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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.17 no.2 São Paulo  2015

 

ARTIGOS

 

Merleau-Ponty e a aceitação da hipótese do inconsciente enquanto temporalidade

 

Merleau-Ponty and the acceptance of the hypothesis of the unconscious as temporality

 

 

Vitor Vasconcelos*

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-PR)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo apresentar as críticas de Merleau-Ponty em relação à psicanálise e indicar uma mudança substantiva de seus posicionamentos referentes a ela ao longo da década de 1940. Procuraremos mostrar que, em primeiro lugar, a psicanálise permaneceu para ele como uma metafísica da existência humana – inspirada em larga medida pela influência dos trabalhos de Politzer –, e o inconsciente, em vez de fornecer o material para a descrição do comportamento em geral, poderia somente iluminar as formações da anomia psíquica. Em sua obra seguinte, Fenomenologia da percepção, ao reconhecer a ideia de temporalidade presente nas meditações husserlianas acerca da retenção intencional, Merleau-Ponty é capaz de caracterizar a psicanálise como uma condição de descrição do conjunto dos impasses da vida cotidiana, para além do aspecto patológico. O inconsciente passa a ser, portanto, a expressão de uma função mais primordial: a do tempo. Finalmente, destacamos brevemente algumas críticas direcionadas à interpretação merleau-pontyana do inconsciente, por consistir em uma abordagem que procura tratá-lo a partir de uma apropriação racional, dando à descoberta de Freud um lugar definido em uma teoria da totalidade das funções psíquicas.

Palavras-chave: psicanálise; Merleau-Ponty; fenomenologia; tempo.


ABSTRACT

This article aims to present Merleau-Ponty's criticism towards psychoanalysis and indicate a substantive change in his positions over the 1940s. We will try to show that psychoanalysis remained for him first as a metaphysics of human existence, inspired largely by the influence of Politzer's work, and the unconscious instead of providing the material for the description of behavior usually only could illuminate the formations of psychic anomie. In his next work, Phenomenology of Perception, Merleau-Ponty is capable to recognize the idea of temporality present in Husserl's meditations about the retention aspect of consciousness and elevate psychoanalysis as basis to describe, beyond the pathological aspect, the set of impasses of everyday human life. The unconscious becomes, therefore, the expression of more a fundamental function, namely the time. Finally, we highlight briefly some criticism directed at the interpretation of Merleau-Ponty's unconscious consisting of an approach which seeks to treat it from a rational appropriation, giving the discovery of Freud a definite place in a theory of all psychic functions.

Keywords: psychoanalysis; Merleau-Ponty; phenomenology; time.


 

 

1) Introdução

Em seu primeiro trabalho, A estrutura do comportamento, Merleau-Ponty (2006a) afirmou que toda estruturação normal de ação é produto de uma organização na qual o passado não possui mais lugar no sentido presente. Assim, a vida do adulto alcançaria um comportamento perfeitamente integrado no qual cada momento seria interiormente interligado ao conjunto de sua existência. Essa seria a razão pela qual ele poderia reconhecer na psicanálise apenas uma descrição do comportamento patológico, uma vez que, desde que praticada livremente, a existência adulta no momento sucessivo de sua história particular não poderia ser interpretada de acordo com as elaborações infantis. Um sujeito adulto não poderia viver segundo as soluções afetivas de outrora, período em que se guiava pela antinomia interdição/permissão, pois, uma vez superada a infância, buscase também compreender o sentido que integra a contradição moral da vida sexual precoce.

No entanto, a posição de Merleau-Ponty (1976) em relação à psicanálise será inteiramente revista quando o filósofo francês entende posteriormente que o tempo, como uma categoria transcendental, não se dispõe segundo sucessividades perfeitamente integradas capazes de compor uma organicidade que utiliza o passado somente como uma plataforma para negá-lo e então dar lugar ao momento que o sucede. Ao contrário, a Fenomenologia da percepção mostrará que essa integração é sempre precária, e a sexualidade infantil nunca pode ser realmente superada. Merleau-Ponty irá reconhecer em sua obra magna, publicada em 1945, uma dimensão sexual e afetiva que repousa em um arco intencional que sintetiza precariamente o tempo, fazendo com que ela seja, simultaneamente, retenção e propensão da libido. Exatamente por isso, a sexualidade humana, através da psicanálise, fornece ao filósofo francês condições para argumentar que a vida dos homens não é só historicamente orientada, mas uma trajetória cheia de impasses, isto é, cada momento sucessivo não se encontra inteiramente integrado ao presente. Segundo Merleau-Ponty, há uma sublimação precária na passagem entre eventos sucessivos que conserva o sentido do tempo transcorrido em dimensões vindouras. Merleau-Ponty dirá na obra Fenomenologia da percepção que aquilo que vivemos é e permanece perpetuamente para nós.

Assim, essa nova definição do tempo parece colocar a psicanálise no terreno do reconhecimento de uma das multiplicidades expressivas da vida humana, e o inconsciente pode ser, ao contrário de um apêndice descartável no interior das inutilidades de uma metapsicologia, um importante ponto de apoio, capaz de tematizar e dar suporte à explicitação do filósofo acerca da função lógica do tempo, qual seja, a de manter tensionado o campo entre o passado e o presente ou, ainda, entre a dimensão dada e a dimensão constituída, entre o significado da retenção e a criação do sentido da vida sexual humana.

Ao longo deste artigo, argumentaremos apostando que os dispositivos conceituais que impulsionam essa importante mudança consistem nas advertências de Husserl (1994) ao rejeitar o tempo objetivo "do um após o outro", contido na estética transcendental da tradição crítica, e apresentar a Merleau-Ponty uma concepção temporal que permite pensar o "grande agora", isto é, o tempo como uma rede de intencionalidade. O presente não é apenas uma atualização de um tempo transcorrido, mas a retenção e a transposição precária de um passado insuperável.

Em seguida, trataremos de expor algumas críticas à concepção merleau-pontyana do inconsciente a partir de Pontalis (1965) e Lacan (1961). Merleau-Ponty será acusado de produzir uma teoria da totalidade da função psíquicaconciliando a razão consciente e os registros da inconsciência, isto é, de tentar produzir uma fenomenologia do corpo capaz de pensar a totalidade do psiquismo através da ambivalência entre a oposição saber e nãosaber. Para o fenomenólogo francês, em vez de servir como ponto cego da racionalidade, o inconsciente serve como plataforma para produzir uma noção mais alargada da consciência. Ele compreenderá a possibilidade de uma integração, mesmo que precária, entre os registros da consciência e da inconsciência.

 

2) O tempo como sucessão

Em seu primeiro trabalho, A estrutura do comportamento, Merleau-Ponty partira das evidências experimentais da Escola de Berlim de psicologia – também chamada de psicologia da Gestalt – para construir uma crítica aos princípios dedutivos da filosofia kantiana. A principal finalidade da articulação de Merleau-Ponty entre a filosofia transcendental e a psicologia contemporânea alemã é mostrar que:

Se o essencial da solução criticista consiste em relegar a existência aos limites do conhecimento e a encontrar o significado intelectual na estrutura concreta e se, como dissemos, o destino do criticismo está ligado a esta teoria intelectualista da percepção, nesse caso ela não seria aceitável, e seria necessário definir de novo a filosofia transcendental a fim de nela integrar até o fenômeno do real. A "coisa" natural, o organismo, o comportamento do outro e meu existem apenas por seu sentido, mas o sentido que jorra neles ainda não é um objeto kantiano, a vida intencional que os constitui não é uma representação, a "compreensão" que dá acesso a eles ainda não é uma intelecção. (Merleau-Ponty, 2006a, p. 345)

Ao indicar um ponto de ligação entre a esfera determinante e a esfera determinada do conhecimento, a intenção de crítica da dedução metafísica das categorias reflexivas deu-se a partir das influências das filosofias de matriz dialética (Dorfman, 2007), isto é, tratou-se de propor uma junção entre a psicologia pura e a psicologia empírica1. Segundo o filósofo francês, diante de todo o trabalho apresentado pelo pensamento moderno, não é mais possível que o a priori se encontre, de maneira dedutiva, resguardado sob a tutela de uma ideia transcendental. Ele não deve ser apenas trazido de volta para interpelar-se à dimensão empírica da vivência psicológica, como deve também sofrer substantivas modificações a partir do reconhecimento dos trabalhos experimentais da psicologia contemporânea. Assim, segundo Merleau-Ponty, não é mais possível resguardar a distinção entre a psicologia pura e a psicologia empírica, isto é, entre o labor ativo de dedução de categorias transcendentais e as evidências da imediaticidade da experiência interna.

Na obra A estrutura do comportamento, o filósofo constrói seus argumentos amparados nos eventos clínicos descritos sobretudo pela leitura dos pacientes adoecidos na neuropsiquiatria de Adhemar Gelb e Kurt Goldstein. Nela, Merleau-Ponty encontra talvez o ponto diante do qual a filosofia não pode mais recuar: o que os experimentos de Gelb e Goldstein mostram é que, a despeito das advertências da filosofia kantiana acerca da natureza da subjetividade, uma consciência pode ser um evento materialmente determinado e descrito em suas principais funções. Ela é um evento no qual há uma conjugação entre uma esfera motivada orientada a partir de finalidades que ela própria delimita para si e uma que se institui amparada em elementos da realidade física (acontecimentos neuronais e as correlações sensíveis entre os estímulos aferentes e a resposta comportamental do organismo).

Os organismos foram considerados cada vez menos "passivamente dependentes de seu meio de vida" e cada vez mais aptos a construírem "um meio para seus elementos", ao passo que o meio fazia, retroativamente, "destes elementos, um organismo" (Canguilhem, 2012, p. 262). Essas premissas dão, portanto, a forma da crítica às teorias do reflexo condicionado e do comportamento como um evento mecânico. Elas indicam ainda que essa dependência entre meio (Unwelt) e organismo produz uma duplicação da exterioridade no interior das condutas vivas (Gegenswelt), sugerindo os limites do paralogismo lógico da filosofia crítica que distingue a dedução ativa e a receptividade passiva.

No entanto, a dimensão física que Merleau-Ponty liga ao localizacionismo e ao empirismo psicológico não é condição suficiente para que um evento consciente aconteça. Ainda que "numa bolha de sabão, assim como no organismo, o que acontece em cada ponto é determinado pelo que acontece em todos os outros", não havendo nenhuma razão "para se recusar valor objetivo a essa categoria no estudo dos fenômenos da vida, já que ela tem seu lugar na definição dos sistemas físicos" (Merleau-Ponty, 2006a, p. 205), existe

[a]cima do campo físico – sistema de forças orientadas – no qual ele se instala, [...] um campo fisiológico, um segundo "sistemas de tensões e correntes" que é o único a determinar, de uma maneira decisiva, o comportamento efetivo. (Merleau-Ponty, 2006a, p. 204)

Desse modo, a consciência tem de ser apresentada como um fenômeno emergente às organizações físicas e químicas, para que ela possa adquirir um semblante de vitalidade e ser orientada a partir de fins que ela mesma dá ao seu comportamento.

Temos aqui uma tese importante a ser destacada: as explicações físicas não configuram as únicas razões que compõem a complexidade da atividade consciente2 em seu aspecto mais fundamental. Isso porque todo e qualquer fenômeno vivo e organizado é capaz de criar ou projetar, de forma mais ou menos eficiente, um meio virtual de comportamento. O que queremos dizer com isso é que, quando o vivente emite um comportamento, ele produz uma propriedade emergente que ultrapassa os vetores materiais que serviram de plataforma para a emissão de sua conduta. Logo, segundo as descrições de Merleau-Ponty, um besouro escarabeídeo, por exemplo, quando lhe são retiradas uma de suas falanges, ele não reitera de maneira inalterada sua caminhada e é capaz de propor uma solução inédita para sua locomoção de acordo com suas motivações vitais, de tal forma que "os movimentos do coto que subsiste e os do conjunto do corpo não são uma simples reiteração dos movimentos do caminhar normal; representam um novo modo de locomoção, uma solução do problema inédito posto pela extirpação" (Merleau-Ponty, 2006a, p. 55, grifos nossos).

No caso do homem, a capacidade de virtualizar seu comportamento, isto é, de comportar-se tendo em vista finalidades para além de seu horizonte atual, se dá de tal maneira a ponto de as estimulações sensíveis servirem apenas como um apêndice da percepção, uma vez que, segundo Merleau-Ponty, a psicologia infantil nos mostra que, para além das formas primitivas do cheiro, da visão e do tato, a criança lança seu olhar para o gesto materno captando menos seus aspectos espaciais do que sua dimensão intersubjetiva. Tudo se passa como se houvesse na criança uma consciência mais ou menos pura do outro, o que torna os elementos materiais meros auxiliares para a compreensão de experiências de medo ou abandono. "O significado humano é dado antes dos pretensos signos sensíveis" (Merleau-Ponty, 2006a, p. 260) pelo fato de a intersubjetividade representar a realidade privilegiada da consciência humana, pois as situações que fazemos nossas são feitas a partir da dimensão dos gestos de outrem.

Ao destacar esse aspecto intersubjetivo da experiência humana ao longo do texto, é muito claro que Merleau-Ponty se vale de uma distinção de integração estrutural entre animais humanos e não-humanos, uma vez que estes podem utilizar apenas precariamente uma função de simbolização e aqueles têm como condição de toda a experiência o mobilismo cultural, que fornecem o solo para a inventividade das experimentações sociais humanas. Assim, o "homem nunca pode ser um animal: sua vida é sempre mais ou menos integrada que a de um animal" (Merleau-Ponty, 2006a, p. 282). A nova relação que a ordem humana possui com o tempo permite, nos casos patológicos, estacioná-la, ou, no caso de conduta normal, impulsioná-la segundo a característica fundamental de sua liberdade para criar estruturas de sentido livremente. De forma sintética, Bimbenet (2011) afirma que o comportamento simbólico humano é a transformação interior das funções biológicas, culminando em sua reintegração em uma estrutura inteiramente nova.

Destacamos aqui outra tese bastante importante para o desenvolvimento deste trabalho: Merleau-Ponty dirá que há entre humanos e animais uma diferença na forma pela qual suas respectivas estruturas perceptivas captam um sentido. Enquanto uma se utiliza dos meios físicos como uma plataforma para atingir suas ambições vitais de comida, reprodução e sobrevivência, a outra necessita da criação para que dela o sujeito humano tenha uma experiência.

Ao fazer uma distinção entre a percepção animal e humana, o filósofo pode afirmar que a dimensão vital nos hominídeos é inteiramente superada através da história e da cultura, sendo capaz, portanto, de criar ferramentas próprias que são estranhas a seus parentes animais. Ao descrever uma situação experimental na qual um chimpanzé deixa de olhar para uma caixa como um objeto de apoio para capturar seu alimento quando ela passa a ser utilizada como assento por outro animal, Merleau-Ponty dirá que os humanos apresentam a capacidade de atribuir aos objetos uma multiplicidade de usos que os demais animais não são aptos a fazer. Nas situações experimentais realizadas por Köhler, o poder dos utensílios para os chimpanzés torna-se disperso se aqueles forem afastados de sua finalidade, uma vez que não recebem nenhum investimento vital. "O valor instrumental de um objeto diminui à medida que ele está mais afastado do objetivo, ou seja, que este valor não é feito de propriedades mecânicas precisas que seriam independentes de sua posição" (Merleau-Ponty, 2006a, p. 178).

Mesmo quando o chimpanzé consegue ampliar seu campo de ação tanto no tempo como no espaço, e quando vai em direção ao objetivo final passando por vários intermediários, muitas vezes o objetivo principal, muito próximo, atrai para si operações que se dirigiram ao objetivo secundário, e esse fenômeno de "curto-circuito" mostra que o chimpanzé não consegue desenvolver num tempo e num espaço indiferentes um comportamento regulado pelas propriedades objetivas dos instrumentos, que está sempre exposto à solicitação do futuro próximo ou da proximidade espacial, que vêm definir ou deslocar a estrutura da ação. (Merleau-Ponty, 2006a, pp. 178-179)

É preciso ainda destacar uma terceira tese: não há continuidade vital do animal no homem, e este funda um domínio mais ou menos independente de seus ancestrais animais, pois, ao contrário destes, são capazes de realizar transposições de sentido no espaço e no tempo que mesmo seus antepassados mais próximos – no caso, os símios superiores – são incapazes de realizar. Isso se dá através do comportamento simbólico, expressão que nomeia essa novidade na escala zoológica das espécies animais, realizada exclusivamente pelos homens.

Embora não construa uma ideia explícita de temporalidade na obra, Merleau-Ponty sugere que todo comportamento humano é a ultrapassagem de sua ancestralidade animal na medida em que realiza uma atividade impossível diante da experiência de enlevo das espécies não humanas quando emitem comportamentos motivados.

Ainda em A estrutura do comportamento, Freud adentra as argumentações até então introduzidas de modo desfavorável, uma vez que, se todo comportamento humano é a ultrapassagem de seu passado evolutivo, tal ultrapassagem deve ser também generalizada na história do homem particular. Assim, a vida adulta deve ser a compreensão dos impasses vividos a partir dos desacordos e conflitos da vida infantil, já que o tempo é discutido aqui de maneira inteiramente sucessiva, isto é, a esfera da passagem nada mais é do que o "um após o outro", de tal forma que as neuroses das quais fala a psicanálise só podem ser a descrição de um comportamento patológico, e não de uma conduta normal.

Seria preciso considerar o desenvolvimento, não como a fixação de uma força dada em objetos dados também fora dela, mas como uma estruturação (Gestaltung, Neugestaltung) progressiva e descontínua do comportamento. (Merleau-Ponty, 2006a, p. 276)

As críticas de Merleau-Ponty à psicanálise se desdobram sobre a afirmação de que todas as descrições psicanalíticas só podem descrever eventos que ainda encontram motivações infantis, dando, portanto, ensejo a quadros de anomia psíquica e não apresentando condições para a descrição de comportamentos funcionalmente adequados.

A estruturação normal é aquela que reorganiza a conduta em profundidade, de modo que as atitudes infantis não tenham mais lugar nem sentido na atitude nova; ela alcançaria um comportamento perfeitamente integrado, cada momento do qual seria interiormente ligado ao conjunto. (Merleau-Ponty, 2006a, p. 276)

De modo contrário, um complexo seria a incapacidade de dissociar um sentido que se deu em uma época passada, o que daria "origem a uma montagem rígida e estável" (Merleau-Ponty, 2006a, p. 277). Por isso,

[o] que é exigido pelos fatos que Freud descreve sob o nome de recalque, complexo, regressão ou resistência, é apenas a possibilidade de uma vida de consciência fragmentada que não possui em todos os seus momentos uma significação única. (Merleau-Ponty, 2006a, p. 278)

Isso quer dizer que, se alguém é capaz de realizar uma transposição no espaço e no tempo, o faz a partir da atividade simbólica e de maneira integral. Essa lógica de "tudo ou nada" contida na interpretação de Merleau-Ponty da ação humana aponta em poucas palavras que, na vivência normal, o tempo é integralmente sucessivo e, na patológica, há um tempo inteiramente regressivo.

Para o filósofo, o neurótico "vive então à maneira das crianças que se guiam pelo sentimento imediato do permitido e do proibido sem buscar o sentido dos interditos" (Merleau-Ponty, 2006a, p. 278).

Finalmente,

A regressão do sonho, a eficácia de um complexo adquirido no passado, enfim, a inconsciência do recalque manifestam apenas o retorno a uma maneira primitiva de organizar a conduta, um enfraquecimento das estruturas mais complexas e um recuo na direção das mais fáceis. (Merleau-Ponty, 2006a, p. 278)

A lógica do tempo, portanto, é a de realizar uma superação de si a si, impulsionando os sintomas para etapas do desenvolvimento que não têm lugar em vivências transcorridas. Dito de outro modo, ela é uma instância inteiramente negativa, capaz de superar tudo aquilo que se deu em um estágio anterior da linearidade temporal sem deixar cicatrizes ou vestígios. Segundo Merleau-Ponty (2006a), para Freud, o tipo e a gravidade da patologia experienciados pelo neurótico dependerá de sua (in)capacidade de elencar em uma narrativa os processos causais que levaram o sujeito a manifestar tais insuficiências estruturais. Por fim, ele resumirá que "[a] obra de Freud não é um quadro da existência humana, mas um quadro de anomalias, por mais frequentes que sejam" (Merleau-Ponty, 2006a, pp. 278-279).

Por entender em Freud uma reativação dos prejuízos objetivistas da psicologia clássica, Merleau-Ponty insistirá que:

Um homem normal não é um corpo portador de certos instintos autônomos, anexado a uma "vida psicológica" definida por certos processos característicos – prazer e dor, emoção, associação das ideias – e encimado por um espírito que exporia seus atos próprios nessa infraestrutura. O advento das ordens superiores, à medida que se realiza, suprime como autônomas as ordens inferiores e dá aos processos que as constituem um significado novo. (Merleau-Ponty, 2006a, p. 280, grifos nossos)

O homem normal ao qual o filósofo se refere, em vez de se reportar às descrições freudianas em que a frequente distinção entre o biológico e o psíquico surge como traços de certas psicopatologias e mais frequentemente nos sintomas de conversão, deve surgir amparado em uma integração que torne possível no interior de seus comportamentos o aparecimento de um ciclo de ação o mais vasto possível.

 

3) Politzer e a crítica dos pressupostos metafísicos da psicanálise

As críticas de Merleau-Ponty à psicanálise partem em sua maior parte da utilização dos comentários de Politzer (1998) acerca da novidade e, ao mesmo tempo, do retrocesso da teoria freudiana. Em primeiro lugar, a psicanálise foi uma novidade porque contribuiu para a crítica da metafísica clássica no campo da psicologia, fazendo um reconhecimento claro de que "a psicologia clássica nada é senão a elaboração nocional de um mito" (Politzer, 1998, p. 41) e dando ênfase às narrativas concretas dos pacientes, em vez de pressupor fortes hierarquias das formas psíquicas que causam, por sua vez, os comportamentos desviantes descritos na clínica. Em segundo lugar, a teoria freudiana consistia em uma derrocada da psicologia concreta por não abandonar inteiramente a metafísica especulativa clássica, particularmente no famoso e mais comentado capítulo de A interpretação dos sonhos: "A regressão". Segundo Politzer (1998), Freud retoma nesse capítulo todo o aspecto abstrato e distante da vivência concreta dos sujeitos psicológicos em favor da construção de uma superestrutura causal dos processos inconscientes.

Desse modo, a psicanálise traduziu "em fórmulas científicas certo número de observações que podem ser encontradas nos escritores de todo gênero e de todos os tempos" (Politzer, 1998, p. 55), o que deu à psicologia clássica uma orientação concreta. Ela contribui para uma crítica das teorias orgânicas, remediando o

[...] defeito das teorias clássicas tentando mostrar que o sonho é um fenômeno positivo, uma formulação psicológica regular que, longe de dever ser sua existência a uma debanda das funções psíquicas, explicase por um conjunto de processos regulares e complexos. (Politzer, 1998, p. 57, grifo do original)

No interior do trabalho clínico, a psicanálise procura religar "o sonho ao sujeito que sonhou" (Politzer, 1998, p. 60), atingindo, com sua hermenêutica, o sujeito individual da vida cotidiana e talvez até mesmo oferecendo a oportunidade de substituição dos conteúdos introspectivos pelo relato, isto é, dando ensejo a um deslocamento da intuição interna para o comportamento (Politzer, 1998, p. 85). Em poucas palavras, para Politzer (1998) a psicanálise é a realização bem-sucedida de uma psicologia sem interioridade.

Entretanto, existe um antagonismo a ser resolvido mesmo no interior da fecunda teoria psicanalítica quando Politzer (1998) exprime os prejuízos do famoso sétimo capítulo de A interpretação dos sonhos. Tudo o que nele reside

[...] abre mão da questão da ação humana, individual; a palavra ato perdeu seu sentido dramático e humano e mesmo qualquer sentido geral: é para Freud igual ao que é para o fisiólogo, um movimento, ou melhor, do movimento em geral, uma nova forma de excitação. (Politzer, 1998, p. 115)

Há inclusive o paulatino abandono do sentido em favor da conservação das ideias de representação, dando início a um processo cego e puramente mecânico em que não se observa mais a participação do "eu".

Com isso, há a criação de um abismo entre a atitude prática (método analítico) e a atitude teórica do psicanalista quando este assenta processos concretos verdadeiros sobre falsos princípios. Esse erro leva Politzer (1998) a julgar como infeliz as justificativas de certos incondicionados psíquicos como pertencentes a antepassados filogenéticos. Para o pensador francês, o desejo jamais poderia nascer de uma necessidade orgânica. Desse modo, penetra-se "sempre mais na vida interior, na biologia, até mesmo na fisiologia, isto é, numa região psicologicamente cega" (Politzer, 1998, p. 124). O recalque, por exemplo, perde seu sentido concreto e ganha o funcionamento de uma simples mecânica biológica, tornando os comportamentos desviantes fenômenos derivados de uma causa que lhe antecede.

O inconsciente aparece, portanto, como uma hipótese auxiliar para comportar o conjunto de noções abstratas advindas do desvio freudiano frente ao que Politzer (1998) nomeou de psicologia concreta. Aos olhos do pensador francês, a narrativa individual, portanto, deveria ser um dado subsistente em si mesmo e que deve dispensar a construção de uma metapsicologia que lhe forneça um substrato coerente. Em função disso, o sujeito que fala já carrega consigo as condições de que precisa para desfazer, com o analista, os artifícios que o paciente criou para escapar de conteúdos afetivos insuportáveis.

Assim, o inconsciente aparece necessariamente na psicanálise, mas essa necessidade não é necessidade empírica, mas necessidade a priori, em função de os psicanalistas, na elaboração dos fatos, servirem-se da psicologia clássica. (Politzer, 1998, p. 152)

No fim das contas, deve-se, portanto, desfazer todos os laços da psicanálise com as ciências da natureza, evitando confusões com a fisiologia e com a biologia. O homem é, para Politzer (1998), uma forma de vida que está para além do que a ciência natural tem a dizer de seus parentes animais.

A precisão da crítica de Politzer (1998) à psicanálise serve de ensejo a Merleau-Ponty para, assim como o primeiro, abandonar centros infraestruturais acima ou abaixo das funções psicológicas concretas. O objeto psicológico, por excelência, não é, portanto, um processo descrito sob a terceira pessoa, contido na metapsicologia freudiana, mas deve ter como principal alvo a significação do sujeito concreto.

Merleau-Ponty (2006a) utiliza-se das justificativas de Politzer (1998) e constrói uma crítica muito semelhante à deste. Em A estrutura do comportamento, o abandono do inconsciente obedece aos vestígios deixados pela autossuficiência da lógica interna do drama humano. Por isso, ambos desfazem sem muitos problemas as relações entre a subjetividade e as disciplinas que estudam os objetos físicos, pois, diferentemente deles, o exercício subjetivo existe como uma realidade original. Logo, o objeto das humanidades deve ser irredutível a qualquer outra ciência natural.

Após passar pelas críticas de Merleau-Ponty e Politzer, o erro de Freud é duplo e esses dois erros estão interligados. Em primeiro lugar, a dimensão humana basta a si mesma, não sendo necessários meios auxiliares da física, da química ou da biologia para a compreensão da complexidade dos comportamentos humanos; e, em segundo lugar – derivado diretamente do primeiro –, o que Freud descreve são processos patológicos e não a vivência concreta de sujeitos na vida cotidiana, uma vez que suas especulações biológicas indevidas não devem servir para explicar os processos culturais aos quais a própria cultura deve fornecer a chave para seu estorno. Isso porque, para Merleau-Ponty e Politzer, a realidade humana tem uma dimensão própria que a causalidade das disciplinas naturais não pode explicar.

 

4) A nova ideia de temporalidade e a aceitação da teoria da sexualidade

Em seu segundo trabalho, Fenomenologia da percepção, a posição de Merleau-Ponty acerca da psicanálise irá mudar de forma substantiva. Isso se deu através da ideia de temporalidade – dessa vez devidamente tematizada –, que ganhará maior atenção e densidade filosófica do que a reconhecida em sua obra de 1942. Apostamos que essa atenção maior ao tempo dar-se-á a partir do reconhecimento do método de Husserl como uma das estratégias de arguição da verdade do mundo percebido. O que antes fora respondido a partir de experimentos psicológicos, retirando-lhes o que eles mesmos compreendiam apenas precariamente, agora será respondido pela redução fenomenológica. Em vez de perguntarmos ao cientista o que é o objeto psicológico, devemos dirigir essa pergunta para o próprio objeto e deixar que ele se transforme em sujeito e fale por si. A ciência é entendida como uma forma de compreensão verdadeira, mas deficiente das funções conscientes do sujeito perceptivo. Caberia ao filósofo, assim, reconhecer os impasses do discurso da ciência experimental para extrair dela o eidos da experiência perceptiva.

Por mais que Husserl entre na discussão a partir do reconhecimento de Merleau-Ponty de um instrumental metodológico distinto daquele reconhecido em sua primeira obra, o fenomenólogo alemão adentra a discussão também a partir de suas contribuições apresentadas na ideia de retenção intencional. Desse modo:

Numa sucessão, por exemplo, aparece um "agora" e, em unidade com isso, um "passado". A unidade da consciência envolvendo intencionalmente presente e passado é um dado fenomenológico. (Husserl, 1994, p. 50)

Trata-se de reconhecer que o passado não se dá de forma inteiramente superada no presente, abandonando a utilização de uma gramática que privilegia as "estruturas perfeitamente integradas" da Gestaltpsychologie, ou seja, as vivências ancestrais são constantemente arrastadas adiante, como a cauda de um cometa em seu momento de sucessividade. O instante presente seria o núcleo do cometa, servindo como um ponto fonte para as projeções e antecipações dos instantes da experiência temporal do sujeito perceptivo3: "esta apreensão do agora é, de algum modo, o núcleo para a cauda de cometa de retenções, respeitantes aos pontos-agora anteriores do movimento" (Husserl, 1994, p. 63).

Por essa razão, o processo de rememoração é uma expansão da matéria do tempo. Husserl (1994) dirá que esse caráter de dilatação faz parte da própria essência dos objetos temporais. Contudo, o dado retencional não é uma mera repetição de um instante passado e se dá de modo relativamente livre de seus pontos fontes. O sujeito que relembra ou representa percorre livremente a linearidade do tempo objetivo, fazendo com que a presentificação ocorra mais depressa ou mais devagar, distinta ou confusamente.

Como evidência da temporalidade da consciência (Zeitbewusstsein), Husserl nos mostra que a simples escuta de uma melodia deve reter parte de seu encadeamento sonoro para que ela não vire um conjunto confuso e desordenado de notas musicais. O sujeito que escuta a música organiza as notas imediatamente dissipadas no ar, retendo as estimulações sonoras e articulando-as às emissões presentes do instrumento ou da voz do artista.

O som agora muda-se em som-que-foi, a consciência impressional converte-se, em corrente permanente, numa consciência retencional sempre nova. Indo ao longo do fluxo ou com ele, temos uma cadeia constante de retenções, pertencentes ao ponto inicial. Para além disto, no entanto, cada ponto anterior desta cadeia adumbra-se por sua vez no sentido da retenção. (Husserl, 1994, p. 62, grifos do original)

Daí que a síntese que se produz pelos esboços que a consciência realiza dos momentos passados trazendo-os ao presente tornam-se elas mesmas novos pontos-fontes, que servem, indefinidamente, para a produção de novos cometas. "A cada uma destas retenções agrega-se, então, uma continuidade de mutações retencionais, e esta continuidade é, ela própria, um novo ponto de atualidade que se adumbra retencionalmente" (Husserl, 1994, p. 62). É essa a continuidade do tempo, a de permanecer como um fluxo constante de sínteses parciais que, por sua vez, impulsionam a formação de processos sintéticos que se seguem e que dão ao sujeito a experiência da mudança e da articulação dos instantes.

O esforço de Husserl acerca da explicitação do caráter específico da experiência do tempo se aloca em uma trama transcendental mais robusta, relacionada à tentativa de pensar as origens da subjetividade. Naturalmente, para ele, pensar as funções da retenção do tempo implica na elaboração de um método filosófico específico capaz de tematizar um processo em curso dado como óbvio ao sujeito perceptivo (Husserl, 2001). Isto é, trata-se de inverter o movimento da consciência ingênua para direcioná-la à autoapresentação de seu caráter último e universal. Pôr em questão a constituição do sujeito, especialmente através da fenomenologia da consciência do tempo, desdobra um tipo específico de filosofia transcendental, a fenomenologia genética, que logra em opôrse à aparição imediata da naturalidade perceptiva, reconhecendo processos que antecipam o sujeito consciente. A análise história da consciência constituinte dá ensejo a uma filosofia transcendental capaz de autofundamentar-se como uma ciência rigorosa, sem optar pelos caminhos obscuros da dedução transcendental de Kant, mas, ao mesmo tempo, sem abdicar da ortodoxia filosófica crítica.

Husserl afirma:

Um objeto imanente, como a experiência vivida da cor preta oferece a si mesma como um objeto de duração, e de certo modo também através de "aparições". Mas somente é capaz de fazê-lo como um objeto temporal em geral. A extensão temporal da duração requer uma constante modificação dos modos de "dação" de acordo com o modo de aparição da orientação temporal. (Husserl, 2001, p. 53)

Isso significa, sobretudo, afirmar que a intenção de visar um objeto tem de ser anexada a um conjunto de relações que não é apenas a descrição dos modos específicos a partir dos quais a experiência perceptiva é capaz de captar um dado sensível como tal, mas tem de ser robusta o suficiente para justificar o caminho percorrido da intuição vazia até o preenchimento sensível causado pelas experiências intuitivas.

A fenomenologia genética precisa ser capaz de responder não somente os estados de relações a partir dos quais ela constitui um dado sensível, mas de justificar quais são os destinos que levaram as apreensões que antecederam o presente perceptivo. Husserl dirá que os processos que antecedem à imediaticidade intencional estão naturalmente em estado de retenção, no qual:

[...] o ego foi previamente atraído para esse dado anterior, e talvez ainda encontra-se inclinado em sua direção de um modo preliminar. De fato, pode ser que seja precisamente essa apreensão que se encontra previamente concordante com a forma da percepção normal e que foi carregada pelo ego como uma coisa presumidamente existente. (Husserl, 2001, p. 96)

É aqui que a psicanálise ganhará uma envergadura inteiramente distinta da apresentada na primeira tese de doutoramento de Merleau-Ponty: ora, se primeiramente ela era somente uma descrição parcial do funcionamento da consciência humana, porquanto apenas nos fornecia uma explicação etiológica de fenômenos patológicos, aqui ela ganhará um aspecto mais universal, uma vez que o passado se arrasta indefinidamente na vida do mais sadio e funcional dos sujeitos. Não se trata de propor uma superação integral entre passado e futuro, mas de indicar uma rede de intencionalidade que resguarda o passado como uma linha oblíqua no interior da diagramação fenomenológica do tempo.

Se Husserl introduziu a noção de retenção e disse que eu ainda tenho em mãos o passado imediato, foi justamente para exprimir que eu não ponho o passado ou não o construo a partir de um sombreamento (Abschattung) realmente distinto dele e por um ato expresso, que eu o alcanço em sua ecceidade recente e todavia já passada. (Merleau-Ponty, 2006b, p. 559; Merleau-Ponty, 1976, p. 477)

Portanto, o tempo passado afunda no presente e tudo é visto através dos instantes temporais do agora, contudo, o caráter transcorrido é indestrutível e transparece indefinidamente não importando quantos instantes seguintes passem a recobri-lo. Com efeito, o tempo "não é uma linha, mas uma rede de intencionalidades" (Merleau-Ponty, 2006b, p. 558; Merleau-Ponty, 1976, p. 477)4.

Essa descrição deve conter também a complexidade dos impasses afetivos em que a história humana se dispõe quando articula suas vivências passadas às suas experiências presentes, dando a elas uma forma ou, ainda, fazendo delas uma estrutura de sentido orientada (precariamente) para o futuro.

Assim, o velho experimenta sempre sua infância, uma vez que sua vida precoce infantil não é mais um passado longínquo do qual o sujeito psicológico não tem mais condições de rememorar, mas uma perpétua retomada. Dirá Merleau-Ponty na Fenomenologia da percepção: "Aquilo que vivemos é e permanece perpetuamente para nós, o velho toca sua infância" (Merleau-Ponty, 2006b, p. 526; Merleau-Ponty, 1976, p. 450). Ela pode ser ora repetitiva, ora uma apropriação criativa dos impasses afetivos que se localizam na rede intencional de sua estrutura libidinal.

No entanto, para Merleau-Ponty, a rearticulação das complexas redes de investimento afetivo nem sempre se dá de forma inventiva e pode ser interpretada a partir de um circuito repetitivo e mortífero sem abertura para o outro de si. A descrição da psicopatologia psiquiátrica indica, na obra de 1945, que as evidências clínicas mostram que aqueles que padecem de um transtorno mental revelam uma incapacidade de inventar para si meios expressivos para ensaiar a resolução de seus impasses afetivos e cotidianos. Isso se expressa tanto na incapacidade de o paciente transpor sentidos na ordem do tempo (cf. Merleau-Ponty, 1976, p. 135) como no tropeço em sua transcendência e negatividade, como é o caso da esquizofrenia (cf. Merleau-Ponty, 1976, p. 392). Assim, a descrição da experiência da anomia adentra também os comportamentos sadios, uma vez que nem sempre é possível realizar na vida cotidiana uma superação criativa de complexos processos psíquicos motivados e orientá-los para o futuro. Na verdade, para Merleau-Ponty, a experiência sadia corresponde a uma tensão dialética entre o dado e o constituído, isto é, das monotonias neuróticas e da criatividade das expressões motoras seja na experiência da arte, seja na linguagem. Ou, ainda, uma síntese instável capaz de pôr o sujeito em situação, dando a ele a possibilidade de realização de uma determinada tarefa de modo quase indefinido.

Temos importantes teses que devem ser reconhecidas a partir dessa nova figuração do tempo: em primeiro lugar, como vimos, sua lógica é a de manter sob tensão as esferas dos eventos transcorridos e atuais e, em segundo lugar (e talvez o mais importante), é a impossibilidade de uma superação integral de nossa ancestralidade pré-pessoal.

Merleau-Ponty conserva a crítica às analogias da biologia e da filogênese no interior da psicanálise freudiana afirmando, por exemplo, que:

No próprio Freud, o sexual não é o genital, a vida sexual não é um simples efeito de processos dos quais os órgãos genitais são o lugar, a libido não é um instinto, quer dizer, uma atividade naturalmente orientada a fins determinados, ela é o poder geral que o sujeito psicofísico tem de aderir a diferentes ambientes, de fixar-se por diferentes experiências, de adquirir estruturas de conduta. É a sexualidade que faz com que um homem tenha uma história. Se a história sexual de um homem oferece a chave de sua vida, é porque na sexualidade do homem projeta-se sua maneira de ser a respeito do mundo, quer dizer, a respeito do tempo e a respeito dos outros homens. (Merleau-Ponty, 2006b, p. 219; Merleau-Ponty, 1976, p. 185)

Porém, a hipótese do inconsciente não é mais tratada como um procedimento auxiliar que se preserva mediante a distinção clássica da filosofia entre forma e conteúdo ou, nas palavras de Politzer (1998), entre a metapsicologia e a narrativa concreta. Como vimos, a partir do reconhecimento do filósofo francês da tematização da lógica do tempo, o passado é entendido como um princípio indestrutível, embora articulável, da existência humana.

O que existe não é um presente, depois um outro presente que sucede o primeiro no ser, e nem mesmo um presente com perspectivas de passado e de porvir seguido por um outro presente em que essas perspectivas seriam subvertidas, de forma que seria necessário um espectador idêntico para operar a síntese das perspectivas sucessivas: existe um só tempo que se confirma a si mesmo, que não pode trazer nada à existência sem já tê-lo fundado como presente e como passado por vir, e que se estabelece por um só movimento. (Merleau-Ponty, 2006b, p. 564; Merleau-Ponty, 1976, p. 481)

Para Merleau-Ponty (1976), o tempo não se dá mais como uma série de "agoras", ou como puros atos. Ele assume que o eidos da experiência do tempo é exatamente a fabricação de totalidades parciais retomadas pelo sujeito a partir das solicitações com os objetos que despertam nele um processo de rememoração de forma ininterrupta: cada presente reafirma a presença de todo o passado.

 

5) O limites das críticas de Merleau-Ponty à psicanálise

Antes de nos dirigirmos à conclusão deste trabalho, ofereceremos o esboço de um quadro crítico a respeito das observações que Merleau-Ponty faz do inconsciente freudiano. Em primeiro lugar, a despeito de apresentarem similaridades na produção de fortes objeções às filosofias da consciência –, sendo o próprio Freud, segundo Merleau-Ponty (1976), um dos precursores da autotematização da filosofia fenomenológica por Husserl e Heidegger –, os apontamentos de ambos certamente resguardam diferenças inconciliáveis no tratamento da ideia discutida neste artigo. Apesar de ter se aproximado da psicanálise com um procedimento metódico distinto, na passagem de A estrutura do comportamento para a Fenomenologia da percepção Merleau-Ponty ainda resguarda a rejeição do inconsciente como uma esfera condicionante dos fenômenos psíquicos conscientes. Para o filósofo francês, Freud, apesar de ser tanto quanto Husserl responsável por oferecer um quadro crítico da racionalidade filosófica, passa a inadvertidamente assumir pressupostos da filosofia reflexiva (Fuchs, 2012), tomando para si um tipo de cartesianismo às avessas (Furlan, 1998). Nas formas ortodoxas e difundidas da psicanálise, o inconsciente se mantém separado de sua antípoda racional, pondo-se a determinar os conteúdos que emergem nas formas dos sintomas em suas infinitas expressões. Tudo se passa como se houvesse uma dicotomia entre racionalidade e irracionalidade, na qual o inconsciente permanece quase como uma ideia regulativa e somente salva deste destino pelas evidências da clínica e pelo trabalho do analista. Desse modo, por julgarem que a oposição entre consciente e inconsciente não consiste em distinções entre estrutura e significado, mas, ao contrário, em reconhecer entre consciência e inconsciência dois lados de uma mesma moeda, as principais críticas da fenomenologia à psicanálise permanecem.

Nesse sentido, Merleau-Ponty se esforçou largamente para demonstrar que, no caso específico do membro fantasma, ou de outras anosognoses, o paciente ignora exatamente aquilo que ele sabe ser insuportável (cf. Merleau-Ponty, 1976, p. 96). Portanto, não é uma categoria objetiva que condiciona os processos do recalque ou da indiferença patológica das histéricas, mas é exatamente a inscrição do conflito no interior da vivência intencional. Ou, ainda, como insiste Fuchs (2012), é o reconhecimento da existência de uma consciência dupla; aquele que convive com a anosognose sabe e ao mesmo tempo não sabe de sua condição. O conflito se desenha a partir de um princípio de coerência interna ao próprio sintoma e não exterior a ele (como Merleau-Ponty julgava acerca das avaliações freudianas dos condicionantes inconscientes em suas formas causais). Ademais, ao descrever um caso clínico apresentando a gênese de um sintoma conversivo (cf. Merleau-Ponty, 1976, p. 187), o filósofo francês irá afirmar que este não é causado mecanicamente como o mover-se de uma alavanca. A moça do caso clínico em questão perde a voz conhecendo exatamente a função de sua fala. Isso não quer dizer, por outro lado, que se trata de uma escolha, mas de um estilo de existência, ou, ainda, de uma consciência tornada ambivalente.

Merleau-Ponty possuía uma profunda questão com as divisões e, por tomar o projeto de restituir a unidade da percepção na função simbólica e a unidade do corpo na corporeidade própria, fica claro que o filósofo francês não estaria disposto a aceitar que a psicanálise estivesse correta ao indicar no interior das funções subjetivas uma cesura incontornável. Com seu dualismo metafísico, Descartes apresenta para Merleau-Ponty o maior erro do Grande Racionalismo5 (Merleau-Ponty, 2004), o qual foi capaz de arrastar as conclusões sobre a separação entre corpo e alma ao longo do pensamento moderno. Por isso, não nos surpreende que o fenomenólogo francês se ocupe da tarefa de tematizar a harmonia e o sentido da organização das partes divididas, fruto da divisão entre res cogitans e res extensa no século XVII. Por essa razão, para Merleau-Ponty seria impensável não resistir à separação entre as ideias de estrutura e significado e dar a elas uma síntese capaz de alocar as incongruências do corpo vivo, seu não-saber, no interior de uma teoria sexual do sensível.

Em um famoso artigo, Pontalis (1965) segue o rumo das críticas feitas no texto de Jacques Lacan (1961) a Merleau-Ponty, em que este é visto como o filósofo da presença e da unidade e, por isso, não compreenderia inteiramente o que a ideia de inconsciente implica. Lacan (1961) afirma, por exemplo, que não há possibilidade de fundar uma teoria sintética entre o saber e o não-saber, como se se tratassem de dois registros complementares. Este último permanece inteiramente fora do domínio das capacidades egoicas, e as cadeias significantes não possuem com essas capacidades uma ligação a ponto de revelar as obscuridades do discurso.

Tampouco podemos encontrar no gesto a recuperação da inteligibilidade silenciosa do mundo sensível, na medida em que o movimento não pode ser encontrado e aquele que se põe em direção ao seu interlocutor, no fim das contas, não possui nada a oferecer. Para Lacan (1961), a categoria da reciprocidade no trato da intersubjetividade ainda seria a marca de um pensamento da conciliação na filosofia de Merleau-Ponty. O psicanalista francês sugere haver no pensamento de Merleau-Ponty a operação imaginária da Grande Síntese, na qual o inconsciente deve ser visto de alguma forma ligado às capacidades sinestésicas do corpo próprio ou articulado à atividade simbólica da percepção.

Pontalis (1965) chega mesmo a afirmar que há uma distância de Merleau-Ponty do texto freudiano, amparando suas descrições clínicas na Daseinsanálise de Binswanger ao invés de recorrer à letra de Freud acerca das narrativas de sofrimento dos sujeitos em processos de análise.

Para Pontalis (1965), a psicanálise tem por tarefa maior diferenciar as relações entre os significantes e a ligação entre os significantes e seus respectivos significados. Por assim dizer, o trabalho do analista é tomar por autônoma a cadeia associativa das palavras, compreender sua heterogeneidade e abrir mão de uma teoria do sentido. Em outras palavras, é entender consciente e inconsciente como dois tipos de estruturas, dois níveis ou até mesmo dois sistemas que, embora possuam uma relação entre si, são incapazes de produzir uma teoria da coesão, seja do ponto de vista do conhecimento na tradição filosófica a partir da qual Merleau-Ponty se localiza (em que o objeto é para o sujeito assim como este o é para seu objeto), seja como uma teoria dos organismos que buscam em seu meio ambiente um tipo de homeostase capaz de garantir seu equilíbrio vital.

Para Merleau-Ponty, o inconsciente não é "a outra cena de nossa existência" (Pontalis, 1965, p. 105), mas o outro lado da experiência. Para Pontalis e Lacan, as acusações de Merleau-Ponty ao revelarem na psicanálise a explicitação de um processo em terceira pessoa não seria o triunfo da racionalidade causal no interior dos processos inconscientes das narrativas concretas, mas, sobretudo, o triunfo do vazio e da impessoalidade da palavra no interior da tragicidade humana, visto que a psicanálise revela no sofrimento daquele que fala uma tentativa de apropriação de uma história que não pertence a um si mesmo. Em poucas palavras, o inconsciente é um sistema assíncrono. Por essa razão, para a psicanálise:

As multiplicidades não são multiplicidades de Um, são multiplicidades irredutíveis; e é por isso que seu oposto não é Um, mas zero, o vazio ontológico: não importa quanto progredirmos na análise das multiplicidades, jamais chegaremos ao nível zero de seus constituintes simples – o único "fundo" para as multiplicidades, portanto, é o zero, o vazio. (Žižek, 2013, p. 429)

Assim, as dificuldades de uma aproximação entre a psicanálise e a fenomenologia não são, como nos mostrou Ayouch (2012), dadas a partir de um problema de atestação, já que a oposição entre descrição e constituição não se sustenta mais. Em Husserl6, na intenção de construir uma filosofia transcendental não somente descritiva, mas explicativa, a gênese da subjetividade inclui no seio das descrições fenomenológicas um aspecto para além do aparecimento da realidade perceptiva.

Essas dificuldades tampouco residem nas diferenças epistemológicas entre as duas disciplinas, a partir das quais a psicanálise não encontraria resolvidas as tensões entre as metáforas energéticas, o passado filogenético e uma teoria da interpretação, enquanto, do outro lado, a fenomenologia, desde as críticas de Husserl (Merleau-Ponty, 1973) ao materialismo da Escola de Berlim, já haveria realizado as devidas distinções entre natureza e hermenêutica7. A nosso ver, essa impossibilidade se dá pelo fato de Pontalis (1965) reconhecer no uso da linguística estrutural a oportunidade na qual a psicanálise pode renunciar à fenomenologia da fala em prol de uma teoria da língua. Preparando o terreno retórico para a crítica de Saussure, as próprias palavras de Merleau-Ponty indicam que a linguística estrutural "é feita de diferenças sem termos, ou, mais exatamente, os termos nela são engendrados apenas pelas diferenças que aparecem entre eles" (Merleau-Ponty, 1991, p. 39)8. Ou seja, as diferenças epistemológicas se invertem na medida em que, segundo Pontalis (1965), Lacan opta por acatar à máxima na qual o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Enquanto isso, Merleau-Ponty (1995) direciona-se cada vez mais para a crítica da separação de Wilhelm Dilthey entre ciências naturais e ciências do espírito9.

Elas não estão localizadas nem no próprio registro particular da prática clínica que conjuga formação, análise e teoria, uma vez que filósofos como o esloveno Slavoj Žižek reconhecem nas suas avaliações da dialética hegeliana a inclusão de um diálogo profundo com a teoria lacaniana que ultrapassa a circunscrição do método analítico e logra em produzir uma ontologia do vazio10. Assim, demonstra-se ser possível um tipo de discurso na filosofia capaz de escapar das ilusões da positividade totalizante ou, ainda, um tipo de posição ontológica capaz de desvincular a verdade e o sentido, intimamente ligados na filosofia fenomenológica.

As dificuldades entre as aproximações com a fenomenologia e a psicanálise se dão exatamente do ponto de vista de suas respectivas ontologias. De um lado, com Merleau-Ponty, o inconsciente deve sair de sua impessoalidade intransitiva e adentrar a corporeidade da experiência total da sensibilidade humana, enquanto para a psicanálise o reconhecimento de uma dimensão distinta dos fenômenos conscientes consiste na insistência da produção de pontos-cegos que não podem ser trazidos para o interior de uma sincronicidade orgânica ou de uma harmonia ontológica. Isto é, de uma aproximação entre o não-dito e o sentido.

Muito mais próximo de compreender a psicanálise nos termos indicados por Pontalis (1965) e Lacan (1961), Foucault (2007), em seu livro As palavras e as coisas, reconhece que o inconsciente freudiano se diferencia de objetos empíricos visto que não se trata de pensar sua natureza determinada, sua ligação com o corpo ou mesmo atribuir aos afetos uma gênese histórica prévia à fala. Trata-se, sobretudo, de considerar a dimensão indeterminada da formação do inconsciente e suas respectivas negatividades: seu não-lugar, sua não-explicação e seu não-sentido. Foucault (2007) reconhece acima de tudo a irredutibilidade do saber psicanalítico à forma comum dos discursos da conciliação. Em suas palavras, o marxismo e a fenomenologia podem apenas produzir uma forma débil e confusa de conhecimento sobre o homem, consolidando a circularidade tautológica do discurso moderno na repetição cíclica das duplas figuras da analítica da finitude.

 

6) Considerações finais

Na obra de 1942, Merleau-Ponty (2006a) utilizou-se da ideia de estruturas de comportamento perfeitamente integradas, supondo uma ideia implícita de temporalidade que excluía o passado das articulações presentes do organismo vivo. Tal proposição culminou em uma interpretação da psicanálise que poderia revelar somente um tipo específico de comportamento. Assim, Merleau-Ponty (2006a) só poderia localizar as formações neuróticas no interior dos comportamentos adoecidos, na mesma medida em que a teoria do reflexo condicionado de Pavlov só poderia também descrever um organismo disfuncional. No fim das contas, com a ideia de trabalho advinda das heranças das filosofias dialéticas, Merleau-Ponty (2006a) supôs por meio desta uma temporalidade linear em que a distinção entre homens e animais se deu a partir da afirmação de que nestes, a atividade criativa é uma exigência para a elaboração de qualquer experiência perceptiva, pois são capazes de apagar qualquer vestígio de ancestralidade, dado que o tempo só é composto de instantes sucessivos.

A partir das adesões às sugestões husserlianas a respeito da temporalidade, ampliando, assim, o domínio dos sucessivos em uma noção de tempo como a conversão parcial do presente em instantes transcorridos, Merleau-Ponty (1976) pôde aceitar em sua obra seguinte a hipótese do inconsciente freudiano, mesmo permanecendo contrário às analogias impróprias da psicanálise para explicar o passado filogenético da subjetividade humana.

O sentido da experiência dos hominídeos ganha, dessa forma, dois tipos de passado, indicando duas dimensões que são geneticamente prévias à história dos homens singulares: em primeiro lugar, a da monotonia da Natureza e a habitualidade dos sentidos da história humana, que são retomados, mais ou menos, de forma criativa. Afinal, dirá Merleau-Ponty (2004), o sentido da consciência da história do conhecimento clássico está à espreita das incertezas do espírito da modernidade, não sendo, portanto, sua ultrapassagem uma garantia, mas uma forma de superação a ser constantemente retomada e reafirmada.

Assim, Merleau-Ponty poderá reconhecer o inconsciente freudiano e a ordem de funcionamento regressivo da estrutura psíquica menos como um apêndice das descrições patológicas de um trabalho funcionalmente integrado do que como um processo universal de descrição e explicação do movimento da vida psíquica cotidiana. Freud torna-se para ele uma referência que expressa em todo o trabalho de descrição dos sintomas clínicos a função lógica do tempo, isto é, o psicanalista alemão é capaz de tornar inteligível na particularidade da narrativa concreta de seus pacientes a forma da ordenação e da coerência universal do tempo.

Ao final da Fenomenologia da percepção, a crítica passa a ser menos o reconhecimento de um funcionamento regressivo do inconsciente e mais a ideia na qual deveria haver em Freud a admissão de que o drama sexual é, por ele mesmo, insuficiente para a explicação das multiplicidades expressivas da psicopatologia cotidiana. Merleau-Ponty (1976) encontra, portanto, no marxismo e na psicanálise um esboço de uma unidade da forma da experiência humana; se articulados, poderiam se aproximar de uma compreensão ampliada da existência humana. A psicanálise deveria tanto reconhecer o sintoma como um acontecimento social amparado não só na ideia de sexualidade como também do direito e das superestruturas econômicas. Por outro lado, o marxismo deveria investir nas relações jurídicas e nas relações econômicas o aspecto libidinal do drama sexual que constitui a totalidade parcial dos processos de inscrição do homem na cultura.

Na medida em que um combatente de guerra pode ser descrito por seus investimentos libidinais no interior dos motivos que o levam à luta, ele também pode ser descrito igualmente em seu lugar político a partir das determinações das lutas de classes que o fazem ocupar seu papel na história.

A dialética entre a psicanálise e o marxismo consiste, portanto, na compressão de uma verdadeira superação das verdades parciais do homem, e não de uma mera rejeição dogmática dos sistemas de pensamento precedentes11. Por essa razão, o inconsciente é apenas parte de uma trama maior de sucessão e retenção que, motivada pela sexualidade, encontra sua verdade no tempo. Este, por ser mais universal do que a teoria freudiana, pode ser articulado e inserido na dimensão das tramas do materialismo histórico e no interior dos processos de reconhecimento social, fornecendo ao psicanalista um modo de entendimento mais alargado do homem e de seu destino: o de permanecer ligado e, ao mesmo tempo, livre para fazer das situações históricas o sentido de sua existência.

Evidentemente, se segue daí as resistências de Pontalis (1965) acerca da tentativa de tornar a psicanálise parte de uma teoria una, na qual ela seja uma parcialidade de um processo organizado capaz de fornecer ao pensamento uma totalidade. Não obstante, para Merleau-Ponty, essa totalidade não é aquela resguardada pelas filosofias da consciência e as filosofias do Absoluto, nas quais o sentido da vida humana não encontra uma orientação necessária no espaço da lógica formal da subjetividade, sequer do logos do mundo. Para ele, essa teleologia fraca da vida humana, isto é, de uma experiência capaz de reorganizar-se a partir de finalidades parciais e se manter em um circuito que conserve a vitalidade da tensão dialética entre liberdade e não-liberdade, seria o ganho da união entre as articulações dos sistemas de troca e da teoria da sexualidade, já que, até o presente momento de sua obra apresentada neste artigo, o filósofo não está interessado em um inconsciente linguajeiro, mas pré-objetivo e corporal (Dorfman, 2007). Para Pontalis (1965), no entanto, essa tarefa permanece como inalcançável, porquanto mesmo as totalidades parciais são uma forma de resguardar a unidade imaginária do corpo ante o aspecto disruptivo da cadeia significante.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Vitor Vasconcelos
E-mail: vasconcelosvitor@yahoo.com.br

 

 

* Doutorando em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
1 Para Kant, essa junção é tratada como um paralogismo, isto é, uma ilusão transcendental. Assim, a razão deve pressupor uma diferença entre a psicologia pura e a psicologia empírica, porquanto o incondicionado do eu racional não é a simples identificação entre as intuições sensíveis temporais à ideia transcendental de alma. Para mais detalhes, cf. Kant (2001 , A339/B397, B427).
2 Apesar de utilizarmo-nos de uma nomenclatura que para a psicanálise descreve somente parte do funcionamento psíquico, Merleau-Ponty entende a consciência em um sentido amplo. A atividade consciente também se dá a partir de motivações não tematizadas pela própria estrutura viva.
3 Utilizamos aqui a analogia de Husserl.
4 De modo mais claro, nas palavras de Paul Ricœur: "O achado de Husserl (...) é que o 'agora' não se contrai num instante pontual, mas comporta uma intencionalidade longitudinal (para contrapô-la à intencionalidade transcendente, que, na percepção, acentua a unidade do objeto), em virtude da qual ele é ao mesmo tempo ele mesmo e a retenção da frase de som que acaba 'agora mesmo' (soeben) de passar, assim como a protensão da fase iminente" (Ricœur, 1997, p. 46, grifos do original).
5 A acusação de Merleau-Ponty toma forma não sem antes utilizar a ambiguidade de sua filosofia contra seus próprios argumentos cartesianos, sobretudo na admissão de que o dualismo de Descartes não foi levado a sério inteiramente. Para mais detalhes, cf. Merleau-Ponty, 1995, pp. 176-184.
6 Para mais detalhes entre as distinções entre fenomenológica estática e genética, cf. Steinbock (1998).
7 É curioso notar que essa distinção operada por Husserl sequer se sustenta no pensamento tardio de Merleau-Ponty (1995), quando este busca ampliar a definição do conceito de natureza.
8 O que naturalmente configura para Merleau-Ponty uma tese inaceitável, uma vez que: "Se recolocarmos (...) o pintor em contato com seu mundo, talvez acharemos menos enigmática a metamorfose que, por intermédio dele, transforma o mundo em pintura, aquela que, dos seus primórdios à sua maturidade, modifica-o em si mesmo, e por fim aquela que, em cada geração, proporciona a certas obras do passado um sentido que não se havia percebido" (Merleau-Ponty, 1991, p. 59).
9 Para mais detalhes sobre essa separação, cf. o artigo "Explicar e compreender" em Paul Ricœur (1989).
10 Para mais detalhes de uma ontologia sexualizada, cf. Žižek, 2013, p. 595.
11 Para mais detalhes da discussão, cf. Merleau-Ponty, 1976, pp. 199-202.

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