveniente de Ferdinand de Saussure, de Hjelmslev ou de Jakobson" (Ricoeur, 1969/1988, p. 167). Compreende-se o tipo de discurso misto em que Ricoeur tanto insiste: o que inviabiliza não apenas conceber a psicanálise como ciência da natureza, como vê-la enquanto semiologia, onde a palavra teria um papel predominante. Onde há força há sentido e vice-versa.

Para além desse aspecto, interessa-nos ver como Ricoeur, uma vez mais, reencontra o pensador Jean Nabert, uma das influências diretoras de sua obra, em sua reflexão sobre outros autores e problemáticas. É assim, por exemplo, que podemos estabelecer um liame entre psicanálise e filosofia reflexiva: o apelo à reflexão concreta e o fato de o Cogito ser mediado por um universo de símbolos acaba por confirmá-lo. Para dizer de outro modo: Ricoeur recorre a Nabert para compreender o alcance do projeto psicanalítico. Não haverá também um contributo de Freud, por sua vez, à filosofia reflexiva? Depois de Freud, já não é possível estabelecer a filosofia do sujeito como filosofia da consciência. Reflexão e consciência já não coincidem: é preciso perder a consciência para encontrar o sujeito. E acrescenta:

Podemos dizer, num sentido um tanto paradoxal, que uma filosofia da reflexão não é uma filosofia da consciência se, por consciência, entendemos a consciência imediata de si mesmo. A consciência é uma tarefa. Mas ela é uma tarefa porque não é um dado. Sem dúvida, tenho uma percepção de mim mesmo e de meus atos, e esta percepção é uma espécie de evidência. Descartes não pode ser desalojado dessa proposição incontestável: não posso duvidar de mim mesmo sem perceber que duvido. Mas o que significa essa percepção? Certamente, uma certeza, mas uma certeza privada de verdade. Como bem compreendeu Malebranche, contra Descartes, essa apreensão imediata é apenas um sentimento e não uma ideia. Se a ideia é luz e visão, não há visão do Ego, nem luz da percepção. Sinto apenas que existo e que penso. Sinto que estou desperto. Eis a percepção. [...] Mas essa percepção não é conhecimento de si mesmo, nem pode ser transformada numa intuição sobre a alma substancial. A crítica decisiva dirigida por Kant a toda "psicologia racional" dissociou definitivamente a reflexão de todo pretenso conhecimento de si. (Ricoeur, 1965/1977, p. 46)

É no seio do Cogito que a psicanálise vem cindir a apoditicidade do Eu (je), das ilusões da consciência e das pretensões do Eu (Moi). A insistência de Ricoeur em mostrar como a psicanálise faz apelo a mediações pode ser vista no ensaio "Técnica e não técnica de interpretação" (1969/1988, p. 175). Novamente, o autor insiste no fato de que a psicanálise possui uma técnica que não pode ser separada do trabalho analítico, da clínica – o que corresponde no analisado a um outro trabalho. Se a interpretação psicanalítica visa e se fundamenta numa narrativa, mais do que em "fatos" (cf. Ricoeur, 2010, p. 17), é porque se baseia em mediações e recusa qualquer tipo de imediaticidade. Aqui, juntamente com Jean Nabert, é Espinosa que Ricoeur também invoca, por considerar que tanto Freud quanto o autor da Ética estão de acordo quanto à necessidade de suspender o controle da consciência e mostrar, por isso mesmo, que o homem é de certo modo escravo do desejo. O parentesco entre Freud e Espinosa é levantado quando se considera que o psicanalista não se engaja em prescrições morais, não traz ao analisando nenhuma resposta normativa. O problema da psicanálise é outro, como o formula Ricoeur (1969/1988, p. 191): "com que desejos vamos em direção ao problema moral? Em que estado de distorção está o nosso desejo quando colocamos a questão?" Se o ensaio "Totem e tabu" de Freud nos ensina a situar a onipotência entre os sonhos mais arcaicos do desejo, é preciso compreender que o único poder que a análise oferece ao homem é "uma nova orientação do seu desejo, um novo poder de amar. (...) Aquilo que os homens não dispõem é precisamente do seu poder de amar e de fruir, destruído pelos conflitos da libido e da interdição" (Ricoeur, 1969/1988, p. 191). Eis, novamente, a proximidade com Espinosa, na medida em que o grande problema aberto por Freud é a questão da satisfação, e que todos os sintomas que a psicanálise desmascara são figuras de satisfação substitutiva: "A psicanálise quer ser, assim, como a Ética de Espinosa, uma reeducação do desejo. É essa reeducação que ela põe como condição prévia a qualquer reforma do homem, quer seja intelectual, política ou social" (Ricoeur, 1969/1988, p. 191). Ricoeur termina esse ensaio afirmando que a psicanálise nos restitui não só o nosso poder falar como também o poder amar. É nesse sentido que ela pode ser uma libertação, já que permite tornarmo-nos conscientes de nós mesmos e de nosso lugar na cultura humana.

Para finalizar este ponto, perguntamo-nos que espécie de conclusão podemos tirar, para nossa investigação sobre a hermenêutica, do confronto com Freud. Ora, se o caminho da psicanálise consiste no da "desilusão", na destituição das ilusões, isso significa, segundo Ricoeur, que ela nos conduz a uma desmitizaão (Ricoeur, 1969/1988, p. 180). Ora, essa desmitização própria da psicanálise está expressamente ligada à semântica do desejo que a constitui. Os "deuses" que ela destrona são aqueles nos quais se refugiou o princípio de prazer, sob as figuras distorcidas que lhe conferem uma satisfação substituta, consoladora face à dureza da vida. Quando Freud remonta dos deuses ao complexo de Édipo, ao complexo paterno, destitui um ídolo, onde ele reconhece apenas a imagem aumentada da satisfação infantil. No ensaio "Hermenêutica e reflexão" (1969/1988, p. 282), Ricoeur volta-se para a interpretação da religião proposta por Freud em "Totem e tabu" (1913/1996), "O futuro de uma ilusão" (1927/1996) e "Moisés e o monoteísmo" (1939/1996), propondo-se a mostrar como é que uma hermenêutica redutora pode ser compatível com uma hermenêutica restauradora do sentido. Além disso, o propósito de Ricoeur também é o de mostrar como a desmitização psicanalítica é distinta de qualquer outra, como a do progresso da técnica e da Aufklärung em particular. Isso porque a desmitização freudiana mantem-se na dimensão da veracidade e não na do domínio: "Ela não pertence ao empreendimento de dispor de si, da natureza e dos outros homens, mas de se conhecer melhor nos desvios do desejo" (Ricoeur, 1969/1988, p. 187). Ricoeur está, pois, de acordo com Freud ao dizer que essa desmitização é necessária na medida em que ela diz respeito à morte da religião e dos mitos como superstição, o que pode ser ou não ser a contrapartida de uma fé autêntica, ou de alçar-se ou não à dimensão mítica, como uma potência de significação que vem destronar o pseudo-logos do mito. Consiste, então, numa redução dos ideais, para falarmos como os mestres da suspeita:

Como Espinosa, Freud começa por negar o arbítrio aparente da consciência, enquanto desconhecimento das motivações escondidas. É por isso que, de modo diferente de Descartes e Husserl, que começam por um ato de suspensão exprimindo a livre disposição do sujeito por ele próprio, a psicanálise, à imagem da Ética de Espinosa, começa por uma suspensão do controle da consciência, através do que o sujeito é igualado à sua verdadeira escravidão. [...] É este processo da ilusão que abre, como em Espinosa, uma nova problemática da liberdade, ligada já não ao arbitrário, mas à determinação compreendida. [...] Já não o livre-arbítrio, mas a libertação. Tal é a possibilidade mais radical, aberta perante nós pela psicanálise. (Ricoeur, 1969/1988, p. 189, grifo do autor)

Se essa desocultação tem grande importância para a hermenêutica dos símbolos e para a crítica da religião, Ricoeur também desenvolverá essa discussão num outro sentido, a partir do ensaio "Religião, ateísmo, fé", na última seção de O conflito das interpretações. Este tema obriga Ricoeur a realçar um desafio radical e a dizer até que ponto ele é capaz de assumir, pelo seu próprio pensamento hermenêutico, a crítica da religião saída de um ateísmo tal como o de Nietzsche, de Marx e de Freud, e até que ponto ele se considera, como cristão, "para além deste pôr à prova" (Ricoeur, 1969/1988, p. 430). Nesse ensaio, ele busca o que chama, paradoxalmente, de significação religiosa do ateísmo. Esse termo implica que a desmitização e o desocultamento, provenientes de uma hermenêutica da suspeita, não esgotam a significação dos mitos, dos símbolos e da religião, mas libertam o horizonte para o surgimento de alguma coisa diferente: "para uma fé susceptível de ser chamada, à custa de precisões ulteriores, uma fé pós-religiosa, uma fé para uma idade pós-religiosa" (Ricoeur, 1969/1988, p. 430). Ricoeur reconhece a dificuldade dessa tarefa e os riscos oferecidos ao pensamento, mas afirma, contudo: "Prefiro correr o risco inverso, o de falhar o objetivo abrindo um caminho que se perde a meio" (Ricoeur, 1969/1988, 431). É este, aliás, o estatuto de toda reflexão, segundo Ricoeur: um horizonte aberto sem pretensões de fechamento ou totalização. Eis, pois, a significação religiosa do ateísmo, e o grande contributo da hermenêutica da suspeita, que nos conduzem da simples resignação a uma vida poética: "É preciso que um ídolo morra para que comece a falar um símbolo" (Ricoeur, 1969/1988, p. 456).

 

4) Considerações finais: entre a suspeição e a restauração do sentido

Nossa reflexão pretendeu investigar as tensões manifestas pelo encontro entre o projeto de uma filosofia reflexiva e a psicanálise. Nossa indagação partiu dos trabalhos de Ricoeur sobre os textos de Freud e surgiu do fato de a psicanálise ter introduzido um dos maiores embaraços às filosofias da consciência na medida em que estabeleceu o inconsciente psíquico como fundamento e matriz de toda subjetividade. Em contraste, Ricoeur caracteriza sua tradição filosófica segundo três traços: "ela segue a linha de uma filosofia reflexiva, continua dependente da fenomenologia husserliana [e] quer ser uma variante hermenêutica dessa fenomenologia" (Ricoeur, 1989, p. 189). Portanto, ele reforça sua pertença à tradição reflexiva iniciada por Husserl, mas com um desvio fundamental: em seu acesso à subjetividade, essa filosofia reflexiva deve assumir a forma de uma hermenêutica que interprete os signos, símbolos e mitos que distinguem a existência do homem. Diante buscamos indagar que dificuldades, tensões e contribuições a leitura de Freud ofereceu ao projeto filosófico de Ricoeur.

Nossa argumentação consistiu em demonstrar a relevância dessa problemática tal como é apresentada por Ricoeur. A nosso ver, o filósofo consegue, por meio da hermenêutica dos símbolos adotada em obras anteriores, apresentar uma reflexão filosófica sobre a psicanálise e apropriar-se de um discurso que se beneficia dela, enquanto movimento de desconstrução da consciência imediata, e aponta uma saída para a aporia em que se encontrava o sujeito. Com Ricoeur, a denegação do Cogito, potencializada pela psicanálise, é habilmente submetida à reflexão crítica e instrumentalizada estrategicamente para servir ao discurso de valorização de uma nova concepção do sujeito. Nas palavras de Ricoeur, é preciso discernir "na psicanálise, na própria guerra hermenêutica e na problemática de toda a linguagem uma crise da reflexão, isto é, no sentido forte e filosófico do termo, uma aventura do Cogito e da filosofia reflexiva que dele procede" (Ricoeur, 1965/1977, p. 41). Diríamos que, das cinzas do sujeito (ou Cogito) cartesiano, deixadas pelo desmonte freudiano da consciência, Ricoeur faz renascer uma nova concepção da existência humana e da subjetividade, depurada de sua falsidade ou imediatez.

Ressaltamos mais uma vez que o trabalho de Ricoeur não tem um cunho caracterizadamente psicanalítico, mas filosófico. Ricoeur foi um assíduo e cuidadoso leitor de Freud, e seu interesse foi o de problematizar a hermenêutica a partir do pensamento de Freud, e não propriamente contribuir para o campo da psicanálise e das escolas pós-freudianas. É como filósofo que se propõe a tarefa de interpretar a obra do psicanalista como um monumento de cultura. O que lhe importa é a nova concepção de homem introduzida por Freud (Ricoeur, 1965/1977, p. 11). É através da obra de Freud, inclusive, que Ricoeur já divisa uma passagem da hermenêutica dos símbolos para a hermenêutica do texto em sentido amplo, quando nota que Freud faz uso de uma noção de texto já liberta da noção de escritura: "Freud recorre a ela com frequência, especialmente quando compara o trabalho da análise com a tradução de uma língua para a outra. O relato do sonho é um texto ininteligível que o analista substitui por um texto mais inteligível. Compreender é fazer essa substituição" (Ricoeur, 1965/1977, p. 31). É a essa analogia entre psicanálise e exegese de texto que alude o título da obra mais conhecida de Freud, A interpretação dos sonhos (Traummdeutung) (1900/2001), à qual o filósofo se detém em boa parte de sua obra sobre o legado freudiano.

Freud, juntamente com Nietzsche, Marx e Feuerbach, por terem em comum o exercício da dúvida a respeito da consciência imediata de si, são chamados por Ricoeur de mestres da suspeita, pensadores que recusaram as certezas da consciência imediata e quedisso, assinalaram a possibilidade da ilusão a respeito da consciência de si. A crítica que fazem da modernidade, desencadeada pelo questionamento dessas certezas, sublinhou a importância do sonho e da decifração da linguagem onírica – uma das zonas de emergência do símbolo – para a compreensão do homem. Os problemas filosóficos implicados são a discussão do estatuto epistemológico da psicanálise e a descoberta da crise da noção de consciência. Trata-se, pois, de reconhecer que a consciência não está na origem de nossa existência, mas que ela é uma tarefa hermenêutica. Dizer que a consciência é uma tarefa significa que é preciso uma mediação entre esses dois empreendimentos, a redução das ilusões e a restauração do sentido mais pleno, que faz com que a consciência deva ser conquistada, no lugar de ser um ponto de partida absoluto, pois essas duas hermenêuticas (da restauração e da redução) "têm em comum o caráter de descentrar a origem do sentido em direção a outro núcleo que não é mais o sujeito imediato da reflexão" (Ricoeur, 1965/1977, p. 54). Se em A simbólica do mal (1960/2013) Ricoeur aprofundara a antinomia do mito e da filosofia, através de um estudo dos mitos do mal que punha em seu centro a mediação entre o símbolo e a reflexão de modo mais amplo, é a partir de Da interpretação (1965/1977) que ele argumentará que essa mediação não é dada, mas deve ser construída: "Sem dúvida, precisamos distanciar-nos de nós mesmos, desalojar-nos do centro para saber, enfim, o que significa: Penso, existo" (Ricoeur, 1965/1977, p. 44, grifo do autor).

Desde o início de sua trajetória em Le Volontaire et l'involontaire (1950/2009), tese doutoral do filósofo, Ricoeur situa-se num combate às versões mais exacerbadas do idealismo, em particular à pretensão de autossuficiência da consciência de si, para ressaltar os limites dessa tentativa. Isso se evidencia por meio da aceitação dos limites apresentados pela crítica kantiana, onde ficam expostas as demarcações intransponíveis da racionalidade e da linguagem humanas, sob pena de cair nas aporias ou, pior, na hybris (desmesura) de um pensamento que se autoinstitui em absoluto. Nessa empreitada de oposição aos exageros da tradição idealista, Ricoeur aponta como fio condutor de sua filosofia uma pesquisa das relações da consciência e do sujeito com o mundo que os circunscreve e os constitui por inúmeros laços. À "exaltação do Cogito" ele opõe um Cogito "desancorado" ou "partido", como escreve no prefácio a O si-mesmo como outro:

Sujeito enaltecido, sujeito humilhado: ao que parece é sempre por meio dessa inversão entre o pró e o contra que se faz a abordagem do sujeito; daí seria preciso concluir que o "eu" das filosofias do sujeito é atopos, sem lugar garantido no discurso. (Ricoeur, 2014, p. 30)

A hermenêutica elaborada por Ricoeur caminhará, pois, cada vez mais na direção de um lugar epistêmico e ontológico situado além dessa alternativa entre cogito e anticogito.

A abordagem de Ricoeur da problemática do sujeito é eminentemente hermenêutica e interessa-lhe elaborar o próprio conceito de interpretação. "À interpretação como restauração do sentido, opomos globalmente a interpretação segundo o que chamamos coletivamente de a escola da suspeita" (Ricoeur, 1965/1977, p. 36). Eis a guerra das hermenêuticas aberta pelo estudo do símbolo. A mediação entre símbolo e reflexão, como vimos, não está dada ao alcance da mão. Tanto a interpretação fenomenológica do sagrado quanto a interpretação psicanalítica, que parecem opor-se polarmente, são igualmente estranhas ao estilo e à intenção fundamental do método reflexivo:

O sagrado, manifestado em seus símbolos, não parece referir-se mais à revelação que à reflexão? Quer olhemos para trás, em direção à vontade de poder do homem nietzschiano, em direção ao ser genérico do homem marxista, em direção à libido do homem freudiano, quer olhemos para a frente, em direção ao núcleo transcendente da reflexão, que aqui designamos com o termo vago de sagrado, o núcleo do sentido não é a "consciência", mas algo diferente da consciência. (Ricoeur, 1965/1977, pp. 54-55)

Devemos concluir, portanto, que essas duas hermenêuticas, muito embora contrárias, colocam a filosofia diante de um mesmo embaraço: "será que a desapropriação da consciência em proveito de outro núcleo de sentido pode ser compreendida como um ato de reflexão, até mesmo como o primeiro gesto da reapropriação?" (Ricoeur, 1965/1977, p. 55). Vimos que a metapsicologia de Freud sugere à filosofia o desapossamento da consciência como caminho e o tornar-se consciente como tarefa.

A dialética entre as linguagens energética e hermenêutica da psicanálise sugere que ela deve ser entendida pelo desejo que a sustenta. E o engajamento profundo na luta das interpretações é o que faz surgir, como uma exigência própria do conflito das hermenêuticas, "o meio de enraizá-las conjuntamente na reflexão" (Ricoeur, 1965/1977, p. 55). Essa reflexão, por sua vez, não será mais a posição tão frágil quanto categórica do Cogito ergo sum: "ela se tornará reflexão concreta, e se tornará tal graças à austera disciplina hermenêutica" (Ricoeur, 1965/1977, p. 55).

A consciência, assim, experimenta seu primeiro trabalho de luto, pois é abandonada como centro da estrutura de nossa existência. Diante da falsidade constatada na consciência imediata, evidencia-se a necessidade da interpretação para a verdadeira autocompreensão. Fica claro, para Ricoeur, que o ato de existir afirma-se na diferença e na relação com outros atos, exprime-se por meio de obras, símbolos e sinais. Essa "perda" da consciência, para alguém formado na escola da fenomenologia, desorienta o filósofo, ao menos inicialmente. Ele é obrigado a transpor a opacidade antifenomenológica que questiona a apoditicidade da reflexão e a imediatez da consciência. Ora, Freud, como os demais mestres da suspeita, não é, contudo, um mestre do ceticismo. Certamente é um grande destruidor. É esse ponto que Ricoeur irá explorar para assimilar o impacto que, por exemplo, a psicanálise causará nas suas formações filosófica e religiosa: "A destruição, diz Heidegger em Sein und Zeit, é um momento de toda nova fundação, inclusive a destruição da religião" (Ricoeur, 1965/1977, p. 37). A hermenêutica da suspeita limpa o horizonte para uma palavra mais autêntica, "não somente mediante uma crítica 'destruidora', mas pela invenção de uma arte de interpretar" (Ricoeur, 1965/1977, p. 37, grifo nosso). A dúvida sobre a consciência é transposta, assim, por uma exegese do sentido. A partir de então, a compreensão se torna uma hermenêutica.

Apropriando-se do instrumental oferecido pela metapsicologia de Freud, que colocou a consciência como uma entre outras localidades psíquicas, a reflexão que passa pela "ascese" freudiana deve assumir a interpretação da semântica do desejo, como um dos instrumentos fundamentais da reflexão. Ao contrário da ancoragem positivista da psicanálise que a assimila a uma psicologia experimental, ou de leituras que reduzem o inconsciente a formações linguísticas, Ricoeur faz do inconsciente um problema relevante de uma teoria da interpretação, como se se tratasse de decifrar os símbolos produzidos pelo inconsciente tal como um texto, com sua obscuridade, seus equívocos, sua pluralidade de sentido. Compreender o sentido do sonho é entendê-lo como uma operação inteligível, como um texto:

Essa assimilação do sentido a um texto permite que se corrija o que permanece equívoco na noção de sintoma. Certamente, o sintoma já é um efeito-signo e apresenta a estrutura mista que todo o nosso estudo pretende abarcar. Mas essa estrutura mista é melhor revelada pelo sonho que pelo sintoma. Por sua pertença ao discurso, o sonho revela o sintoma como sentido e possibilita coordenar o normal e o patológico naquilo que se poderia chamar uma semiologia geral. (Ricoeur, 1965/1977, p. 84)

Retomando e complementando a hermenêutica dos símbolos empreendida em A simbólica do mal, Ricoeur (1960/2013) agora anuncia o símbolo como sobredeterminado, expandindo o uso da expressão psicanalítica. Ricoeur propõe a seguinte tese: "o que a psicanálise chama de sobredeterminação não se compreende fora de uma dialética entre duas funções que são pensadas em oposição, mas que o símbolo coordena numa unidade concreta" (Ricoeur, 1965/1977, p. 400, grifo nosso). A ambiguidade do símbolo está na sua capacidade de sustentar e de engendrar interpretações opostas e coerentes cada uma em si mesma. O autor nos fala, pois, de uma determinação tanto arqueológica quanto teleológica, buscando na textura do símbolo o entrecruzamento das duas linhas de interpretação, cuja conciliação pensamos abstratamente. Convida-nos, assim, a melhor "escutar" o símbolo.

A hermenêutica do símbolo ou da recuperação do sentido não seria possível sem a crítica da psicanálise e de toda a escola da suspeita. Graças a essa hermenêutica da suspeição, Ricoeur pode afirmar que não há apreensão direta de si por si, mas somente pela via longa da interpretação dos símbolos. Aliás, essa é tarefa diretora do trabalho filosófico de Ricoeur: chegar à reflexão concreta, ou seja, ao Cogito mediatizado por todo o universo dos signos. É desse modo que uma filosofia da reflexão pode alimentar-se da fonte simbólica dos mitos e tornar-se hermenêutica.

 

Referências

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Endereço para correspondência

Jonas Torres Medeiros
E-mail: jtorresmedeiros@gmail.com

 

 

* Psicólogo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) e mestre em filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
1 "Ousaria, provisoriamente pelo menos, nomear esta tarefa 'dedução transcendental' do símbolo. A dedução transcendental, no sentido kantiano, consiste em justificar um conceito mostrando que ele torna possível a constituição de um domínio de objetividade. Ora, se me sirvo dos símbolos do desvio, da errância, do cativeiro, como de um detetor de realidade, se decifro o homem a partir dos símbolos míticos do caos, da mistura e da queda, em suma, se elaboro, seguindo uma mítica da existência má, uma empírica da liberdade serva, posso dizer então que, em contrapartida, terei 'deduzido' – no sentido transcendental do termo – o simbolismo do mal humano. Com efeito, o símbolo, empregue como detetor e decifrador da realidade humana, terá sido verificado pela sua capacidade de suscitar, de esclarecer, de ordenar essa região da experiência humana, essa região da confissão, que é por vezes demasiado facilmente reduzida ao erro, ao hábito, à emoção, à passividade, em suma, a uma ou outra das dimensões da finitude que não têm necessidade dos símbolos do mal para serem abertas e descobertas" (Ricoeur, 1960/2013, p. 273).
2 Segundo Oliver Abel (1996, p. 13): "Entrar na obra de Ricoeur é (...) uma tarefa simples, desde que se retome as suas questões iniciais, em que cada uma é o essencial da seguinte: o que é um sujeito simultaneamente capaz e frágil, ativo e submisso? Como pode ele ser responsável? O que é o mal, se o mal sofrido excede largamente o mal cometido?".
3 A respeito da polêmica gerada pela acusação de ter plagiado as ideias de Lacan acerca da importância do campo da linguagem para a compreensão de Freud, é importante lembrar que o interesse de Ricoeur por Freud se iniciara com os estudos de A simbólica do mal, e que Ricoeur havia dado cursos sobre Freud antes de ler a obra de Lacan e de frequentar seus seminários (cf. Ricoeur, 2009, pp. 113-153). Na introdução de Da interpretação, Ricoeur (1965/1977) esclarece que seu livro versa sobre Freud e não sobre a psicanálise, pois lhe falta, como ele mesmo o admite, a experiência analítica e, além disso, porque não lhe interessa o exame das escolas pósfreudianas. Ricoeur lê a obra de Freud como "um monumento de nossa cultura, como um texto em que esta se exprime e se compreende" (Ricoeur, 1965/1977, p. 11), assumindo o risco que esse tipo de empreitada acarretará: "O leitor julgará se tal risco é um vão desafio" (Ricoeur, 1965/1977, p. 11). Na entrevista concedida a Marc de Launay em 1995, Ricoeur lembra a atmosfera reinante nos seminários de Lacan e, a respeito do psicanalista francês, recorda: "Creio que, no fundo, ele esperava de mim o que esperara sucessivamente de Hyppolite e de Merleau-Ponty: uma espécie de caução filosófica. Decepcionei-o, como é de ver, neste ponto" (Ricoeur, 2009). Para mais detalhes sobre a polêmica, cf. Ricoeur, P. (2009). A crítica e a convicção. Lisboa: Edições 70, sobretudo o capítulo "Da psicanálise à questão do si mesmo, ou trinta anos de trabalho filosófico" (p. 113).
4 Até certo ponto, a própria fenomenologia de Husserl, espírito diretor do método de Ricoeur, pode ser compreendida como um esforço de explicitação das significações veladas. Explorar a riqueza do universo de significações que a coisa nos revela no ato intencional é o que é próprio da atitude fenomenológica. Essa atitude faz da fenomenologia a "ciência clarificadora" por excelência (Kelkel; Schérer, 1982), e seu método se caracteriza, por sua vez, como um esforço de evidenciação [Evidentmachung] plena dos fenômenos (Husserl, 2015). Através da redução fenomenológica, o mundo se abre na e para a consciência intencional como um horizonte de sentidos. O que se renuncia, pela epoché, é à ingenuidade da atitude natural, e não ao mundo cultural e histórico ele mesmo, razão pela qual, como argumenta Ricoeur (1989), hermenêutica e fenomenologia se sustentam reciprocamente. Ou, como lembra Merleau-Ponty: "Suspendê-las [as atitudes que constituem o solo da pré-reflexão], porém, não é negá-las, e, menos ainda, negar o vínculo que nos liga ao mundo físico, social e cultural; ao contrário, é vê-lo e ser dele consciente" (Merleau-Ponty, 1951/1973, p. 22).
5 Todo o conteúdo gerador de conflito doloroso para o aparelho psíquico tende a ser recalcado, a ficar relegado ao inconsciente, sem, no entanto, permanecer silenciado. O trabalho do sonho é entendido, assim, como o trabalho de distorção necessário para que o material inconsciente possa se manifestar. É o meio pelo qual o desejo pode se satisfazer parcialmente por meio de um substituto manifesto (esse jogo entre o conteúdo latente e o material manifesto no sonho é a razão pela qual Ricoeur fala em uma semântica do desejo). Freud descreve o trabalho do sonho nos capítulos 6 e 7 de A interpretação dos sonhos (Freud, 1900/2001, pp. 172-276, passim).
6 Para uma apresentação mais sucinta e precisa sobre esse ponto, cf. Ricoeur, P. (2013). Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação. Lisboa: Edições 70, passim.
7 Manuscrito em estado de esboço, publicado postumamente, em que Freud tenta descrever neurofisiologicamente suas descobertas. Se, por um lado, é a última tentativa de Freud para dar um solo anátomofisiológico às suas descobertas, por outro também "é um adeus à anatomia sob a forma de uma anatomia fantástica" (Ricoeur, 1965/1977, p. 76). É um texto anterior à fundação da psicanálise propriamente dita. As noções de quantidade, de princípio de constância e de inércia são traçadas para dar um modelo energético-causal ao esquema explicativo da "psicologia científica" do jovem Freud. Ao contrário de A interpretação dos sonhos (1900/2001) e de textos posteriores, em que sentido e interpretação assumem um papel mais determinante, "o 'Projeto' de 1895 representa o que se poderia chamar um estado não hermenêutico do sistema" (Ricoeur, 1965/1977, p. 69, grifo nosso).
8 Como dirá, por exemplo, acerca dos ensaios de Freud que se dedicam à análise das obras de arte: "Eles [esses ensaios] se assemelham a certa reconstituição arqueológica, esboçando todo o monumento à maneira de um contexto provável, a partir de um detalhe arquitetônico. Em contrapartida, é a unidade sistemática do ponto de vista que sustenta o conjunto desses fragmentos, à espera da interpretação global da obra de cultura, de que falaremos mais adiante. Explica-se, assim, o caráter bastante peculiar desses ensaios, a surpreendente minúcia do detalhe e o rigor, e mesmo a rigidez, da teoria que coordena esses fragmentários estudos com o grande afresco do sonho e da neurose. Considerados como peças isoladas, cada um desses estudos é bastante circunscrito" (Ricoeur, 1965/1977, p. 143, grifo nosso).
9 Em "Dois verbetes de enciclopédia" (1923/1996), Freud dá à psicanálise uma definição em três partes intimamente articuladas. Essa tripla definição foi reiteradamente destacada por Ricoeur (2011, passim): a psicanálise trata da relação triangular entre (1) um procedimento de investigação, (2) uma forma de tratamento e (3) uma teoria (metapsicologia). Nas palavras do próprio Freud, no referido verbete, a psicanálise pode ser definida como: "1. um procedimento para a investigação de processos mentais que são quase inacessíveis por qualquer outro modo; 2. um método (baseado nessa investigação) para o tratamento de distúrbios neuróticos; e 3. uma coleção de informações psicológicas obtidas ao longo destas linhas, e que gradualmente se acumula numa nova disciplina científica" (Freud, 1923/1996, p. 253). A metapsicologia é justamente esse terceiro ponto: o rendimento teórico aduzido pelo método de investigação e pela forma de tratamento, que são de interesse mais direto do filósofo (embora as três partes sejam indissociáveis).
10 Esse descentramento da consciência será mais radicalmente formulado por Lacan na inversão da sentença: "penso, logo sou" em "eu não sou lá onde sou joguete de meu pensamento; penso naquilo que sou lá onde não penso pensar" (Lacan, 1954-1955/1985, p. 521). Contudo, a leitura que Lacan empreende sobre o discurso freudiano aproxima-se inicialmente do estruturalismo sob a influência preliminar de Claude Lévi-Strauss. Ricoeur não era alheio às discussões do estruturalismo e muito se dedicou a discutir o valor e as limitações desse método, destacando sua posição hermenêutica em relação ao conjunto das leituras estruturalistas em ciências humanas (cf. Ricoeur, P. [1969/1988]. O conflito das interpretações, Porto: Rés, pp. 28, 80, passim). Ricoeur lembra, inclusive, que Lévi-Strauss "foi (...) um adversário do qual minha própria defesa da filosofia do sujeito procurou tornar-se digna" (Ricoeur, 2009, p. 127). É importante notar que Lévi-Strauss (2008) aponta a psicanálise como avatar no século XX da eficácia simbólica já conhecida e posta em prática terapeuticamente pelas civilizações desde os tempos remotos do xamanismo: um avatar que presume não a extinção, mas a individualização da experiência mítica. Essa semelhança entre mito e psicanálise pode ser posta sob o signo da espessura narrativa, manifesta tanto no mito como no processo terapêutico, formulação a qual Ricoeur se dedicará na conferência "A vida: uma narrativa em busca de narrador" (Ricoeur, 2010). Contudo, o descentramento do sujeito em Ricoeur está ligado, novamente, à tradição hermenêutica. Esse descentramento de algum modo já fora preconizado por Husserl (2001) como superação do dualismo cartesiano e reconsiderado no contexto da teoria do sujeito transcendental. O descentramento do sujeito é articulado por Ricoeur como resultado irrecusável da mediação dos símbolos e mitos, dos textos e da circulação da palavra em suas diversas manifestações.
11 Termo surgido na França em 1625, derivado do latim pulsio, para designar o ato de impulsionar. É usado pelos intérpretes franceses de Freud (entre eles, o próprio Ricoeur) como tradução do termo alemão Trieb. Empregado por Freud a partir de 1905, tornou-se um grande conceito da teoria psicanalítica, definido como a carga energética que se encontra na origem da atividade motora do organismo e do funcionamento psíquico inconsciente do homem. Foi na versão inicial dos "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" que Freud recorreu pela primeira vez à palavra pulsão. Freud caracterizou a pulsão (Trieb) como um "conceito fundamental convencional do qual não podemos prescindir" (1905/1996, p. 117). As pulsões são concebidas como forças de "fonte endossomática" que buscam satisfação incessantemente. É entendida, além disso, como um conceito limítrofe entre o somático e o psíquico (cf. Freud, 1905/1996).
12 O complexo de Édipo é a representação inconsciente pela qual se exprime o desejo sexual ou amoroso da criança pelo genitor do sexo oposto e sua hostilidade para com o genitor do mesmo sexo. Em geral, esses afetos de amor e hostilidade apresentam-se como afetos simultâneos e geradores de ambivalência e conflito no "aparelho psíquico". Nesse sentido, o Édipo designa, ao mesmo tempo, o complexo definido por Freud e o mito fundador sobre o qual repousa a teoria psicanalítica como elucidação das relações do ser humano com suas origens e sua genealogia familiar e histórica. O termo é tão fundamental que pode ser encontrado em quase toda a obra de Freud. Para uma minuta do desenvolvimento do termo na história da psicanálise, de acordo com seu próprio criador: Cf. Freud, S. A História do Movimento Psicanalítico. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996, passim.
13 Em 1920, com a publicação do ensaio "Além do princípio de prazer", Freud (1920/1996) instaurou um dualismo pulsional no qual opõe as pulsões de vida às pulsões de morte, Eros e Thanatos. A repercussão desse dualismo foi intenso, tanto por seus efeitos no pensamento filosófico do século XX quanto pelas polêmicas e pelas rejeições que essa tese provocaria no próprio interior do movimento psicanalítico. Foi a partir da observação da compulsão à repetição que Freud pensou em teorizar aquilo a que chamou pulsão de morte. De origem inconsciente e, portanto, difícil de controlar, essa compulsão leva o sujeito a se colocar repetitivamente em situações dolorosas, réplicas de experiências antigas. Mesmo que não se possa eliminar qualquer vestígio de satisfação libidinal desse processo, o que contribui para torná-lo difícil de observar em estado puro, o simples princípio de prazer não pode explicá-lo. Assim, Freud reconheceu um caráter "demoníaco" nessa compulsão à repetição. Foi a análise do Pequeno Hans (nome fictício de Herbert Graf), bem como o estudo das neuroses de guerra, que lhe demonstraram sua existência.
14 "É assim que a consciência faz de nós todos covardes".

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