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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.17 no.2 São Paulo  2015

 

ARTIGOS

 

Liberdade e natureza (in)humana (Zizek versus Habermas)

 

Freedom and nature (in)human (Zizek versus Habermas)

 

 

Fernando Facó de Assis Fonseca*

Universidade Federal do Ceará (UFC)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo problematizar a relação entre o princípio de liberdade e a ideia de natureza humana. Defendemos a tese de que o verdadeiro conceito de liberdade só pode ser pensado além dos limites (naturalmente) estabelecidos pela espécie humana. Logo, liberdade tem a ver com o domínio do inumano, não com o do humano. Desse modo, convém contrapor duas perspectivas contemporâneas que divergem radicalmente sobre o conceito de modernidade: a pragmática formal de Jürgen Habermas e o materialismo dialético de Slavoj Zizek. Tomamos como fio condutor, portanto, a polêmica sobre o tema da biogenética, e, a partir daí, procuramos demonstrar como a concepção de modernidade para Zizek – apoiado principalmente em Hegel e Lacan – revela-se ainda mais radical do que o projeto de uma modernidade inacabada de Habermas.

Palavras-chave: liberdade; natureza humana; natureza inumana; biogenética; modernidade.


ABSTRACT

This paper aims to discuss the relationship between the principle of freedom and the idea of human nature. We seek to argue that the very concept of freedom can only be thought beyond the limits of course set by the human species. I.e. freedom has to do with the domain of the inhumane, not of the human. Therefore, it is essential to oppose two contemporary perspectives that differ radically about the concept of modernity: the Habermas' formal pragmatics and Slavoj Zizek's dialectical materialism. We must take, therefore, as a guide the controversy on the subject of biogenetic, and, from there, to demonstrate how the concept of modernity to Zizek proves to be even more radical than the Habermas' project of modernity unfinished.

Keywords: freedom; human nature; inhuman nature, biogenetics; modernity.


 

 

1) Introdução

O presente trabalho discute o tema da liberdade humana para além do tópico do humanismo clássico da tradição. Por humanismo clássico, compreendemos as teses filosóficas que conferem ao homem uma espécie de natureza humana irredutível e insuperável, seja empírica, situada no nível orgânico, seja metafísica, situada na razão. Dito isso, podemos chamar essa liberdade que excede a esfera do humanismo de liberdade inumana. É desse modo que Zizek compreende o verdadeiro sentido da liberdade. Mas, ao contrário do que poderíamos supor, o termo inumano não designa uma visão pósmoderna, irracionalista ou niilista do homem, que, como regra geral, visa erradicar o sentido de humano em nome, por exemplo, da plasticidade homem-animal – como sugere o conceito de devir-animal de Deleuze e Guattari (1980) – ou, ainda, do hibridismo homem-máquina, como sugere a tese de Ray Kurzweil (2007) em A era das máquinas espirituais. Não se trata disso. Zizek não é um pós-moderno, mas um moderno convicto. Para ele, o fundamento da modernidade, inaugurada pelo cogito cartesiano, não é o homem, mas o sujeito; e o sujeito definitivamente não é uma categoria humana, mas inumana. Assim, por mais estranho que pareça, no coração da modernidade reside não o homem, mas sua radicalidade inumana.

Para fugir do jogo de palavras, partimos da leitura que Zizek faz do ensaio O futuro da natureza humana, de Jürgen Habermas, em sua polêmica sobre o tema da biogenética. É interessante confrontar esses dois autores porque ambos desdenham das propostas filosóficas contemporâneas que aspiram ultrapassar a modernidade, insistindo, dessa forma, em dar continuidade ao projeto filosófico moderno. Porém, há uma diferença fundamental entre eles, e o ponto de discordância, segundo Zizek (2008a), reside no modo como cada um lê Kant. Habermas (2004) acredita que o deflacionamento pragmático efetuado pela razão comunicativa seria capaz de superar os limites do modelo representacional ao qual Kant estava ligado e, dessa forma, eliminar a herança metafísica da dicotomia sujeito-objeto. Zizek (2012), ao contrário, demonstra que a radicalização de um pensamento pós-metafísico já está presente no próprio Kant. Aqui, Zizek é mais kantiano que Habermas: para aquele, a estratégia habermasiana do deslocamento da subjetividade para o campo da práxis linguística serve apenas para ocultar o núcleo traumático do pensamento de Kant. Em outras palavras, a transferência da centralidade da razão subjetiva para uma dimensão intersubjetiva – espaço simbólico no qual os indivíduos participam ativamente de uma acareação racional entre si – consiste, para Zizek, numa forma ilegítima de domesticar o efeito antagônico que a ideia de sujeito kantiano acarretou na modernidade. Para ele, portanto, só podemos avançar sobre Kant e assim radicalizar a verdadeira condição pós-metafísica da modernidade se insistirmos na intuição originária do próprio Kant, ou seja, no núcleo irredutível do sujeito moderno.

Cabe deixar claro que não se trata de um diálogo entre Habermas e Zizek, até porque este não é um filósofo do diálogo. Numa referência a Kafka, deixemos claro o que ele pensa sobre o diálogo: "Kafka estava certo (como sempre) quando escreveu: 'Um dos meios que o mal possui é o diálogo'" (Zizek, 2012, p. 16). Podemos também nos referir a outro texto do autor, cujo título já é autoexplicativo: "Filosofia não é um diálogo". Logo no primeiro parágrafo, Zizek lança a provocação: "Você está sentado num café e alguém te desafia: Vamos lá, vamos discutir isso com mais profundidade! E o filósofo imediatamente lhe responde: desculpe, eu tenho que ir. E trata de desaparecer o mais rápido possível" (Badiou & Zizek, 2013, p. 49). Para ele, a filosofia é axiomática e, como tal, a questão fundamental é saber como expor seus axiomas, como torná-los conhecidos (Badiou & Zizek, 2013). Zizek promove, portanto, uma torção dialética no pensamento de Habermas, de maneira a expor os pressupostos que o próprio Habermas desconhece em seu pensamento. Logo, não importa muito para nós o que Habermas pensa sobre si, mas a forma como Zizek conduz dialeticamente sua tese sobre o "futuro da natureza humana", apresentando uma proposta moderna de liberdade humana (ou, melhor, inumana) mais radical que a de Habermas.

 

2) Em defesa da natureza humana

Em seu ensaio O futuro da natureza humana, Jürgen Habermas (2010) levanta um problema ético preciso: com base nos avanços mais recentes da biogenética, como fica o estatuto da liberdade e da autonomia humana? O ponto de Habermas (2010) é que o perigo da manipulação de nossa infraestrutura genética põe em risco a noção mais profunda de liberdade humana, já que, uma vez acessada e decodificada a base estrutural de nosso código genético, torna-se muito provável que tenha início um processo de instrumentalização sem limites do homem sobre ele mesmo. De acordo com o filósofo, a intervenção da tecnologia genética produziria uma confusão generalizada, uma desordem profunda entre aquilo que é transformado pela evolução natural da espécie e aquilo que é produzido e manipulado tecnicamente, ou seja, uma indistinção fundamental entre o natural e o fabricado. Poderíamos, portanto, vislumbrar aqui a tese de Adorno e Horkheimer (2006) de uma "dialética autodestrutiva do esclarecimento". "A manipulação estendida ao patrimônio hereditário do homem anula a distinção entre ação clínica e produção técnica, no que diz respeito à natureza interna" (Habermas, 2010, p. 70). Para Habermas (2010), com o progresso das ciências biológicas e o desenvolvimento das biotecnologias, tocamos em algo essencial para a preservação do sentido de espécie humana: corremos o grave risco de perder a própria identidade de nossa espécie, ou seja, estamos na iminência de produzir "um novo tipo de autorreferência, que alcança o nível mais profundo do substrato orgânico" (Habermas, 2010, p. 18).

No fundo, Habermas procura restabelecer na atualidade o princípio básico da Aufklärung, tal como foi considerado por Kant em sua sucinta fórmula: "o esclarecimento [Aufklärung] é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele é culpado" (Kant, 2005, p. 63). A tese de Habermas (2002) é a de que a modernidade ainda não exauriu todo o seu potencial emancipatório, de modo que o projeto iluminista, que constitui seu pressuposto básico, permanece inacabado. É claro que ele compreende com muita clareza o golpe profundo que esse período sofreu com as teses pós-modernas, de Nietzsche ao (pós-)estruturalismo francês, passando pela Escola de Frankfurt e pela retomada ontológica de Heidegger e Gadamer; porém, para Habermas (2002), se eximir de todo o potencial de emancipação humana elaborado na modernidade em função do relativismo, do historicismo e da razão instrumental seria o mesmo que abandonar por definitivo o projeto da filosofia enquanto tal.

Mas, antes de qualquer coisa, é fundamental estabelecer aqui a diferença do que Kant (2005) chamou de uso público da razão e uso privado da razão:

O uso público da razão deve ser sempre livre e só ele pode realizar o esclarecimento [Aufklärung] entre os homens. O uso privado da razão pode, porém, muitas vezes ser muito estreitamente limitado, sem contudo por isso impedir notavelmente o progresso do esclarecimento [Aufklärung]. Entendo sob o nome de uso público de sua própria razão aquele que qualquer homem, enquanto sábio, faz dela diante do grande público do mundo letrado. Denomino uso privado aquele que o sábio pode fazer de sua razão em um certo cargo público ou função a ele confiado. (Kant, 2005, p. 66)

No âmbito público da razão, o sujeito racional se eleva individualmente ao plano universal de argumentação, ou seja, para que ele aja à altura de sua condição como sujeito universal, é preciso, portanto, que se coloque num nível acima de suas raízes históricas, culturais, comunitárias etc. E é exatamente nesse plano que reside a verdadeira liberdade humana: "a mais inofensiva entre tudo aquilo que se possa chamar liberdade, a saber: a de fazer um uso público de sua razão em todas as questões" (Kant, 2005, p. 65). Em contrapartida, no que tange ao domínio da razão privada, o sujeito em questão é o mergulhado na ordem positiva das instituições e das normas estabelecidas, e é somente em função destas que ele responde58.

Nesse sentido, se, para continuar fiel ao ideal da Aufklärung, é preciso preservar o uso público da razão, não há outra saída senão apelar para uma intervenção normativa que preze pela posse das faculdades racionais humanas. Ora, no momento em que a ciência solapar os fundamentos da liberdade humana com intervenções genéticas, criando o estranho quadro em que o sujeito passa a ser ao mesmo tempo o agente da razão pública e o próprio objeto de manipulação, ou seja, na medida em que nossa condição espontânea como sujeitos universais for completamente regulada por práticas laboratoriais, então a profecia niilista da pós-modernidade, que considera a razão instrumental como o substrato último da razão humana, terá sido de fato cumprida e, consequentemente, a causa da liberdade humana terá sido efetivamente abolida. Habermas procura, portanto, com base numa regulamentação normativa, estabelecer uma nova moralização da natureza humana, baseada agora no reconhecimento recíproco da espécie tal como a evolução a proveu. Ao intervir na ordem natural das coisas, estaríamos eliminando o mínimo necessário de contingência para resguardar o estatuto da liberdade e autonomia humana.

Assim, Zizek enxerga na tese habermasiana um princípio mínimo de "ignorância" que deve ser normativamente preservado. Ou, dito de outro modo, a razão humana encontra seu próprio limite: esse "não-querer-saber" voluntário, essa contingência irredutível que confere ao indivíduo sua natureza humana e, por conseguinte, sua liberdade e autonomia, é a própria chave de sua sobrevivência.

 

3) Aufklärung e o impasse da modernidade

Como Habermas, Zizek (2009) também defende a tese de que a tarefa principal da filosofia hoje é recuperar os pressupostos de emancipação e autonomia moral abandonados pelo pensamento "pós-moderno". Entretanto, para Zizek (2003), a saída para esse dilema não pode ser tratada segundo o modo habermasiano de oposição entre liberdade e conhecimento, isto é, a escolha entre argumentação racional pública e autoobjetivação científica. A solução reside justamente no caminho contrário: é preciso levar a cabo o projeto de auto-objetivação científica e, somente assim, extrair de dentro dele o fundamento da liberdade humana.

O esforço "pós-secular" da formação dos "limites do desencantamento" aceita rápido demais a premissa segundo a qual a lógica inerente ao Iluminismo acaba na completa auto-objetivação científica da humanidade, na transformação dos humanos em objetos à disposição da manipulação científica [...]. Contra essa tentação, é crucial persistir até o fim no projeto do Iluminismo. O Iluminismo continua sendo um "projeto inacabado" que tem de ser finalizado, e seu fim não é a completa auto-objetivação científica, mas – temos que apostar nisso – uma nova imagem da liberdade que irá surgir ao seguirmos a lógica da ciência até o fim. (Zizek, 2011a, p. 189)

Aqui, surge uma questão: trata-se de dois modelos diferentes de Aufklärung, a habermasiana e a zizekiana? De modo algum. Não há dois modos de se pensar a Aufklärung, dois modelos paralelos que podem coexistir dependendo do ponto de vista teórico em jogo. O princípio do esclarecimento é exatamente o mesmo proposto por Kant. Resta saber apenas se sua essência foi suficientemente radicalizada na história do pensamento ocidental, isto é, se cumprimos efetivamente o potencial interno do sentido de Aufklärung que Kant propôs. A premissa de Zizek (2011a) é que esse conceito, inaugurado na era moderna, ainda necessita efetuar um salto radical e decisivo para consumar aquilo a que se propõe – e a posição ambígua de Habermas em relação ao problema da biogenética só confirma uma resistência acanhada nesse processo.

Estamos, na verdade, lidando com uma problemática aberta no cerne do pensamento kantiano ou, melhor, no coração da modernidade e de seu ideal iluminista de progresso. É sabido que, no auge dos séculos XIX e XX, deu-se início uma profunda desconfiança em relação ao ideal moderno de progresso centralizado na razão subjetiva. O ponto é que esse tão sonhado momento de emancipação humana, orientado pela ciência e pelo discernimento racional subjetivo, culminou numa profunda escravização do próprio homem por aquilo que os teóricos da Escola de Frankfurt denominaram de razão instrumental. Ou seja, à medida que o homem julgou a si mesmo o senhor da natureza e detentor dos meios metodológicos de manipulação e exploração técnica, uma inversão lógica inesperada já atuava na contrapartida subjacente desse projeto, transformando em objeto exatamente aquilo que conjecturava exercer um poder soberano de controle e domínio a distância. Nesse momento, o homem passa a alienar-se da força atuante pela sua própria razão, de modo que o que parecia ser o momento de glorificação da liberdade pelo uso da razão técnica passa a ser o triste aprisionamento por forças desconhecidas originadas pela própria contradição lógica dessa dinâmica de dominação. Como diz Adorno: "a imagem do homem no centro está irmanada com o desprezo pelo homem" (Adorno, 2009, p. 28). Eis, em termos gerais, o impasse inerente ao próprio projeto iluminista de progresso e emancipação. Diante disso, a preocupação filosófica primordial dos nossos tempos é saber o que fazer com a lacuna que surge no seio da razão moderna, contradizendo todos os ideais emancipatórios em cujo fundo depositávamos nossas esperanças. Como afirma Vladimir Safatle:

Tudo se passa como se o pensamento contemporâneo tomasse consciência de que as expectativas emancipatórias da razão, essas expectativas que prometiam retirar o homem de sua minoridade e, como dizia Descartes, ser "senhor da natureza", haviam produzido o inverso daquilo que era seu conceito. (Safatle, 2012, p. 230)

Façamos, portanto, um breve relato que vai da postulação da lacuna epistemológica no coração da modernidade, pelos teóricos da escola de Frankfurt Adorno e Horkheimer, até a tentativa de saná-la, com Habermas.

 

4) Modernidade: esclarecimento e barbárie

Ao contrário do que diz o senso comum, as catástrofes que assolaram o século XX não são frutos do barbarismo irracional e pré-civilizado, tampouco devem ser entendidas como um lapso metodológico cometido em algum lugar do passado e sujeito à correção, isto é, à superação e ao esquecimento. A principal lição de Adorno e Horkheimer (2006) é que o terror do século XX não é outra coisa senão um produto direto da lógica subjacente à dialética do esclarecimento. É assim que devemos entender as densas palavras contidas logo nas primeiras linhas da obra Dialética do esclarecimento: "O esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal" (Adorno & Horkheimer, 2006, p. 19). É assim também que devemos conceber o holocausto em Auschwitz: não é o resultado da selvageria humana desprovida de sentido, mas o resultado de uma lógica paradoxal cujo movimento de regressão à barbárie está indissociavelmente ligado ao ideal de progresso humano (Adorno, 1995). Em outras palavras, Auschwitz consiste precisamente no núcleo obscuro e autodestrutivo subjacente à razão instrumental, que conduz e embala nossa sociedade administrada e pós-metafísica. Seu projeto instaurador reside na maneira como, na modernidade, a técnica se tornou o próprio espírito do tempo, um fim em si mesmo. A consumação radical desse horizonte técnico-industrial manifesta seu lado tenebroso no momento em que a própria morte – não obstante sua solenidade ontológica – passa então a ser disponibilizada segundo os meios da produção industrial. Em suma, para Adorno (1995), Auschwitz é o espírito da modernidade reificado, encarnado na forma de horror absoluto. Desse modo, o terror do holocausto deve ser compreendido não como um lapso, um equívoco, mas como uma necessidade constitutiva do processo de esclarecimento tal como fora engendrado na sociedade industrial moderna.

Porém, já que os ideais iluministas de progresso que orientavam o homem para sua real emancipação foram os mesmos que permitiram o horror testemunhado no século passado, manifestando sua contradição lógica inerente, para onde então devemos seguir? A resposta não pode ser a fácil solução de abandonar o princípio do esclarecimento em nome de um ideal obscurantista qualquer. Para os teóricos da Escola de Frankfurt, a única saída possível é, pois, manter firme o paradoxo da modernidade. Assim, para a dupla alemã, a solução para o problema não consiste em fugir da contradição, mas, ao contrário, consiste na tomada reflexiva da própria contradição a partir do trabalho do pensamento conceitual. Ou seja, como parte do problema de instrumentalização e dominação, o conceito é ao mesmo tempo a solução, na medida em que carrega consigo a contradição necessária para a tomada reflexiva do homem diante de sua técnica. Como fica claro nesta passagem:

Todo progresso da civilização tem renovado, ao mesmo tempo, a dominação e a perspectiva de seu abrandamento. Contudo, enquanto a história real se teceu a partir de um sofrimento real, que de modo algum diminui proporcionalmente ao crescimento dos meios para sua eliminação, a concretização desta perspectiva depende do conceito. Pois ele é não somente, enquanto ciência, um instrumento que serve para distanciar os homens da natureza, mas é também, enquanto tomada de consciência do próprio pensamento que, sob a forma da ciência, permanece preso à evolução cega da economia, um instrumento que permite medir a distância perturbadora da injustiça. (Adorno & Horkheimer, 2006, p. 50)

À medida que o princípio da razão instrumental é o princípio da dominação e instrumentalização da natureza, o conceito consiste numa "ferramenta ideal [do próprio pensamento] que se encaixa nas coisas pelo lado onde se pode pegá-las" (Adorno & Horkheimer, 2006, p. 50). Sendo assim, somente através de uma reflexão extenuada do próprio conceito é que se pode tematizar essa ambiguidade constitutiva que une progresso e destruição. O conceito, portanto, não significa apenas uma máquina cega de manipulação e dominação a distância da natureza pelo pensamento, mas é, também, o único recurso possível de reflexão que nos permite reconhecer nossa cegueira constitutiva.

Portanto, o conceito cumpre aqui uma dupla função: por um lado, consiste na ferramenta utilizada pelo pensamento para capturar e dominar a natureza. Entretanto, já que o conceito "se encaixa nas coisas [somente] pelo lado onde se pode pegá-las", então significa, por outro lado, que há sempre um excesso da coisa mesma não apreendida pelo conceito e, no caso, ela só pode ser percebida pelo lado negativo do próprio conceito. Por isso, se quisermos recuperar uma relação mais íntima com a natureza, não cabe retomar formas primitivas de um contato místico com ela. A verdadeira expressão da natureza comparece somente quando percebemos que algo permanece inapreensível pela própria atividade intelectual, isto é, quando nos deparamos com o lado excessivo da coisa que não se adequa à forma adquirida pelo conceito. Dessa maneira, a verdade do conceito é revelada como sendo a própria natureza renegada, como bem esclarece Adorno e Horkheimer:

O esclarecimento é mais que esclarecimento: natureza que se torna perceptível em sua alienação. No autoconhecimento do espírito como natureza em desunião consigo mesma, a natureza se chama a si mesma como antigamente, mas não mais imediatamente com seu nome presumido, que significa omnipotência, isto é, como "mana", mas como algo de cego, mutilado. (Adorno & Horkheimer, 2006, p. 50)

Essa é a razão pela qual não podemos simplesmente situar a crítica ao esclarecimento de Adorno e Horkheimer (2006) como uma passagem para além dos limites do próprio esclarecimento. Ou seja, embora eles apontem para a limitação da modernidade e critiquem severamente o fundamento técnico-instrumental da Aufklärung, é nessa limitação mesma que os teóricos da Escola de Frankfurt pretendem fincar os pés. É precisamente aqui que a razão cega instrumental pode ser revertida em razão crítica. Qualquer tentativa de escapar desse momento é considerada uma fuga precipitada e sem maiores efeitos, uma vez que, com isso, se perderia o motivo revelador e operante da própria crítica, o lado negativo e irredutível do conceito. Ou seja, se a filosofia tem algum sentido ainda hoje, ele não é mais o de realizar-se enquanto um projeto de transformação do mundo, mas justamente apontar criticamente o fracasso constitutivo de todo e qualquer projeto dessa ordem. Basta citar aqui a frase com que Adorno abre A dialética negativa: "A filosofia, que um dia pareceu ultrapassada, mantém-se viva porque se perdeu o instante de sua realização" (Adorno, 2009, p. 11).

 

5) Modernidade: um projeto inacabado

Habermas compreende muito bem essa condição crítica dos autores. Ele sabe que, para Adorno e Horkheimer (2006), não se trata de uma crítica rasteira ao paradigma da modernidade nem de uma proposta de um modelo alternativo que suplante a razão iluminista. Habermas (2002) percebe a profundidade e a eficiência da "dialética do esclarecimento" e até endossa sua tese de fundo: o esclarecimento concebido unicamente como princípio de dominação da natureza traz consigo seu lado negativo e autodestruidor. É por isso que, segundo ele, o último passo de Adorno e Horkheimer (2006) em relação ao esclarecimento só poderia ser a insistência teimosa na contradição performativa, como ele afirma:

A Dialética negativa, de Adorno, pode ser lida como a continuação da explicação de por que temos de girar em torno dessa contradição performativa, e devemos mesmo persistir nela, de por que somente o desdobramento insistente e incansável do paradoxo abre a perspectiva daquela "reminiscência da natureza no sujeito", invocada quase de maneira mágica, "que encerra a verdade ignorada de toda cultura". (Habermas, 2002, p. 170)

Em uma palavra, o propósito da crítica é justamente inserir o homem dentro dessas duas dimensões antinômicas. Na dimensão constatativa, na objetividade da terceira pessoa59, o homem supõe dominar teórica e tecnicamente a natureza: ele se percebe como senhor da natureza, mantendo, com relação a ela, uma distância apropriada, objetiva; porém, no aspecto performativo da linguagem, em que se leva em conta a primeira pessoa, ele é sub-repticiamente tomado como instrumento desse mesmo ideal. Ou seja, ele é subitamente tomado numa contradição irredutível no momento em que a própria objetividade do discurso científico reduz o próprio homem a um objeto desse discurso – quanto mais ele procura dominar, mais ele é dominado. Assim, podemos afirmar que a censura de Habermas em relação aos teóricos da Escola de Frankfurt não diz respeito, portanto, a essa configuração contraditória da modernidade. Todavia, o que ele enfaticamente rejeita nessa proposta é a hipótese de que essa contradição seja o ponto final do processo:

Quem persiste em um paradoxo [...] só pode manter sua posição se ao menos tornar plausível que não há nenhuma saída. A possibilidade de retirar-se de uma situação aporética tem de estar igualmente barrada, senão haveria um caminho, precisamente o de volta. Parece-me, no entanto, que esse caminho existe. (Habermas, 2002, p. 183)

Em outros termos, Habermas percebe que essa visão autocontraditória da razão é uma posição unilateral, uma atitude que reduz o potencial emancipatório da própria razão. No fundo, Adorno e Horkheimer (2006) se mostram conformados com a natureza contraditória do princípio da racionalidade instrumental, sem encontrar aí qualquer saída satisfatória para conduzir adiante o projeto da modernidade. A tese de Habermas (2002) é a de que esse impasse epistemológico da modernidade corresponde diretamente ao ideal de uma subjetividade transcendental, cuja necessidade estrutural lança mão de uma lacuna irredutível entre a dimensão transcendental e a dimensão fenomênica – dicotomia essa que reflete com total clareza a matriz platônica dos dois mundos. Com muita autenticidade, Adorno e Horkheimer (2006) identificaram os efeitos colaterais no modo de funcionamento dessas duas dimensões incomunicáveis. Entretanto, limitar-se unicamente a uma crítica negativa do conceito significa permanecer fiel ao campo a que se quer solapar. Zizek e Habermas parecem concordar neste ponto: Adorno e Horkheimer supostamente usufruem do mesmo espaço contra o qual elaboram sua crítica e, nesse sentido, "são incapazes de superar o próprio parasitar na ordem positiva precedente" (Zizek, 2012, p. 537). Por isso, Habermas (2002) sugere uma restruturação no modo de funcionamento da própria racionalidade moderna, promovendo um deslocamento estrutural que vai da razão centrada na subjetividade transcendental para uma razão focada agora na ação comunicativa intramundana.

Basicamente, a tese de Habermas (2002) segue o seguinte modelo: o problema da racionalidade compreendida como técnica e dominação repousa inteiramente na forma como a modernidade submeteu o centro da racionalidade à subjetividade transcendental. Ora, se o sujeito é ao mesmo tempo dois, ou seja, manifesta-se simultaneamente na modernidade como transcendental e fenomênico e, além disso, se essas duas dimensões permanecem irredutivelmente incomunicáveis entre si, então, como consequência lógica, ele é arrastado num processo autoalienante irremediável, desconhecendo as verdadeiras causas que o determinam e que orientam sua ação. Desse modo, a fim de superar a correlação entre, de um lado, razão e, de outro, poder/controle, Habermas (2002) se vê obrigado a eliminar a própria lacuna entre sujeito transcendental e sujeito fenomênico que, segundo ele, é a causa do mal-entendido atribuído ao ideal de modernidade e cujo efeito acabou por reduzir todo o potencial da razão moderna ao princípio de razão instrumental. Logo, a forma que ele encontra para superar essa condição, essa contradição performativa, seria, portanto, a de transferir o lugar da dimensão transcendental do sujeito moderno para o da linguagem, compreendida, aqui, como ação comunicativa. Tal deslocamento possibilita, segundo ele, remover o campo do transcendental do "céu" kantiano às práticas intersubjetivas localizadas no próprio "mundo", uma vez que a linguagem, compreendida nessa perspectiva pragmática da comunicação, se dá no horizonte do mundo vivido (Lebenswelt), onde sujeitos de carne e osso interagem mutuamente. A fórmula habermasiana é, portanto, extrair do campo mesmo dessa interação dialógica, em que os participantes se submetem constantemente a argumentações racionais, uma base normativa universal.

Tendo isso como o princípio básico de toda argumentação racional, pode-se, portanto, liquidar a antinomia mantida por toda a modernidade entre transcendência e imanência e, desse modo, submeter os agentes racionais do discurso a um tipo de reflexividade em que se leva em conta não somente o conteúdo constatativo de objetificação do mundo, mas, igualmente, o aspecto performativo de seus enunciados – o que permanecia oculto nos moldes da razão instrumental. Ao transferir o campo transcendental da subjetividade para a linguagem comunicativa, Habermas (2002) acredita superar definitivamente a contradição performativa mantida – intencionalmente, diga-se de passagem – pelos teóricos da Escola de Frankfurt e, com isso, dar uma nova guinada nos ideais pressupostos na modernidade, que até então se encontravam retidos no modo de compreensão vertical e assimétrico da subjetividade transcendental. Em suas palavras: "A mudança de paradigma da razão centrada no sujeito pela razão comunicativa também pode encorajar a retomar mais uma vez aquele contradiscurso imanente à modernidade desde o princípio" (Habermas, 2002, p. 415). Nessa nova configuração da razão moderna, os próprios agentes participantes do discurso tornam-se plenos responsáveis por suas ações na medida em que se orientam não só pelo que dizem, mas, também, pela pretensão universal de validade do que dizem.

É como se a própria linguagem praticada no próprio mundo da vida contivesse embutida em si a normatividade necessária que condensa todos os debatedores a um só plano consensual. Mas que fique claro que, segundo Habermas (2002), esse plano consensual de modo algum consiste num outro plano, incomunicável, transcendente: há um só plano, o discursivo; a diferença é que, aqui, há um confronto direto do próprio enunciado com a pretensão universal de validade que o enunciado carrega. Nessa nova configuração, a verticalidade da atividade reflexiva, filosófica, coincide com a horizontalidade das práticas discursivas do mundo da vida:

O olhar vertical sobre o mundo objetivo justapõe-se à relação horizontal com os membros de um mundo da vida intersubjetivamente partilhado. A objetividade do mundo e a intersubjetividade do entendimento mútuo remetem uma a outra. Isso modifica a imagem do sujeito transcendental, que, por assim dizer, se põe diante dos objetos fenomênicos num mundo por ele constituído. Os sujeitos enredados em suas práticas referem-se, a partir do horizonte de seu mundo da vida, a alguma coisa no mundo objetivo, que eles, não importa se na comunicação ou na intervenção, supõem como um mundo de existência independente e idêntico para todos. Essa suposição exprime a facticidade de todos os desafios e contingências provocados e, a um só tempo, limitados pelas rotinas da compreensão e da ação. (Habermas, 2004, p. 24)

 

6) O fim da natureza humana

Todavia, não precisamos ir muito longe para percebermos alguns problemas nessa atitude habermasiana. Basta ver como ele procura lidar com a temática das ciências contemporâneas. Conforme Zizek (2006) nos indica, ao oferecer uma base normativa para nossa sociedade pós-metafísica, uma razão gerida no espaço mesmo das interações intersubjetivas, Habermas não vê outra saída senão limitar o avanço científico desmesurado, na intenção de que o princípio articulador da racionalidade e da moral permaneça soberano. Zizek escreve:

É precisamente isso o que Habermas tem feito, ao menos em suas intervenções nos debates sobre a biogenética. Ele nos apresenta uma solução típica neokantiana: nas ciências você pode fazer o que quiser; lembre-se, no entanto, que estamos lidando apenas com o estreito campo de fenômenos cognitivos. O ser humano como sujeito moral é outra coisa, e este campo deve ser defendido a partir de todas as ameaças. Com isso, no entanto, todos esses pseudoproblemas surgem: até que ponto nos é permitidos ir em relação à biogenética? Será que a biogenética ameaça a nossa liberdade e autonomia? (Badiou & Zizek, 2013, p. 60)

Diante disso, parece que o processo de secularização da razão em Habermas ainda não é suficiente para lidar com o nível de alcance ôntico das ciências mais recentes. Ao que tudo indica, hoje as ciências como a engenharia genética, a farmacologia e as ciências do cérebro, entre outras, estão agindo diretamente sobre as bases constituintes da autonomia racional e moral do homem60. Desse modo, pode suceder que, com sua progressão contínua, o próprio campo do pensamento, o único veículo de emancipação do homem sobre os entes, possa ser a partir de então regulado tecnicamente por agências de controle especializadas. Cada vez mais no mundo atual a ficção científica torna-se realidade. E eis, então, o iminente fracasso da filosofia perante a ciência. Desse modo, no intuito de salvar a racionalidade, Habermas propõe um apelo para estabelecer limites ao próprio conhecimento humano.

Frente a isso, a filosofia se vê frente a um delicado dilema, ao qual Zizek chama de "filosofia de estado":

A recente crise moral provocada pela biogenética de fato culmina com a necessidade de uma filosofia a qual estamos completamente justificados em chamar de uma "filosofia de estado": a filosofia que, por um lado, tacitamente tolera o progresso técnico e científico, enquanto, por outro lado, tenta controlar seus efeitos na nossa ordem sócio-simbólica, ou seja, evitar que a existência de um mundo teológico-ético de fato se altere. (Badiou & Zizek, 2013, p. 62)

Para Zizek, a filosofia se apresenta nos dias de hoje completamente atada ao discurso conservador da bioética, sem perspectivas para levar adiante uma proposta verdadeiramente progressista (Zizek, 2006). Assim, nesse estranho quadro, filosofia e conservadorismo se unem contra os avanços imoderados da ciência. Mas cumpre lembrar que não foi absolutamente essa a atitude da filosofia na era moderna, sobretudo com Kant. Por isso, não deixa de ser intrigante o fato de que uma das principais referências do racionalismo na filosofia contemporânea se posicione com tanta ênfase contra o progresso das pesquisas científicas, aderindo com extrema facilidade a certo discurso reacionário da bioética. Como afirma Zizek:

O conservadorismo de Habermas deriva de uma ideia-padrão de liberdade e autonomia. Essa ideia é que, se os avanços científicos ameaçam tal concepção, devemos simplesmente proibir esses avanços. [...] é surpreendente, em alguém que se afirma um grande partidário do Iluminismo, que ele repita a velha ideia conservadora de que, para preservar a liberdade, temos de limitar nosso conhecimento: a condição da liberdade moral, da dignidade e da autonomia seria não sabermos demais sobre o que objetivamente somos. (Zizek, 2006, p. 117)

Sendo assim, Zizek (2011a) não vê problemas em relacionar essa postura conservadora àquilo que ele chama de "ética com hífen". A ética com hífen consiste numa versão homóloga à moral provisória de Descartes, presente na terceira parte de seu Discurso do método. A fim de preservar alguns valores e costumes frente a um novo caminho que se abre cheio de perigos e novas compreensões perturbadoras, Descartes (2009) propõe uma ética atrelada às velhas regras estabelecidas. Trata-se, no fundo, de um modo seguro de atravessar o absolutamente novo que surge diante dele (Zizek, 2011a, p. 175). Nas palavras de Descartes:

Por fim, como, antes de começar a reconstruir a casa onde moramos, não basta demoli-la, prover-nos de materiais e de arquitetos, ou nós mesmos exercermos a arquitetura, e além disso ter-lhe traçado cuidadosamente a planta, mas também é preciso providenciar uma outra, onde nos possamos alojar comodamente enquanto durarem os trabalhos; assim, a fim de não permanecer irresoluto em minhas ações, enquanto a razão me obrigasse a sê-lo em meus juízos, e de não deixar de viver desde então do modo mais feliz que pudesse, formei para mim uma moral provisória [...]. (Descartes, 2009, p. 43)

Assim, com a radicalização do método cartesiano, movemo-nos inevitavelmente em direção ao abismo intransponível do devir, ou seja, em direção ao vazio iminente que surge como resultado da dúvida hiperbólica que varre, sistematicamente, toda entidade positiva diante de si. Desse modo, para nos proteger do horror dessa imagem avassaladora, convém antes estabelecer provisoriamente critérios morais que cumpram o propósito de manter viva a ordem vigente61. Ora, diante disso, não nos encontramos hoje inseridos num contexto bastante similar? A posição conservadora da bioética também não equivale a uma espécie de ética provisória em cuja premissa reside o medo indescritível de encarar os avanços perturbadores das novas ciências?

De acordo com Zizek (2011a), podemos nos posicionar frente a isso segundo duas alternativas contrárias: ou escolhemos a atitude reticente e nos "mantemos a uma distância adequada da Coisa científica para que esta Coisa não nos carregue para dentro de seu buraco negro, destruindo todas as nossas concepções morais e humanas" (Zizek, 2011a, p. 176); ou, de maneira mais audaciosa, assumimos sem hesitar as consequências da modernidade científica, incorporando seus resultados e, assim como fez Kant em sua época, instituindo um novo lugar para a filosofia.

A segunda escolha exige, entretanto, um ato doloroso de sacrifício: "a principal consequência dos avanços científicos na biogenética é o fim da natureza" (Zizek, 2011a, p. 176). Conforme Zizek, essa é a razão pela qual a questão habermasiana "até que ponto nos é permitidos ir em relação à biogenética?" (Badiou & Zizek, 2013, p. 60) configura um falso problema. O verdadeiro problema, ao contrário, deve ser: "Existe algo nos resultados da biogenética que nos force a redefinir o que compreendemos por natureza humana, o modo humano de ser?" (Badiou & Zizek, 2013, p. 61). A drástica consequência das ações manipulativas da biogenética consiste exatamente em sacrificar de vez qualquer sacralidade que resta da ideia de natureza – e isso inclui igualmente o princípio de "natureza humana". É verdade que não pode haver nenhuma ideia de homem sem levar em consideração uma concepção ontológica de natureza. Ou seja, é preciso de uma maneira ou de outra sustentar uma base ontológica intocada, sacralizada, de natureza, sobre a qual a essência do homem possa repousar. Essa é a razão segundo a qual toda tradição procurou insistentemente determinar esse fundamento como algo substancial e impenetrável, um princípio que designasse a condição elementar de nosso ser. Heidegger deixa isso bastante claro em sua "Carta sobre o humanismo". Segundo ele, movemo-nos sempre na tentativa de tomar o sentido do homem segundo um princípio ou fundamento último que deve permanecer intocado em sua base ontológica (Heidegger, 1946/2008). Seja como animal rationale para os antigos, seja como sujeito transcendental para os modernos, o fato é que, para que o homem não seja apenas mais um ente entre os outros entes, uma coisa entre outras coisas, é preciso resguardar uma dignidade ontológica para além de toda esfera ôntica da realidade62. Ocorre que, com a possibilidade da ação manipulativa de nossos genes, há incontestavelmente uma perda instantânea e irremediável da "essência" de nossa natureza. Somos, portanto, privados de substância densa e nos tornamos, por assim dizer, um reles objeto de manipulação tecnológica. A natureza humana torna-se então um conceito ultrapassado nesse novo contexto científico, e qualquer apelo ético em nome dessa condição se manifesta, em última análise, como isento de fundamentação. Como então atravessar esse problema sem cair no mais profundo niilismo?

Para Zizek, a resposta se encontra onde menos se espera, e o problema já se apresenta como sua própria solução: o que presenciamos com a perda da nossa "essência" é o fato intrigante de que tal essência nunca existiu verdadeiramente, ou seja, de que finalmente acordamos do sonho dogmático de que possuíamos no nosso âmago um núcleo íntimo intocável. "A conclusão inevitável é que, com a biogenética, não se trata tanto de perdermos a dignidade e a liberdade – na verdade sentimos que nunca as tivemos, para começo de conversa" (Zizek, 2003, s.p.). Tudo se passa como se tivéssemos ultrapassado a barreira do impossível, num caminho de ida sem volta. O que se percebe hoje, todavia, é que não há mais uma divisão precisa entre o que é "essencialmente" humano e o que é "tecnicamente" manipulado. Desse modo, ao assumir sem concessões os resultados da biogenética, ou seja, a completa destituição de nossa natureza humana, a opção que enfrentamos não deverá ser mais entre a dignidade sacralizada da natureza humana e a geração tecnológica "pós-humana"63; mas a verdadeira questão passa a ser: entre, por um lado, "agarrar-se à ilusão de dignidade e [por outro] aceitar a realidade do que somos" (Zizek, 2003, s.p.).

Parece, pois, que nos encontramos num paradoxo irredutível dos nossos tempos. Como pode então a filosofia se situar frente a esse delicado impasse? Para Zizek (2008a), a solução consiste em reposicionar o cerne da liberdade humana exatamente na lacuna que Habermas quis superar.

 

7) Repetir Kant

Mas, então, como recuperar o impasse epistemológico da dimensão transcendental sem cair na eterna ruminação da negatividade do conceito, como os teóricos da Escola de Frankfurt e, ainda, sem renunciar, à maneira habermasiana, à lacuna/antinomia que caracteriza a filosofia transcendental? Noutros termos: como recuperar os princípios de emancipação e liberdade humana evitando duas armadilhas: por um lado, sem perder de vista a dimensão da lacuna antinômica introduzida pela filosofia transcendental na modernidade e, por outro, sem cair na monotonia do ciclo dominador/dominado da razão instrumental?

Zizek (2009) defende a tese de recuperar o primeiro momento, a afirmação da lacuna, a partir do motivo habermasiano de levar adiante o projeto da modernidade. Para tanto, cabe primeiramente a pergunta se, com esse novo patamar da razão técnica que invade a essência mesma da natureza humana, já não é necessária uma drástica reformulação do conceito tradicional de liberdade. Ou seja: como "é possível salvar a liberdade humana diante da perspectiva da definição completa de nosso genoma, de nossa fórmula biogenética?" (Zizek, 2006, pp. 117-118). Insisto que a ideia consiste em repensar a liberdade humana a partir da – e não contra a – nova conjuntura de autocompreensão de nosso ser aberta pela ciência e, disso, extrair as consequências últimas do verdadeiro significado de liberdade e autonomia. Certamente não é com base no conceito tradicional de humanismo que avançaremos nesse quesito.

Mas será que não estaríamos vivenciando em nosso tempo uma situação bastante similar àquela que Kant teve de enfrentar em sua época? Não seria o caso de repetir o mesmo gesto kantiano, quando ele teve de traçar os novos limites da metafísica apoiado nas transformações científicas de sua época? Antes de tudo, precisamos discriminar dois modos bastante distintos de repetição: repetir a letra, na fidelidade, ou repetir o espírito, na traição. No primeiro modo, repetimos Kant nos apegando à sua letra, ou seja, ao seu modelo de pensamento, ao modo como ele propôs enfrentar em seu tempo o problema da metafísica. Nesse caso, pode-se até admitir, a exemplo dos neokantianos, certa adequação de seu pensamento conforme a exigência do ideal contemporâneo de sociedade secularizada. Mas podemos repetir Kant de maneira mais radical: trai-se a letra kantiana, ou seja, seu quadro teórico padrão, a fim de alcançar aquilo que ele mesmo pôs em movimento, mas que não foi capaz de consumar até o fim. De acordo com Zizek (2011b), trata-se nesse caso muito mais de repetir o gesto de Kant do que de propriamente reproduzir seu modelo de pensamento.

Tomemos um grande filósofo como Kant; há dois modos de repeti-lo: ou nos apegamos à letra e elaboramos mais ou mudamos de sistema, seguindo o espírito dos neokantianos (até e inclusive Habermas e Luc Ferry), ou tentamos recuperar o impulso criativo que o próprio Kant traiu na realização de seu sistema (isto é, nos ligar ao que já estava "em Kant mais do que o próprio Kant", mais do que o sistema explícito, seu núcleo excessivo). Da mesma forma, há dois modos de trair o passado. A verdadeira traição é um ato ético-teórico da mais alta fidelidade: é preciso trair a letra de Kant para permanecer fiel ao (e repetir) "espírito" de seu pensamento. É exatamente quando se permanece fiel à letra de Kant que na verdade se trai o núcleo de seu pensamento, o impulso criativo por trás dele. (Zizek, 2011b, p. 151)

Em outras palavras, isso significa que, da mesma forma como Kant teve de abandonar o esquema filosófico padrão de sua época para que a filosofia pudesse se reconciliar com os avanços da ciência moderna, hoje, mais do que nunca, é preciso efetuar uma nova radicalização desse gesto. Poderíamos imaginar como seria a filosofia sem a guinada transcendental kantiana: uma espécie de literatura profunda, bela e edificante, mas essencialmente dogmática e desvinculada do conhecimento científico propriamente dito. Portanto, Kant salvou a filosofia de seu sono dogmático não retrocedendo e negando os avanços científicos de seu tempo, mas explorando e radicalizando-os em sua condição finita e positiva. Com isso, ele pôde executar avant la lettre o gesto dialético propriamente hegeliano: a partir das condições de possibilidade que a ciência moderna oferecia, ele extraiu – de onde parecia impossível extrair – uma nova metafísica e, com isso, uma nova noção de liberdade e autonomia humana.

Para Zizek (2011b), precisamos repetir urgentemente o "espírito kantiano" na sua forma mais genuína e, para isso, é necessário abandonar de vez seu esquema transcendental para efetivar o que permaneceu in potentia em seu próprio pensamento. Como destaca Zizek (2012), somente dois pensadores conseguiram levar a cabo a nobre tarefa de extrair aquilo que, em Kant, era mais do que o próprio Kant. São eles: Hegel e Lacan. Essa associação à primeira vista embaraçosa entre Hegel e Lacan consiste no traço característico do pensamento de Zizek. Se nos é permitido traçar um horizonte comum que justifique tal articulação, seria justamente este: na ótica de Zizek, tanto um como o outro realizam, cada qual em seu próprio domínio, o passo decisivo que Kant se recusou a dar. Em outras palavras, ambos efetivaram, na psicanálise e na dialética, a passagem do obstáculo epistemológico da finitude humana para sua condição ontológica positiva – momento esse que permaneceu latente no pensamento kantiano.

Desse modo, a finalidade de Zizek ao ler Hegel com Lacan consiste em realizar aquilo que a tradição não foi capaz de realizar, seja por influência de uma concepção demasiada idealista de Hegel, seja pelo modo transcendentalista de ler Lacan. Antes de Zizek, o que permanecia obliterado em ambos os autores era o aspecto materialista de seus pensamentos.

Todavia, de acordo com Zizek, a leitura habermasiana de Kant permanece essencialmente formalista. Na ânsia de superá-lo, Habermas tropeçou no mesmo impasse de seu formalismo. Podemos afirmar que o que impede Habermas de ir às vias de fato no que tange às pesquisas científicas mais recentes é o mesmo princípio formal que impediu Kant de levar sua reviravolta copernicana às consequências ontológicas. Em outras palavras, o mínimo de contingência que Habermas procura preservar no ideal de natureza humana para salvar a autonomia e a liberdade é o correlato formal do princípio de incognoscibilidade que Kant teve de preservar para salvar seu edifício teórico. Essa incognoscibilidade é a condição de possibilidade de nossa autonomia moral. Como escreve Zizek: "recordemos que Kant pensava que nossa ignorância da realidade numenal era uma condição de nossa capacidade de agir eticamente: se conhecêssemos as Coisas em si mesmas, agiríamos como autômatos" (Zizek, 2012, p. 562, n. 28). Logo, só podemos conceber nossa liberdade na medida em que a forma específica do modelo transcendental, fundado na finitude humana, impede nosso acesso direto ao fundamento ontológico de nosso ser. Zizek localiza na Crítica da razão prática o ponto exato onde Kant revela o que aconteceria se por acaso pudéssemos atravessar o limite transcendental de nossa finitude e ter acesso ao domínio numênico, à Ding an Sich:

Em vez do conflito que agora a disposição moral tem de sustentar com as inclinações e no qual, depois de algumas derrotas, contudo pode conquistar-se aos poucos uma fortaleza moral de alma, Deus e a eternidade, com sua terrível majestade, encontrar-se-iam incessantemente ante os olhos [...] assim, a maioria das ações acorreria por medo, poucas por esperança e nenhuma por dever, porém não existiria um valor moral das ações, do qual, aos olhos da suma sabedoria, depende unicamente o valor da pessoa e mesmo o valor do mundo. Portanto a conduta do homem, enquanto a sua natureza continuasse sendo como atualmente é, seria convertida em um simples mecanismo, em que, como no jogo de bonecos, tudo gesticularia bem, mas nas figuras não se encontraria, contudo, vida alguma. (Kant, 2011, p. 235)

Mesmo que do ponto de vista fenomênico tudo permaneça inalterável, um acesso direto ao reino numênico traria, em última instância, consequências drásticas para a liberdade do homem: "enquanto sua natureza continuasse sendo como atualmente é, seria convertida em um simples mecanismo, em que como no jogo de bonecos, tudo gesticularia bem, mas nas figuras não se encontraria, contudo, vida alguma" (Kant, 2011, p. 235). Poderíamos facilmente transferir essa mesma preocupação kantiana para o modo como Habermas se posiciona em relação aos avanços da biogenética: o mapeamento completo do genoma humano não corresponderia em última análise a esse acesso direto à dimensão numenal do qual fala Kant, cujo efeito imediato seria justamente a perda de nossa liberdade/espontaneidade, nos convertendo, desse modo, em simples marionetes? O problema é que, para Zizek (2011a), a mera possibilidade dessa ameaça já solapa os fundamentos da liberdade humana em sua forma padrão e conservadora: uma vez que temos consciência da possibilidade de que nossa natureza humana pode ser geneticamente manipulável, essa possibilidade já começa a funcionar de maneira efetiva, já produz efeitos reais. É como se, de uma forma ou de outra, o segredo fosse revelado: não possuímos uma natureza humana, somos sempre-já potencialmente instrumentalizáveis. Ou seja, não é mais possível apostar num substrato orgânico intangível em cuja base repousa a essência de nossa liberdade. Logo, segundo Zizek (2011a), não adianta limitar os avanços da ciência. A máscara caiu! Nesse sentido, cumpre incluir essa possibilidade como já efetiva, e a tarefa a partir de então passa a ser fundamentalmente repensar o estatuto da liberdade humana a partir da – e não contra a – ciência.

Contudo, se a origem dessa limitação epistemológica não está em Habermas, e sim em Kant, então a solução também deve ser buscada neste. Assim, só é possível encontrar a saída radicalizando o pensamento de Kant ou, melhor, buscando o que há em Kant que é mais do que Kant ele mesmo. Ou seja, diferentemente de Habermas, devemos retornar a Kant para resgatar não seu formalismo metodológico, mas recuperar o núcleo materialista do seu pensamento – algo que estava lá desde sempre, embora ele mesmo não tenha percebido.

Se, ao tentar superar Kant, Habermas foi vítima da cegueira de seu formalismo, nos resta então atravessar o puro formalismo da filosofia transcendental executando o passo que o próprio Kant se recusou a dar. Em suma, é preciso realizar o salto ontológico inerente à própria guinada transcendental e, assim, "atravessar" os limites da finitude humana para, enfim, pensar a verdadeira dimensão da liberdade humana.

Por isso, segundo Zizek (2008), o que falta a Habermas é encarar a radicalidade do problema no nível particularmente ôntico. É certo que, a seu modo, o filósofo alemão percebe a natureza ôntica do perigo, mas, à medida que reconhece nele uma "catástrofe" iminente, em vez de dar o passo adiante, recua e mobiliza um arcabouço normativo universal de referência. Mas, e quanto à tese de que o naturalismo fraco de Habermas (2004), desenvolvida sobretudo em sua Verdade e justificação, de que o processo de aprendizagem sócio-simbólica segue uma escala evolucionária que, embora funcionando por leis próprias, encontra sua gênese na natureza? Essa tese não romperia de vez com a visão kantiana da dedução transcendental dos a prioris da consciência desvinculados da história ou do processo de evolução? Habermas não insere, assim, o projeto Kantiano numa referência ôntica, garantindo, portanto, uma base natural para seu modelo pragmático-transcendental? Para Zizek, embora Habermas leve em consideração o tema do naturalismo (é claro que o homem provém da natureza, é claro que Darwin estava certo etc.), esse naturalismo funciona como um fetiche, um núcleo secreto não tematizado que serve apenas de suporte fantasístico para seu idealismo – o a priori transcendental da comunicação que não pode ser deduzido de nenhuma fonte natural. Ou seja, enquanto os habermasianos pensam secretamente que são materialistas, para Zizek (2014) a verdade reside no domínio público de sua teoria, ou seja, reside unicamente na forma idealista de seu pensamento.64

Isso nos leva de volta ao tema da repetição como fidelidade ou traição. Como vimos, para Zizek (2011b) a forma mais autêntica de manter-se fiel a um autor é traindo a sua letra, recuperando, desse modo, o impulso criativo que fora obliterado pelo próprio autor. Mas Zizek radicaliza ainda mais o paradoxo: para que possamos trair verdadeiramente um autor, precisamos repetir sua intuição originária. Em outras palavras, o que está em jogo na repetição é um profundo gesto de traição, ou seja, é somente na repetição que podemos de fato superar o impasse postulado pela tradição. Nesse sentido, quando procuramos simplesmente superar um autor de maneira direta, isto é, avançar sobre seu sistema teórico padrão, corrigindo seus erros e, com isso, estabelecendo uma nova Weltanschauung (visão de mundo), somos, sub-repticiamente, aprisionados mais uma vez em seu horizonte conceitual.

Não é só possível permanecer realmente fiel a um autor traindo-o (a letra real de seu pensamento), mas, num nível mais radical, a afirmativa inversa aplica-se mais ainda: só se pode trair verdadeiramente um autor repetindo-o, permanecendo fiel ao núcleo de seu pensamento. Quando não repetimos um autor, mas apenas o "criticamos", seguimos noutra direção, viramo-lo ao contrário etc. Isso significa efetivamente que, sem saber, nós permanecemos em seu horizonte, em seu campo conceitual. (Zizek, 2011b, p. 163)

Assim, Habermas procurou superar o paradigma da subjetividade moderna sem, antes, extrair dele todo seu potencial interno, acusando a filosofia kantiana de ter permanecido refém do paradigma da subjetividade. A fim de superar de vez o perene problema da metafísica, ele aposta na superação do sujeito moderno, propondo dar um passo além de seu limite epistemológico. O que ele defende com isso é a abertura de um novo horizonte pós-metafísico para a filosofia, o que configura um ledo engano. Habermas permanece preso no mesmo impasse de Kant na medida em que se recusa a radicalizar até o fim a esfera transcendental em sua base ôntica ou, por assim dizer, em sua gênese materialista.

 

8) Em defesa de uma natureza inumana

Chegamos, então, ao cerne do problema do materialismo em Zizek, e já podemos pincelar aqui o elo entre Lacan e Hegel. O que Zizek entende por materialismo não é outra coisa senão a negatividade determinada da subjetividade, esquecida por Kant. Zizek segue o mesmo fio das questões introduzidas pelo idealismo alemão, cujo objetivo consistia em fundamentar o aspecto da finitude kantiana que permaneceu sem resposta. Se, em Kant, essa negatividade é a condição de impossibilidade de objetivação, ou seja, a abertura numênica para além das possibilidades de representações, com Zizek (embasado em Hegel e Lacan), essa negatividade é reificada, assumindo o status de negatividade determinada. O grande déficit em Kant é que em sua teoria não há espaço para o problema da constituição subjetiva. Para ele, o sujeito transcendental é um pressuposto universal a priori, revelado analiticamente. No entanto, para uma teoria radical da finitude, é preciso que encontremos não somente a mediação transcendental da objetividade fenomênica, mas, fundamentalmente, a mediação objetiva dessa própria subjetividade transcendental.

Desse modo, o ponto de interrogação aqui gira em torno da natureza dessa objetividade que funciona como mediação para a própria subjetividade transcendental. Evidentemente, não se trata de pensar uma objetividade não mediada, de tangenciar uma realidade "nua" ou, como diria Wilfrid Sellars (2008), o mito de dado. Não se trata, portanto, de retomar uma ontologia dogmática, pré-kantiana, mas, ao contrário, trata-se de fazer avançar o próprio projeto kantiano a fim de explorar o núcleo desse excesso de negatividade numênica que permaneceu não tematizado por ele. Em outros termos, desde Kant há um excesso desse sujeito transcendental que não pode ser apreendido cognitivamente por uma consciência finita. A questão que se coloca, portanto, é: o que é, afinal, esse excesso?

É aqui que o conceito psicanalítico de pulsão de morte cumpre um papel fundamental: a pulsão de morte é justamente o nome que Freud deu para essa negatividade determinada que excede e dissolve todas as identificações e simbolizações do Eu – e que, todavia, é ao mesmo tempo o núcleo duro do sujeito moderno. Desse modo, a psicanálise se revela como o desdobramento final do projeto do idealismo alemão: a noção de pulsão de morte assume com propriedade o problema da subjetividade moderna; com ela, o sujeito encarna a radicalidade de sua finitude enquanto negatividade pura que transborda os limites da autopercepção fenomênica. O sujeito na sua expressão mais íntima não seria outra coisa senão essa negatividade em si, anterior a todo campo de simbolização e identificação.

O que afirmo é que essa noção de negatividade referida a ela mesma, tal como articulada de Kant a Hegel, significa, filosoficamente, o mesmo que a noção de pulsão de morte em Freud – é essa a minha perspectiva fundamental. Em outras palavras, a ideia freudiana de pulsão de morte não é uma categoria biológica, mas tem dignidade filosófica [...]. Creio que pulsão de morte é exatamente o nome certo para esse excesso de negatividade. Essa, de certa maneira, é a grande obsessão de todo o meu trabalho: a leitura recíproca da concepção freudiana de pulsão de morte e do que, no idealismo alemão, tornou-se temático como a negatividade referia a ela mesma. (Zizek, 2006, p. 79)

Já do lado do idealismo alemão, é Hegel quem mais se aproxima do conceito freudiano de pulsão de morte. Sua descrição do homem como a "noite do mundo" é surpreendentemente homóloga a essa ideia psicanalítica.

O ser humano é essa noite, esse nada vazio, que contém tudo na sua simplicidade – uma riqueza infinita de muitas representações, imagens, das quais nenhuma lhe pertence ou não está, como tal, realmente presente no seu espírito. Essa noite, o interior da Natureza, que existe aqui – puro si – nas representações fantasmagóricas, é a noite por toda a parte, da qual emerge aqui uma cabeça ensanguentada e, depois, outra assustadora aparição branca, subitamente perante ela, e que logo desaparece. É essa a noite que descobrimos quando fitamos os seres humanos nos olhos – mergulhamos o nosso olhar numa noite que se torna assustadora. (Hegel apud Zizek, 2009, p. 42)

Ao unir idealismo alemão e psicanálise, o objetivo de Zizek é tornar claro esse lado obscuro da subjetividade – que, embora não tematizado por Kant, é fruto de seu pensamento. Como expressa Adrian Johnston: "Idealismo alemão e psicanálise propõem uma solução mais radical para o problema descoberto (e não resolvido) por Kant: a matéria Real da 'natureza' (e, especialmente, natureza humana) não é facilmente integrada e livre de conflitos internos", o seu verdadeiro núcleo inconfesso é "dilacerado por dentro por antagonismos internos" (Johnston, 2008, p. 65). Ou seja, o verdadeiro núcleo do sujeito moderno não pode ser a totalidade harmônica pressuposta por uma natureza humana. Por isso que os próprios termos utilizados por Hegel e Freud, como "noite do mundo" ou "pulsão de morte", já exprimem uma discordância fundamental com o lado "humano" dessa subjetividade. Essa negatividade autorrelativa parece corresponder muito mais ao núcleo inumano que permanece latente na forma manifesta de nossa humanidade. Nesse sentido, o grau zero da subjetividade, sua forma mais elementar, não pode ser a natureza humana, positiva e simbolizada – o que parece inadmissível para a tradição. Isso nos leva até mesmo a sustentar a seguinte hipótese: o verdadeiro motivo de essa negatividade em si ter passado despercebida pela grande maioria dos filósofos (incluindo, é claro, Habermas) não implica somente uma mera displicência teórica; na verdade, isso testemunha algo mais profundo: o enfrentamento direto dessa negatividade autorrelativa compromete diretamente o ideal de "natureza humana" e revela, assim, o horror de nosso verdadeiro elemento, nossa "natureza inumana".

 

9) Liberdade e natureza inumana

Assim, para Zizek (2006), o verdadeiro desafio filosófico hoje seria reformular a ideia de liberdade e autonomia humana de um modo inteiramente revolucionário. Não há mais espaço para o conservadorismo habermasiano e sua defesa de um ideal de natureza humana fundado na espécie; temos de apostar na condição inumana do sujeito pósmetafísico, e isso significa que o grau zero de sua humanidade já não é mais assunto de teses humanistas tradicionais. E o que mais estaria em jogo na disputa entre o discurso conservador da bioética e os efeitos perturbadores da biogenética se não esse traço sagrado da natureza humana que deve permanecer intocado, longe do horror provocado pelas transformações científicas? Haveria, assim, um eco revelador entre, por um lado, a passagem supracitada em que Hegel descreve o homem como "essa noite", "o interior da Natureza", que "existe (como puro si)" "nas representações fantasmagóricas (...) da qual emerge aqui uma cabeça ensanguentada e, depois, outra assustadora aparição branca, subitamente perante ela, e que logo desaparece" (Hegel apud Zizek, 2009, p. 42) e, por outro, nas experiências genéticas que dão errado, produzindo criaturas bizarras, como assinala Zizek:

No que diz respeito à ciência atual, onde encontramos esse horror em seu estado mais puro? Quando as manipulações genéticas dão errado e geram objetos jamais vistos na natureza, monstros como uma cabra com orelha gigantesca no lugar da cabeça ou uma cabeça com um único olho, acidentes sem sentido que, entretanto, tocam nossas fantasiais mais profundamente reprimidas e desencadeiam loucas interpretações. O puro Si como "interior da natureza" (expressão estranha, a que, para Hegel, justamente, a natureza não tem interior: seu estatuto ontológico é a exterioridade, não apenas exterioridade com relação a algum interior pressuposto mas com relação a si mesma) representa esse curto-circuito paradoxal do sobrenatural (espiritual) em seu estado natural. (Zizek, 2012, p. 211)

Nesse sentido, fica claro que não é o intuito de Zizek endossar a infame tese de que o projeto positivista da biogenética, que reduz toda a exuberância de nossa constituição humana a uma cadeia sequencial "estúpida" de genes, seja a palavra final de nossa subjetividade. Há de haver um núcleo ainda mais elementar. "A pulsão de morte não é algo que esteja em nossos genes; não existe um gene da pulsão de morte. Na verdade, a pulsão de morte é uma disfunção genética" (Zizek, 2006, p. 118). Devemos então compreender esse aspecto inumano, que fundamenta nossa dimensão subjetiva, segundo uma concepção materialista que ultrapasse a visão vulgar do materialismo típica do positivismo científico: a radicalidade desse materialismo é fornecida aqui por uma inversão dialética do tipo hegeliana, na qual o núcleo da subjetividade é marcado por uma contingência irredutível. Não podemos reduzir a totalidade de nosso ser à mera sequência bruta de nosso código genético. Não porque o que somos transcende infinitamente o materialismo científico, rudimentar e insípido, mas justamente o contrário: é a própria ciência que transcende e nega o cerne da materialidade inumana mais radical de nossa subjetividade, que desconhece a negatividade autorrelativa da pulsão de morte. Em outras palavras, a ciência é totalmente míope no que diz respeito ao núcleo transcendente-ideológico de seus enunciados. Quando ela reduz a totalidade da vida humana a uma ordem puramente mecânica e descritiva, essa redução é sempre-já atravessada por um horizonte específico de sentido.

O materialismo dialético defendido por Zizek (2008a) é, pois, um materialismo muito mais radical que o materialismo do positivismo científico. "O verdadeiro materialismo não consiste numa simples operação de reduzir a experiência psíquica interior a um efeito do processo que ocorre na 'realidade externa'"; é preciso, com efeito, "isolar o material traumático que persiste como o próprio coração da vida psíquica em si" (Zizek, 2000, p. 118). Não se trata, portanto, de uma simples redução do sujeito ao objeto e nem do objeto ao sujeito, o que ocorre é a coincidência dos opostos hegeliana como princípio de mediação tanto do sujeito como do objeto. Em outras palavras, Zizek não visa encontrar o tipo específico de dado empírico bruto que nos determina, mas a materialidade ou a gênese da dimensão transcendental que abre o próprio campo dessa realidade empírica. Para simplificar, tomemos um exemplo de "juízo infinito" hegeliano presente na seção sobre fisionomia e frenologia de sua Fenomenologia do espírito (e citado reiteradamente por Zizek): "O ser do Espírito é um osso" (Hegel, 2003, § 343, p. 245). Diante disso, temos duas interpretações possíveis: de um lado, podemos considerar essa proposição como uma variante extrema do materialismo vulgar, isto é, "nela se reduz o espírito, o sujeito, (...) a um objeto fixo, morto, a uma inércia total, a uma presença absolutamente não dialética" (Zizek, 1988, p. 97); e, do ponto de vista do materialismo dialético, a verdade da tese "o Espírito é um osso" deve ser revelada pelo próprio semsentido que esse termo evoca, ou seja, pela própria impossibilidade lógica de unir esses dois termos em uma identidade harmônica. Isso quer dizer que, segundo Zizek (2008a), há um não idêntico constituinte da realidade que é mais original que a própria realidade em sua dimensão inorgânica.

Podemos, agora, facilmente compreender qual é de fato a posição de Zizek em relação ao tema da biogenética: baseado no paradoxo irredutível da lógica do "juízo infinito" de Hegel, não seria totalmente plausível transferir seu protótipo, "o espírito é um osso", para a nossa questão de fundo, assim formulada: "tu és genoma"? (Zizek, 2003, s.p.) Será que, à medida que a biogenética reconhece a amplitude de nossa condição humana como totalmente dependente de uma linguagem codificada capaz de desnudar por completo nossa essência, nós perdemos, com isso, o potencial intrínseco de nossa liberdade e autonomia moral? Ou será que a base genética de nosso ser ainda não é a palavra derradeira a respeito de nossa gênese material, de maneira que podemos apostar em uma disfunção mais originária, um excedente da própria ciência, e que nos autoriza, mais uma vez, a levantar questões sobre liberdade e autonomia? Essa é a verdadeira aposta do materialismo dialético de Zizek.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Fernando Facó de Assis Fonseca
E-mail: fernandofaco@hotmail.com

 

 

* Doutor em filosofia da educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
58 Ou, como afirma Zizek: "'privado' não são os laços individuais de alguém, opostos aos laços comunitários, mas a própria ordem comunal-institucional da identificação específica desse alguém; enquanto 'público' é a universalidade transnacional do exercício da razão" (Zizek, 2011b, p. 220).
59 A melhor maneira de compreender o estatuto dessa dimensão constatativa é a partir da posição do observador imparcial, que fala objetivamente do mundo numa distância segura sem se implicar diretamente com seus próprios enunciados.
60 Sobre este tópico, ver: Fukuyama, F. (2003). Nosso futuro pós-humano: consequências da revolução da biotecnologia. Rio de Janeiro: Rocco; e McKibben, B. (2004). Enough. Staying Human in a Engineered Age. Nova York: Owl Books.
61 É por isso que não podemos nos esquecer de que a grandiosidade de Kant foi ter sido o primeiro filósofo a fundamentar uma ética pautada unicamente na autonomia radical do homem.
62 É claro que Heidegger vai criticar a postura da tradição por conceber o ser do homem (dasein) sempre a partir de um determinado ente. Mas isso não significa que o homem seja um ente entre outros, como uma pedra ou uma árvore. O homem sempre foi um ente diferenciado, um que possuísse o privilégio de poder pensar os outros entes. Esse "distanciamento" ontológico, que liberta o homem de sua condição puramente ôntica, é, portanto, uma necessidade incondicional da natureza humana – da qual mesmo Heidegger não abrirá mão – e que visa proteger o homem de sua vulgarização ôntica.
63 Lembremos aqui do célebre Admirável mundo novo, de Aldous Huxley (2009), cujo tema gira exatamente em torno desse debate entre uma natureza humana angelical e uma realidade desencantada e administrada, característica do mundo moderno e de sua razão instrumental.
64 É também por essa razão que Habermas não alcança a radicalidade da relação sujeito-objeto. O outro com que nos relacionamos é sempre um parceiro do diálogo, da interação com quem, numa experiência concreta do mundo da vida, participamos ativamente do plano intersubjetivo comunicacional. Ao passo que, para alcançar o plano verdadeiramente materialista, Habermas teria de levantar a problemática de como o sujeito da comunicação e o objeto podem coincidir num plano mais íntimo. Segundo Zizek (2008b, p. 11), aí reside a grande diferença entre Habermas e Lacan. Para Lacan, a intersubjetividade simbólica não é o último horizonte que nossa relação com o outro pode alcançar. Ou seja, não se trata de uma subjetividade monológica localizada no campo da intersubjetividade, e sim de uma relação do outro enquanto Coisa, um excesso que escapa ao arcabouço transcendental das práticas intersubjetivas.

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