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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.18 no.2 São Paulo dez. 2016

 

DOSSIÊ

 

A limitação do conhecimento de acordo com a primeira teoria freudiana do aparelho psíquico

 

Limits of knowledge according to Freud's first theory of the mental apparatus

 

 

Fátima Caropreso*

Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é analisar a primeira teoria freudiana do aparelho psíquico, tendo em vista discutir como a possibilidade da consciência – e, portanto, do conhecimento do mundo externo e de nós mesmos – é pensada pelo autor nessa etapa de sua obra. Focalizaremos, sobretudo, as hipóteses do sétimo capítulo do livro freudiano sobre os sonhos, mas nos remeteremos também a ideias desenvolvidas em outros textos metapsicológicos anteriores e subsequentes.

Palavras-chave: psicanálise; Freud; metapsicologia; aparelho psíquico; consciência.


ABSTRACT

This paper aims to analyze the first theory of the mental apparatus, developed by Freud, with the objective of discussing how the possibility of consciousness – and, hence, of the knowledge of external world and ourselves – is conceived of by Freud in this stage of his work. The paper centers on the hypotheses presented in Chapter VII of Freud's book on dreams, but certain ideas developed in previous and subsequent metapsychological works are also addressed.

Keywords: psychoanalysis; Freud; metapsychology; mental apparatus; consciousness.


 

 

Em A interpretação dos sonhos (Freud, 1900/1998), Freud sistematiza sua primeira teoria do aparelho psíquico, a qual é retomada e complementada nos artigos metapsicológicos publicados entre os anos de 1915 e 1917. Nesse texto, analisaremos a primeira teoria freudiana do aparelho psíquico, tendo em vista discutir como a possibilidade da consciência – e, portanto, do conhecimento do mundo externo e de nós mesmos – é pensada pelo autor nessa etapa de sua teoria. Focalizaremos, sobretudo, as hipóteses do sétimo capítulo do livro freudiano sobre os sonhos, mas também nos remeteremos a ideias desenvolvidas em outros textos à medida que estas se fizeram relevantes para o tema em questão.

 

1) O aparelho psíquico

No início do sétimo capítulo de A interpretação dos sonhos (Freud, 1900/1998), Freud aponta a necessidade de formular uma teoria do aparelho psíquico para que o sonho, enquanto fato psíquico, possa ser efetivamente esclarecido. Nos capítulos anteriores dessa obra, ele apresenta e discute as teses sobre os sonhos inferidas a partir da prática e dos resultados de sua interpretação. Nesse último capítulo, ele se ocupa da construção de uma teoria sobre a estrutura e o funcionamento psíquico em geral que possa servir de fundamento para essas teses, ou seja, uma teoria a partir da qual seja possível compreender a possibilidade de ocorrência de um processo psíquico com as características reveladas pelos fenômenos oníricos. Monzani (1989) esclarece como se dá a relação entre a interpretação e a explicação em "A interpretação dos sonhos". Existiria, segundo ele, "uma subordinação recíproca entre interpretação e explicação, cada uma a seu nível: a interpretação produz teses que a explicação fundamenta" (Monzani, 1989, p. 114). A interpretação forneceria, assim, as teses particulares, e estas seriam, então, inseridas em um espaço teórico que as pudesse fundamentar e justificar. No sétimo capítulo, portanto, vemos Freud empenhar-se em uma reflexão metapsicológica bastante abrangente, com o objetivo de fundamentar as teses obtidas a partir da interpretação dos sonhos.

O esquema do aparelho psíquico proposto por Freud no sétimo capítulo restringe-se a representar a relação dos processos psíquicos com a percepção sensorial e a motricidade. A relação entre o psíquico e o somático não está representada, apesar de Freud se referir ao papel desempenhado pela excitação de origem endógena no desenvolvimento e no funcionamento do aparelho.

Freud coloca em um dos extremos do esquema a percepção e, no extremo oposto, a motricidade, e afirma que o reflexo é o modelo de toda a operação psíquica. Retomando as teses que já haviam sido elaboradas no Projeto de uma psicologia (Freud, 1950/1995), ele considera que a tendência primordial do aparelho seria descarregar o máximo possível da excitação que o alcançasse. Essa tendência, contudo, seria modificada devido à necessidade de dar um destino adequado para a estimulação de origem endógena, isto é, para que as necessidades corporais pudessem ser eficientemente satisfeitas. Os processos psíquicos seriam, inicialmente, regulados automaticamente pelo "princípio de desprazer" – posteriormente, em 1911, rebatizado como "princípio de prazer". Também retomando as hipóteses do Projeto de uma psicologia, prazer e desprazer são concebidos como sensações decorrentes, respectivamente, da diminuição e do aumento do nível de excitação no aparelho.

A primeira diferenciação estabelecida no interior do aparelho é entre a percepção e a memória. Ambas devem ser funções de dois sistemas diferentes, argumenta Freud, pois, enquanto a percepção requer uma capacidade receptiva sempre igual, a memória pressupõe a conservação dos traços dos processos, de forma que o sistema por ela responsável deveria ser permanentemente modificado pela excitação que o percorresse. Assim, a percepção fica sendo função do primeiro sistema que compõe o aparelho, e a memória, dos sistemas que se lhe sucedem.

A memória não apenas conservaria o conteúdo das percepções, como também associaria tais conteúdos de acordo com determinadas leis. Freud retoma a hipótese, apresentada na carta 52 a Fliess, de que haveria vários sistemas de memória nos quais o mesmo conteúdo seria sucessivamente associado de acordo com princípios associativos diferentes. Nesse texto, ele dissera não saber precisamente quantos sistemas deveria haver – no mínimo três, mencionara, provavelmente mais. Agora, no esquema do sétimo capítulo, outros sistemas de memória são incluídos entre o sistema da percepção e o do inconsciente.

Os dois últimos sistemas mnêmicos – entre os quais haveria uma "censura" – seriam o inconsciente (Icc) e o pré-consciente (Prcc)1. Este último estaria ligado à consciência e governaria o acesso à motricidade voluntária. Na verdade, os sistemas corresponderiam a dois tipos de processos. Freud afirma:

Se as consideramos com maior atenção, as elucidações psicológicas da seção anterior não nos sugerem a suposição da existência de dois sistemas perto do extremo motor do aparelho, mas sim de dois processos ou de dois modos no decurso da excitação. Para nós dá na mesma; sempre devemos estar dispostos a abandonar nossas representações auxiliares quando nos acreditamos em condições de substituí-las por alguma outra coisa que se aproxime mais da realidade desconhecida. (Freud, 1900/1998, p. 598)

Os dois tipos processos que corresponderiam ao sistema inconsciente e ao sistema pré-consciente seriam, respectivamente, os processos primários e os secundários, os quais também já haviam sido apresentados no Projeto de uma psicologia (Caropreso, 2008). A diferenciação entre dois "modos no decurso da excitação" seria, em última instância, aquela entre o estado "livre" e o estado "ligado" ou "quiescente" da quantidade. Freud argumenta que, apesar de ser uma maneira menos rigorosa de se caracterizar essas funções, a representação tópica deveria continuar sendo utilizada, uma vez que ela figuraria de maneira mais simples e permitiria visualizar mais facilmente a distinção em questão.

Assim, de acordo com Freud, a representação tópica dos sistemas Prcc e Icc consistiria em uma construção auxiliar e não totalmente adequada para representar a distinção entre o psíquico suscetível e o psíquico insuscetível de consciência. A forma mais rigorosa de exprimir essa diferença seria o que ele chama nesse texto de "representação dinâmica", ou seja, aquela que apresenta essa distinção como se dando entre dois processos com características diferentes2.

Era possível inferir que os sistemas Icc e Prcc corresponderiam a tipos de processos com base em formulações bem anteriores de Freud, pois, desde "Sobre a concepção das afasias" (Freud, 1891/1973), ficara claro que a representação consistiria em um processo dinâmico (Caropreso, 2003). Contudo, a representação tópica poderia sugerir que se tratasse de processos do mesmo tipo que ocorreriam em dois lugares diferentes, mas Freud procura deixar claro que não seria esse o caso. A distinção entre os sistemas Icc e Prcc corresponderia àquela entre dois tipos de processos que se sobreporiam: os primários e os secundários. O processo secundário resultaria da inibição do primário e, portanto, teria que se posterior a este. Inicialmente, o pré-consciente e o inconsciente não estariam diferenciados. A origem dessa diferenciação seria uma consequência da impossibilidade de o modo de atividade primário do aparelho permitir a satisfação das necessidades biológicas.

Em "A interpretação dos sonhos", Freud retoma a hipótese da experiência de satisfação também apresentada no Projeto de uma psicologia. Após a vivência primária de satisfação, o ressurgimento da estimulação endógena faria surgir uma tendência a ocupar a representação do objeto desejado com toda sua intensidade, de forma que este objeto seria alucinado – isto é, seria produzida uma "identidade perceptiva" – e os movimentos associados à satisfação anterior (a sucção do seio, por exemplo) seriam executados em vão. Essa ativação alucinatória da representação desejada, contudo, seria ineficaz para fazer cessar a estimulação endógena. Por isso, para que o indivíduo sobrevivesse e para que o desprazer cessasse, seria necessária uma modificação desse modo de atividade primário do aparelho. A atividade psíquica regida pelo princípio do prazer teria que se adequar ao "princípio de realidade", assim nomeado em "Formulações sobre os dois princípios do acontecer psíquico" (1911/1998). Em vez de conduzir à identidade perceptiva, os processos deveriam passar a buscar uma "identidade de pensamento". A ocupação da representação desejada deveria ser parcialmente inibida, de modo que tal representação pudesse ser apenas rememorada e, então, surgisse a possibilidade de ocorrência de um processo – o pensamento – que encontrasse, de fato, o objeto capaz de promover a satisfação da necessidade.

Após propor que os sistemas pré-consciente e inconsciente corresponderiam a dois tipos de processos, a diferenciação entre este último sistema e os precedentes – aqueles que se situariam entre P e Icc – deixa de ser mencionada. Como Freud não se refere a outros tipos de processos além do primário e do secundário, parece ser possível concluir que os primeiros sistemas de memória estariam incluídos nos processos primários e que vários princípios associativos regulariam as associações aí envolvidas. Os vários sistemas de memória foram propostos por Freud para representar as diversas transcrições de um mesmo conjunto de representações, isto é, os diferentes rearranjos das representações de acordo com princípios associativos diferentes. Portanto, haveria vários níveis de processos e as associações seriam determinadas por princípios associativos diferentes em cada um deles. No nível superior, cujas associações seriam determinadas por relações verbais, a excitação se encontraria em estado ligado e, nos níveis inferiores, ela se encontraria em estado livre; em outras palavras, no nível superior ocorreriam processos secundários e, em todos os níveis inferiores, processos primários.

Como vimos, o processo primário estaria presente no aparelho desde sua origem – ele representaria a tendência primordial do aparelho a descarregar toda a excitação que o alcançasse pela via mais direta – e o processo secundário se estabeleceria pouco a pouco a partir da inibição do processo primário. Essa inibição, no entanto, não seria total, pois uma parte dos processos permaneceria sempre subtraída à influência do Prcc. Dessa maneira, ambos os processos coexistiriam.

 

2) A relação entre os sistemas e a repressão

Segundo Freud (1900/1998), devido ao estabelecimento comparativamente tardio do processo secundário, uma grande parte do material mnêmico permaneceria inacessível ao pré-consciente. Essas representações continuariam operando nos termos do processo primário e permaneceriam insuscetíveis de se tornarem conscientes pela via normal do pensamento, isto é, a partir da intermediação do Prcc. Além destas, outras representações se encontrariam nesse mesmo estado: as reprimidas. Estas teriam sido um dia pré-conscientes; no entanto, por terem se tornado formações substitutivas de representações inaceitáveis para os processos secundários, teriam sido excluídas do Prcc, voltando a ser governadas pelo processo primário. As representações do primeiro tipo seriam pré-condição para a existência dessas últimas.

Segundo Freud, um conjunto de "moções de desejos" infantis – que constituiria o "núcleo do nosso ser" – permaneceria inapreensível e incapaz de ser inibido pelo processo secundário, pois este não seria capaz de inibir o desprazer despertado por esses desejos. O estabelecimento tardio do processo secundário3 é que faria com que essas moções não chegassem a ser incorporadas ao Prcc. As moções de desejo excluídas do processo secundário se dividiriam em dois grupos: aquelas cuja realização não seria desprazerosa para o Prcc e aquelas cuja realização produziria um desprazer que este sistema seria incapaz de evitar. As primeiras, embora incapazes de serem inibidas e inapreensíveis aos processos secundários, seriam direcionadas por estes pelo caminho mais adequado. Freud afirma:

Em consequência deste surgimento tardio do processo secundário, o núcleo do nosso ser, que consiste em moções de desejos inconscientes, permanece inapreensível e não inibível para o pré-consciente, cujo papel ficou limitado, de uma vez por todas, a indicar às moções de desejo provenientes do inconsciente os caminhos mais adequados ao fim. (Freud, 1900/1998, p. 592)

Já aquelas moções de desejo cuja realização se tornasse desprazerosa para o Prcc permaneceriam totalmente fora da influência desse sistema:

[...] entre estas moções de desejo indestrutíveis e não passíveis de inibição que provêm do infantil se encontram também aquelas cujo cumprimento entrou em relação de contradição com as representações-meta do processo secundário. O cumprimento de tais desejos já não provocaria um afeto prazeroso, e sim um desprazer e justamente esta mudança do afeto constitui a essência do que designamos [como] "repressão". (Freud, 1900/1998, p. 593)

As moções de desejo excluídas do Prcc manteriam sempre a aspiração de atingir a consciência e o acesso à motricidade, isto é, de alcançar a satisfação. Assim, elas tentariam continuamente ingressar no Prcc. Por esse motivo, este sistema teria que manter uma pressão contínua no sentido oposto – mais tarde, em "A repressão" (Freud, 1915/1998a), isso seria chamado de "contra-ocupação" – para se proteger contra o avanço da excitação inconsciente. Em alguns casos, no entanto, esse mecanismo de proteção falharia, e a excitação de desejo conseguiria ingressar no processo secundário, o que teria como consequência a produção de desprazer. Nesse caso, devido à tendência do aparelho a evitar o desprazer, a ocupação pré-consciente dessa representação poderia ser retirada, fazendo com que a mesma caísse novamente sob o domínio do processo primário, isto é, tornando-a inconsciente e insuscetível de se tornar consciente. Esse processo de retirada da ocupação de uma representação pré-consciente é chamado de "repressão".

A ocupação de uma representação pelo Prcc – sua incorporação aos processos secundários – só ocorreria quando nenhum desprazer intolerável resultasse dessa ocupação ou quando esse desprazer produzido pudesse ser, de alguma maneira, inibido: "o segundo sistema só pode ocupar uma representação se está em condições de inibir o desprendimento de desprazer que parte dela" (Freud, 1900/1998, p. 590). A retirada da ocupação da representação (a repressão) seria, então, uma consequência da tendência global do aparelho a evitar o desprazer, uma consequência de sua regulação pelo princípio de desprazer. Sendo assim, dois tipos de representações permaneceriam sob o domínio do processo primário, ou seja, insuscetíveis de se tornar conscientes pela via normal do pensamento: as reprimidas e aquelas vinculadas às moções de desejo que nunca foram integradas ao Prcc. Como estas últimas nunca teriam sido incorporadas ao processo secundário, pode-se dizer que elas seriam inconscientes desde sua origem. Nos artigos metapsicológicos de 1915, Freud irá formular a hipótese de que essas representações teriam sido alvo da "repressão primordial", e as primeiras teriam sido alvo da "repressão propriamente dita". No sétimo capítulo, essa noção de repressão primordial ainda não se encontra presente e, portanto, não é possível dizer, de acordo com as hipóteses elaboradas neste texto, que o sistema inconsciente coincide com o reprimido, uma vez que apenas aquelas representações desocupadas pelo processo secundário podem ser chamadas de reprimidas, e não aquelas que nunca foram aí incluídas.

Tendo em vista as hipóteses descritas, mesmo no funcionamento psíquico normal os processos primários e secundários coexistiriam. No sujeito normal acordado, os processos secundários prevaleceriam e impediriam os primários de se tornarem conscientes. Contudo, no caso do sono e das patologias mentais, o processo primário poderia voltar a prevalecer e recuperar o acesso à consciência. No primeiro caso, isso se daria devido à retirada parcial da inibição do sistema Prcc e, no segundo, devido a um reforço patológico das excitações inconscientes ou a uma debilitação patológica da capacidade de inibição pré-consciente. Fica claro que o conceito de "dissolução", de Hughlings Jackson, se faz presente na explicação freudiana das patologias psíquicas. A seguinte passagem deixa isso claro:

[...] a enfermidade – ao menos a que, com acerto, se chama "funcional" – não tem por premissa a destruição deste aparelho, ou a produção de novas cisões em seu interior; tem que ser explicada dinamicamente pelo fortalecimento e pela debilitação dos componentes do jogo de forças, do qual tantos efeitos permanecem ocultos durante a função normal. (Freud, 1900/1998, p. 597)4

De acordo com a noção de dissolução de Jackson (1884/1958), nas patologias do sistema nervoso haveria um retorno de modos de funcionamento mais arcaicos, isto é, um nível de funcionamento hierarquicamente superior e mais recentemente estabelecido seria comprometido, o que possibilitaria que um modo de funcionamento primário voltasse a prevalecer parcial ou totalmente. Segundo Freud, o retorno dos processos primários poderia se dar em vários níveis e em diferentes graus: nas psiconeuroses, ele seria parcial; nos sonhos e no que viria a ser chamado de psicoses, seria mais maciço.

 

3) As características dos sistemas inconsciente e pré-consciente

No sétimo capítulo de seu livro sobre os sonhos, Freud apresenta as características peculiares aos sistemas inconsciente e pré-consciente, as quais são novamente discutidas nos artigos metapsicológicos de 1915. Segundo ele, o inconsciente seria constituído por "vias facilitadas de uma vez por todas" (Freud, 1900/1998, p. 546), o que significa que nenhuma resistência seria nele oferecida à circulação e à descarga da excitação. Esta seria sempre integralmente transferida de um elemento para outro do sistema, o que é outra maneira de dizer que a excitação se encontraria aí em estado livre. A única finalidade dos processos associativos primários seria descarregar a excitação da forma mais rápida possível, seguindo, portanto, a via mais facilitada. Esta seria sempre aquela que conduzisse da forma mais direta à representação desejada. Se não permanecessem sob inibição do Prcc, esses processos inconscientes desembocariam na alucinação do objeto de desejo e na execução dos movimentos associados à obtenção da satisfação.

Apesar da questão da representação do somático no psíquico não ser explicitamente abordada por Freud, a descrição da vivência de satisfação deixa clara a relação de dependência do desejo em relação ao somático, no qual o impulso do desejo teria sempre, em última instância, sua origem. Portanto, pode-se dizer que está pressuposta, pelo menos de forma implícita, uma ligação entre o inconsciente e o somático. O desejo reprimido, diz Freud, disporia de uma "força pulsional" que seria responsável pelo fato de esses desejos estarem sempre alertas e ressurgirem continuamente. Uma vez que a excitação percorreria vias totalmente facilitadas, sempre que essas vias fossem ocupadas – e elas o seriam continuamente, pois disporiam da referida "força pulsional" –, nenhuma resistência seria oferecida à sua passagem e, assim, o mesmo processo poderia se repetir inúmeras vezes. Por isso, segundo Freud, os processos inconscientes seriam indestrutíveis. Neles, as representações nunca perderiam sua intensidade, o que teria como consequência a ausência de temporalidade.

No pré-consciente, ao contrário, os processos seriam "destrutíveis", ou seja, as representações iriam desvanecendo-se como resultado de um esforço para ligar a excitação a elas associada:

[...] isso mesmo que nos inclinamos a julgar trivial e que explicamos por uma influência primária do tempo sobre os restos mnêmicos da alma, a saber, o empalidecer das recordações e a debilitação afetiva das impressões que já não são recentes, é, na realidade, produto de alterações secundárias que são alcançadas após árduo trabalho. (Freud,1900/1998, p. 569)

Freud não explica no capítulo em questão como se daria esse processo. No entanto, na terceira parte do Projeto de uma psicologia, ele sugere que a diminuição da intensidade afetiva das representações resultaria de repetidas tentativas por parte do eu de ligá-las:

Não cabe ver aí que o "tempo", a repetição, enfraqueça sua capacidade afetiva, pois este fator contribui de costume justamente para reforçar uma associação. Sem dúvida algo tem de passar-se no "tempo", nas repetições encarregadas dessa sujeição, e isto não pode ser senão uma referência ao eu ou ao poder que suas ocupações obtenham sobre a recordação [...]. É preciso uma ligação especialmente grande e repetida, a partir do eu, até que seja equilibrada a facilitação para o desprazer. (Freud, 1950/1995, p. 253)

Desse modo, o enfraquecimento das representações e dos afetos resultaria do modo como se daria a ocupação no processo secundário, isto é, do estado ligado da excitação. Esse enfraquecimento não seria consequência do tempo; ao contrário, parece que, para Freud, a própria ideia de tempo é que seria consequência do trabalho do pré-consciente para ligar e inibir parcialmente as quantidades de excitação. Porque, nesse sistema, as excitações seriam ligadas e, consequentemente, as representações perderiam sua intensidade progressivamente, logo, nele surgiria a distinção entre presente e passado, ao contrário do que ocorreria no Icc, onde tudo sempre seria igualmente intenso e atual. O processo secundário, de certa forma, trabalharia no sentido de possibilitar o esquecimento (que seria, assim, um processo ativo e não passivo) e, como consequência, surgiria a noção de tempo. Assim, a submissão do Icc ao Prcc seria a única forma de interromper o ciclo de repetições dos processos impulsionados pelos indestrutíveis desejos inconscientes reprimidos.

Outra diferença entre os processos pré-conscientes e inconscientes é que estes seriam incapazes de incluir algo desprazeroso entre suas associações: "(...) o primeiro sistema ψ [o Icc] é incapaz de incluir algo desagradável no interior da trama de pensamento. O sistema não pode fazer outra coisa que desejar" (Freud, 1900/1998, p. 590). Tendo isso em vista, no sétimo capítulo os processos primários são pensados como sendo, desde o início e por sua própria natureza, capazes de evitar o desprazer. Representações desprazerosas seriam automaticamente excluídas do curso associativo primário. Apenas em um segundo momento, depois de realizado o trabalho de ligação da excitação, a produção do afeto poderia ser inibida e representações desprazerosas se tornariam acessíveis. Como vimos, segundo Freud, apenas os processos secundários poderiam abarcar representações desprazerosas, desde que o desprazer decorrente da ocupação dessas representações pudesse ser inibido. O estado ligado da excitação nos processos secundários é que permitiria isto, pois, neles, a ocupação de uma representação provocaria a inibição da drenagem da excitação a partir dela e, assim, o desenvolvimento do desprazer seria também inibido. Essa inibição do desprazer, no entanto, não seria total. O desprendimento de desprazer seria reduzido a um mínimo que fosse útil como sinal, isto é, que indicasse ao Prcc a natureza hostil da representação. Nos casos em que tal inibição não fosse possível, a representação ficaria excluída dos processos secundários, permanecendo, portanto, no inconsciente5.

Freud comenta que, caso todas as representações que gerassem desprazer fossem excluídas também dos processos secundários, assim como ocorre com os processos primários, o trabalho de pensamento do Prcc seria impedido: "Se tudo permanecesse assim, o trabalho de pensamento do segundo sistema [Prcc], para o qual faz falta dispor de todas as recordações acumuladas pela experiência, se veria impedido" (Freud, 1900/1998, p. 590). Por isso, aquelas representações desprazerosas, cuja produção de desprazer pudesse ser inibida, seriam integradas aos processos secundários, o que permitiria que esses processos se emancipassem da meta exclusiva da realização de desejo. Surgiria, assim, a possibilidade de que o pensamento, em alguns casos, tivesse como finalidade apenas o reconhecimento das percepções, como Freud já propusera no Projeto de uma psicologia. Ali, o pensamento que teria como finalidade imediata apenas esse reconhecimento é chamado de "pensamento teórico". Freud propõe que ele se constitua a partir do chamado "pensamento prático", que seria a forma primária de pensamento, que teria como único objetivo reencontrar o objeto de desejo para possibilitar a satisfação da necessidade. Esse pensar prático poderia, com o tempo, se emancipar de sua meta de identidade e descarga e passar a ter como meta o puro reconhecimento dos objetos. Mas, para ser capaz de inspecionar e reconhecer os objetos em geral, seria necessário ter acesso também às representações desprazerosas (Caropreso, 2001). O processo primário, ao contrário, estaria sempre restrito a percorrer apenas as vias associadas à representação de desejo.

Os sistemas pré-consciente e inconsciente estabelecem uma diferenciação clara entre os processos suscetíveis e os insuscetíveis de consciência. Os processos secundários (ou o Prcc), por incluírem entre suas associações representações-palavra, seriam suscetíveis de se tornarem conscientes. Com exceção das percepções e das sensações de prazer e desprazer, apenas aqueles processos associativos que envolvessem palavras seriam capazes de despertar a consciência. Os processos primários, ao contrário, seriam insuscetíveis de consciência por dois motivos: em primeiro lugar, por permanecerem, ao menos na normalidade, sob inibição do pré-consciente e, portanto, impedidos de se tornarem conscientes pela via alucinatória e, em segundo lugar, por não incluírem representações-palavra entre suas associações, o que não lhes permitiria alcançar a consciência pela via normal do pensamento.

 

4) A possibilidade da consciência dos processos psíquicos

De acordo com a teoria elaborada em "A interpretação dos sonhos", a consciência seria restrita em relação à totalidade dos processos psíquicos. Ela se acrescentaria a processos que seriam em si inconscientes e seria, portanto, posterior em relação a estes. Na seção F do texto em questão, Freud comenta:

O inconsciente é o círculo mais vasto, que inclui em si o círculo menor do consciente; todo o consciente tem uma etapa prévia inconsciente, enquanto que o inconsciente pode persistir nessa etapa e, não obstante, reivindicar para si o valor íntegro de uma operação psíquica. O inconsciente é o psíquico verdadeiramente real, nos é tão desconhecido em sua natureza interna como o real do mundo exterior, e nos é dado pelos dados da consciência de maneira tão incompleta como o é o mundo exterior pelas indicações de nossos órgãos sensoriais. (Freud, 1900/1998, p. 600)

Em "Sobre a concepção das afasias" (1891/1973), Freud formulara a hipótese de que a informação sensorial seria sucessivamente reorganizada antes de se converter no correlato da representação, de forma que este seria, em parte, uma construção do sistema nervoso, elaborada a partir dos dados sensoriais recebidos. Nesse texto, fica claro que, para o autor, o mundo externo em si não nos seria diretamente acessível. Como ele mesmo diz, ao comentar o conceito de representação-objeto, a ideia de uma coisa existente independente de nós só pode ser uma inferência feita a partir das nossas sensações (Caropreso, 2010). Da mesma forma que o mundo externo, os processos psíquicos inconscientes seriam em si mesmos inacessíveis e teriam que ser inferidos a partir dos dados da consciência.

No artigo metapsicológico sobre o inconsciente, de 1915, Freud retoma essa ideia do caráter incognoscível do inconsciente em si, expressa no sétimo capítulo, e acrescenta algo a ela:

Assim como Kant nos alertou para que não julgássemos a percepção como idêntica ao percebido incognoscível, descuidando o condicionamento subjetivo dela, assim a psicanálise nos adverte que não temos que substituir o processo psíquico inconsciente, que é o objeto da consciência, pela percepção que esta tem dele. Como o físico, tão pouco o psíquico é necessariamente na realidade tal como nos aparece. Não obstante, ficaremos satisfeitos com a constatação de que a correção da percepção interior não oferece dificuldades tão grandes como a da percepção exterior, e que o objeto interior é menos incognoscível que o mundo exterior. (Freud, 1915/1998b, p. 167)

Freud acrescenta, em 1915, que o psíquico inconsciente seria menos incognoscível do que o mundo exterior, embora não esclareça o porquê disso. Seja como for, o inconsciente corresponderia à maior parte dos processos psíquicos, na verdade, à parte principal destes. Ele seria o psíquico verdadeiramente real, como diz Freud, uma vez que seus efeitos na consciência seriam apenas "uma repercussão psíquica remota do processo inconsciente, que, como tal, não se torna consciente" (Freud, 1900/1998, p. 600).

Embora não esteja explicitamente representada nos esquemas da seção B, Freud sustenta que a "percepção-consciência" seria a operação psíquica de um sistema particular, ao qual ele atribui a designação abreviada Cc. Esse sistema se situaria ao lado do Prcc – seria o último sistema, o mais próximo da extremidade motora do aparelho – e suas características mecânicas seriam semelhantes àquelas do sistema P: apresentaria sempre as mesmas capacidades receptivas, isto é, seria um sistema no qual nenhuma modificação permanente dos processos que aí ocorressem se conservaria.

Freud define a consciência como "um órgão sensorial para a concepção [Auffassung] de qualidades psíquicas" (Freud 1900/1998, p. 566), cuja função seria direcionar a "atenção" que atuaria no Prcc. Parte da energia de ocupação móvel de que esse sistema disporia seria usada como "atenção", enquanto outra parte seria usada para inibir e redirecionar os demais processos6. Ao produzir qualidades, o sistema consciente, de alguma forma que não nos é explicada, atrairia a atenção pré-consciente e esta realizaria uma "sobre-ocupação" daqueles processos dos quais proviesse a excitação da consciência. De tudo isso decorreria a tomada de consciência de um processo representacional, e o sistema Prcc seria, então, o agente da percepção consciente. Tendo em vista essas hipóteses, a produção da qualidade sensorial não implicaria a percepção consciente de uma representação, pois, para que uma representação fosse de fato conscientemente percebida, seria preciso que a qualidade por ela despertada fosse focalizada pelo mecanismo da atenção.

Freud afirma que "o aparelho psíquico – que, com o órgão sensorial formado pelos sistemas P, está voltado para o mundo exterior – é ele mesmo mundo exterior para o órgão sensorial da Cc, cuja justificação teleológica repousa nessa circunstância" (Freud, 1900/1998, p. 603). Inicialmente, apenas as excitações provindas de P e aquelas relacionadas ao prazer e ao desprazer – isto é, certas oscilações quantitativas dentro do aparelho – poderiam se tornar conscientes. Essa excitação proveniente de P teria que passar por um complexo processamento antes de se converter em sensação consciente: ela teria que percorrer todo o aparelho e passar pelo Prcc, sistema este que submeteria todo conteúdo perceptivo a novas elaborações:

Nosso pensamento desperto (pré-consciente) se comporta em relação a um material perceptivo qualquer de modo idêntico que o faz em relação ao conteúdo onírico. Compete-lhe, imediatamente, colocar ordem nesse material, estabelecer relações e adequá-lo a expectativa de uma trama inteligível. (Freud, 1900/1998, p. 495)

Desse modo, as percepções não despertariam diretamente a consciência, e todo processo que se tornasse consciente teria uma etapa prévia inconsciente, mesmo que incitada por estímulos do mundo externo. Assim, a consciência seria posterior à memória; seria algo que poderia se acrescentar a uma representação (ou a um processo mnêmico) dependendo do cumprimento de certas condições. O fluxo de excitação que percorreria o aparelho do sistema P até a via motora é chamado de "progressivo", e a excitação que o percorresse no sentido inverso – ou seja, dos sistemas de memória ao sistema P – caminharia, portanto, em sentido "regressivo". Na vigília, a excitação em sentido progressivo predominaria, embora também pudesse ocorrer nesse estado fluxos regressivos, pois uma das etapas da rememoração comum consistiria na ocupação regressiva do sistema P.

Como vimos, originalmente a consciência decorreria apenas das sensações de prazer e desprazer e das percepções, sendo que estas últimas poderiam surgir no aparelho por dois caminhos diferentes: a partir da recepção de excitação exógena ou a partir da ocupação do sistema P por excitação proveniente do interior do aparelho, isto é, a partir dos próprios sistemas de memória. Freud sustenta a hipótese de que, com a associação dos processos a representações-palavra, surgiria um novo tipo de consciência, intermediado pelas associações linguísticas. A consciência do pensamento seria possibilitada pela reativação alucinatória das representações-palavra. Antes da constituição dessas representações, os processos psíquicos seriam regulados automaticamente pelas sensações de prazer e desprazer. Com a associação desses processos a palavras, eles se tornariam relativamente independentes dessa regulação imposta pelo prazer e pelo desprazer. Ao comentar o papel dos signos linguísticos nos processos associativos, Freud argumenta que seria a associação com representações-palavra que tornaria possível o acesso a representações desprazerosas por parte do pré-consciente, o que aperfeiçoaria o modo de operação do aparelho, pois instauraria uma regulação mais fina e flexível do que aquela primária, exercida somente pelas sensações de prazer e desprazer:

É provável que inicialmente o princípio de desprazer regule automaticamente os deslocamentos da ocupação; mas é muito possível que a consciência destas qualidades agregue uma segunda regulação, mais fina, que até pode contrariar a primeira e que aperfeiçoa a capacidade de operação do aparelho, uma vez que, em oposição à sua disposição originária, o habilita para submeter à ocupação e à elaboração também aquilo que se liga a um desprendimento de desprazer. (Freud, 1900/1998, p. 604)

Uma vez que a percepção só alcançaria a consciência após passar por todos os sistemas que separariam os dois extremos do aparelho, e tendo em vista que os sistemas intermediários consistiriam, na verdade, em vários níveis de processos, podemos dizer que a informação sensorial exógena só se tornaria consciente após passar por uma longa série de processos. Sendo assim, a rememoração teria uma primeira etapa regressiva, na qual as palavras seriam transpostas em percepções, e uma segunda etapa progressiva, a partir da qual a percepção poderia tornar-se consciente. Assim, a percepção ordinária – isto é, aquela produzida pela recepção de estímulos exógenos – se daria por um processo inteiramente progressivo, enquanto que a rememoração possuiria duas etapas: uma regressiva e outra progressiva, tal como ocorreria com a alucinação. A diferença entre a rememoração e a alucinação seria, assim, apenas quantitativa.

Freud propõe a existência de uma censura entre os sistemas Cc e Prcc, análoga à que haveria entre este último sistema e o Icc e que entraria em operação quando certo limite quantitativo fosse ultrapassado, de modo que pensamentos de pouca intensidade se subtrairiam à sua ação. Com essa hipótese, ele parece estar propondo que, mesmo entre os processos que envolvessem palavras, haveria alguns que não poderiam se tornar conscientes por sua baixa intensidade, o que parece implicar que haveria, de certa forma, um "insuscetível de consciência" no Prcc. Assim, dois fatores tornariam um processo pré-consciente apto a despertar a consciência: estar associado a palavras e possuir uma intensidade acima de certo limiar. No entanto, esses processos "aptos a despertar a consciência" só a despertariam de fato se não fossem barrados pela censura presente entre o Prcc e a CC. Então, com exceção das percepções e das sensações de prazer e desprazer, apenas aqueles processos que estivessem associados a palavras, que possuíssem certa intensidade e que não fossem barrados pela censura poderiam se tornar conscientes. Freud afirma com referência ao Prcc: "(...) suas excitações – certamente obedecendo também a certas regras e, talvez, só depois de superar uma nova censura, mas sem consideração pelo sistema Icc – podem alcançar a consciência" (Freud, 1900/1998, p. 602).

 

5) Considerações finais

Pode-se dizer que a possibilidade de conhecimento de nós mesmos e do mundo externo seria extremamente limitada de acordo com a teoria freudiana. Em relação ao conhecimento do mundo externo, essa limitação seria determinada por vários fatores. Em primeiro lugar, pelo fato de que os estímulos sensoriais seriam sucessivamente organizados antes mesmo de alcançarem os sistemas mnêmicos e continuariam sendo reorganizados ao tramitarem por esses sistemas, de forma que aquilo que alcançasse a consciência seria a última etapa de uma série de organizações e reorganizações que os estímulos externos sofreriam. A última etapa dessa organização seria aquela imposta pela linguagem, ou pelas representações-palavra, de maneira que nossa percepção do mundo seria moldada em última instância pela linguagem. Tendo isso em vista, nosso acesso ao mundo externo seria indireto; o mundo externo seria em si mesmo incognoscível, como reconhece Freud na referência a Kant, presente em "A interpretação dos sonhos". No entanto, além de indireto, o acesso ao mundo externo seria também extremamente restrito devido ao fato de que receber informações sensoriais provenientes do mundo externo e registrá-las – ou seja, formar traços mnêmicos ou representações a elas correspondentes – não implicaria que elas fossem de fato conscientemente percebidas. Apenas aquelas representações focalizadas pelo mecanismo da atenção do pré-consciente seriam, de fato, conscientemente percebidas. Assim, a atenção selecionaria a parcela das percepções externas que seria apreendida conscientemente pelo indivíduo.

Em relação aos processos incitados a partir o interior do aparelho, ou seja, aos processos mnêmicos, a primeira limitação que se colocaria é que apenas aqueles associados a representações-palavra poderiam, em princípio, se tornar conscientes, ou seja, poderiam ser rememorados. Uma parcela significativa de nossas representações não seria associada a palavras, permanecendo insuscetível de se tornar consciente pela via normal do pensamento. Tais representações pertencentes ao sistema inconsciente, ou ao processo primário, só poderiam alcançar a consciência pela via alucinatória, seja em condições normais, como nos sonhos, seja em condições patológicas, como nas psicoses. O acesso às nossas representações seria, sobretudo, condicionado pelo desprazer. No inconsciente, o desprazeroso estaria completamente excluído, e o pré-consciente teria acesso a representações que produzissem desprazer desde que este não superasse certa intensidade. Como vimos, já em 1900 Freud supõe que uma parcela das nossas moções de desejo não chegaria a ser integrada ao processo secundário, permanecendo inconsciente desde a origem. A estas viriam acrescentar-se as representações reprimidas, que seriam aquelas excluídas do processo secundário por se tornarem fonte de conflito e desprazer. No entanto, a limitação do acesso às nossas memórias não se restringiria a isso, pois mesmo as representações pré-conscientes teriam que cumprir certas condições para, de fato, tornarem-se conscientes. Elas teriam que possuir intensidade acima de certo limiar e superar uma segunda censura que se situaria entre os sistemas pré-consciente e consciente. Embora Freud não especifique quais seriam as condições impostas por essa censura, ele afirma sua existência, o que deixa claro que haveria um insuscetível de consciência também no pré-consciente. Além dessas limitações no campo da memória, nossas recordações também seriam organizadas, em última instância, pela linguagem. Esta organizaria o campo representacional de maneira que tudo o que pudéssemos perceber sobre o mundo e sobre nós mesmos seria por ela estruturado.

Assim, podemos dizer que, para Freud, conheceríamos apenas uma pequena parte do mundo externo e de nós mesmos, e esse conhecimento possível seria uma "construção" do nosso aparelho psíquico de acordo com os diversos princípios associativos presentes neste e, em última instância, de acordo com a linguagem.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Fátima Caropreso
E-mail: fatimacaropreso@uol.com.br

 

 

* Professora de psicologia e dos programas de pós-graduação em psicologia e em filosofia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq.
1 Seguindo a opção da tradução da editora argentina Amorrortu, usaremos "Prcc" como abreviatura para pré-consciente, em vez de "Pcc", a fim de distinguir melhor de "P" (percepção).
2 No sétimo capítulo, Freud contrapõe um modo de representação "tópico" a um "dinâmico", ou seja, uma representação dos sistemas Prcc e Icc como dois lugares diferentes a uma representação desses como dois processos distintos. Em "Nota sobre o conceito de inconsciente", de 1912, Freud usa o termo "dinâmico" para designar um inconsciente ativo – ou seja, para designar a capacidade de ação do inconsciente – e diz que a concepção sistemática de inconsciente vem se acrescentar à dinâmica, porque estabelece que esse psíquico insuscetível de consciência, além de ativo, possui propriedades peculiares e exclusivas. Portanto, o termo "dinâmico" é usado em dois sentidos diferentes.
3 No sétimo capítulo, o desejo, assim como no Projeto de uma psicologia, seria a tendência de uma excitação para ocupar uma determinada representação-objeto, enquanto que a efetiva ocupação dessa representação consistiria em uma realização de desejo. Segundo Laplanche (1981/1992, p. 61), uma "moção" (Regung) seria uma excitação fixada a uma representação específica.
4 Ricoeur nos chama a atenção para esse fato. Diz ele: "é o esquema jacksoniano da liberação funcional que se encontra aqui enxertado sobre o esquema puramente tópico do aparelho psíquico" (Ricoeur, 1965/1977, p. 102).
5 A hipótese de que o curso associativo primário nunca leva ao desprazer é uma ideia nova que Freud introduz no sétimo capítulo. No Projeto de uma psicologia, o processo primário era pensado como um processo que poderia conduzir ao desprazer ou ao prazer (Caropreso & Simanke, 2006).
6 Em algumas ocasiões, Freud usa o termo "atenção da consciência", mas, na verdade, a atenção seria uma função do Prcc, como demonstra a seguinte afirmação: "O sistema Prcc não só bloqueia o acesso à consciência, mas preside o acesso à motricidade voluntária e dispõe do envio de uma energia de ocupação móvel, uma parte da qual nos é familiar como atenção" (Freud, 1900/1998, p. 602).

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