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Natureza humana

Print version ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.17 no.1 São Paulo  2015

 

ARTIGOS

 

A atualidade como questão: ontologia do presente em Michel Foucault

 

The actuality as a question: ontology of present in Michel Foucault

 

 

Rafael Nogueira Furtado*

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho tem por objetivo analisar a noção de "ontologia do presente" elaborada por Michel Foucault, explicitando os estudos do filósofo sobre a produção histórica de subjetividades. Cumpre investigar o contexto de surgimento da referida noção, retomando os escritos de Foucault sobre a moral greco-romana antiga, nos quais ele problematiza o papel da liberdade e da autonomia na formação do cidadão. Para Foucault, a ontologia do presente consiste em uma crítica dos dispositivos de assujeitamento e dominação, engendrados pelas sociedades disciplinares e de controle. Através dessa crítica, o filósofo buscará por instrumentos de análise da atualidade, vislumbrando a possibilidade de transformação dos processos históricos de subjetivação.

Palavras-chave: ontologia do presente; subjetividade; história; Michel Foucault; atualidade.


ABSTRACT

This paper aims to evidence the meaning of "ontology of present", a concept elaborated by Michel Foucault, and intends to elucidate the philosopher's idea that subjectivity is historically formed. The context of the concept's emergence will be analyzed, considering Foucault's studies on the ancient greco-roman moral, in which he discuss the role of liberty and autonomy in the development of citizens. To the philosopher, the ontology of present consists in a critic of the domination and subjugation mechanisms, produced by disciplinary and control societies. With this critic, Foucault pictures theoric tools to analyze the actuality, making possible to transform the historical processes of subjectification.

Keywords: ontology of the present; subjectivity; history; Michel Foucault; actuality.


 

 

1) Introdução

Em uma conversa intitulada "Os intelectuais e o poder", publicada na França em 1972, Michel Foucault e Gilles Deleuze refletiam sobre as relações entre pensamento e ação, teoria e prática. Tratava-se de compreender qual era o papel dos intelectuais frente aos acontecimentos históricos pelos quais são permanentemente interpelados. Juntos, os dois pensadores chegavam ao consenso de que conceitos e formulações teóricas possuem uma principal função: consistem em uma "caixa de ferramentas" (Deleuze & Foucault, 1979/2010, p. 71). Sua importância deve ser medida por sua capacidade em serem utilizados como instrumentos, como "óculos dirigidos para fora" (Deleuze & Foucault, 1979/2010, p. 71).

Os conceitos elaborados por Foucault, no conjunto de seus trabalhos, podem ser entendidos como ferramentas que permitem compreender eventos históricos, visando produzir sobre esses eventos efeitos determinados. Entre as diversas formulações teóricas do filósofo, está a ontologia do presente. Seu aparecimento data de 1983, na ocasião da primeira aula do curso O governo de si e dos outros, ministrado no Collège de France.

Foucault denominará ontologia do presente o gesto de interrogar-se sobre a atualidade, identificando nela a existência de dispositivos de subjetivação, possibilitando a emergência de novos modos de relação do sujeito consigo e com os outros. Tal ontologia estabelece-se como o campo em que a crítica da menoridade política, moral e intelectual poderá se efetuar

O conceito mantém relações estreitas com outras noções caras ao pensamento foucaultiano. Ele surge na esteira das análises do filósofo sobre a ética na Antiguidade greco-romana, o Iluminismo, a noção de atitude crítica e a problemática do governo das condutas. Um conjunto de temas que se articulam, possibilitando a Foucault lançar luz sobre questões como: que atualidade é essa de que somos parte? Qual experiência fazemos de nós mesmos, enquanto pertencendo a este presente? Quais as formas de luta e resistências contemporâneas?

Como ressalta o filósofo, mecanismos de poder e formas de saber fundamentam práticas coercitivas de controle dos corpos, normatização de comportamentos e subjetivação. Todavia, através da noção de ontologia do presente, Foucault procura realizar a crítica dessas práticas, abrindo a via de sua possível transformação. Um trabalho que coloca, no centro de suas preocupações, problemáticas éticas relativas à autonomia e liberdade dos sujeitos.

 

2) A ética das técnicas de si

O aparecimento do termo ontologia em Foucault dá-se no interior das discussões por ele travadas sobre a moral na Antiguidade greco-romana. Para ele, deve-se entender por moral: primeiramente, valores e regras impostas aos homens através de mecanismos diversos como a família, as instituições, os poderes políticos, entre outros; em segundo lugar, moral designa a maneira como os indivíduos se posicionam ou submetem-se frente a esses valores e regras; por fim, ela consiste na forma particular com que os indivíduos conduzem a si mesmos no interior de determinado código de conduta (Foucault, 1984/2012, pp. 33-34).

Foucault procura mostrar como, para gregos e romanos, está em questão não apenas a formulação de princípios que orientam a ação, mas de "uma certa relação a si" em que o sujeito "estabelece para si um certo modo de ser que valerá como realização moral dele mesmo; e, para tal, age sobre si mesmo, procura conhecer-se, controla-se, põe-se à prova, aperfeiçoa-se, transforma-se" (Foucault, 1984/2012, p. 37). A reflexão moral por eles tecida se estruturaria em torno de dois polos complementares: um polo relativo a códigos de ação e outro relativo a formas de subjetivação. O estudo de Foucault sobre a moral antiga tem como foco a análise deste último polo.

A condução de si no âmbito moral apresenta aspectos diversos. Remete a uma "substância ética", isto é, ao aspecto da conduta ou circunstância problematizada; a um "modo de sujeição" pelo qual o indivíduo se relaciona a certa regra e coloca-a em prática; a um "trabalho ético" de transformação exercido não apenas sobre o comportamento a ser moralizado, mas sobre o sujeito desse comportamento; e remete também a uma "teleologia do sujeito moral", que define o vínculo estabelecido entre duas ou mais ações morais (Foucault, 1984/2012, pp. 34-36).

O filósofo busca compreender como, para a cultura greco-romana, os sujeitos fizeram de sua própria existência objeto de uma elaboração detalhada e minuciosa visando exercer sobre si uma relação de domínio e soberania. O êthos grego era uma maneira de o homem conduzir-se, traduzida "pelos seus hábitos, por seu porte, por sua maneira de caminhar" (Foucault, 1994/2004, p. 270). A ele cumpria atingir, mediante um trabalho de si sobre si, um modo de vida que fosse "bom, belo, honroso, respeitável, memorável" (Foucault, 1994/2004, p. 270).

No centro dessa vida moralmente louvável estava o problema da liberdade. Somente uma existência livre poderia dizer-se ética, bem como por meio da ética é que seria dada uma forma à liberdade. Para Foucault, a princípio, não se trata de identificar a liberdade a um gesto de liberação, capaz de trazer novamente à superfície certa essência ou natureza humana, ocultadas por mecanismos que as alienaram. Se assim se passasse, bastaria que os homens fossem soltos de seus supostos grilhões para atingirem um estado de plenitude e satisfação.

Tampouco, a liberdade opõe-se ao poder. Ambos articulam-se num complexo jogo, em que a primeira está para o segundo como sua condição de possibilidade, ao passo que o poder oferece o horizonte histórico do exercício da liberdade. Configura-se, portanto, um cenário de forças em que "a recalcitrância do querer e a intransigência da liberdade" (Foucault, 1995, p. 244) chocam-se com práticas de dominação, à imagem de um perpétuo agonismo1. Eis, entre liberdade e poder, "uma relação que é, ao mesmo tempo, de incitação recíproca e de luta", tratando-se "menos de uma oposição de termos que se bloqueiam mutuamente do que uma provocação permanente" (Foucault, 1995, p. 245).

Nesse sentido, os estudos éticos de Foucault justapõem noções como a de governo dos homens e de governo de si. No âmbito da extensa literatura antiga, questionou-se a forma como os sujeitos conduziam-se a si mesmos, no coração de tecnologias diversas de condução dos outros. O sujeito ético não corresponde àquele que se produz "no éter a-histórico de uma autoconstituição pura", mas, ao contrário, ao que "emerge tão somente no cruzamento entre uma técnica de dominação e uma técnica de si" (Gros, 2001/2010, p. 475).

Vale ressaltar que essas técnicas de si "não são alguma coisa que o sujeito invente. São esquemas que ele encontra em sua cultura e que lhe são propostos, sugeridos, impostos por sua cultura, sua sociedade e seu grupo social" (Foucault, 1994/2004, p. 276). Eis, portanto, não uma liberdade absoluta, antitética a todo governar, mas "práticas de liberdade" (Foucault, 1994/2004, p. 266) que se efetuam em um campo de possibilidades concretas de ação.

Ao dedicar sua atenção às práticas de subjetivação elaboradas pela Antiguidade, Foucault (1994/2004, p. 275) assume a premissa de ser o sujeito uma "forma", em vez de uma "substância". Ele concebe a subjetividade na fronteira do móvel, do instável, do que é passível de transformações. Seus escritos são um esforço para compreender "diferentes formas de subjetividade" à luz de sua "constituição histórica" (Foucault, 1994/2004, p. 275), de sua emergência em conjunturas políticas, sociais e culturais. À pesquisa sobre os modos de constituição do sujeito nas malhas da história, Foucault denominará ontologia.

 

3) A crítica permanente de nosso ser histórico

O conceito de ontologia assumirá significados distintos, conforme os diferentes momentos em que o filósofo se utiliza dele. Pode-se tomar como marco de sua formulação o ano de 1983, mais especificamente a aula de 5 de janeiro, do curso O governo de si e dos outros, no Collège de France. Nesse momento, Foucault (2008/2011, p. 21) apresenta ao público termos como "ontologia do presente", "ontologia da atualidade", "ontologia da modernidade" e "ontologia de nós mesmos". Tais termos, equivalentes em seu significado, caracterizam um trabalho de interrogação da atualidade, transformando o presente em objeto de reflexão filosófica. Foucault (2008/2011, p. 21) dirá ter sido essa a forma de interrogação que ele procurou desenvolver em seus estudos.

Posteriormente, em abril do mesmo ano, em entrevista concedida a Dreyfus e Rabinow, Foucault (1984, p. 51) lançará mão da noção de "ontologia histórica" ao discutir sobre os procedimentos e objetos de seus estudos. Para o filósofo, suas análises sobre as relações entre saber e poder teriam se estruturado em três domínios. O primeiro corresponderia a uma "ontologia histórica de nós mesmos com relação à verdade através da qual nós nos constituímos como sujeitos de conhecimento"; o segundo, a "uma ontologia histórica de nós mesmos relacionada a um campo de força através do qual nós nos constituímos como sujeitos agindo sobre outros"; o terceiro, a "uma ontologia histórica relacionada à ética através da qual nós nos constituímos como agentes morais" (Foucault, 1984, p. 51).

Em 1984, o termo "ontologia" virá articulado à noção de crítica, como se pode constatar no texto "O que são as Luzes?" (Foucault, 1994/2008, p. 351). Foucault (1994/2008, p. 51) abordará a possibilidade de realização de uma "ontologia crítica de nós mesmos". Nesse empreendimento encontra-se em relevo a ideia de "limite". A crítica e, por conseguinte, a ontologia crítica referem-se ao gesto de colocar em evidência limites instituídos, isto é, normas, organizações sociais, valores, acontecimentos históricos, políticas estabelecidas e modos de gestão dos corpos, os quais dão à experiência seu enquadramento, configurando o campo do pensável, do dizível e do factível. Ao expor as conjunturas históricas de constituição das subjetividades e de organizações sociais, trata-se, para Foucault, de problematizar sujeitos e instituições, confrontando-os com a possibilidade de sua própria destituição. É um processo de dessubjetivação em que o estatuto do indivíduo é implodido, tendo em vista a composição de outras formas de relação consigo e com os outros.

A ontologia do presente é um modo de abordar fenômenos históricos e sociais, uma tradição de pensamento cujas origens, conforme Foucault, podem ser traçadas até Kant. O filósofo alemão teria provocado o surgimento de duas tradições intelectuais que se projetaram pelos séculos XIX e XX.

Uma delas colocaria "a questão das condições em que um conhecimento verdadeiro é possível" (Foucault, 2008/2011, p. 21), formulando critérios de legitimidade do saber e buscando uma linguagem precisa capaz de representá-lo. A essa tradição Foucault (2008/2011, p. 21) denominará "analítica da verdade", florescendo especialmente nos países de língua inglesa.

Por outro lado, a filosofia moderna também seria solidária a outra forma de interrogação. Em vez de questionar-se sobre as condições de possibilidade do conhecimento, importa para essa segunda tradição compreender "o que é a atualidade? Qual é o campo atual das nossas experiências? Qual é o campo atual das experiências possíveis?" (Foucault, 2008/2011, p. 21). Eis aquilo que se denomina ontologia do presente. Desta ontologia se ocupariam pensadores como Hegel, Nietzsche, Max Weber, a Escola de Frankfurt e o próprio Foucault (Foucault, 2008/2011, p. 21).

Essa tradição seria derivada, mais especificamente, das reflexões kantianas sobre a Aufklärung (termo alemão para "Iluminismo"). Em um texto publicado em 1784, Kant oferece uma análise sobre o ruidoso movimento intelectual que florescia ao longo da Europa. Intitulado Was ist Aufklärung?, o texto procurava determinar o sentido do movimento iluminista e quais efeitos podiam ser esperados dele. Kant definia a Aufklärung como

[...] a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento. (Kant, 1979/2008, p. 100, grifos do autor)

Conforme Foucault, ao nos voltarmos às palavras de Kant, encontramos nelas elementos semelhantes àqueles presentes na ontologia do presente, posto que ambas problematizam "simultaneamente a relação com o presente, o modo de ser histórico e a constituição de si próprio como sujeito autônomo" (Foucault, 1994/2008, p. 344). De tal modo, Foucault vê seu pensamento vinculado às Luzes, mas não por alguma "fidelidade aos elementos de doutrina", mas por uma "reativação permanente de uma atitude; ou seja, um êthos filosófico que seria possível caracterizar como crítica permanente de nosso ser histórico" (Foucault, 1994/2008, p. 345).

 

4) Ontologia como êthos filosófico

O filósofo definirá esse referido êthos, subjacente à ontologia do presente, de modo negativo e positivo. A princípio, negativamente: 1) ao compreendê-lo, deve-se recusar a "chantagem" (Foucault, 1994/2008, p. 345) usualmente feita quando do estudo da Aufklärung. Isso significa não atender à exigência de posicionar-se contra ou a favor das Luzes e de seu empreendimento filosófico. Cumpre recusar o que se apresentaria como uma alternativa "simplista e autoritária", a saber, "ou vocês aceitam a Aufklärung, e permanecem na tradição de seu racionalismo (...); ou vocês criticam a Aufklärung, e tentam escapar desses princípios de racionalidade" (Foucault, 1994/2008, p. 345). Em contrapartida, a reflexão engendrada por Foucault segue na direção de uma "análise de nós mesmos como seres determinados, até certo ponto, pela Aufklärung" (Foucault, 1994/2008, p. 345). Nesse sentido, caberá investigar aqueles que seriam os "limites atuais do necessário", ou seja, "do que não é, ou não é mais, indispensável para a constituição de nós mesmos como sujeitos autônomos" (Foucault, 1994/2008, p. 345).

O filósofo atenta também para a importância de evitarmos uma segunda forma de chantagem: a crítica à racionalidade moderna tampouco deve colocar-se contra ou a favor da razão (Foucault, 1994/2010). Como mencionado no tópico anterior, a filosofia subsequente às Luzes não deixará de confrontá-la com os supostos excessos de poder, aos quais a racionalidade ocidental se veria associada e pelos quais seria supostamente responsável. A crítica da razão presunçosa, como evidenciou Foucault, insistirá em denunciá-la por seu autoritarismo, por seu tecnicismo, por seu caráter opressivo. Ora, dirá ele, "o laço entre a racionalização e os abusos do poder político é evidente", porém, "o problema é então saber o que fazer com um dado tão evidente" (Foucault, 1994/2010, p. 356).

Assim, questiona-se: "faremos nós o processo da razão?" (Foucault, 1994/2010, p. 356). Esse seria um gesto sem dúvida "estéril", e isso, de início, por três motivos: primeiramente, noções de culpa ou inocência são estranhas a esse campo de análise; em segundo lugar, opor a razão a algo como uma "não-razão" seria "absurdo"; por fim, realizar o processo da razão levar-nos-ia a assumir o papel "arbitrário e enfadonho do racionalista ou do irracionalista" (Foucault, 1994/2010, p. 356). Isso faria parecer impossível uma "crítica racional da racionalidade" (Foucault, 1994/2005, p. 316).

Os estudos de Foucault apontam para a possibilidade de traçar "uma história racional de todas as ramificações e de todas as bifurcações, uma história contingente da racionalidade" (Foucault, 1994/2005, p. 316), não a tomando como entidade universal ou essencialmente perniciosa. Doravante, tais estudos não buscam pelo momento de descoberta ou instauração da razão em sua originalidade e pureza, identificando como ela teria sido adulterada. O filósofo, ao contrário, trabalha com a hipótese de uma "autocriação da razão" e procura analisar "diferentes modificações pelas quais as racionalidades se engendram umas às outras, se opõem e se perseguem umas às outras, sem que, no entanto, se possa assinalar um momento em que se teria passado da racionalidade à irracionalidade" (Foucault, 1994/2005, p. 318).

Já a 2) caracterização negativa do êthos consistente na crítica histórica de nós mesmos deve evitar sobrepor os temas da Aufklärung e do humanismo (Foucault, 1994/2008). Como visto, as Luzes compreendem um conjunto de eventos de natureza filosófica, política e social, configurando um modo de reflexão sobre o presente e os sujeitos nele inseridos. Não obstante, o humanismo designará fenômenos históricos outros. Em realidade, reuniu-se sob a qualidade de humanista uma ampla variedade de sistemas e situações. Em nome de certo humanismo, processos diversos e contrários entre si foram justificados, tais como: movimentos críticos ao cristianismo e à religião; reflexões suspeitas quanto à ciência e à técnica no século XIX; movimentos, ao contrário, de defesa dessa mesma ciência; também se denominou humanismo o marxismo, o existencialismo, o personalismo, ou ainda, o nacional-socialismo e o stalinismo (Foucault, 1994/2008).

Dessa maneira, o termo redunda excessivamente inconsistente para ser utilizado nas análises traçadas pela ontologia do presente. No mais, ao humanismo, Foucault sugere contrapormos "o princípio de uma crítica e de uma criação permanente de nós mesmos em nossa autonomia" (Foucault, 1994/2008, p. 346), um princípio, devemos destacar, "que está no cerne da consciência histórica que a Aufklärung tinha dela mesma". Para o filósofo, haveria assim mais uma "tensão" que uma "identidade" (Foucault, 1994/2008, p. 347) entre as Luzes e o pensamento dito humanista.

Feitas essas ressalvas, o êthos em questão pode também ser definido positivamente. 1) Ele caracteriza-se como uma atitude-limite. Isso implica escapar à "alternativa do fora e do dentro", situando-se, o pensador, "nas fronteiras" (Foucault, 1994/2008, p. 347). Não se deve esquecer que o trabalho da crítica consiste justamente na análise e reflexão sobre limites. De tal sorte, se o problema da filosofia kantiana era saber "a que limites o conhecimento deve renunciar a transpor" (Foucault, 1994/2008, p. 347), a ontologia do presente em indagará: "no que nos é apresentado como universal, necessário, obrigatório, qual é a parte do que é singular, contingente e fruto das imposições arbitrárias?" (Foucault, 1994/2008, p. 347).

Nessa análise, não se toma como objeto de estudo "estruturas formais que têm valor universal" (Foucault, 1994/2008, p. 347). A ontologia do presente buscará realizar, ao contrário, uma "pesquisa histórica através dos acontecimentos que nos levaram a nos constituir e a nos reconhecer como sujeitos do que fazemos, pensamos, dizemos" (Foucault, 1994/2008, p. 347). Ela evita tecer reflexões de ordem metafísica ou transcendental, já que não lhe cabe determinar os fundamentos necessários e universais do conhecimento e da ação moral. Importa-lhe identificar o modo de produção de discursos e saberes que engendram a prática dos homens, relacionando-os a dispositivos de poder dos quais derivam formas diversas de assujeitamento. Trata-se de problematizar como os sujeitos se constituem na malha da história a partir da estreita relação entre mecanismos de governo da conduta e técnicas de si. Essa ontologia, portanto, transforma a crítica "exercida sob a forma de uma limitação necessária" (Foucault, 1994/2008, p. 347) em um trabalho que faz "avançar para tão longe e tão amplamente quanto possível o trabalho infinito da liberdade" (Foucault, 1994/2008, p. 348).

2) O trabalho crítico deve ser não apenas uma atitude-limite, mas uma atitude experimental. O que significa dar a esse empreendimento condições para que se torne um domínio de pesquisas concretas, apoiado em investigações históricas e submetido à "prova da realidade e da atualidade" (Foucault, 1994/2008, p. 348). O empreendimento pode assim determinar quais mudanças são possíveis, quais mudanças são desejáveis e qual forma dar a essas mudanças.

Cabe ressaltar que as transformações operadas agirão localmente, de maneira pontual, não consistindo em projetos globais ou radicais. Com isso, Foucault chama a atenção para as consequências nefastas de programas revolucionários que se dedicaram ao estabelecimento de uma nova sociedade. De acordo com o filósofo, mudanças locais que vimos acontecer nas últimas décadas – relativas à nossa maneira de pensar, de agir, à nossa relação com a autoridade, entre os sexos, mudanças, enfim, parciais – seriam preferíveis às utopias do século XX convertidas em catástrofes políticas.

3) Contudo, ao dar preferência a operações locais, Foucault suscita a dúvida quanto ao risco de nos deixarmos "determinar por estruturas mais gerais, sobre as quais tendemos a não ter nem consciência nem domínio" (Foucault, 1994/2008, p. 349). A essa questão oferece algumas considerações. A princípio, deve-se reconhecer que a pesquisa filosófica é sempre "limitada" (Foucault, 1994/2008, p. 349). Acender ao conhecimento completo e inequívoco não é possível. Todavia, é igualmente enganoso pensarmos que, devido a essa impossibilidade, o trabalho crítico fosse desprovido de qualquer ordem ou regularidade. Ele está estruturado segundo certas coordenadas teóricas que lhe conferem uma meta ou aposta, uma homogeneidade, uma sistematização e uma generalidade. Vejamos esses aspectos em detalhe.

A aposta do trabalho crítico volta-se ao que Foucault denomina "o paradoxo (das relações) da capacidade e do poder" (Foucault (1994/2008, p. 349). O século XVIII procurou promover uma relação de "crescimento simultâneo e proporcional" entre a "capacidade técnica de agir sobre as coisas" e a "liberdade dos indivíduos uns em relação aos outros" (Foucault, 1994/2008, p. 349). Liberdade e domínio técnico sobre a natureza consistiram em temas de preocupação constante em nossa sociedade, podendo, ao se articularem, neutralizarem-se. Sendo assim, a aposta da pesquisa históricofilosófica está em investigar "como desvincular o crescimento das capacidades e a intensificação das relações de poder?" (Foucault, 1994/2008, p. 349).

Em seguida, sua homogeneidade corresponde à organização dos objetos do estudo em "conjuntos práticos" (Foucault, 1994/2008, p. 349). Esses conjuntos referem-se não às "representações que os homens se dão deles mesmos", tampouco às "condições que os determinam sem que eles o saibam", mas ao "que eles fazem e a maneira pela qual o fazem" (Foucault, 1994/2008, p. 350). A prática dos homens é contemplada pelo estudo em dois níveis. Analisa-se o nível tecnológico, isto é, as estruturas de racionalidade que regulam a existência dos sujeitos. Analise-se também o nível estratégico, ou seja, a margem de liberdade com que os homens se deslocam no interior dessas estruturas, a forma como se opõem a elas, alterando-as, problematizando-as.

Ademais, os conjuntos práticos se alicerçam em certa sistematização. Eles se subdividem em três eixos: aquele relativo à ação sobre as coisas, à ação sobre os outros indivíduos e à ação do sujeito sobre ele mesmo (Foucault, 1994/2008). Dito de outro modo, apoiam-se sobre os eixos do saber, do poder e da ética. À ontologia cumpre responder "como nos constituímos como sujeitos do nosso saber; como nos constituímos como sujeitos que exercem ou sofrem relações de poder; como nos constituímos como sujeitos morais de nossas ações" (Foucault, 1994/2008, p. 350).

Ora, o material de que se ocupam essas análises é bastante circunscrito no que diz respeito à época pesquisada, aos documentos levantados, às questões e aos problemas que se propõem abordar. Porém, há nesses estudos críticos uma generalidade. Haveria, para os objetos estudados, um fio que percorre a história da sociedade ocidental ao longo do tempo. Não se trata de reconstituí-lo na sua realidade para além da história, mas, partindo dele, situar os temas da pesquisa no horizonte de sua composição, no centro dos jogos de verdade que deram a objetos como a loucura, a doença, o crime e o sexo seu contorno e sua especificidade.

Com isso, Foucault concede ao trabalho crítico da ontologia sua sustentação programática, a qual lhe imprime uma regularidade. Esse trabalho, contudo, permanece sendo um estudo inacabado, particular, em contraposição a soluções teóricas e práticas radicais, definitivas ou absolutas. A ontologia abre um campo de pesquisas que visa compreender os acontecimentos históricos que nos levaram a nos tornar o que somos, indicando formas de resistência e transformação.

 

Referências

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Endereço para correspondência

Rafael Nogueira Furtado
E-mail: rnfurtado@yahoo.com.br

 

 

* Mestre em filosofia e doutorando em psicologia social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
1 Agonismo consiste em um neologismo cunhado a partir da palavra grega ágon, cujo significado é "luta", "disputa", "competição". O termo designa o mútuo enfrentamento de forças numa relação de permanente reversibilidade.

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