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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.18 no.1 São Paulo  2016

 

ARTIGO

 

A abordagem fenomenológico-existencial da enfermidade: uma revisão1

 

The phenomenological-existential account of illness: a review

 

 

Róbson Ramos dos Reis*

Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

No presente artigo apresento uma revisão da abordagem fenomenológica e existencial da enfermidade. As três primeiras seções examinam as noções fundamentais da fenomenologia médica, apresentando as linhas gerais do paradigma do corpo vivido, no intuito de caracterizar a abordagem fenomenológica da enfermidade. Nas duas seções seguintes, são examinadas as interpretações do corpo enfermo que se baseiam na analogia com o utensílio quebrado, destacando o conceito de enfermidade como sintonia do desterro (Unheimlichkeit) corporal da existência. Na última seção são apresentadas as principais criticas à abordagem fenomenológica da medicina e da enfermidade.

Palavras-chave: teoria da medicina; fenomenologia médica; enfermidade; corpo-utensílio; Heidegger.


ABSTRACT

In this paper I present a review of the phenomenological-existential account of illness. The three first sections examine the fundamental notions of medical phenomenology, sketching the main elements of living body's paradigm in order to characterize the phenomenological account of illness. In the two following sections, the interpretations of ill body based on the analogy with the broken tool are examined, pointing out the concept of illness as the attunement of bodily unhomelikeness (Unheimlichkeit) in existence. The main criticisms of the phenomenological approach of medicine and illness are presented in the last section.

Keywords: theory of medicine; medical phenomenology; illness; body-tool; Heidegger.


 

 

1) Teoria da medicina e fenomenologia

A teoria da medicina é um campo consolidado de problemas que se estabelece com a constituição moderna da medicina. Qual é o estatuto da medicina? Ela é uma ciência ou uma prática? Qual é sua relação com os conhecimentos científicos e quais são seus propósitos mais gerais? O que entender por saúde e o que entender por doença? Esses conceitos são apenas descritivos ou em sua definição está necessariamente implicado um elemento normativo? O normativismo é incontornável na elucidação do conceito de saúde? Há um sentido específico em que apenas pessoas sofrem de enfermidades, diferentemente dos demais organismos, que apenas adoecem? Quais são as consequências da unidade entre organismo, consciência e identidade pessoal para a elucidação da noção de saúde? É sustentável a distinção entre saúde e enfermidade? Um conceito puramente teórico de saúde é indispensável? O que é a teoria e o método da prática clínica? Qual é o estatuto do enunciado de diagnóstico? Quais são os fatores determinantes da tomada de decisões no contexto clínico? Qual é o sentido e quais são as implicações da medicina baseada em evidência? Quais são os fatores que justificam a adoção de um modelo de medicina sensível ao contexto? Esses são apenas alguns dos problemas que vêm recebendo soluções e desenvolvimentos adicionais na teoria da medicina.2

Nesse contexto teórico, firmou-se também um marco especificamente fenomenológico de abordagem, que não pretende apenas responder adequadamente a essas questões, como também formular novos problemas com base no conhecido sentido crítico que perpassa o movimento fenomenológico. Desse modo, na teoria da medicina, é característica do marco fenomenológico a atribuição de uma relevância metodológica para a perspectiva da primeira pessoa no exame das condições da experiência significativa. Evidentemente, o primado epistêmico e teórico atribuído à perspectiva próprio-pessoal – que não seria apenas um fator relevante no contexto clínico – é um dos traços característicos da fenomenologia da medicina, mas que precisaria integrar operações interpretativas ao componente descritivo. A transformação hermenêutica da fenomenologia agrega, portanto, mudanças adicionais na teoria fenomenológica da medicina (Svenaeus, 2000a, pp. 119-175). A abordagem fenomenológica não se limita ao exame de problemas básicos: ela também é aplicada a fenômenos específicos, como a dor, as doenças crônicas, os cuidados paliativos, o transplante de órgãos etc. (Svenaeus, 2010, 2012, 2015). Além disso, uma teoria fenomenológica da saúde pretende estender-se para problemas normativos sobre as práticas médicas e terapêuticas, com implicações críticas sobre as metas gerais da medicina (Toombs, 1987, 1992, 2001, pp. 1-29, Svenaeus, 2000a, 2009, Carel, 2011, 2012, 2013).

No caso específico da teoria da saúde, a abordagem fenomenológica aparece em contraste geral com a teoria bioestatística de Christopher Boorse, segundo a qual o conceito de saúde é formulado como uma noção teórica descritiva, sem elementos normativos. Nessa teoria, a saúde refere-se à normalidade funcional orgânica, que é identificada a partir da investigação estatística da normalidade específica segundo parâmetros evolutivos. No conjunto das abordagens da saúde que se distanciam criticamente da teoria bioestatística, a concepção fenomenológica também se diferencia da teoria holística de Lennart Nordenfelt. Segundo essa noção integrativa, a saúde deve ser definida em termos da habilidade para realizar metas vitais em circunstâncias padrão. Na teoria fenomenológica da saúde, são agregadas outras dimensões da existência humana, estendendo-se para além da teoria da ação e incluindo a compreensão, a linguagem, os afetos e a corporificação (Toombs, 1992, Svenaeus, 2000a, pp. 59-75, 2013, pp. 226-228). Nesse sentido, é decisiva a concepção da identidade daquele que pode ser saudável ou doente em termos de corporeidade. Portanto, o paradigma do corpo vivido é um dos fundamentos sobre os quais se ergue a teoria fenomenológica da saúde e da medicina.

 

2) O paradigma do corpo vivido

A partir de elementos retirados da obra de Husserl, Heidegger, Sartre e Merleau Ponty, elaborou-se uma concepção desenvolvida sobre a corporeidade especificamente humana, ou seja, sobre o corpo vivido ou existencial. A partir dos trabalhos de Zaner (1971, 1982) e Leder (1990), tornou-se operacional na teoria fenomenológica da medicina o paradigma do corpo vivido (Toombs, 1988). De acordo com esse paradigma, o corpo vivido é a unidade do corpo biológico-funcional com o corpo próprio. Essa unidade pode ser descrita em cinco aspectos básicos: ser-no-mundo corporificado; intencionalidade corporal; organização contextural; body-image; e exibição gestual.3

O primeiro aspecto acentua o fato de que nos seres humanos não há propriamente a posse de um corpo, configurando uma situação em que alguém teria uma identidade pessoal e, adicionalmente, ainda possuiria um corpo. Antes disso, a condição de ser-no-mundo é corporalmente determinada, isto é, a inserção em uma estrutura holística de significações, que opera como horizonte de individuação, acontece de modo corporificado. Desse modo, a intencionalidade corporal significa que os objetos que comparecem em comportamentos intencionais são descobertos como possíveis alvos da atividade corpórea. O "eu posso", que está na base da estrutura intencional (Reis, 2013), deve ser entendido em termos enativos e corporais. O correspondente objetual da intencionalidade aparece, pois, como uma tarefa a executar, como uma questão que demanda a ação corpórea. Uma consequência dessa dupla determinação é que nos extratos mais primitivos a significação é fomentada pela experiência sensório-motora.

A organização contextural do corpo vivido significa que não apenas a percepção opera a abertura de mundo em termos de figura e fundo, mas a própria corporeidade exibe uma relação dessa natureza. O corpo vivido deve ser considerado, pois, como uma unidade mereológica, implicando que cada movimento particular resulta numa mudança na atitude de background. A experiência da enatividade é experimentada, ainda, como um sistema integrado de movimentos corporais. Essa coordenação não é executada conscientemente a cada momento, mas é guiada por uma body-image de que o agente dispõe. Essa imagem implica que o corpo próprio é experimentado como a integração das posições presentes, mas também como um sistema aberto de posições orientadas para certas metas. Por fim, no paradigma do corpo vivido, a intencionalidade social é gestualmente condicionada, ou seja, o corpo próprio apresenta uma exibição gestual. Isso significa que é através da gestualidade própria que são compreensíveis as ações e gestualidades de outras pessoas que também são determinadas como ser-corporificado-no-mundo.

Essas características fundamentais do corpo vivido integram uma noção paradigmática da corporeidade das pessoas. Apesar de não ter desenvolvido aqui um detalhamento de todos esses traços fundamentais, é manifesto que a partir dessa noção é possível descrever a experiência própria da enfermidade não apenas como uma disfunção do organismo, mas como uma ocorrência que atinge a identidade pessoal, conduzindo potencialmente a uma desintegração ou a um colapso do mundo próprio. O paradigma do corpo vivido é, portanto, um dos fundamentos da teoria fenomenológica da saúde e da enfermidade.

 

3) Fenomenologia da enfermidade

No marco do paradigma do corpo vivido, o fenômeno da enfermidade é descrito como uma ruptura na unidade do ser-no-mundo corporificado. As características determinantes do corpo vivido – ser-no-mundo corporificado, estrutura contextural, body-image, intencionalidade corporificada e display gestual – são todas afetadas na enfermidade. Evidentemente, nela também são igualmente modificadas a espacialidade e a temporalidade existenciais (Toombs, 1990). Em termos gerais, a enfermidade é experimentada como uma ruptura da unidade do corpo biológico-funcional e do corpo próprio. A corporeidade transparente, ausente, familiar e orientada para metas do agente é modificada, tornando-se aparente na enfermidade. Esse é o princípio da dys-appearence (Leder, 1990, p. 84), de acordo com a qual o corpo aparece como um foco temático num estado dys4, isto é, numa condição difícil, ruim, enferma. Na enfermidade, o corpo torna-se presente e manifesto, mas aparece em desordem disfuncional, quebrado. Não apenas o corpo torna-se presente em uma condição de desordem, mas também se manifesta como um foco exigente de atenção. Se na condição saudável a atenção estava posta nas orientações sintonizadas para as metas do agir cotidiano – ou para aquelas modificadas dos modos deficientes de estar-no-mundo –, com a enfermidade a atenção é presa ao corpo disfuncional.

Em relação a esse aspecto, na abordagem fenomenológica da enfermidade é desenvolvida uma cuidadosa descrição das modificações que experimenta o objeto da atenção corporal. No espectro que vai da ausência à presença do corpo vivido, são identificados níveis de objetificação que abrangem a reflexividade corporal, o tema examinado, o reconhecimento da funcionalidade e, no limite, o alheamento. O corpo vivido aparece, portanto, num diferencial fenomênico que pode chegar à experiência do corpo próprio como alheio e estranho. Desse modo, a fenomenologia do estranhamento cumpre um papel importante na teoria fenomenológica da enfermidade. O corpo é vivido como limitado, inescapável e incontornável; como a ser evitado, mas sempre implicado; como uma presença até então oculta, mas que se torna estranha. Trata-se de um corpo alheio, difícil, urgente, adversário, mas ainda próprio.

Além de uma descrição da enfermidade, alguns fenomenólogos arriscam um passo conceitual mais ambicioso: apresentar a essência da enfermidade. Naturalmente, para ser ontologicamente adequada, essa determinação essencial não pode ser compreendida em termos de propriedades de estado. Nesse sentido, a noção de atmosfera (Stimmung, sintonia) desempenha um papel decisivo. Em termos mais exatos, a interpretação ontológica do fenômeno empírico denotado pela noção de Stimmung, apresentada por Heidegger em Ser e tempo, fornece a base para uma determinação geral da enfermidade. Nessa interpretação, as atmosferas não são em primeiro lugar fenômenos afetivos ou mentais, mas designam uma vinculação já acontecida com uma totalidade significativa na qual cada pessoa está numa dependência avaliativa em relação aos entes intramundanos. Essa vinculação de dependência a um relevo avaliativo é, também, uma condição originária de todo comportamento intencional (Heidegger, 1986, pp. 134-133). Assim, a enfermidade mostra-se como uma atmosfera determinada que, como tal, desvela o desterro (Unheimlichkeit) originário da existência humana.

A enfermidade seria, portanto, uma Stimmung que evidenciaria de forma premente e persistente um a priori existencial que, na analítica existencial de Ser e tempo, era revelado pela atmosfera da angústia. O desterro, a Unheimlichkeit que se instala na enfermidade, permite que esta seja interpretada como uma peculiar atmosfera do acósmico. Estar enfermo é estar desterrado no mundo, vivenciado como uma experiência obstrusiva permanente ou recorrente, como uma ênfase no desterro que se insinua na angústia. Como uma Stimmung, a enfermidade também evidencia uma vinculação e uma dependência. Contudo, é a vinculação a uma opacidade, ao estranho. Diferentemente da angústia, em que o estranho é dado pelo sem fundamento das próprias possibilidades existenciais, na enfermidade trata-se do estranho que é a presença da vida na existência. O enfermo habita a terra estranha do corpo orgânico, revelando privativamente que a familiaridade do corpo vivido é permeada por um estranhamento diante do corpo biológico-funcional.

Na elaboração mais completa de um paradigma expandido (Toombs, 1987, pp. 220, 235), a abordagem fenomenologia apresenta, por fim, aquelas que seriam as características eidéticas da enfermidade. Essas características determinam a experiência vivida da enfermidade, independentemente de suas manifestações em estados doentios particulares. Todas elas são características de perda: perda do senso de totalidade; perda da certeza, do controle e da liberdade de ação; e perda da familiaridade com o mundo.5 O enfraquecimento corporal ou a dor promovem uma modificação na presença do corpo vivido, cuja transparência dá lugar a uma presença experimentada como impeditiva. Com isso, perde-se a unidade entre a identidade própria e o corpo, acarretando a perda da integridade do si mesmo próprio. A perda da segurança é a vivência da perda do senso de indestrutibilidade ou proteção pessoal, com a imposição do reconhecimento de uma vulnerabilidade que, mesmo com a recuperação, continua de algum modo presente. O desenvolvimento aleatório da enfermidade promove uma perda de controle que também se desdobra em um descrédito na segurança da ciência e da tecnologia médicas, A crença nelas se revela, portanto, ilusória.

Assim, a perda do controle representa um desgaste na capacidade de decisão racional. Na experiência da enfermidade, apresenta-se também a perda da liberdade de ação, seja pelas inibições promovidas pela enfermidade e pelo tratamento, seja pela falta de conhecimentos que orientariam a escolha de um melhor curso de ação. Essa escolha é delegada para médicos e equipes médicas, os quais, por sua vez, podem decidir sem levar em consideração o sistema de valores e convicções do paciente. Por fim, a perda da familiaridade com o mundo é evidente com a ruptura nas práticas cotidianas do enfermo, que ingressa em outras redes normativas de significação. Essa perda é acentuada com o reconhecimento da diferença entre a cotidianidade dos enfermos e a dos saudáveis. A modificação na temporalidade, na medida em que o futuro próprio é desabilitado em suas projeções medianas – tornando-se incerto, impotente ou inacessível –, promove um maior isolamento do enfermo. Com isso, o mundo familiar é perdido.

Essas características gerais perfazem a realidade da enfermidade vivida por aqueles que a sofrem. Dado que a reaquisição dessas perdas é sempre tênue, então, mesmo na hipótese de que aconteça a recuperação da saúde, evidencia-se que o processo de perda é irreversível. O senso de fragilidade na posse daquilo que então se perdeu instala-se de modo duradouro. Esse modo de apresentação da eventual recuperação das perdas é um indicador do estatuto fundamental das cinco perdas vivenciadas na enfermidade (Carel, 2008, 2015, p. 108).

As breves considerações precedentes são suficientes para tornar manifesta a contribuição da fenomenologia para a elaboração de uma teoria da saúde e da enfermidade. A constituição desse paradigma estendido não tem consequências apenas teóricas, mas, ao descrever a experiência vivida da enfermidade, contém derivações relevantes para a interação comunicativa entre médico e paciente, além de incidir nos problemas normativos sobre os objetivos da medicina e da boa prática clínica e terapêutica. Contudo, há um aspecto teórico específico que se tornou progressivamente mais evidente na elaboração da concepção fenomenológica da enfermidade. Trata-se da analogia entre o corpo enfermo e o utensílio quebrado. Esse ponto merece uma atenção mais demorada, já que pode revelar uma fragilidade conceitual com implicações críticas para a fenomenologia da enfermidade e da medicina.

 

4) A analogia: utensílio inapropriado e corporeidade enferma

Um tema exaustivamente analisado na literatura sobre a analítica existencial de Ser e tempo é a interpretação dos comportamentos de ocupação teleológico-funcional com utensílios. A consideração desse tipo de comportamento intencional possui um privilégio metodológico particular na tarefa de conceituar a estrutura do fenômeno do mundo. Nesse quadro temático, surge o problema fenomenológico da maneira de doação da mundaneidade do mundo. A solução oferecida consiste, inicialmente, em visualizar a característica de conformidade a mundo dos utensílios, entendidos como entes intramundanos. A pertinência a mundo dos utensílios da ocupação cotidiana oferece, pois, o campo de uma possível doação da mundaneidade. Contudo, também a pertinência a mundo precisa ser acessível em comportamentos intencionais.

Heidegger soluciona esse problema considerando uma classe especial de modificação nos comportamentos ocupacionais, ou seja, examinando a dinâmica interna nas ocupações que perturba o transcurso competente nas remissões normativas que identificam os utensílios. Trata-se de modificações na ocupação que descobrem os entes disponíveis como chamativos, importunos e impertinentes, precisamente porque são defeituosos (inapropriados), faltantes ou estorvantes numa ocupação determinada. Tais modificações constituem interrupções no fluxo hábil das ocupações e os correlatos objetuais dos comportamentos mostram-se como impeditivos e mandatórios de restauração, obtenção ou resolução. Na descrição dessa dinâmica de fenomenalização, cumpre um papel importante a mudança na percepção que guia as ocupações cotidianas. Quando não há perturbação, o ver circunspecto atravessa os utensílios e depõe-se nas metas visadas. Os utensílios são transparentes porque o foco da percepção orientadora está adiante, no fim almejado na ocupação. Com a perturbação, a percepção concentra-se no utensílio obstrutivo, que se torna opaco e concentra em si a atenção. Contudo, esses modos de apresentação dos utensílios possuem uma função: tornar manifesto e aparente no utensílio o seu próprio modo de ser como subsistente (Heidegger, 1986, p. 74). As modificações não tornam acessível apenas a inserção do utensílio a uma particular totalidade de remissões, como também a unidade de dois modos de ser em um mesmo ente: a subsistência de um ente que é disponibilidade.

Esse topos conhecido da analítica existencial foi reconhecido como promissor para uma fenomenologia da enfermidade (Svenaeus, 2000a, p. 136, n.10, 2000b, p. 109 n. 169). Inicialmente, o tópico foi explicitamente integrado, mas sem um desenvolvimento detalhado. Rawlinson (1982, p. 75) sustentou que, na enfermidade, o corpo, como um instrumento quebrado, apresenta-se com obstinação e urgência, implicando uma inabilidade ou obstrução da projeção em possibilidades. Também Leder (1990, pp. 19, 33 e 83-84) vale-se da interpretação heideggeriana da dinâmica de emergência e recuo dos modos de ser, que se manifesta nas modificações perturbadas da ocupação, para formular o princípio da dys-appearence. A inaparência do utensílio apropriado é uma extensão da inaparência do corpo saudável que, ao adoecer, sofre a mesma dinâmica de fronteamento que experimenta o utensílio quebrado. O corpo doente torna-se o centro da atenção focal, numa condição disfuncional, partilhando de todos os modos de indisponibilidade presentes no utensílio inadequado (Leder, 1990, p. 84). O corpo próprio aparece como apenas subsistente, de modo análogo ao utensílio cuja disponibilidade aparece ligada a sua pura subsistência.

A análise do utensílio quebrado fornece uma analogia importante e útil para a fenomenologia da enfermidade, como declara Toombs (1988, p. 225, n. 82, 1992b, p. 136, n. 7). Na experiência de alienação proporcionada pela enfermidade, anuncia-se como disfuncionalidade orgânica a instrumentalidade do corpo. O corpo machucado, por exemplo, aparece como um instrumento falho, um mecanismo em funcionamento inadequado. Assim como as perturbações na ocupação mostram estruturas intencionais normalmente implícitas, também a enfermidade é dotada dessa capacidade mostrativa. Desse modo, quando se evidenciam dificuldades para efetivar a visão, o olho mostra-se como algo para ver (Toombs, 1992b, p. 139). Como foi mencionado antes, a desunificação proporcionada pela enfermidade resulta na concentração da atenção num corpo próprio, mas vivenciado como estranho. Além disso, a ruptura no funcionamento adequado desvela o corpo como dotado de uma natureza similar à da máquina e permeado por processos físicos não experimentáveis nem controláveis pelo enfermo (Toombs 1992b, p. 91). Com a enfermidade e a ruptura da funcionalidade orgânica, é a própria instrumentalidade do corpo que se anuncia (Toombs, 1988, p. 216). Não é artificial observar que, nesse ponto, parece estar sugerido que a teoria fenomenológica da enfermidade poderia conter mais do que um procedimento apenas analógico.

O argumento por analogia foi recentemente ratificado. Havi Carel reconheceu explicitamente que o corpo vivido não é um utensílio, pois não pode ser reparado ou substituído (Carel, 2011, p. 40). Contudo, a analogia com a ruptura instrumental é considerada útil. A similaridade que a justifica reside na dinâmica de fronteamento ocorrida no utensílio e no corpo quando as ocupações cotidianas e saudáveis são interrompidas. O utensílio apropriado e o corpo saudável estão presentes na cotidianidade de modo transparente e não chamativo (Carel, 2015, pp. 119-120). Quando acontece alguma interrupção, ambos tornam-se conspícuos. Nota-se que a analogia é robusta porque os três modos de chamatividade, importunidade e impertinência também podem ser identificados no corpo enfermo. Logo, caso se tome o corpo objetivamente, então a analogia com o utensílio quebrado, faltante ou insistente também vale para o corpo. A mão paralisada, amputada ou desobediente em razão de um derrame, por exemplo, pode ser descrita como um instrumento disfuncional (Carel, 2015, p. 120). No entanto, aqui aparece uma diferença fundamental.

Considerado como corpo vivido, a disfunção não pode ser equiparada à disfunção utensiliar. A diferença reside no modo como é experimentada a disfunção. O colapso utensiliar não atinge a identidade própria, ao passo que a disfunção corporal situa-se na própria estrutura do ser-no-mundo. A mudança no corpo enfermo é fundacional porque atinge, de acordo com o paradigma do corpo vivido, a intencionalidade, a significatividade e o ser-no-mundo corporificados (Carel, 2015, p. 121). Contudo, apesar dessa diferença crucial, a analogia pode ser mantida porque a vivência da ruptura nas ocupações e da enfermidade – os colapsos utensiliar e corporal – tem uma valência fenomenológica na medida em que torna aparentes estruturas implícitas. No caso do utensílio, manifesta-se a conformidade a mundo e a uma normatividade relacional; no caso do corpo enfermo, aparece a constituição intimamente corporal do ser-no-mundo. Assim, a enfermidade representa um modo doloroso e violento de tornar presente a constituição corporal da existência (Carel, 2011, p. 40, 2015, p. 121). Apesar de o corpo não ser um utensílio, a analogia entre ruptura utensiliar e enfermidade ainda segue valendo (Carel, 2015, p. 122). Porém, um passo adicional ao da analogia já foi dado na teoria fenomenológica da enfermidade.

 

 

5) O corpo-utensílio e a enfermidade como atmosfera do corpo desterrado

Fredrik Svenaeus sustenta uma concepção mais forte acerca da relação entre os utensílios e o corpo vivido (Svenaeus, 2000a, pp. 106-113, 2000c, 128-130). Reconhecendo que Heidegger nunca examinou extensamente o corpo como um conjunto de utensílios, Svenaeus declara não haver argumento válido para restringir o conceito de utensílio, tal como elaborado em Ser e tempo, a coisas externas ao corpo humano (Svenaeus, 2000a, p 108, 2000c, p. 130). Ele também reconhece, obviamente, que as partes do corpo vivido não podem ser denominadas de utensílio sem uma ulterior qualificação. Por conseguinte, sua tese reza que os utensílios intramundanos e o corpo (e suas partes) são formas diferentes de utensílios (Svenaeus, 2000a, p 109, 2000c, p. 130). O problema consiste em descrever a propriedade que diferencia essas duas subclasses. A consequência trivial da sua posição é que há uma justificativa consistente para designar o corpo e suas partes como utensílio. A enfermidade, como sintonia do desterro, revelaria o corpo-utensílio (body-tool).

Uma cláusula fenomenológica que Svenaeus estabelece como condição para diferenciar as duas classes de utensílio determina a suspensão dos pares conceituais externo-interno e corpo-mente. Isso implica em recusar o critério diferenciador que identificaria na superfície corporal o limite empírico que correspondente à diferença entre as classes de utensílios. Ele recusa, portanto, a adequação fenomenológica de uma análise do conceito de corpo-utensílio que apresente como traço distintivo a pertinência a uma totalidade limitada pela superfície do corpo próprio. A diferença não está em que a caneta se situa para além da superfície da mão do usuário, por exemplo. A característica diferencial é dada a partir da condição de identificação de ambas (a mão e a caneta), ou seja, na diferente situação em que estão as partes do corpo e os utensílios não corporais. Quando acontece a ruptura na funcionalidade, as respectivas situações aparecem em uma sintonia ou atmosfera própria. Desse modo, quando uma parte do corpo deixa de funcionar adequadamente, surge a atmosfera da enfermidade; já quando um utensílio não corporal quebra, não surge a sintonia enferma. A diferença entre utensílio corporal e utensílio intramundano é que o primeiro pertence ao ser-no-mundo, à identidade pessoal e à transcendência, ao passo que o último situa-se na totalidade de significatividade remissional do mundo (Svenaeus, 2000a, p. 109, 2000c, p. 130).

Com essa análise, Svenaeus pretende estabelecer um argumento que legitima a consideração do corpo e de suas partes como um tipo de utensílio. Os utensílios corporais são aqueles que, ao se tornarem disfuncionais, atingem a identidade própria e a transcendência para mundo. Assim sendo, a ruptura na funcionalidade de um utensílio corporal ocasiona o ingresso na atmosfera da enfermidade. Uma decorrência dessa elucidação é que há uma considerável singularidade na determinação dos utensílios corporais, apesar de compatível com a diferenciação de níveis de enraizamento na identidade própria e no ser-no-mundo (Svenaeus, 2012). Contudo, uma consequência mais significativa em termos da ontologia da existência humana é a de que a corporeidade vivida integra a transcendência, do mesmo modo que outras estruturas existenciais.

Essa análise categorial ultrapassa uma interpretação por analogia, habilitando, entretanto, uma elucidação da noção de enfermidade em termos existenciais e ontológicos. Formulada com base na diferença fenomenológica entre utensílio intramundano e corporal, a noção de enfermidade descreve um colapso de extensão variável na estrutura utensiliar intrinsecamente relacionada à identidade própria, uma atmosfera de desterro (Unheimlichkeit) que vincula a uma falha na transcendência (Svenaeus, 2000a, pp. 111-112, 2000c, p. 131). Com a enfermidade, anuncia-se um aspecto da finitude intimamente relacionada com a corporeidade. O colapso no utensílio corporal promove uma experiência de desunificação entre o corpo físico-orgânico e o corpo vivido. Com isso, as vivências de alienação apresentam uma peculiar unidade entre a corporeidade, que é pessoal, e um corpo orgânico dotado de processos e legalidades próprias. Em suma, a enfermidade revela uma presença alheia e estranha na própria identidade corporal do ser-no-mundo: a natureza orgânica e física, que aparece de forma implacável na enfermidade (Zaner, 1981, pp. 48-55, Svenaeus, 2000a, pp. 111-112, 2000c, p. 131).

Com base nessa abordagem holístico-existencial da enfermidade, a teoria fenomenológica volta-se para o exame de casos particulares. Um campo especialmente importante neste contexto é o da relação médico-paciente, na medida em que o reconhecimento da dimensão fundacional da enfermidade implica que as práticas terapêuticas devem assumir compromissos adicionais aos que estão relacionados com as abordagens bioestatística (Boorse, 1975) e holística (Nordenfelt, 1987) da doença. Nesse ponto revela-se o sentido normativo da teoria fenomenológica da medicina, pois ela implica uma concepção sobre as metas da medicina e da boa prática terapêutica. Esse é um tópico que requer um exame detalhado a ser realizado em outra ocasião. Observe-se, porém, que o objetivo geral da medicina está relacionado com a restauração de um modo não desterrado de estar no mundo, propósito que, quando se considera casos crônicos, letais ou de incapacitação, adquire a forma de uma nova projeção, e não mais de uma restauração, de um ser-no-mundo não desterrado (Svenaeus, 2000a, p. 113, 2000b, p. 13-14, 2000c, p. 135).

 

6) Objeções à abordagem fenomenológica da medicina

Para completar essa breve revisão, é relevante destacar algumas das objeções que foram apresentadas à abordagem fenomenológica da medicina. Tania Gergel (2012) apresentou uma crítica global que se concentra em três elementos: a identificação de dificuldades fundamentais no rigor conceitual da fenomenologia médica; a redução a uma fenomenologia fraca, isto é, a abordagem fenomenológica se resumiria a um conjunto de ideias que servem como premissas para chegar a conclusões obtidas a partir de outras abordagens não fenomenológicas; e o questionamento do caráter supostamente radical da fenomenologia, que não representaria efetivamente uma ruptura substantiva com os problemas e as concepções de outras abordagens da medicina. A conclusão que se segue dessa crítica não é a recusa da fenomenologia, mas a admissão de um papel para a fenomenologia médica, na medida em que ela abdique de polêmicas sectárias, envolvendo-se mais rigorosamente com suas dificuldades conceituais e atuando de forma integrada com outras abordagens filosóficas da medicina.

A análise crítica de Gergel parte de uma apresentação da fenomenologia da medicina composta por quatro alegações básicas: 1) a fenomenologia oferece uma abordagem que permite compreender a enfermidade tal como é vivenciada em primeira pessoa pelos próprios pacientes; 2) na fenomenologia opera-se uma suspensão de noções pré-existentes, permitindo, a partir do recurso à experiência pré-teórica, uma melhor conceitualização da enfermidade; 3) a abordagem fenomenológica previne que o tratamento médico comprometa adicionalmente a integridade pessoal, que já é estruturalmente afetada pela enfermidade; e 4) a fenomenologia se opõe radicalmente a outras abordagens da medicina, com uma reconceitualização da saúde e da enfermidade que implica uma melhoria no tratamento médico.

Em relação à primeira alegação, a crítica consiste na fenomenologia que acaba por resumir-se a um conjunto de concepções já apresentadas em outras abordagens – humanistas e centradas no paciente – da medicina. Nesse caso, essas ideias ou não são realmente fenomenológicas ou a fenomenologia deixa de ter uma relevância exclusiva. De outro lado, considerada em termos mais fortes, a abordagem fenomenológica concentra-se na importância de considerar a perspectiva individual (o acesso privilegiado da perspectiva da primeira pessoa e a empatia para o entendimento correto da enfermidade e da relação terapêutica), mas não oferece uma discussão suficientemente rigorosa das dificuldades filosóficas envolvidas (por exemplo, o aparentemente inevitável solipsismo implicado no privilégio dado para a experiência vivida).

A respeito da segunda alegação, a dificuldade reside na possibilidade de realizar uma suspensão completa, problema esse reconhecido na própria tradição fenomenológica. Em outros termos, o apelo à experiência pré-teórica na perspectiva da primeira pessoa não pode deixar de considerar conceitos que se originam de uma instância exterior a essa perspectiva. O argumento é exemplificado indicando que a experiência de estranhamento e alteridade corporal, que a fenomenologia considera central na experiência da enfermidade, exige um conceito sobre a normalidade da condição saudável.

A crítica é praticamente idêntica em relação à terceira alegação, pois a explicação fenomenológica da perda da integridade pessoal vivida na enfermidade – caso possa ser significativamente comunicada – deve pressupor uma perspectiva externa à primeira pessoa, a partir da qual se busque as bases para conceber a continuidade da identidade própria.

Por fim, a quarta alegação é problemática porque a fenomenologia engaja-se em polêmicas aparentes, na medida em que partilha de várias concepções assumidas em abordagens não fenomenológicas. Por exemplo, o normativismo em teoria da saúde é uma posição amplamente reconhecida, de tal modo que não é correto falar em uma ortodoxia do modelo naturalista e cientificista da concepção biológico-funcional da doença. Da mesma maneira, a priorização da perspectiva do paciente e a evolução do modelo da medicina baseada em evidências, que dá lugar ao modelo da medicina sensível ao contexto, são concepções presentes em abordagens não fenomenológicas. Isso significa que, ao envolver-se em polêmicas com oposições artificiais, a fenomenologia deixa de examinar suas próprias dificuldades. Segue-se, ainda, que a fenomenologia médica deixa de reconhecer-se como uma posição situada numa rede mais ampla de abordagens interrelacionadas, compartilhando com posições não fenomenológicas ideias sobre temas relacionados com a subjetividade na medicina (Gergel, 2012, pp. 1104-1107).

Uma crítica mais contundente foi recentemente dirigida para a abordagem fenomenológica dos conceitos de saúde, doença e enfermidade (Sholl, 2015). São três objeções gerais, sendo que as duas primeiras referem-se a concepções básicas que formam o marco mais amplo da fenomenologia médica, e a terceira refere-se a quatro conceitos centrais da teoria fenomenológica da saúde e da enfermidade. O resultado global dessas críticas consiste em apontar uma severa limitação na contribuição da fenomenologia para os problemas filosóficos da teoria da medicina.

A primeira objeção atinge um aspecto crítico básico das abordagens fenomenológicas da medicina, que reside na recusa da perspectiva naturalista na teoria da saúde e da doença, isto é, na elaboração de um conceito de doença em termos biológico-funcionais. Identificando uma ambiguidade na crítica fenomenológica, que oscila entre uma noção metodológica e ontológica de naturalismo, o núcleo da objeção consiste em mostrar que a fenomenologia assume uma noção empobrecida de naturalismo. Com isso, não apenas acontece uma distorção no entendimento da posição naturalista, mas a fenomenologia termina por incorrer na falácia do homem de palha, resultando, por conseguinte, numa contribuição pouco clara e insuficiente para os problemas da filosofia da medicina (Sholl, 2015, pp. 397-400).

A segunda objeção também afeta aspectos basilares da abordagem fenomenológica. Inicialmente, a crítica aponta para uma suposição que não é esclarecida na elucidação fenomenológica da enfermidade, a saber, o apelo a uma noção de normalidade que é, em última instância, compartilhada pelo naturalismo. Na medida em que a enfermidade é entendida na fenomenologia como a ruptura da transparência habitual do corpo vivido, estaria presente aqui a suposição de que a condição de inaparência do corpo próprio seria a posição normal. Entretanto, essa noção aparentemente relaciona-se com um significado estatístico de senso comum acerca da normalidade. Essa suposição torna-se mais problemática, porém, quando a referência em primeira pessoa a essa vivência de normalidade (a inaparência do corpo próprio) é usada para inferir uma característica típica de tal experiência.

Nesse ponto, evidencia-se o alcance mais robusto da objeção, que atinge um traço aparentemente constitutivo da abordagem fenomenológica, a saber, a valência metodológica da experiência em primeira pessoa. Nesse sentido, se a fenomenologia pretende fazer uma descrição geral ou, mais ainda, uma explicação da enfermidade, então ela não poderá permanecer no âmbito limitado das experiências em primeira pessoa, mas terá de apelar a elementos externos, ou seja, àqueles mesmo que são integrados numa perspectiva naturalista (por exemplo, a consideração do âmbito bioestatístico e das normas). Uma implicação severa dessa objeção é que, sem uma suplementação a partir de uma abordagem em terceira pessoa, a contribuição fenomenológica para a elucidação do conceito de enfermidade resulta pouco clara ou vaga. Desse modo, ela pouco teria a contribuir sobre questões importantes na teoria da medicina, como, por exemplo, o erro no diagnóstico ou a medicalização excessiva (Sholl, 2015, pp. 401-403).

Já a terceira crítica consiste em quatro objeções à aceitação de algumas noções fundamentais da teoria fenomenologia da saúde e da enfermidade. O resultado dessas objeções mostra que a ampliação da abordagem naturalista centrada no fenômeno da enfermidade cria um novo conjunto de problemas críticos, o que, em última instância, põe em questão o papel da fenomenologia na filosofia da medicina. Inicialmente, a insistência em que não se tem, mas se é corpo, corre o risco de apagar a diferença entre ter uma enfermidade e ser um enfermo. Assim, a equiparação circunstancial entre ser uma pessoa e ser um enfermo pode terminar como uma redução. Em segundo lugar, a experiência de que, na enfermidade, o ser um corpo próprio revela-se como a vivência de um corpo estranho e alheio precisaria ser contextualizada. A fenomenologia talvez não encontre, na experiência da alienação corpórea surgida da enfermidade, a base para fazer alegações ontológicas sobre a enfermidade, mas, antes disso, o que ela efetivamente encontra é o resultado histórico de diferentes maneiras de pesar a enfermidade. Ironicamente, a fenomenologia não teria ido à coisa mesma da enfermidade, mas revelado sua própria imersão em um conjunto de pressuposições conceituais não analisadas (Sholl, 2015, p. 404).

A segunda objeção mira um dos pilares da abordagem fenomenológica, que consiste em atribuir um privilégio epistêmico para a perspectiva da primeira pessoa, cuja consequência é a concentração da análise no fenômeno da enfermidade. Sobre esse ponto, a crítica sustenta que o foco na enfermidade reduz significativamente o escopo da teoria fenomenológica. De um lado, ela se torna constitutivamente antropocêntrica, porque o privilégio da experiência em primeira pessoa é dependente de uma experiência humana, excluindo assim qualquer consideração sobre a saúde e a doença de organismos não humanos. De outro lado, essa redução do foco exclui o tratamento de importantes tópicos médicos, evidenciando uma significativa limitação da fenomenologia da medicina. Casos importantes como o dos problemas médicos que não são experimentados conscientemente – problemas esses que ocorrem durante o sono, no desenvolvimento fetal ou na infância (sem ainda a plena formação da memória e da experiência de si mesmo) –, a anosognosia etc. não podem ser teorizados desde a perspectiva fenomenológica, simplesmente porque não há acesso à correspondente experiência em primeira pessoa (Sholl, 2015, pp. 405-406).

Por fim, o foco na perspectiva da primeira pessoa pode implicar a própria dissolução da diferença entre saúde e enfermidade quando se torna admissível a aceitação de fenômenos como "saúde na enfermidade". Além dos problemas práticos que o colapso dessa distinção pode ocasionar, de um ponto de vista teórico o reconhecimento de algo como saúde na doença pode ofuscar um aspecto central na teoria da enfermidade, que é a distribuição de saúde e enfermidade num contínuo gradual que incorpora certos estágios com linhas difusas de diferenciação, mas que não elide a diferença qualitativa entre saúde e enfermidade (Sholl, 2015, pp. 406-404).

A simples consideração dessas objeções evidencia a necessidade de a abordagem fenomenológica enfrentar as críticas caso não possa sustentar-se de modo autônomo, além de também desempenhar um papel colaborativo com outras abordagens em filosofia da medicina. Evidentemente, não é o caso de ensaiar agora uma linha de resposta a essas críticas. Antes disso, concluirei apresentando uma crítica interna que se refere justamente à analogia entre o corpo enfermo e o utensílio quebrado.

7) O estranho da enfermidade: não utensílio quebrado, mas finitude corporal

Andrew Warsop (2011) examinou criticamente um elemento central na interpretação fenomenológica do estranhamento que se anuncia na enfermidade. De acordo com a interpretação de Toombs e Svenaeus, que tomam por base a análise do estranhamento corporal vivenciado na enfermidade (Zaner, 1981, pp. 47-66), na sintonia do desterro o corpo próprio aparece como um utensílio quebrado. A objeção não põe em questão a utilidade de, em certas circunstâncias, entender o corpo vivido como utensílio, até mesmo porque há situações em que o corpo é realmente encontrado como um utensílio. Também não se questiona que na enfermidade o corpo aparece como desterrado e estranho. A crítica nega a correção da interpretação segundo a qual, ao se tornar enfermo e vivenciado como estranho, o corpo revela-se como um utensílio quebrado. Ao contrário, no cerne do estranhamento assim vivenciado torna-se explícita a diferença entre a instrumentalidade do corpo e a dos utensílios. Em suma, não é o corpo-utensílio que se manifesta como quebrado na sintonia do desterro vivenciada na enfermidade, mas a determinação finita dos corpos existenciais, em cuja fragilidade anuncia-se a mortalidade (Warsop, 2011, p. 489).

A justificação da objeção não deixa de reconhecer que há situações em que o corpo vivido é encontrado como um utensílio e que, além disso, há situações terapêuticas em que é vantajoso concebê-lo assim (por exemplo, na ortopedia e na cirurgia plástica). No entanto, há dois pontos frágeis na interpretação do corpo-utensílio. Primeiro, há fortes evidencias textuais de que Heidegger distinguiu nitidamente o modo de ser dos órgãos e dos utensílios. Segundo, o exame detalhado do fenômeno do estranhamento manifesto na enfermidade mostra que não há sustentação fenomenológica para a interpretação de que nessa sintonia o corpo revela-se como utensílio quebrado. Em termos resumidos, o que se revela nessas ocasiões, e também em outras vivências corporais que não são as da doença (um pulso quebrado ou um nódulo saliente), é a privação de possibilidades existenciais.

Com base na análise da relação de prioridade das aptidões sobre os órgãos, feita por Heidegger (1983) na obra Conceitos fundamentais da metafísica, a interpretação mais adequada do estranhamento corporal na enfermidade põe em evidência que uma parte adoecida ou ferida do corpo próprio revela a pertinência a possibilidades existenciais que estão privadas de projeção. Nessa situação, surge a finitude das capacidades corporais, sendo o corpo vivenciado como estranho, porém não como utensílio quebrado, mas como um possível corpo sem vida. O estranho que surge na sintonia do desterro na enfermidade é relacionado com a determinação existencial da mortalidade de que é dotado o corpo vivido. Não o utensílio quebrado, mas o corpo sendo para a morte é o que se manifesta na sintonia da enfermidade, algo que sempre se soube, mas do que se evade para o refúgio na crença de que o corpo é um utensílio vivo (Warsop, 2011, pp. 490 e 493-494).

Uma conclusão derivada dessa crítica evidencia que uma interpretação fenomenológica da enfermidade, caso seja ontologicamente adequada, precisa assumir a complexidade metodológica implicada pelo pluralismo ontológico, advogado por Heidegger, que sustenta uma diferença estrutural entre o modo de ser dos utensílios, dos organismos e da existência. Considerando a revisão e as críticas internas e externas da abordagem fenomenológica da medicina resumidamente apresentadas neste artigo, torna-se patente que o desenvolvimento da fenomenologia médica necessita tanto de uma mais detalhada clarificação conceitual quanto de uma ampliação no foco dos fenômenos em consideração. Na situação hermenêutica atual, esse desenvolvimento não pode ser realizado sem a cooperação com outras abordagens não fenomenológicas da medicina e, especialmente, sem a interação construtiva com as investigações não filosóficas dos fenômenos da saúde, da enfermidade e da doença.

 

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Endereço para correspondência

Róbson Ramos dos Reis
E-mail: robsonramosdosreis@gmail.com

 

 

* Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
1 Este trabalho recebeu o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
2 Ver Boorse, 1975; Wieland, 1975; Munson, 1981; Svenaeus, 2000a, pp. 51-57; Sackett, Rosenberg, Gray, Haynes, & Richardson, 1996; e Greenhalgh & Worrall, 1997.
3 O resumo a seguir segue a apresentação feita por Toombs, 1988, pp. 202-207.
4 O prefixo grego é usado intencionalmente por Leter.
5 A exposição que se segue é um resumo da descrição detalhada oferecida por Toombs, 1987, pp. 228-235 e Carel, 2008, 2015, pp. 106-109.

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