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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.18 no.2 São Paulo dez. 2016

 

DOSSIÊ

 

Freud e o programa científico kantiano

 

Freud and Kant's scientific program

 

 

Francisco Verardi Bocca*

Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Executando uma tarefa da assim chamada filosofia da psicanálise, neste artigo investigamos o que se pode chamar de estatuto epistemológico da metapsicologia de Freud. O fazemos tomando como referente a distinção kantiana entre ciência genuína e não genuína, além de sua consideração acerca das possibilidades de construção da psicologia enquanto ciência empírica. O resultado consistiu na identificação do ponto de vista dinâmico, adotado por Freud, como um procedimento de ordem convencional e heurística, especialmente quanto à noção de força psíquica presente em seu conceito de Trieb – fato esse que permitiu compreender a psicologia profunda de Freud como um produto bem-sucedido do programa científico kantiano.

Palavras-chave: Freud; Kant; psicologia profunda; ficção heurística; força.


ABSTRACT

Performing a task of the so-called philosophy of psychoanalysis, in this article we investigate what might be called the epistemological statute of metapsychology by Freud. It is done by taking as reference Kant's distinction between genuine and non-genuine science, as well as his consideration on the possibilities of constructing psychology as an empirical science. The result consisted in identifying the dynamic point of view, adopted by Freud, as a procedure of conventional and heuristic order, especially the notion of psychic force present in his concept of Trieb. This made it possible to understand Freud's depth psychology as a successful product of Kant's scientific program.

Keywords: Freud; Kant; depth psychology; heuristic fiction; force.


 

 

1) Introdução

Ao prefaciar, em 1917, o ciclo intitulado Conferências introdutórias sobre psicanálise, Freud desculpou-se justamente por não ter conseguido apresentar a seus ouvintes algo que compartilhasse da "serenidade de um tratado científico" (Freud, 1916-1917/1969a, p. 19). Mais tarde (1930), em novo prefácio à tradução hebraica fez referência às mesmas conferências como tendo sido em sua origem "uma jovem ciência naquela época" (Freud, 1916-1917/1969a, p. 21), provavelmente querendo dizer que as conferências eram incompletas com relação às descobertas ou novidades dos anos posteriores, como a nova teoria dos instintos (1920), a segunda tópica (1923), entre outras, todas presentes nas Novas conferências introdutórias sobre psicanálise (1933). Desse modo, podemos considerar o primeiro ciclo de conferências como o verdadeiramente introdutório, e o segundo como o de maturidade e consolidação de sua teoria.

Apresentadas a um público que considerou leigo por não ser constituído de médicos, as conferências consistiram, como disse Strachey, de um verdadeiro "inventário das conceituações de Freud e da posição da psicanálise na época da primeira guerra" (Freud, 1916-1917/1969a, p. 16). Assim, ainda que tratada como uma ciência jovem, incompleta e a meio caminho, Freud apresentou seu estatuto científico. Esse fato merece nossa atenção, especialmente por esse ciclo ter ocorrido poucos dias após a conclusão dos chamados artigos metapsicológicos.

É verdade que a indicação do estatuto científico da psicanálise, e também de seu método, aparece esparsamente por toda parte ao longo das conferências, mas uma delas merece nossa atenção, a que expôs logo na abertura da "Conferência XVI", na qual se propôs a confrontar a psicanálise com a psiquiatria. Estrategicamente, Freud confessou pretender evitar o dogmatismo, não suscitando convicções no público, mas estimulando reflexões e derrubando preconceitos. Declarou que recusava ao conjunto dos conceitos psicanalíticos a condição de "um sistema especulativo" (Freud, 1917/1969, p. 252). Continuou dizendo que, ao contrário, trata-se de um sistema "empírico" (Freud, 1917/1969, p. 252), constituído como expressão direta de observações exaustivas. Como se vê, trata-se de uma declaração que revela a origem de sua teorização, advertindo contra uma possível e esperada acusação de subjetividade1 nas investigações de seu objeto de estudo, as comunicações de seus pacientes neuróticos. Fato que não o impediu de reconhecer sem hesitação ter modificado suas opiniões em pontos importantes de sua teoria, substituindo-as por outras, de modo a indicar que não dispensava o procedimento da revisão da teoria toda vez que os progressos experimentais assim exigiam.

Ora, é justamente sua declaração do caráter especulativo de sua ciência (embora revisável) que pretendemos problematizar, e o faremos confrontando-a com outras questões adjacentes apresentadas em textos contemporâneos e, em especial, com alguns do segundo ciclo de conferências.

Comecemos considerando que o caráter revisável de suas hipóteses parece realmente corresponder a mudanças na descrição e organização das relações entre fenômenos observados. Em outras palavras, o que Freud chamou de hipóteses (revisáveis) teriam suas origens na observação acurada dos fenômenos psíquicos, e seriam expressões de fenômenos generalizados, oriundas de uma somatória de efeitos. Ainda, resultariam como resumos de fenômenos particulares derivados de um procedimento empírico de observação, descrição, comparação e classificação. Seriam, por fim, resultados, por exemplo, como classes de instintos, que depois podem, e de fato foram, revisados. Contudo, interrogamos se de fato essa labilidade se aplica igualmente a seu postulado fundamental, a saber, o princípio ou ponto de vista dinâmico.

Assim, o que nos motiva a avançar contrariando sua declaração sobre a origem puramente observacional (empírica) de seus conceitos e hipóteses é justamente o fato de que seu procedimento teórico, como pretendemos demonstrar, consistiu na organização dos fatos psíquicos observáveis (o relato de seus pacientes, por exemplo) a partir de princípios tão "ocultos" quanto a força gravitacional de Newton. Assim, embora na obra anteriormente indicada ele tenha negado, entendemos que Freud operou de fato no nível especulativo, segundo instruções do projeto científico kantiano, como veremos. Contudo, para isso, faz-se necessário, como bem indicou Fulgêncio (2006), compreender antes o lugar da psicologia no sistema de Kant.

 

2) Psicologia empírica e o Grundbegriff da psicanálise

Em algumas oportunidades, Freud reconheceu seu apreço (além da influência) a Kant. De modo que a presença de sua filosofia, bem como das diretrizes de seu programa científico, pode ser identificada, por exemplo, na explícita consideração do inconsciente como coisa em si. Consideração que, à sua maneira, deslocou para o interior o que para Kant era próprio do exterior. Vejamos:

A suposição psicanalítica a respeito da atividade mental inconsciente nos aparece [...] como uma extensão das correções efetuadas por Kant em nossos conceitos sobre percepção externa. Assim como Kant nos advertiu para não desprezarmos o fato de que as nossas percepções estão subjetivamente condicionadas, não devendo ser consideradas como idênticas ao que, embora incognoscível, é percebido, assim também a psicanálise nos adverte para não estabelecermos uma equivalência entre as percepções adquiridas por meio da consciência e os processos mentais inconscientes que constituem seu objeto. Assim como o físico, o psíquico, na realidade, não é necessariamente o que nos parece ser. Teremos satisfação em saber, contudo, que a correção da percepção interna não oferecerá dificuldades tão grandes como a correção da percepção externa que os objetos internos são menos incognoscíveis do que o mundo externo. (Freud, 1915/1969b, p. 176)

Partimos dessa citação para nos prevenirmos da acusação de que a referência a Kant teria sido por parte de Freud apenas episódica. Entendemos que, conferindo tal estatuto ao inconsciente, Freud expôs mais um aspecto de sua adesão ao programa kantiano de uma psicologia enquanto ciência empírica natural. Desde já reconhecemos que, longe de apresentar qualquer ineditismo de nossa parte, levamos em conta os argumentos de Fulgêncio2 quanto ao fato de que Freud se valeu em suas pesquisas de princípios racionais como guias para a descrição, observação e sistematização de fenômenos psíquicos visando a formulação de modelos descritivos de suas relações.

Para a justificativa do que dissemos até aqui, cremos ser necessário, de início, a exposição, ao menos em linhas gerais, do referido programa kantiano para as ciências da natureza, especialmente a parte que consiste na pesquisa empírica dos objetos dados ao sentido interno, a psicologia. Após essa exposição, e supondo-a suficiente, apresentaremos os argumentos de Freud que nos permitirão corroborar a tese de Fulgêncio que estamos considerando, a saber: a de que Freud teria dado à sua psicologia profunda "o lugar previsto por Kant" (Fulgêncio, 2006, p. 116).

Já no prefácio da obra Princípios metafísicos da ciência da natureza (1786/1990), Kant apresentou, relativamente à ciência da natureza, o que seria seu sentido genuíno e outro não genuíno. Definiu que a primeira modalidade deve fornecer certezas racionais e apodíticas e, por isso mesmo, dadas a priori. A segunda, por sua vez, deve fornecer apenas certezas empíricas obtidas da observação e da descrição dos fenômenos e formulações de leis empíricas derivadas da generalização da observação. Ora, nesses termos, uma ciência em seu sentido pleno deveria ser constituída em ambos os sentidos. Contudo, diferentemente da física, restaria à psicologia, que se ocupa da natureza pensante do homem e que toma por seus objetos representações provenientes do mundo interno, a condição de uma ciência, apenas empírica e, portanto, não genuína.

Retomando os argumentos, Kant reconheceu que caberia à filosofia pura estabelecer o conjunto de conceitos e princípios a priori que serviriam de fundamento e guia para o conhecimento dos objetos ou fenômenos dados aos dois sentidos – resultando daí uma física pura e, quem sabe, uma psicologia pura. Na verdade, se para Kant há uma física racional e genuína (estabeleceu seus princípios nos quatro capítulos da obra de 1786), que serve de suporte para a física empírica, o mesmo não ocorre com a psicologia. Sabem seus leitores que Kant não realizou esse trabalho em relação à psicologia e, assim, deixou a psicologia empírica sem princípios metafísicos para o desenvolvimento de sua pesquisa, sem dispor de um conjunto de conceitos e princípios a priori que serviriam de fundamento e guia para o conhecimento de objetos dos sentidos internos. Portanto, isso ficou como uma tarefa a ser realizada.

Ademais, há ainda, como indicou no mesmo prefácio, dificuldades para que a psicologia se constitua como uma ciência empírica. O problema para sua constituição decorreria do que chamou de dificuldades e limites. Ora, enquanto ciência empírica, operaria uma organização e sistematização dos objetos dados aos sentidos internos em termos de leis empíricas obtidas por meio da observação e da experiência generalizadas destes. Conquanto seja auxiliada pelo uso de conceitos auxiliares de natureza especulativa, isso quer dizer não empíricos. No entanto, se a impossibilidade de uma psicologia genuína ou racional ocorre, disse Kant, "porque a matemática não é aplicável aos fenômenos do sentido interno" (Kant, 1786/1990, p. 17) e às suas leis, por sua vez, a dificuldade da psicologia enquanto ciência empírica ocorre pela possibilidade de intervenção voluntária do observador no resultado da observação, sempre temida por Freud, pois o experimento pode transformar o objeto. Fatores que, ao impedirem a construção de uma ciência experimental da alma, fariam com que restasse, e em última instância, uma descrição histórica dos dados dos sentidos internos.

No entanto, para Fulgêncio:

Seria possível que a psicologia fosse constituída como uma ciência natural não genuína, não como uma doutrina transcendental da alma, mas (ainda que haja dificuldades no que se refere à possibilidade de descrever seus objetos e certas impossibilidades para fazer experimentos) como uma teoria empírica que descreve uma história natural da alma no seu sentido empírico, relatando os acontecimentos uns após os outros, ordenando-os e sistematizando-os, chegando, nesse sentido, a formular leis empíricas obtidas pela generalização dos fenômenos assim observados e descritos. (Fulgêncio, 2006, p. 112)

Recuperaria sua dignidade observando e formulando leis empíricas relativas a um eu igualmente empírico. Portanto, tal ciência não estudaria a alma ou a consciência transcendental, mas somente os objetos dados ao sentido interno, ou seja, a consciência empírica submetida às leis da natureza. Desse modo, o psiquismo pode ser objetificável investigando-o na condição de mero efeito do jogo de suas representações, vale dizer, do ponto de vista de sua determinação natural.

Adicionalmente, a natureza básica desse procedimento que aplica sobre seus objetos o ponto de vista dinâmico é ser heurística, tomado como guia da pesquisa empírica e, em consequência, da resolução de problemas empíricos. O ponto de vista dinâmico, além do mecânico, foi apresentado nos segundo e terceiro capítulos da obra de 1786. Esse ponto de vista admite duas forças, atração e repulsão, operando entre os corpos, sendo, como disse Kant, o "mais adequado e favorável" (Kant, 1786/1990, p. 83) em vista dos resultados esperados da observação. O conceito de força, como concebido, carece de conteúdo intuitivo e é, portanto, metafísico: ele consiste em algo que não pode ser conhecido objetivamente por tratar-se de um conceito puro da razão e cuja função é ser auxiliar na pesquisa empírica, servindo de regra na elaboração da experiência pelo entendimento. Não se encontrando no mundo fenomenal, é especulativo.

Para compreendê-lo melhor, consideremos para a produção da pesquisa empírica a obra Crítica da razão pura (1781/1983), na qual Kant definiu os conceitos puros da razão (inclusive o de força) como ficções heurísticas. Estes foram definidos como entes da razão, cuja possibilidade não é demonstrável empiricamente. No entanto, por serem especulativos a priori, tornam possível pensar, por exemplo, a totalidade absoluta, a causalidade absoluta etc. De modo que, é a partir deles que o cientista pode levar adiante a construção de uma explicação dos fenômenos e de suas relações de determinação recíprocas, alcançando a formulação de leis empíricas e, por meio delas, resolver problemas empíricos.

Esse procedimento visa construir uma explicação acerca de certos fenômenos na natureza, buscando, por exemplo, sua causa fundamental, o que só é possível estabelecendo (na verdade, postulando) uma causa originária, cuja condição é ser incondicionada e que passa a funcionar como causa fundamental da ordem de fenômenos que a sucedem. Essa causa fundamental, disse Kant, consiste na "ideia de uma força fundamental" (Kant, 1781/1983, p. 322) da qual muitas outras podem ser expressões e "uma multiplicidade pode ser derivada" (Kant, 1781/1983, p. 323). Nesses termos, outra coisa não é senão um ente de razão. Sua postulação é, ela própria, uma iniciativa da razão, não tendo origem na experiência e, por isso mesmo, oferecendo a possibilidade de compreensão da totalidade das condições dos fenômenos.

Dessa forma, apesar das dificuldades que apontou para a construção da psicologia enquanto ciência racional e empírica, justificadas por Fulgêncio, consideramos que ela pode ser construída em termos de certos aspectos transcendentais, já que seus objetos deverão ser levados em conta com recurso às mesmas categorias do entendimento de outras ciências, como a física, por exemplo, cujos objetos são dados aos sentidos externos.

A partir daqui, sentimo-nos autorizados a relacionar, como prometido, o projeto científico de Kant ao de Freud no que tange à construção de seu ponto de vista dinâmico e sua consideração pela força, expressa na noção de Trieb. Com esse propósito, investigaremos a partir desse conceito, bem como de outros mais gerais, a possibilidade de adesão de Freud ao quadro kantiano na constituição do que chamou sua psicologia profunda, cuja natureza reputamos especulativa. Esperamos dar-lhe consistência com a análise das seguintes obras que julgamos adequadas e suficientes. São elas: Algumas lições elementares de psicanálise (1938/1969), Algumas lições elementares de psicanálise (1915/1969b), O inconsciente (1915/1969a), "Conferência XXXII" (1933/1969a) e "Conferência XXXV" (1933/1969b). Tudo em acréscimo e continuidade às conferências já apresentadas.

Em outubro de 1938, na cidade de Londres e já às voltas com a morte, Freud redigiu um manuscrito intitulado Algumas lições elementares de psicanálise. Como sabemos, um texto para tornar público ou esclarecer alguns conceitos-chave de sua obra, como o de ciência e de psiquismo, entre outros. Para isso, contextualizou a psicanálise como "uma parte da ciência mental da psicologia" (Freud, 1938/1969, p. 302) ou, ainda, como psicologia profunda, o que já lançava indicadores ou pistas sobre a difícil tarefa de esclarecer a natureza ou essência do psiquismo, algo que reconheceu ser acessível apenas por aproximação. Contudo, justificou e estendeu essa dificuldade como própria de toda ciência. Citou como exemplo a física, quando às voltas com a explicação da natureza ou essência da eletricidade. Assim como ela, o psiquismo só pode ser explicado pela enumeração de seus constituintes, como ideias, desejos, memórias etc. Dessa forma, equiparou, nesse aspecto, os procedimentos de investigação de ambas as ciências e, quem sabe, suas práticas investigativas.

Por conta disso, Freud afirmou que "também a psicologia é uma ciência natural. O que mais pode ser?"3 (Freud, 1938/1969, p. 302). O leitor de Freud se recorda de que isso se deu em meio à tentativa de mais uma vez desfazer a identificação corrente e popular entre psíquico e consciência como sua essência. Para ele, nada mais distante e equivocado em relação à compreensão da natureza desse objeto. Continuou: "o psíquico, seja qual for sua natureza, é em si mesmo inconsciente e provavelmente semelhante em espécie (em condições) a todos os outros processos naturais de que obtivemos conhecimento" (Freud, 1938/1969, p. 303). Com isso, em definitivo situou todas as ciências em condições semelhantes de busca incessante e aproximativa de seus resultados, o que só poderia ser feito, de início, de um ponto de vista empírico (mas não só, veremos adiante), histórico e a posteriori, a partir da observação, classificação dos fenômenos e generalização das relações determinadas de seus objetos. Nessa obra, ainda exemplificou seus esforços e seu ponto de vista fazendo referência à obra Psicopatologia da vida cotidiana (1901), na qual ampliou em demasia o campo do que chamou de psíquico pela multiplicação de seus efeitos. Considerando seus objetos como dados ao sentido interno, estamos diante de uma pretensa psicologia empírica.

Isto posto, nos dediquemos agora aos dois textos de metapsicologia que anunciamos anteriormente. A partir deles, destacaremos a tentativa de Freud de explicitar a natureza do que chamou de instinto (Trieb) como conceito norteador4 de sua pesquisa empírica, confiando nos frutos e resultados que, por seu meio, poderia obter. Também reconhecemos nessas obras o esforço e a tentativa de atribuir-lhe importância fundamental, construindo-o e iluminando-o na obscuridade que, como disse, sempre o cercou. Partindo do ponto de vista dinâmico5 e de sua consideração a partir da noção de força, seu desafio foi, portanto, o de definir seus modos de funcionamento e fundamentalmente de expressão na vida psíquica.

Em nenhuma outra oportunidade, como em Os instintos e suas vicissitudes, Freud foi tão explícito quanto ao seu ideal científico. Iniciou sua apresentação recorrendo a uma concepção corrente – portanto, sem nomear autoridades – segundo a qual uma ciência, qualquer que seja, necessita estar assentada em conceitos básicos, claros e bem definidos, o que evidentemente não correspondia à condição inicial de sua ciência e, por extensão, de nenhuma outra na mesma fase. Nesta, sua atividade consistia na estruturação, na "descrição dos fenômenos, passando então a seu agrupamento, sua classificação e sua correlação" (1915/1969a, p. 123). O fato é que para essa organização inicial do material não se pode esquivar ou evitar certa "projeção" de ideias não extraídas, mas concebidas alhures e aplicadas sobre o material observado, de modo a organizá-lo.

No entanto, Freud admitiu nessa condição um certo grau de indefinição que deve ser tolerado, embora sempre tendo em vista sua superação. Para melhor compreender as nuances com que tratou essa questão, lembremos da Conferência XXXV, em que declarou, de maneira estranhamente dogmática, que, quanto ao trabalho do cientista, "seu esforço deve ser no sentido de chegar à correspondência com a realidade, ou seja, com aquilo que existe fora de nós e independentemente de nós (...). A essa correspondência com o mundo externo real chamamos de verdade" (Freud, 1932b, p. 166).

Qualificamos essa afirmação de estranhamente dogmática, mas a reconhecemos, de fato, apenas como aparentemente contraditória. Isso porque um tal critério de demarcação da meta de uma ciência, quando refletido em toda sua extensão e radicalidade, parece comportar a tarefa de mostrar aos cientistas, no período em que não a atingem, que seus conceitos são sempre projeções, e sua pretensa objetividade, uma ilusão. Eles teriam, dessa forma, a oportunidade de se convencerem de que suas elaborações conceituais não foram (e talvez jamais serão) imparcialmente abstraídas dos fenômenos observados, mas orientadas por entes de razão, o que denuncia o próprio limite da experiência possível. Eles teriam a oportunidade de concluir que, nesse estágio, e talvez para sempre, toda elaboração conceitual só pode ser orientada por uma convenção norteadora e ser provisória em seus resultados, o que equivale dizer que é assintótica em relação à verdade.

Se estamos certos, isso implica reconhecer que a pesquisa de Freud parte da adoção de um ponto de vista dinâmico (e sua ideia de força) como guia na observação das relações entre os fenômenos observados, sem lhe conferir estatuto maior do que o de convencional. Certamente porque o próprio conceito heurístico é em si indeterminado (definidos por Kant como ideias necessárias da razão e, portanto, auxiliares no processo de pesquisa e resolução de problemas empíricos). Na verdade, funciona como causa originária que, sem ser explicada, explica as demais, ou seja, é a partir dela que relações causais podem ser explicitadas. Nesse caso, repitamos, a ideia de força corresponde a um ente de razão que, não derivando de uma experiência sensível, não é, portanto, uma entidade fenomênica, sendo esse seu modo de proporcionar a obtenção de conceitos empíricos relativos às suas manifestações na vida psíquica de cada homem. Segundo Kant, como nos explica Fulgêncio (2006), apenas por uma operação de analogia, portanto de forma indireta, pode tornar-se aplicável ao mundo fenomênico, possibilitando a elaboração de conceitos a posteriori. Sobre algo dessa ordem, o que nos sugere mais uma vez a filiação de Freud ao programa científico kantiano, Freud declarou que, na pesquisa científica, partimos de noções que "parecemos sentir antes de podermos reconhecê-las e determiná-las claramente" (Freud, 1915/1969a, p. 123).

Dessa forma, Freud sustentou que o conhecimento, no limite de sua arbitrariedade convencional, tem sua condição de possibilidade numa determinada relação significativa do conceito com seu material empírico, como se dissesse, à maneira kantiana, que o entendimento produz conceitos quando se aplica sobre o material da sensibilidade, de modo que o conhecimento depende da conjugação necessária e eficiente entre conceitos e intuições. Um conceito deve encontrar-se dentre os fenômenos de relações correspondentes ou será ilusão, será conceito vazio. Queremos dizer que, se a pesquisa empírica pode oferecer certezas empíricas, o faz na medida em que produz sistematização e conceitualização dos dados da intuição, trabalho auxiliado pelo uso das ficções heurísticas. Desse modo, a formulação de leis empíricas decorre do apoio de conceitos auxiliares especulativos, como o de instinto (Trieb), que permitiu a Freud produzir conceitos empíricos pela observação dos conflitos do eu e da sexualidade nas psiconeuroses. Assim, entendemos que foi em harmonia com o projeto kantiano de ciência que Freud viabilizou sua psicologia profunda.

Para avançarmos com segurança nessas questões, retomemos a análise dos argumentos de Freud. Vimos que, para ele, a ultrapassagem do momento que vai da especulação à verdade se dá "só depois de uma investigação mais completa do campo de observação, [quando] somos capazes de formular seus conceitos científicos básicos com exatidão progressivamente maior, modificando-os de forma a se tornarem úteis e coerentes numa vasta área" (Freud, 1915/1969a, p. 123). Em favor desse argumento, na Conferência XXXV, Freud identificou o trabalho do cientista ao do analista, reconhecendo que ambos operam a partir de suas próprias esperanças (especulações), embora delas se distanciem progressivamente. Descreveu assim:

Mediante a observação, ora num ponto, ora noutro, encontramos alguma coisa nova, mas no início as peças não se completam. Fazemos conjecturas, formulamos hipóteses, as quais retiramos quando não se confirmam, necessitamos de muita paciência e vivacidade em qualquer eventualidade, renunciamos às convicções precoces, de modo a não sermos levados a negligenciar fatores inesperados, e, ao final, todo o nosso dispêndio de esforços é recompensado, os achados dispersos se encaixam mutuamente. (Freud, 1933b/1969, p. 169)

A ciência não poderia ser considerada uma mera sucessão de erros e correções, mas tampouco toleraria qualquer tipo de rigidez, até mesmo quando é chegado o momento de oferecer (ou confinar, como disse) definições. Feita a introdução, Freud pode finalmente apresentar suas armas, isto é, sua metapsicologia. Para ele, o conceito de instinto corresponde, no interior da sua psicologia profunda, ao conceito básico fundamental6. Este, em todos os tempos e fases de sua teorização, foi considerado um conceito obscuro (sem conteúdo intuitivo), embora indispensável para o avanço de sua ciência, já que, por meio dele (ou a partir dele), erigiu modelos explicativos de processos, especialmente sob a forma de tópicas psíquicas.

Ainda sobre o conceito de instinto, sabe o leitor de Freud que sempre esteve envolto, até por tudo o que ele mesmo declarou, em indeterminações. Em diferentes ocasiões, definiu-o como da ordem de uma fronteira, isto é, da ordem de uma posição fronteiriça e limítrofe relativamente à relação aporética do corpo com a alma, ou ainda, do somático com o psíquico, ou, para manter fidelidade aos seus termos, dos estímulos somáticos endógenos com seus representantes ideacionais. Ora, por tudo o que foi dito, somos levados a reconhecer que sua condição de conceito fronteiriço ou limítrofe acabou por apontar igualmente seu limite enquanto conceito ou, segundo entendemos, seu próprio estatuto ficcional. Fato que reiterou mais tarde, na Conferência XXXII, ao reconhecer que sua teoria dos instintos outra coisa não era do que uma mitologia. Adiante retomaremos essa definição.

Freud avançou na definição de instinto atribuindo-lhe "conteúdo", por exemplo, do ponto de vista fisiológico. Descreveu-o como um estímulo que atua sobre o psiquismo, mas de dentro do próprio organismo, captado pelo sentido interno, diferenciando-o dos que atuam a partir de seu exterior e são captados a partir dos órgãos dos sentidos externos. Por tal distinção, reconheceu que recebe do aparelho psíquico tratamento específico visando sua remoção. Por sua natureza endógena, atua não como impacto momentâneo, mas constante, por isso não pode ser negligenciado, já que corresponde a uma necessidade. Sendo assim, só pode ser eliminado por meio de sua satisfação, ou seja, por meio de uma alteração adequada de sua fonte, o que exige um objeto.

A mecânica de forças descrita demandou uma explicitação de seus detalhes. Para isso, seguiu apresentando seus termos como pressão, finalidade, objeto e fonte (Freud, 1915/1969a). Destes, fez-nos entender que o primeiro seria sua essência, já que responsável pela estimulação (causação?) do trabalho psíquico. Já sua finalidade, como dito anteriormente, corresponde à sua satisfação pela eliminação, para a qual conta com a atividade motora e psíquica. Para tanto nos valemos de um objeto ao qual não está naturalmente ligado e, por isso, apresenta-se variável. Por fim, sua fonte foi localizada num órgão do corpo, de onde parte como estímulo, como impulso que é representado na esfera psíquica.

Os instintos em sua multiplicidade, segundo "expressões diversas de uma mesma força" (Kant, 1781/1983, p. 322), foram na época (1915) classificados segundo dois grupos distintos, os do ego (autopreservativos) e os sexuais, sempre exercendo algum tipo de relação de determinação recíproca. Tal classificação foi admitida por Freud, e aqui reconhecemos mais um aspecto do que chamou de convencional como "hipótese de trabalho, a ser conservada enquanto se mostrar útil, e pouca diferença fará aos resultados do nosso trabalho de descrição e classificação se for substituída por outra" (Freud, 1915/1969a, p. 129). Declarou ainda que a natureza dual do instinto teria sido postulada da observação atenta de psiconeuroses que expuseram a presença (ou permitiram a postulação) de um conflito entre demandas do ego e da sexualidade.

Ainda mantendo coerência entre hipóteses e métodos, Freud declarou que, sempre recorrendo à noção de força como norteadora, o estudo futuro exaustivo de outras afecções neuróticas certamente deverá suscitar uma revisão, o que de fato ocorreu em 1920, com o reconhecimento de novo conflito e na reclassificação dos instintos básicos contendores e, em 1923, com a segunda tópica. De modo que, até aquele momento, tal ordem de fenômenos observados podia ser explicada a partir de um fato geral, a saber, o conflito entre os interesses do indivíduo e os da espécie. A história da psicanálise nos mostra que, uma vez alterada a base dos fenômenos observados, foi também alterada sua caracterização, mas não seu ponto de vista dinâmico-energético.

Atingido esse nível em nossa argumentação, julgamos necessário visitar a obra que, sob o ponto de vista que nos interessa, corresponde ao ponto culminante de seus escritos teóricos, a saber, o de abril de 1915, que recebeu o nome de O inconsciente. Neste, valendo-se do princípio dinâmico, sustentou a "realidade" de processos psíquicos inconscientes, fundamentais para descrever e mesmo explicar os fenômenos que observara como desdobramentos e manifestações do fundamento instintivo da vida humana.

A hipótese de um processo psíquico inconsciente tem uma história bastante longa, complexa e nuançada. Exemplarmente apresentado no sétimo capítulo de A interpretação de sonhos (1900), em O inconsciente reapresentou-o reformulado especialmente quanto à sua distinção das demais partes da estrutura psíquica, bem como quanto às relações que mantém com estas. Na obra, ampliou e detalhou suas considerações sobre a instância inconsciente apresentando-a sob os pontos de vista descritivo, dinâmico e sistemático.

Já na abertura, declarou, revelando como teria chegado à sua atual hipótese, que foi pela observação dos mecanismos de repressão e resistência que ela veio à luz. Destes, percebeu que seu interesse não residia em destruir ideias ou representações, mas especialmente em evitar sua conscientização. Da hipótese resultou a constatação de que mesmo nessa condição uma representação "pode produzir efeitos" (1915/1969b, p. 171), particularmente na consciência. Ademais, a tese acerca da produção de efeitos por parte de uma representação reprimida (e mantida assim pela resistência) ensejou e coabitou com uma segunda, a de que "o reprimido não abrange tudo que é inconsciente" (1915/1969b, p. 171), o que lhe conferiu um caráter para além de descritivo, o de ser dinâmico e sistemático. De forma que não se trata mais ou apenas da consideração do estado (consciente ou não) de uma representação, mas de um sistema que, igualmente inconsciente, opera dinamicamente uma transformação na representação de modo que possa se tornar, de alguma forma, consciente. Freud concluiu que é a partir desse momento que temos a oportunidade de indiretamente conhecê-lo, de alcançar o segundo estágio da investigação científica e, portanto, de verificar a validade de sua hipótese, ou ainda, da objetividade de seu conceito. Assim, diante da possibilidade de justificação da hipótese, temos também a possibilidade de distingui-la como útil, a fim de compreender uma grande área de manifestações. Diferente de um conceito vazio de conteúdo, o inconsciente advém como resultado de uma operação do entendimento (guiado por seu Grundbegriff) sobre as intuições da sensibilidade, os dados do sentido interno.

Posto isto, visitaremos agora a Conferência XXXII, na qual Freud ofereceu uma exposição sobre sua teoria dos instintos como sinônimo de teoria da libido. Nela, recapitulou os "numerosos desenvolvimentos recentes" (Freud, 1933/1969a, p. 97) que a teoria sofreu. Mais uma vez imputou-lhe o caráter de teoria essencial para a psicanálise, em particular, e para a ciência, em geral. De forma que reiterou sua condição de fornecedora de rumos especulativos em proveito de esforços visando "descobertas" científicas. Essa condição ficou explícita e ganhou notoriedade pela qualificação que recebeu, pois foi justamente nessa oportunidade que declarou que "a teoria dos instintos é, por assim dizer, nossa mitologia"7 (Freud, 1933/1969a, p. 98), e seguiu apontando sua indeterminação. Declarou que "os instintos são entidades míticas, magníficas em sua imprecisão. Em nosso trabalho, não podemos desprezá-los, nem por um só momento, de vez que nunca estamos seguros de os estarmos vendo claramente" (Freud, 1933/1969a, p. 98).

Referiu-se a uma mitologia que não pode ser desprezada tanto quanto determinada, certamente por ser mais do que isso, por ser de fato uma teoria. Teoria essa com a finalidade de atender a um projeto específico, o de dar constituição à sua metapsicologia, de modo que comporta um aspecto enigmático segundo pelo menos dois sentidos. Primeiro, por sua natureza heurística, de servir como causa explicativa sem se submeter a isso e, segundo, por sua finalidade (e utilidade) de projetar luz sobre uma relação aporética, tão cara desde os primórdios da filosofia moderna ocidental, do corpo com a alma, pagando todos os ônus de sua indeterminação. Ora, perguntamos, por que Freud não poderia desprezá-la enquanto hipótese de trabalho? A resposta foi encaminhada no mesmo parágrafo.

Respondeu convocando seu leitor a refletir sobre como as pessoas em geral consideram e instrumentalizam a noção de instinto. Elas supõem, concluiu, tantos quantos precisam para explicar cada ordem de fenômeno, de comportamento humano. Nesse ponto, reproduz o argumento de Kant, ilustrativo de um caso de uso da razão, que, quando acolhe a heterogeneidade dos fenômenos, "admite inicialmente nela quase tantas forças quantos efeitos se apresentam" (Kant, 1781/1983, p. 322). Assim, tratando-se mais do uso de um conceito do que de um imagem (uma superstição), Freud declarou que "sempre se nos impôs a suspeita de que, por trás de todos esses pequenos instintos, ad hoc, escondia-se algo sério e poderoso, do qual gostaríamos de nos aproximar com cautela" (Freud, 1933/1969a, p. 98). Se substituirmos a expressão "nos aproximar" por "nos valer", ganharemos na compreensão acerca de sua suspeita.

Isso porque, na verdade, não se trata de distinguir dentre a multiplicidade concebível de instintos quais seriam os consistentes ou convenientes, já que todos, de alguma forma, sempre poderão ser relacionados a alguma ordem empírica, o que lhes garantiria sempre uma mínima validade aplicativa. O que de fato Freud pareceu propor mais uma vez (e se nos atentarmos para o conjunto da obra isso parecerá correto) é que a noção de instinto que procura é a de um conceito fundamental que, do interior do tal ponto de vista dinâmico, funcione como causa incausada e possibilite o encontro sempre crescente de "descobertas" (produção de conceitos) relativas às forças que se manifestam nos fenômenos em geral. Parece certo que, dessa forma, reduziu a compreensão da vida a uma possibilidade instintual.

Nessa conferência, ainda recapitulou as etapas pelas quais a aplicação desse ponto de vista passou. Informou que, de início, organizou a compreensão geral dos fenômenos humanos como decorrentes de um conflito entre a fome e o amor (também possível de ser entendido como conflito entre os interesses do indivíduo e os da espécie), que seriam duas das grandes, mas não todas, necessidades do homem que exigem satisfação. No entanto, a postulação desses dois grupos de instintos e do conflito que caracteriza sua relação cedeu lugar a partir da tematização do narcisismo, responsável pelo enfraquecimento da distinção inicial. Sem antagonismos entre instintos, pelo menos aos moldes da hipótese anterior, a teoria revista durou pouco. Assim, sem o antagonismo, seu monismo pouco sobreviveu – antagonismo que também é uma exigência kantiana (especialmente em Ideia de uma história universal do ponto de vista cosmopolita, de 1784) em vista da mobilização das disposições humanas. O império do dualismo acabou restituído a partir de outra expressão que trouxe, de fato, nova adequação para sua teoria dos instintos. Dessa vez, a oposição foi considerada já plenamente no campo da sexualidade e da afetividade, de modo que amar e odiar deram a tonalidade do novo antagonismo entre diferentes classes de instintos: Eros e Tânato na arena, dessa vez (1920) sem sobreviventes sob os auspícios da pulsão de morte.

Nesse ponto, algo se faz notável: a analogia com termos da física, como atração e repulsão, o que proporcionou a retomada do ponto de vista dinâmico amenizado no intervalo em que se ocupou em explicar o narcisismo, por muitos entendido como monista. Dessa forma, parece-nos que o próprio dualismo, o jogo de opostos (atração e repulsão), prevaleceu como uma exigência, provavelmente lógica, do ponto de vista dinâmico. No entanto, lembremos que sua atualização enfraqueceu uma de suas metas até então implícita, a da conservação da vida. Em seu lugar, uma dinâmica da agressividade e da destruição foi identificada (ou atribuída?) e destacada na natureza humana e mesmo para além dela. De modo que, se atentarmos para o caráter que Tânato comporta, perceberemos claramente que as noções de força, de estímulo e mesmo de movimento ganharam uma tonalidade entrópica, cuja finalidade passou a ser exaustiva, autossupressiva e, de modo conservador, passou a visar repouso, quietude. Afinal, quem não se lembra dos argumentos finais de Freud em Para além do princípio do prazer, declarando que "o princípio de prazer parece, na realidade, servir ao instinto de morte" (Freud, 1920/1969, p. 74)?

Contudo, um ponto de vista dinâmico enquanto entrópico parece-nos em si mesmo igualmente indemonstrável. Dessa forma, tanto o primeiro como o segundo dualismo de Freud foram admitidos como concernentes ao ponto de vista dinâmico. Queremos dizer que a hipótese de um instinto originalmente autodestrutivo que se manifestaria sob a forma de um masoquismo (que foi a partir de certo momento – 1924 – revisto como primário) compartilha do mesmo Grundbegriff que orientou sua pesquisa. Digamos que um caráter mortífero do instinto se manifestou explicitamente a partir de 1920, mas derivado do mesmo ponto de vista dinâmico.

O próprio Freud nos amparou nessa conclusão quando, ao se aproximar do fim da conferência, declarou que "temos argumento a favor de um instinto agressivo e destrutivo nos homens, não por causa dos ensinamentos da história, ou da nossa experiência de vida, mas com base em razões gerais, às quais fomos levados ao examinar os fenômenos do sadismo e do masoquismo" (Freud, 1933/1969a, p. 106). Tal declaração que reforça a tese de que é o ponto de vista adotado que organiza os dados observados. De modo que toda revisão constitui uma aproximação em relação à verdade somente na medida em que se torna útil para o manejo de uma classe maior, e diferente, de fenômenos.

Somado à sua destrutividade, encontramos outro caráter da natureza dos instintos, sua fusão: sadismo e masoquismo passaram a constituir uma aliança de impulsos destrutivos dirigidos ao interior e ao exterior de cada organismo onde atuam. Justificando a consequência positiva dessa reformulação, Freud declarou que o que antes disso "constituiu uma pedra no caminho de uma teoria, [quando revista pode] tornar-se a pedra angular da teoria que a substitui" (Freud, 1933a/1969, p. 106), ou seja, na nova teoria, sadismo e masoquismo permaneceram como duas classes de instintos, mas fusionados e dotados de uma finalidade comum, a destruição do organismo, consideração que passou a iluminar com mais vigor, e utilidade, certas patologias psíquicas até então mal compreendidas.

Mais uma vez, e mais adiante na mesma conferência, revelou a natureza heurística de seu ponto de vista dinâmico ao estendê-lo para além da condição humana. Declarou que "os instintos regem não só a vida mental, mas também a vida vegetativa, e esses instintos essenciais exibem uma característica que merece o nosso mais profundo interesse (...) eles revelam uma propensão a restaurar uma situação anterior" (Freud, 1933/1969a, p. 108) e executam a finalidade de uma natureza supostamente conservadora. Dizemos supostamente porque, embora a observação de fatos que deram origem à noção de uma compulsão à repetição possa indicar essa tendência (1920), ela não pode de fato ter sido dela extraída em definitivo. Solidário a esse argumento, Freud reconheceu que "não se pode arriscar com uma hipótese de tão largo alcance, simplesmente porque uns pobres loucos uniram sua satisfação sexual a condições peculiares" (Freud, 1933/1969a, p. 108). No entanto, disse isso sem abdicar de considerar que seria possível conceber, sem contradição, que o caráter conservador "pertença a todos os instintos, sem exceção" (Freud, 1933/1969a, p. 109). Assim, por ter estendido a condição instintiva à vida em geral, seguiu postulando o restabelecimento do estado inorgânico simplesmente pelo fato de tê-la, numa perspectiva continuísta, precedido. Mais uma vez ecoa o Kant de 1784: não são os fatos a indicar a finalidade da história, mas o ponto de vista a organizá-los.

Passemos à Conferência XXXV. Nela, a questão central permaneceu sendo o tipo de visão de mundo que dá constituição à psicanálise. Freud encaminhou a construção da resposta definindo-a como uma "ciência especializada, ramo da psicologia-psicologia profunda, ou psicologia do inconsciente – ela é praticamente incapaz de construir para si uma Weltanschauung, tem de aceitar uma Weltanschauung científica" (Freud, 1933/1969b, p. 155). Superando a generalidade do argumento, Freud seguiu dando detalhes e definindo a psicanálise em contraste com outras áreas do saber. Sustentou que, a exemplo da psicologia, da qual faz parte, a psicanálise toma o intelecto ou a mente como objeto de pesquisa científica, ao modo das ciências não humanas, ou seja, trata "do que é mental no quadro do universo" (Freud, 1933/1969b, p. 156), reconduzindo para o campo das ciências naturais toda essa ordem de fenômenos.

Seguiu explicando o pensamento científico, a nosso ver, como um recurso humano para conduzir a bom termo a necessidade dos homens de realizar eficazmente o teste de realidade, ou seja, de "examinar mais rigorosamente a credibilidade do senso de percepção nos quais baseia suas conclusões" (Freud, 1933b/1969, p. 166), de modo que, continuou, "seu esforço é no sentido de chegar à correspondência com a realidade, ou seja, com aquilo que existe fora de nós e independente de nós (...) a essa correspondência com o mundo externo real chamamos de verdade" (1933/1969b, p. 166). Seu alcance seria assim o próprio objetivo da ciência, proporcionado sob regras do pensar racional justamente o que outras atividades humanas perseguem com pouco êxito.

Apontando ainda o quanto há de árduo no percurso histórico dessa modalidade de pensamento, comparou, mais uma vez, seu método de pesquisa com o do analista. De forma que, "mediante a observação, ora num ponto, ora noutro, encontramos alguma coisa nova; mas, no início, as peças não se completam. Fazemos conjecturas, formulamos hipóteses, as quais retiramos quando não se confirmam (...)" (Freud, 1933/1969b, p. 169). Evidenciou assim, mais uma vez, a busca incessante e aproximativa da verdade, ou da adequação adaptativa à realidade dos fenômenos, como definiu acima. Por conta disso, recusou a crítica de que a ciência poderia então ser considerada uma atividade permanente de substituição de "um erro por outro" (Freud, 1933/1969b, p. 170). Mas a indicação mais precisa de sua perspectiva veio por meio do recurso ilustrativo do trabalho de um escultor com seu modelo de argila. Disse ele: "o qual, incansável, modifica o esboço primitivo, remove, acrescenta, até chegar àquilo que sente ser um satisfatório grau de semelhança com o objeto que vê ou imagina" (Freud, 1933/1969b, p. 170). De modo que há sempre uma imagem que orienta a mão do artista, assim como uma ideia que focaliza a lente do cientista.

 

3) Considerações finais

Evidentemente que as considerações que se seguem terão um caráter muito mais de especulações iniciais do que finais, mas sempre de especulações. Por conta disso, partiremos de uma questão aleatória, conquanto não periférica. Trata-se da busca pela etiologia da histeria, que foi historicamente empreendida de formas diversas, tendo depositado suas esperanças num princípio dinâmico de força. De modo que, postulando-o, orientou a pesquisa freudiana de observação e de organização dos sintomas histéricos.

Esse ponto de vista nos permite compreender o fato de Freud nunca ter produzido em sua teorização uma classificação, uma tipologia ou mesmo uma nosografia da histeria à maneira de Charcot. Antes, se apoiou no que podemos chamar de casos exemplares nos quais o conflito das forças se manifestaram exemplarmente. Portanto, não se trata de investigar exaustivamente um sem número de casos, mas de considerar alguns como aproximações do que seria um "caso completo". Aloca-se distante do método indutivo de Charcot, o que explicaria, entre outros fatores, os caminhos distintos que trilharam e os resultados igualmente distintos que obtiveram.

Posto isto e para efeito de conclusão, gostaríamos ainda de apresentar um argumento de Fulgêncio que, como já mencionamos, nos inspirou. Disse ele que a empresa freudiana foi construída, de maneira kantiana, no quadro de uma psicologia enquanto uma ciência empírica especial:

Basta aqui lembrar o que ficou conhecido na história como o juramento epistemológico de Ernst Brücke e Emile Du Bois-Reymond para reconhecer a orientação seguida por Freud ao propor que o psiquismo é movido por forças psíquicas (as pulsões) equivalentes em dignidade às forças físico-químicas. Não é, portanto, por acaso que Freud caracterizará, logo no primeiro parágrafo do seu texto sobre a metapsicologia, as pulsões como ideias abstratas, conceitos puramente convencionais, que, ao lado da ficção teórica do aparelho psíquico e da libido (como energia apenas suposta) são utilizados como uma superestrutura especulativa que visa a apreensão, organização e sistematização dos dados empíricos, em que há apenas passividade, ou seja, o psiquismo pensado por sua determinação natural. (Fulgêncio, 2006, p. 117)

Por conta disso, concordamos com Fulgêncio quando leva adiante seu argumento afirmando que a metapsicologia seria uma "superestrutura especulativa" com igual caráter ficcional. Na verdade, pensamos que tais elaborações, evidentemente que hipotéticas, convencionais e provisórias, como ficou claro nos textos consultados, podem ser tomados como ficcionais no mesmo sentido dos entes de razão, posto estes serem o que são por indemonstráveis e, acima de tudo, por prescindirem da experiência.

De modo que, finaliza Fulgêncio, mesmo que a psicanálise não tenha se constituído como uma ciência da natureza genuína (ciência a priori) e que para Kant não seria possível para a psicologia, "defende-se que Kant deixou um fio condutor para sua construção indicando um quadro transcendental – não no que se refere à formulação de uma psicologia racional, mas caracterizável pela aplicabilidade dos princípios do entendimento teórico a seus objetos, seja oferecendo um quadro heurístico para a pesquisa empírica dos objetos dados ao sentido interno" (Fulgêncio, 2006, p. 89). Esperamos que todos estejam certos quanto a isso.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Francisco Verardi Bocca
E-mail: francisco.bocca@pucpr.br

 

 

1 Sobre essa questão, recordemos os argumentos da Conferência I, na qual Freud comunicou seu público acerca de uma distinção importante entre psicanálise e medicina convencional. Disse que, em sua formação, os médicos "estão acostumados a ver coisas" (Freud, 1916-1917/1969b, p. 26). Pois, para estes, "os pacientes são demonstrados perante os sentidos dos senhores" (Freud, 1916-1917/1969b, p. 26), o que permite encontrar uma base anatômica para as funções do organismo e suas doenças. Dessa forma, se posicionou como Kant ao distinguir a medicina como ciência empírica submetida aos sentidos externos. Para finalizar, reconheceu que "na psicanálise, ai de nós, tudo é diferente" (Freud, 1916-1917/1969b, p. 26), pois, submetida aos sentidos internos, "aprende-se psicanálise em si mesmo, estudando-se a própria personalidade" (Freud, 1916-1917/1969b, p. 29), algo da ordem da auto-observação, cujos fenômenos podem constituir objeto de análise na própria pessoa do analista. Assim, além de obstáculos, "não obstante, há limites definidos ao progresso por meio desse método" (Freud, 1916-1917/1969b, p. 29).
2
Os argumentos relativos a Kant apresentados adiante – alguns sem citação, por medida de economia – foram, em sua maioria, extraídos do artigo de Fulgêncio, L. (2006), O lugar da psicologia empírica no sistema de Kant. Revista Kant e-prints 4(1), 89-118.

3
Na obra Introdução à epistemologia freudiana, Paul-Laurent Assoun lembra a distinção produzida por Dilthey entre ciências naturais e ciências do espírito. Nela, esclarece os termos em que, de maneira particular, Freud construiu sua epistemologia, conjugando explicação e compreensão e adotando "um procedimento intelectual que explica de modo interpretativo ou interpreta fornecendo causas" (Assoun, 1983, p. 49), no qual não restou lugar para a oposição que se instituía. Isto porque, lembra Assoun, em conformidade à adesão de Freud aos postulados monistas de Haeckel, para quem, rejeitando a distinção entre corpo e alma, entre orgânico e inorgânico e entre natureza e espírito, a ciência do espírito seria apenas uma parte da ciência da natureza.
4 Na mesma obra, Assoun indica a pesquisa científica de Freud como "paralela até o eco" (Assoun, 1983, p. 91) à de Ernst Mach, de quem Freud foi leitor confesso. Identidade particularmente em relação ao que, para ambos, seria o começo da investigação, a adoção de conceitos fundamentais, de postulados ou axiomas que proporcionam o primeiro passo arbitrário da pesquisa.
5
Contextualizando este ponto de vista epistemológica, Assoun retoma a participação de Freud, juntamente com Mach, como signatário de uma sociedade positivista, que constituiu por assim dizer "um partido energetista" (Assoun, 1983, p. 98).
6 O Grundbegriff, para Freud, como conceito ponto de partida, na categoria de "ideia abstrata", permite referenciar os fenômenos pesquisados, bem como organizá-los, como definiu Assoun, segundo referências que "são induzidas dele" (Assoun, 1983, p. 95).
7 Freud voltou a utilizar esse termo por ocasião de uma carta, de 1933, endereçada a Einstein, na qual, ao refletir mais uma vez sobre o estatuto do conceito científico, estendeu a condição de mitologia às próprias teorias e conceitos da física de seu interlocutor, na condição de exigência epistemológica que reconheceu como própria das ciências naturais, bem como da psicanálise.

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