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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.18 no.1 São Paulo  2016

 

ARTIGOS

 

Heidegger e o problema da dor nos "Cadernos negros"1

 

Heidegger and the question of pain in the "Black Notebooks"

 

 

Anna Luiza Coli*

Charles University Prague
Bergische Universität Wuppertal

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A presente contribuição parte dos quatro volumes recém-publicados nas Obras completas de Heidegger – os chamados "Cadernos negros" –, a fim de analisar o modo como o conceito de dor se apresentou e se desenvolveu no contexto da narrativa onto-histórica que caracterizou o pensamento heideggeriano dos anos 1930 até finais da década de 1940. Iniciado quase simultaneamente à redação das "Contribuições à filosofia", esses manuscritos revelam o papel decisivo que o antissemitismo onto-historial desempenhou tanto no estabelecimento quanto no derradeiro abandono da narrativa da história de Ser pautada pelo maniqueísmo e pela polarização entre gregos e alemães de um lado, e judaísmo e a "maquinação" de outro. Por fim, se oferece uma interpretação sobre os diferentes tipos e níveis de dor que Heidegger nos apresenta ao longo desse material.

Palavras-chave: dor ontológica; antissemitismo onto-historial; maquinação.


ABSTRACT

The present paper takes as its basis the four recently published volumes from Heidegger's Gesamtausgabe – the so called "Black Notebooks" – in order to analyse how the concept of pain (Schmerz) was presented and developed in the context of the ontohistorical narrative, which characterized the heideggerian thought from the early 1930s to the late 1940s. Initiated almost simultaneously to the writing of "Contributions to philosophy", those manuscripts reveal the essential role played by an ontohistorical anti-semitism to establish the narrative of the history of Being as well as to abandon it. This narrative was based on a manichaeism and on a polarization between Greeks and Germans on the one hand, and on judaism and machination on the other. Finally, we suggest an interpretation of the different types of pain as presented by Heidegger along this compendium.

Keywords: ontological pain; ontohistorical anti-semitism; machination.


 

 

1) Introdução

Não apenas em decorrência de sua recente publicação, mas, principalmente, pela magnitude do período da produção de Heidegger abarcado e pela vastidão dos temas e das referências abordados, o que conhecemos hoje como os "Cadernos negros" representam, sem dúvida, um desafio a qualquer interpretação que pretenda analisá-los internamente ou em sua conexão e importância para o restante da obra de Heidegger. Uma primeira observação que se faz imprescindível nesse contexto é sobre a dificuldade de tomar esse material uma obra única ou mesmo unitária, como sugeriria a denominação comum usada para se referir a ele como "Cadernos negros". Essa denominação teria sido usada pelo próprio Heidegger para se referir ao conjunto de cadernos de capa negra que, segundo algumas fontes, ele mantinha cuidadosamente guardados em sua cabana em Todtnauberg, na Floresta Negra, onde transcrevia neles anotações e demais observações que chegavam até lá apenas rascunhadas. Ali seus pensamentos mais íntimos recebiam um cuidado diferenciado: eram transcritos em caligrafia limpa e organizados segundo critérios determinados em brochuras dentre as quais algumas foram, segundo o editor (Trawny, 2014a), escritas simultaneamente.

Apesar da ideia unitária que o batismo lhe pareça conferir, os "Cadernos negros" apresentam diversas tendências temáticas e refletem diferentes momentos da obra de Heidegger. O coeditor das Obras completas, F.-W. von Herrmann, afirmou uma vez que os cadernos:

[...] começam com o ano de 1931, isto é, justamente no início do pensamento da história do ser e terminam no ano de sua morte. Esses "Cadernos negros" acompanham todo seu caminhar desde 1931 até 1976. Nesse sentido formam um manuscrito abundante e temporalmente contextual, ainda que sejam anotações que iniciavam novamente a cada semana, a cada mês, a cada ano. (Xolocotzi, 2009, p. 68)2

Trata-se, portanto, de um material que abrange mais de 40 anos de um trabalho intenso e ininterrupto no qual, segundo testemunho de seu irmão Fritz Heidegger, "Heidegger se mostra inteiramente como ele mesmo"3, e revela impressões íntimas de um pensamento cujo único elemento uníssono seja talvez o discurso em primeira pessoa.

Passagens inteiras desse material podem ser encontradas em outras obras do mesmo período, como é o caso de "Contribuições à filosofia"4. Outras passagens ainda parecem ter servido de base para um desenvolvimento posterior em vários outros manuscritos. Isso significa dizer que mesmo o status desse material é de difícil compreensão e a polêmica que se formou ao seu entorno desde sua publicação nada tem de arbitrária. Os interessados em negar sua relevância filosófica muitas vezes alegam que se tratava de meras notas e rascunhos sem importância, um material apressado e irrefletido que serviria como base para outras obras, estas sim filosoficamente estruturadas e elaboradas e, portanto, representativas do pensamento heideggeriano. Outras vezes se argumenta que esse material é irrelevante por sua incongruência – ou, antes, inconveniência – em relação ao restante da obra de Heidegger.5 Essa resistência se deve – e talvez aqui não seja temerário apelar a uma generalização – às afirmações relativas ao judaísmo, à "questão judaica" e ao que desde então se debate como o antissemitismo no cerne pensamento de Heidegger.6

Sem entrar mais profundamente nos detalhes envolvidos nessa polêmica, é importante para nossos propósitos, entretanto, ponderar que a condenação de "irrelevância filosófica" soa demasiado dura e precipitada, principalmente quando se trata de avaliar um material que, ao contrário do que muitas vezes é dito, não é um mero composto de notas e rascunhos, mas – ainda que tenha textualmente contribuído com outros manuscritos do período – um material que se caracteriza principalmente pela limpeza e clareza do texto, o que inclui uma caligrafia nítida e cuidadosa poucas vezes presente nos manuscritos de punho de Heidegger (Xolocotzi, 2009, p. 68), o que indica claramente que não se tratava de um conjunto sem importância de notas, mas de um manuscrito cuidadosamente elaborado, ordenado e mantido em segredo por tantos anos. Além do simples argumento da forma, é evidente que os escritos reunidos sob a denominação de "Cadernos negros" têm inconteste dignidade filosófica. Ora, várias fontes comprovam o apreço que Heidegger tinha por esses cadernos e revelam sua insistência não somente em publicá-los mas ainda em conceder-lhes o lugar de destaque como a obra escolhida para coroar a edição de suas Obras completas (Trawny, 2014b, p. 531). Diante desses elementos, me parece um tanto arbitrário a decisão de simplesmente excluir esse material do rol das obras mais importantes de Heidegger ou mesmo de negar-lhes a importância filosófica que o próprio Heidegger lhes atribuiu.

Uma dentre as tantas revelações contidas nesses volumes consiste no testemunho da existência de uma compilação de manuscritos aos quais Heidegger se refere simplesmente como "A dor". Segundo nota do editor (Heidegger, 2015, p. 98), esses manuscritos fariam parte do projeto de uma obra maior que se intitularia "Sobre a dor" (Über den Schmerz). No caso destes como no dos demais volumes ainda não publicados dos "Cadernos negros"7, sua conservação pelos Arquivos Heidegger em Marbach ainda permanece alvo de incertezas (Kiesil, 1995, pp. 3-4).

O problema e a experiência da dor, que recebem algumas poucas referências nos dois primeiros volumes publicados dos "Cadernos negros", aparecem cada vez mais frequentemente e assumem importância cada vez maior no conjunto dos dois últimos volumes, referentes ao período de 1939 a 1948. Essa conjuntura, evidentemente, nada tem de fortuito.

A virada (Kehre) que o pensamento de Heidegger experimenta no início dos anos 1930, em sua tentativa de superar o "fracasso teorético" de Ser e Tempo – fracasso eventualmente apontado como a incapacidade de pensar a temporalidade histórica a partir da facticidade ou da temporalidade extática do Dasein e de uma insuficiência da linguagem da metafísica (Heidegger, 1976/1996, pp. 39-40) –, caracteriza o momento em que seu pensamento adentra o terreno da pergunta pelo Ser a partir da perspectiva do pensamento onto-histórico e da compreensão do Ser como acontecimento apropriativo. Esse é também o momento em que Heidegger inicia seu intenso trabalho sobre o material que compõe o que hoje conhecemos como "Cadernos negros". Muitos defendem que esse material deve ser lido juntamente com as "Contribuições à filosofia" por sua constante referência a elas, texto no qual o pensamento do Ereignis (acontecimento apropriativo) e da narrativa do Seer encontram uma de suas exposições mais completas e acabadas, representadas na primeira grande tentativa de Heidegger de propor uma elaboração mais radical e mais originária da pergunta pelo Ser, que então coloca a questão pela verdade e sentido do Seer e sua essência sob a forma do seu desdobramento histórico.

 

2) A narrativa do Seer

A manifesta resistência que os "Cadernos negros" vêm recebendo tem, como dissemos, uma motivação inequívoca: Heidegger revela aí um outro lado da narrativa onto-histórica que foi quase inteiramente omitida do texto das "Contribuições à filosofia": o papel central que o antissemitismo desempenhou nessa nova fase de seu pensamento8. Por um lado, a assunção de uma forma muito específica de antissemitismo, mantida por anos em segredo absoluto, forneceu as bases da estrutura da historicidade do ser; por outro lado, representou o elemento-chave que, no contexto dessa nova configuração da pergunta pelos Ser, exauriu a possibilidade de que aquela historicidade do Seer pudesse se firmar como "a" grande narrativa – aos moldes da historicidade trágica de Hölderlin.

Ao que aqui me refiro como uma "forma específica" de antissemitismo, e que se revela em diversas passagens dos "Cadernos negros", não diz respeito ao consentimento e à adesão ao nacional-socialismo – o qual se estendeu até o final da Segunda Guerra Mundial e à extinção do partido – nem à dimensão metafísica que ela assumiu no quadro geral do pensamento onto-histórico.

A metafísica ocidental enquanto pré-história da técnica atinge o ponto máximo de decadência no exagero do protagonismo da subjetividade e da razão calculadora. A transformação do ente no instrumento inteiramente disponível e resignadamente submetido ao arbítrio do cálculo humano é índice da ruptura do vínculo que outrora se estabelecia entre ser e ente na forma da interpelação. No contexto do pensamento de Heidegger do início dos anos 1930 – ou seja, depois do período em que sua filosofia passou por uma crise tão violenta que o fez cogitar tirar sua própria vida, como testemunha Pöggler (Volpi, 2010, p. 144), para então fazê-la renascer sob a égide de uma colocação mais radical do problema do ser e seu desdobramento histórico –, a pergunta pelo ser assume a forma da pergunta pelo seu sentido no instante mesmo em que o ente é caracterizado pela subtração da dimensão ontológica cujo sentido seria o objeto de interpelação. No quadro do que Heidegger caracterizou como o "abandono do Seer", o ente que é o Dasein perde a capacidade de tornar-se consciente de sua própria finitude, de sua condição de "suspensão sobre o vazio". Rompe-se, dessa forma, a possibilidade do vínculo com Seer, e o Dasein se vê entregue ao domínio no qual entes são meramente disponíveis, padronizados, reduzidos à sua utilidade. Essa ruptura entre ser e ente é caracterizada por Heidegger como a maquinação (Machenschaft) e é fruto da ação dominadora e violenta sobre o ente.

Mas o que isso pode ter a ver com o judaísmo? A resposta a essa pergunta é decisiva não apenas para compreender a especificidade daquilo que, desde a publicação dos "Cadernos negros", se entende como o elemento "antissemita" do pensamento de Heidegger, mas também para entender o que nos traz de volta ao tema da dor e nos permite apontar o protagonismo que ela assume no quadro mais geral do pensamento onto-histórico.

 

3) O judaísmo como protagonista

Na fase posterior a Ser e tempo, como se pode depreender de seus cursos universitários da década de 1930 e mesmo do "Discurso de reitorado" de 1933, o Dasein ressurge associado a um conceito de existência que não é mais singular ou individual, mas que recebe um tratamento coletivo sob a ideia mais abrangente de "povo" (Volk). Nesse sentido, a tarefa de encontrar aquilo que é o mais próprio e o mais originário é transferida à dimensão coletiva enquanto acontecer e destino da comunidade do povo. A falta de um "destino coletivo" denuncia uma forma de decadência do Dasein. O problema aparece já nas primeiras tentativas de Heidegger de estabelecer os limites que permitem caracterizar um grupo como "povo", como agente do destino coletivo ao qual o Dasein está sempre já exposto. Inicialmente Heidegger chega mesmo a flertar com uma ideia de raça e, nas preleções de 1934 ("Lógica como pergunta pela essência da linguagem"), afirma que o conceito de raça expressa a dimensão biológica daquilo que é transmitido por herança e mantido no sangue. O mesmo é afirmado a respeito da chamada "ideologia de sangue e solo", e Heidegger acrescenta que esta, juntamente com a ideia mesma de raça, são conceitos "poderosos e necessários para a existência do povo, mas não são condição suficiente para ela" (Heidegger, 2011, p. 162).

Após o manifesto "flerte" com a determinação biológica do conceito de raça, Heidegger então reconhece a conveniência da afirmação de um princípio racial para uma racionalidade calculadora na qual "se consuma o subjetivismo moderno pela inclusão da corporalidade no sujeito e pela concepção completa da subjetividade como humanidade da massa humana" (Heidegger, 2014c, p. 69). Heidegger então recua e argumenta que o que corresponde ao "povo" não pode ser produzido meramente pelo cultivo biológico, isto é, mediante uma organização técnica que proceda por princípios de herança de sangue, mas deve, antes, ser atribuído ao Dasein e a sua tendência de criar para si um "mundo", de estabelecer aquilo que lhe é próprio junto àqueles com os quais compartilha uma determinada identidade cujo caráter é evidentemente mais cultural que biológico. Na mesma virada argumentativa em que o princípio de raça é aproximado da razão calculadora do subjetivismo moderno, Heidegger identifica no judaísmo a vanguarda da política racial. Isso justificaria em parte o protagonismo judio na realização da maquinação, pois que "os judeus são os que vivem há mais tempo segundo um princípio de raça e, por isso, têm uma posição privilegiada no espaço de jogo do subjetivismo da Idade Moderna" (Trawny, 2014a, p. 76).

Como Heidegger já indicara em sua "Carta ao humanismo", a "falta de pátria" se convertera em destino mundial. O triunfo da técnica e da razão calculadora representava o triunfo da maquinação, que encontrara na dinâmica vazia e desenraizada do judaísmo seu grande protagonista e maior propulsor. Nesse contexto, não seria desacertado referir-se ao judaísmo mundial como índice de um movimento conspiratório de tomada do controle da economia nacional e de outros meios de dominação que, à época de Heidegger, dizia respeito às ideias difundidas a partir dos chamados "Protocolos do sábio de Sião" (Trawny, 2014a, p. 43)9. Todavia, para Heidegger, a conspiração do judaísmo mundial se caracterizava sobretudo pela impossibilidade de vivenciar aquilo que é "pátrio", "originário", e é por essa razão que ela "converte em sentido e fim do desenvolvimento de seu poder levar a cabo o desarraigamento do ente" (Heidegger, 2014c, p. 67). Heidegger então acrescenta que "o judaísmo mundial teve que se apresentar como um povo ou como o grupo de um povo que, em sua concentração suprema em si mesmo, não perseguiu nenhum outro fim senão a dissolução de todos os demais povos, como uma 'raça' que levou a cabo conscientemente a 'erradicação da raça nos povos'" (Heidegger, 2014c, p. 67).

Ora, Heidegger não hesita em enquadrar o "judaísmo mundial" entre os "principais crimes planetários" e argumenta que seu empoderamento foi veladamente preparado e fomentado no terreno fértil que a modernidade cultivou para o predomínio da razão calculadora e vazia, própria de uma cultura que, como é característica do judaísmo, "prescinde de mundo". Os judeus encarnavam aquilo que Heidegger taxava de "estranho" (Fremd). Não o "estranho" no sentido do outro radical, do radicalmente estranho que caracteriza o Seer e o torna inapreensível ao ente, e tampouco no sentido da estranheza determinada que reconduz ao lar, ao próprio, como na narrativa que parte da dinâmica primeiro começo-final-segundo começo, protagonizada por gregos e alemães. Os judeus representavam o estranho sem-raiz, o povo cuja carência de mundo constitui a grande ameaça ao vínculo com o mundo daqueles que o têm e que, nesse habitar e instituir para si esse mundo, expõe-se a um destino coletivo na forma do "povo".

Em "Sobre a essência da verdade" (Heidegger, 2001), Heidegger interpreta o termo "pólemos" no famoso fragmento 53 de Heráclito como o "estar contra o inimigo", e esclarece que inimigo é "aquele e todo aquele que representa uma ameaça essencial ao povo e a seus indivíduos" (Heidegger, 2001, p. 90). Diante dessa interpretação se esclarecem algumas passagens dos "Cadernos negros" nas quais Heidegger se refere à guerra como um acontecimento cuja significação, à luz da história do Seer, está em "purificar o Seer de sua mais profunda desfiguração causada pelo predomínio de ente" (Heidegger, 2014c, p. 113). Logo antes dessa passagem, no entanto, o filósofo curiosamente estabelece a topografia da maquinação, a qual se divide em "agentes da maquinação" à luz da história do ser (comunismo e judaísmo) e os lugares do começo (Grécia, Alemanha e Rússia) (Heidegger, 2014c). Chama a atenção aqui a exposição de parte da justificativa teórica de um antissemitismo peculiar que o aproximou tão febrilmente – ao menos no início – do nacional-socialismo: a necessidade de apontar e combater o inimigo que, por "incrustar-se na raiz mais íntima do Dasein de um povo e opor-se a sua própria essência e atuar contra ela" é, na verdade, o "inimigo da essência" (Heidegger, 2014c, p. 225).

A disposição da realização de um "outro" começo na forma de uma revolução levada a cabo pelos alemães como o povo protagonista do novo começo10, responsável pela reviravolta no destino do Ocidente que recolocaria a possibilidade do acesso à essência do Seer é o que, supõe-se, justificaria a conexão que o próprio Heidegger reconheceu – ao menos inicialmente – com o projeto nacional-socialista. Essa conexão, que Heidegger insistia em caracterizar como "mediata", se revela no fato de que "ambos combatem, ao mesmo tempo, ainda que de maneiras distintas, por uma decisão sobre a essência e pelo destino dos alemães e, com ele, pelo destino do Ocidente" (Heidegger, 2014b, p. 24).

Essa leitura corrobora tanto a ideia de uma narrativa que une dois começos e um final – final este marcado pela radicalidade da ruptura capaz de instituir o novo começo –, quanto a concepção segundo a qual os gregos estão no começo da filosofia ocidental e, quando esta se depaupera por completo com o "fim da metafisica", são os alemães que se descobrem no lugar onde o final daquilo que foi iniciado pelo primeiro começo – o grego – acontece. O final recebe em si toda a carga do falimento do primeiro começo, e é por isso que o segundo começo inclui em si tanto o pensamento do primeiro quanto a história de sua decadência. Dada a importância que Heidegger lhe concede, afirma que "só o alemão pode poetizar e dizer originariamente de novo o ser, somente ele conquistará de novo a essência da teoria e criará, por fim, a lógica" (Heidegger, 2014c, p. 30, grifos meus).

Nesse sentido, o final do terceiro Reich simbolizou o colapso da esperança que Heidegger depositara no povo alemão como lugar do segundo começo e, dessa forma, igualmente o falimento do construto da narrativa do Seer que opunha em polaridade quiásmica "gregos" e "alemães". A despedida lenta e dolorosa da ideia de uma revolução alemã como reviravolta do acesso mais originário ao Seer não só o afastou do nacional-socialismo real e motivou duras críticas ao imaginário nazista e à cegueira do povo alemão, como testemunhou uma nova mudança no próprio pensamento heideggeriano, que a partir de então abandonava a esperança de corroborar sua grande narrativa onto-histórica a partir da assunção por parte dos alemães do protagonismo na história do Seer.

 

4) O fim, o segundo início e a dor

"À época da consumação da Idade Moderna restam duas possibilidades: ou o fenecimento (Verendung) violento e abrupto (...), ou a degeneração do atual estado da maquinação incondicionada no sem-fim. A cada vez, a passagem pela possibilidade de uma história que sempre inclui uma decisão sobre a verdade do Seer se faz inevitável" (Heidegger, 2014c, pp. 138-139). O que decide sobre a verdade do Seer é a instituição da ruptura, à qual Heidegger ainda se refere como "abertura do começo", o começar de novo que procede a aceitação e, principalmente, a realização do fim. É desse modo que o cessar do primeiro começo deve se converter no acontecer mais próprio de um segundo começo. Heidegger sintetiza a história do Seer da seguinte forma no terceiro volume dos "Cadernos negros": "No primeiro começo o Seer existe como ascensão; no outro começo, o Seer existe como acontecimento apropriativo. Ascensão – maquinação – acontecimento apropriativo são a história do Seer, na qual estes liberam a essência da história a partir do ocultamento próprio ao primeiro começo..." (Heidegger, 2014c, p. 6). A maquinação é a obstrução do lugar no qual a verdade do ser poder-se-ia dar à experiência do ente e, por isso, é transformada no grande inimigo da abertura do novo começo. A ruptura, portanto, consiste na própria destruição da maquinação a fim de deter seu ritmo galopante em direção ao sem-raiz, ao sem-mundo e ao sem-pátria. Heidegger se refere a essa "destruição" como a preparação sofrida e dolorosa – porém necessária – da abertura pela qual o segundo começo pode irromper (Heidegger, 2014c).

Por um lado, essa preparação exige um "amadurecimento" capaz de aceitar com radicalidade a dor da destruição e do fim. No último volume publicado dos "Cadernos negros" encontramos a seguinte passagem: "Em lugar algum um passo em direção ao autêntico. Em todas as partes somente o mais duro envolvimento na cegueira sem medida. O abandono do Seer ainda não se consumou. Ele estará completo somente quando a dor doer" (Heidegger, 2015, p. 55), visto que, nas "épocas finais", que são também aquelas mais próximas ao início, "a dubiedade é tão completa e profunda como nunca antes. Aqui não há desvio que salve, que saia do caminho. Aqui a salvação é tão-somente o próprio caminho – que nos encontremos novamente no caminho, fugindo aos desvios em relação ao seu curso único" (Heidegger, 2015, pp. 9-10). Em algumas ocasiões nas quais Heidegger se refere ao compêndio de manuscritos sobre a "dor", ele faz alusão à aceitação irrestrita de sofrimentos e o suportar da dor como um sacrifício necessário para que a abertura do novo começo não se desfaça enquanto possibilidade. Nesse contexto ele confirma a necessidade da experiência do nazismo e da conformação diante de suas consequências que precisam ser sentidas por todas as partes (Heidegger, 2015), e até mesmo justifica tanto o fenômeno do nacional-socialismo como sua adesão a ele como a coragem de percorrer o tal caminho cuja salvação consiste em percorrê-lo, e não evitá-lo.

Por outro lado, Heidegger reconhece a mesma dubiedade da ruptura – relação tensa entre começo e fim – na estrutura dessa dor que, enquanto fim, é representada pelo sofrimento do sacrifício. Ou seja, como destruição do primeiro começo que possibilita o surgimento do segundo, o amadurecimento da preparação para a cesura exige a experiência da dor como cura. "Enigmática constelação da passagem no próprio acontecimento apropriativo; como se o Seer se tivesse conformado duplamente como abandono do Seer (Seynsverlassenheit) e como chegada da proximidade de sua verdade, a qual encarrega-se de pensar o pensamento rememorante (Andenken)" (Heidegger, 2015, pp. 116-117). Pouco adiante, Heidegger afirma que a "dor da espera" da irrupção do segundo início "nada mais é que a profunda experiência cotidiana da inicialidade que não pode ceder, e tudo isso em uma época em que tudo parece ter chegado ao fim. É o fim – mas esse fim é o mais manifesto ocultamento do início que se dá no acontecimento apropriativo..." (Heidegger, 2015, p. 134). A cura não é aquilo que poupa a agonia e o sofrimento, "não é apenas a dor eliminada, mas a dor de caráter essencialmente acontecitório (ereigend)... Essencial aí é que a dor [sob a forma da cura] é tão desprovida de contrário quanto o é o acontecimento apropriativo (...). Nietzsche viu mais claramente que a psicologia ao partir da Vontade de Poder: "prazer e dor são coisas distintas e não contrárias" (Heidegger, 2015, pp. 421-422).

A dor, portanto, surge como índice do desdobramento onto-histórico precisamente ali onde se estabelece a ruptura, onde o final do primeiro início se choca com o início mesmo do segundo. Ainda presa ao domínio ôntico predominante no contexto do Seynsverlassenheit, a dor experimentada como fim é associada ao sofrimento e às consequências – por mais duras que sejam – do caminho que encerra a narrativa iniciada pelos gregos. Experimentada como anúncio do segundo início, contudo, a dor se aproxima do prazer e se deixa experimentar como "cura". Podemos, assim, identificar duas extensões da dor que, todavia, ainda se encontram numa dimensão que aqui optamos por caracterizar como "ôntica" a fim de diferenciá-la de uma dor sentida enquanto experiência da "essência da dor", o que pode ser pensado como a experiência propriamente "ontológica" da dor ou mesmo uma "dor ontológica" na medida em que esta diz respeito à dor pela qual se impõe a verdade do Seer.

 

5) A dor "ontológica"

No primeiro volume publicado dos "Cadernos negros", Heidegger declara que "aquele que quiser se aproximar dos grandes em obra, sacrifício e ação, deve primeiro entender a liberdade de toda grandeza; e isso significa: deve avistar a necessidade que se mostra apenas a partir da compreensão da urgência oculta, que conflagra a transfiguração enquanto sofrimento e dor e prepara para o processo" (Heidegger, 2014a, p. 319).

Heidegger fala ocasionalmente de uma "dor trágica" que, sem a dor da apropriação da história como o "próprio", por um lado e, por outro, sem a dor da aceitação e do suportar dessa mesma história – ao que nos referimos anteriormente enquanto "dor como cura" e "dor como sofrimento", respectivamente –, perderia sua característica de "trágica". A grandeza da dor de Édipo é trágica porque há tanto a dor da apropriação, ligada à cura – quando sua verdadeira história finalmente se revela e se deixa "apropriar" mesmo com toda a violência que a torna insuportável –, quanto a dor da irrevogabilidade dessa história, ligada ao sofrimento que marca o fim de uma época e que é simbolizada pela dor corporal do impulso que o leva a cegar-se para evitar testemunhar sua história com seus próprios olhos, tamanha dor lhe infligia. A grandeza a que se refere Heidegger, portanto, corresponde à liberdade enquanto a hybris do herói trágico, enquanto aquilo que suscita, que faz acontecer (no sentido de ereignen), que toma nas próprias mãos e no próprio destino a realização da urgência e, assim, provoca a cesura instituidora do fim e do novo início.

O segundo início, nesse contexto, deixa-se apreender como o catártico, como a purificação do Seer no sentido de um livrar-se da impureza representada pelo domínio e pelo predomínio do ente. Essa purificação que se realiza na cesura, na ruptura que faz o fim do início coincidir com o outro início, é o ato extremo que consome a esfera ôntica na qual impera a ruptura entre Seer e ente e na qual a dor é experimentada como sofrimento e como cura. O purificar-se da predominância do ente é o (re)abrir-se à dimensão do ontológico e à dimensão de uma dor – essa sim invulgar –, porque não se plasma em sentimentos mundanos, mas diz respeito à dor "ontológica" do suportar do peso da verdade do Seer.

Para aclarar essa ideia a partir de uma perspectiva hölderliniana, podemos dizer que o "acasalamento de deus e homem" (Hölderlin, 2008, p. 54) deve ser purificado por uma separação ilimitada ensejada pela infidelidade que é tanto humana quanto divina. A infidelidade humana é representada pela hybris que confessa o esquecimento ou mesmo a negligência em vista do poder divino, à qual o divino responde com a infidelidade de seu afastamento categórico (kategorische Umkehr), ou seja, quando o deus "desviou do dos homens o seu rosto" (Hölderlin apud Beaufret, 2008, p. 9) e se ausentou, abandonando o homem ao terrestre finito. Heidegger chama esse afastamento de Seynsverlassenheit, o abandono do Seer, que é o índice da separação ilimitada, da ruptura igualmente categórica do vínculo com o ente, com o Dasein. O acasalamento de homem e deus ou, para retornar ao vocabulário heideggeriano, o vínculo entre Seer e ente ganha, na brutalidade e na radicalidade desse afastamento e dessa ruptura ilimitada, a possibilidade de se reestabelecer, dada a purificação do predomínio do ente como nova abertura possível ao vínculo acasalante.

A dor purificada de seus elementos ônticos se deixa compreender como o silêncio e a impossibilidade de dizer a verdade que já se anunciava na natureza esotérica que permeia as "Contribuições para a filosofia", aquilo que Heidegger expressou como "a dor de Nietzsche" quando profere, ao final de sua trajetória, que "'não temos a verdade' ('verdade', ou seja, o 'verdadeiro')" (Heidegger, 2014c, pp. 132-133). A dor ontológica, que é o experimentar da essência mesma da dor, atesta a imposição do silêncio sobre o ser como "a forma mais pura do suportar da verdade do Seer" (Heidegger, 2015, p. 16).

Encontramos a seguinte passagem no último volume publicado dos "Cadernos negros" e com a qual concluo a presente contribuição deixando, quem sabe, um caminho traçado pelo qual se possa questionar mais profundamente o sentido do silêncio e de uma postura às vezes semelhante à da teologia negativa na qual Heidegger reconhece tanto a necessidade do apontar para o Seer como a impossibilidade de dizê-lo ou de tocar a verdade com os "dedos" demasiado ônticos da linguagem.

Silenciar vindo do rigor de uma abundância do falar – quem compreende isso? Quem seria suficientemente dócil para não apressar-se demasiadamente e compreender mal um tal silêncio? Quem seria capaz de, a partir de um tal silêncio, ouvir uma simples lei, que é o acontecimento apropriativo e não a reordenação de um calcular e de uma ordem? Quem é ainda capaz de perceber, no todo, a ferocidade que a dor do Seer dá a carregar: a dor como o acontecimento apropriativo do sofrimento; o sigilo de todo luto, de todo abandono, como o pertencimento propriamente livre ao Seer? Quem é capaz de silenciar-se diante do suportar dessa pesada resignação? Para quem esse silenciar é o escutar do toque dos sinos da noite? Silenciar como conversa? Primeiro o assalto da recusa clareia o recuo – o recuo do abandono advindo do ânimo de seguir na suposição do enigma! (Heidegger, 2015, p. 123)

 

Referências

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Endereço para correspondência
Anna Luiza Coli
E-mail: annaluizacoli@gmail.com

 

 

* Doutoranda na Charles University Prague e na Bergische Universität Wuppertal.
1 Agradeço a colaboração do dr. Giovanni Jan Giubilato e de Alessandro Iorio pela leitura cuidadosa, pelas críticas e pelos comentários.
2 A citação continua da seguinte forma: "Os 'Cadernos negros' têm diferentes títulos: um grupo se chama 'Reflexões' (GA 94: Überlegungen II-IV; GA 95: Überlegungen VII-XI; GA 96: Überlegungen XII-XV), outro grupo se chama 'Anotações' (GA 97: Anmerkungen II-V; GA 98: Anmerkungen VI-IX), outro grupo tem o título 'Quatro Cadernos' (GA 99: Vier Hefte e Vier Hefte II), outro ainda Vigilae (GA 100: Vigilae I, II), outro se chama 'Acenos' (GA 101: Winke I, II) e o último grupo se chama 'Notas provisórias' (GA 102: Vorläufiges I-IV)".
3 Carta de Fritz Heidegger a Hugo Friedrich que se encontra no Arquivo da Universidade de Freiburg (citada a partir de Xolocotzi, 2009, p. 66).
4 Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis). Gesamtausgabe 65. Tradução brasileira de Marco Antônio Casanova (2014), Rio de Janeiro: Via Vérita.
5 Ver, por exemplo, a afirmação de Von Herrmann e Alfieri: "Os passos relativos ao judaísmo – que são pouquíssimos em relação ao conteúdo dos 34 cadernos e não aparecem em nenhum contexto mais amplo – são totalmente irrelevantes em termos filosóficos e, por isso, são superficiais para o pensamento de Martin Heidegger. Sobretudo, esses não representam um 'elemento constitutivo' sistemático-conceitual do pensamento histórico-ontológico" (em Von Herrmann & Alfieri, 2016, p. 38). Grande parte da argumentação apresentada nesse livro é, infelizmente, baseada em ataques pessoais à figura e à competência filosófica do editor dos "Cadernos negros", Peter Trawny, o que torna o volume como um todo uma espécie de escárnio à boa prática da argumentação de caráter estritamente filosófico. Isso se torna tanto mais evidente se considerarmos que, anos antes da publicação dos "Cadernos negros" como os volumes 94-97 da Heidegger Gesamtausgabe, Von Herrmann havia declarado sobre eles que "somente quando esses volumes forem publicados e quando deles se tenha apropriado ao ler e pensar longamente sobre seu conteúdo é que poderemos finalmente ter uma imagem final do pensador Martin Heidegger. Ainda que esses volumes possam alterar radicalmente a imagem que temos dele, eles nos darão, todavia, uma nova perspectiva" (Xolocotzi, 2009, p. 68).

6 Ver, por exemplo, o posfácio da obra escrita em conjunto por Von Herrmann e Alfieri (2016), La veritá sui Quaderni Neri, no qual foi publicado um apêndice de Claudia Gualdana em que se faz um apanhado da discussão apresentada em termos de "apoiadores" e "detratores" de Heidegger, dependo da interpretação concedida aos "Cadernos negros". No contexto dessa polêmica acalorada é relevante mencionar as palavras de Eric Aeschimann em Le Nouvel Observateur ao comentar a discussão entre François Fédier, Hadrien France-Lanonar e Peter Trawny (7 de dezembro de 2013). Digno de menção é, ainda, as opiniões de Donatella di Cesare, vice-presidenta da Heidegger Gesellschaft e membro da comunidade hebraica de Roma, emitidas em uma entrevista publicada em La Reppublica (18 de dezembro de 2013), os comentários de Jürg Altweg sobre o debate na filosofia francesa aparecidos em Frankfurter Allegemeine Zeitschrift (13 de dezembro de 2013) e as réplicas do editor dos "Cadernos negros" publicadas em Die Zeit – Online (27 de dezembro de 2013). Para uma contrarréplica do coeditor das Obras completas, Von Herrmann, consultar o suplemento cultural da revista italiana Avvenire (17 de julho de 2014).
7 Até o momento só uma pequena parte desse material pôde ser publicado – mais precisamente os escritos que abrangem o período de 1931 a 1948. Segundo relato do editor Peter Trawny, havia um primeiro caderno – Reflexões 1 – anterior ao primeiro dos volumes publicado que não pôde ser encontrado junto aos demais. O paradeiro e o destino do restante do material é desconhecido.
8 Essa discussão foi recentemente incrementada pela publicação de várias cartas de Heidegger ao seu irmão Fritz, que não apenas comprovam um posicionamento antissemita como ainda mostram seu entusiasmo – a menos inicial – com o nacional-socialismo e com a figura de Hitler. Ver, por exemplo, artigo de 12 de outubro de 2016 do Die Zeit-Online ("Martin Heidegger. Ein moralisches Desaster"), no qual são reproduzidos vários trechos dessas cartas. Por exemplo, em uma carta de 3 de abril de 1933, Heidegger afirma que "Hitler é um sujeito extraordinário". Outras repercussões das cartas a Fritz podem ser encontradas em Le Monde – Culture, de 13 de outubro de 2016 ("Heidegger en grand frère nazi"), ou na Paris Review, de 18 de outubro de 2016 ("In his own words. Newly revealed letters from Heidegger confirm his Nazism – not that there was any doubt").
9 Mesmo que faltem indícios mais concretos de que Heidegger tenha lido essa obra, os "Protocolos do sábio de Sião" influenciaram profundamente os discursos de Hitler e grande parte da ideologia antissemita do nacional-socialismo, o que significa dizer que as ideias contidas neles eram elementos centrais do imaginário da época. Sobre isso, ver Trawny (2014a).
10 É importante esclarecer que Heidegger se refere a esse começo que sucede o final do primeiro começo de três formas distintas: mais frequentemente fala de um "zweiter Anfang" (segundo começo) ou de um "anderer Anfang" (outro começo). Menos frequente, mas presente em várias passagens dos "Cadernos negros", é a referência a um "neuer Anfang" (novo começo), termo que aparece ainda em GA 73.1.

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