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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.18 no.2 São Paulo dez. 2016

 

ARTIGOS DE FLUXO CONTÍNUO

 

Da indicação dos problemas da metafísica para a metafísica como problema: uma discussão heideggeriana

 

Of the indication of problems of metaphysics for metaphysics as problem: a heideggerian discussion

 

 

Flávio de Oliveira Silva*

Universidade do Estado da Bahia (UNEB)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

As reflexões de Heidegger em relação à metafísica são particularmente importantes não apenas para se compreender devidamente seu pensamento filosófico, mas, sobretudo, para estimar a contribuição que tais reflexões propiciaram para o redimensionamento da concepção de filosofia no século XX. Nessa perspectiva, este trabalho explicita aspectos importantes do percurso filosófico de Heidegger em relação ao conceito de metafísica. Argumenta-se que, nos textos escritos até os anos 1930, Heidegger visava discutir e apresentar os problemas da metafísica na pretensão de elaborar as condições de possibilidade de toda investigação ontológica sem ainda conceber a metafísica como questão propriamente dita e, portanto, sem interrogá-la em seus pressupostos. Indicamos que, nesse período, os problemas da metafísica eram tratados como questão de método, isto é, em relação ao caminho e ao modo da metafísica desenvolver sua pesquisa e elaborar suas questões. Nos textos posteriores a 1930, o conceito de metafísica assume um lugar privilegiado na reflexão do filósofo, como cerne da problemática em questão. Objetiva-se ainda apresentar a problemática do conceito de metafísica da metafísica tradicional.

Palavras-chave: Dasein; Heidegger; metafísica tradicional; ser; superação da metafísica.


ABSTRACT

The reflection of Heidegger in relation of metaphysic are particularly important, not only to duly comprehend his philosophical thought, but mostly to comprehend the range of his philosophy and the contribution that these reflections have provided to the resizing of the conception of philosophy in the twentieth century. In this perspective, this paper aims at explain the peculiarity of the metaphysics theme. It is argued that in written texts up to the 1930s, Heidegger aimed to discuss and present the problems of metaphysics in the pretension of elaborating the conditions of possibility of any ontological investigation, without even conceiving metaphysics as a matter properly said and therefore, without interrogating it in its presuppositions. We indicate that in this period the problems of metaphysics were treated as a matter of method, this is, in relation to the way and the mode of metaphysics to develop its research and to elaborate your questions. In the texts after the year 1930, the concept of metaphysics assume the privileged place in the reflection of the philosopher and presents itself as the core of the problematic in question. It is proposed to present the problematic of the concept of metaphysics of traditional metaphysics.

Keywords: Dasein; Heidegger; traditional metaphysic; being; overcoming of metaphysics.


 

 

1) Considerações iniciais

A despeito da discussão quanto a uma possível ruptura e divisão1 no pensamento de Heidegger, não entraremos no mérito dessa questão, senão no ponto em que concordamos com Reiner Schürmann (apud Martinengo, 2008), ao dizer que, a partir dos anos 1930, se opera uma radicalização no discurso de Heidegger. Nessa linha de argumentação, trataremos do tema da metafísica com vistas a explicitar o caminho desenvolvido por Heidegger para essa radicalização.

Pontuaremos que, de início, Heidegger está a examinar e expor os problemas da metafísica sem ainda atentar para o conceito estrutural de metafísica como o lugar de origem da problemática em questão. A referida radicalização desdobra-se na medida em que o conceito de metafísica emerge como sendo ele mesmo o problema em questão. O filósofo nos orienta para essa interpretação ao fazer referência à virada (die Kehre)2 operada no âmbito de sua investigação. Inicialmente centrada em ser e tempo, a reflexão deu lugar para a investigação na indicação de tempo e ser. No que concerne à questão da verdade, deslocou-se da essência da verdade para a verdade da essência (Heidegger, 1996c, p. 169). As referências a esses dois momentos sinalizam modos diversos de apreensão e recepção da metafísica, sem que isso implique na falta de unidade ou na ruptura de seu pensamento.

Até os últimos textos da década de 1920, é possível afirmar que o filósofo adota uma postura positiva em relação à metafísica tradicional, na medida em que não questiona os pressupostos desse saber nem os coloca em questão e, em vez disso, se empenha em creditar à metafísica a possibilidade de apreensão do sentido do ser mediante a explicitação dos problemas a ela pertinentes, com vista a equacioná-los.

Alguns autores fazem menção a essa acepção positiva e negativa de Heidegger ao se referirem aos textos de antes e depois dos anos 1930. Friedman (1996), ao estabelecer uma comparação entre o texto de Carnap – A superação da metafísica pela análise lógica da linguagem, de 1932 – e o texto de Heidegger – O que é metafísica?, de 1929 –, afirma que ambos têm a mesma concepção de metafísica, porém, divergem quanto à recepção em relação a esse saber. Conforme Friedman, enquanto Carnap se pronunciou no sentido de negativizar a metafísica, Heidegger se pronunciou em defesa da metafísica. Ainda segundo Friedman, a repercussão da crítica negativa de Carnap teria conduzido Heidegger a utilizar o termo "metafísica" em acepção negativa.

Ao se referir às preleções de Heidegger sobre Nietzsche no inverno de 1936-1937, Inwood (2002) afirma que elas indicam uma hostilidade de Heidegger em relação à metafísica ao apresentar Nietzsche como o representante do fim da metafísica ocidental e se propor a alcançar o que Nietzsche não conseguiu: a superação da metafísica.

Crowell (2000), por sua vez, adota uma divisão temática em relação aos textos de Heidegger e considera o período de 1927 a 1937 como a década metafísica do filósofo na referência à releitura da obra kantiana. Convém transcrever uma passagem da obra de 1929: "A seguinte investigação se propõe à tarefa de interpretar a 'Crítica da Razão Pura de Kant' como uma fundamentação da metafísica. O problema da metafísica se enfoca, pois, como problema de uma ontologia fundamental" (Heidegger, 1996d, p. 11).

A referência a essa acepção positiva e ao empenho fenomenológico do filósofo visa expor em que medida, nos textos dos anos 1920, Heidegger se ocupa em apresentar os problemas da metafísica sem ainda questionar a metafísica em seu pressuposto conceitual. Heidegger afirma categoricamente: "A hermenêutica da pré-sença3 torna-se também uma 'hermenêutica' no sentido de eaboração das condições de possibilidade de toda investigação ontológica" (Heidegger, 1998, pp. 68-69).

Embora em Ser e tempo Heidegger se utilize do termo destruição (Destruktion) para a tarefa a que se propõe – "a destruição do acervo da antiga ontologia, legado pela tradição" (Heidegger, 1998, p. 51) –, essa destruição não tem o sentido negativo; em vez disso, expressa a tarefa de remoção dos entulhos acumulados na história da ontologia, com o propósito de definir e circunscrever a tradição em suas possibilidades positivas (Heidegger, 1998, p. 51).

No intuito de elaborar as condições de possibilidade da pesquisa ontológica, Heidegger empreendeu uma revisão do método de investigação da metafísica ao resignificar o sentido de fenomenologia e de hermenêutica como caminhos para tornar essa tarefa exequível: "Apreender o ser dos entes e explicar o próprio ser é tarefa da ontologia"4 (Heidegger, 1998, p. 56). Em continuidade à exposição do método fenomenológico de investigação, afirma: "é a partir da necessidade real de determinadas questões e do modo de tratar impostos pelas 'coisas em si mesmas' que, em todo caso, uma disciplina pode ser elaborada" (Heidegger, 1998, p. 56, grifo nosso).

Obviamente, o termo fenomenologia, como método de investigação intentado por Heidegger nos anos 1920, não se destina aos mesmos propósitos visados pela ciência na utilização do método científico. Enquanto a ciência busca a produção de conhecimento e se utiliza do método científico para determinar uma substância ou um elemento real que possa definir e delimitar algo como um objeto, a fenomenologia proposta por Heidegger visa mostrar o modo como as coisas são (Heidegger, 1998, p. 57). No entanto, o sentido de método em ambas as proposições coincidem no ponto em que se traduzem como caminho, modo, maneira de tratar uma questão: "A expressão 'fenomenologia' diz, antes de tudo, um conceito de método" (Heidegger, 1998, p. 57).

Como ponto chave da resignificação que Heidegger empreende ao conceito de fenomenologia e de hermenêutica está a apresentação do Dasein como o ente privilegiado e requisitado para a reorientação da pesquisa filosófica. Mediante a apresentação do Dasein, Heidegger desconstrói a concepção tradicional de homem entendido como animal racional, cuja razão tem sido dada como o lugar de origem para dizer o que é o homem. Em lugar de apreendê-lo como sujeito, Heidegger o nomeia naquilo que originalmente o apresenta em sua essência: Ser-aí (Dasein), e, assim, designa-o como o ente especial em acesso privilegiado e genuíno para a questão do ser, tendo em vista ser ele o ente que compreende ser.

Os textos dos anos 1920 expressam a ocupação de Heidegger em remover os empecilhos da investigação filosófica, considerando-os como problemas da metafísica, enquanto nos textos escritos a partir dos anos 1930, verifica-se uma radicalização em relação ao tema da metafísica e um reposicionamento do filósofo em relação à metafísica tradicional. Os sinais dessa radicalização se apresentam com a assim chamada virada (die Kehre), sinais esses atribuídos à conferência pronunciada em 1930 Sobre a essência da verdade (Vom Wesen der Wahrheit), publicada em 1943. Essa fase se caracteriza pela reinterpretação que o filósofo lança sobre sua própria interpretação inicial. Ela apresenta nuanças que vão desde um posicionamento crítico em relação ao pressuposto axiomático da metafísica tradicional que investiga o ser na relação ser e ente até o posicionamento em que a metafísica é vista como o âmbito velado de um pronunciamento a ser desvelado, mediante o confronto com a sua história.

Em textos que se seguem a partir dos anos 19305, Heidegger passa a rejeitar a pretensão da metafísica tradicional, antes assumida e acolhida como tarefa exequível. Os problemas da metafísica deixam de ser primazia na discussão e, em vez disso, a metafísica passa a ser assumida como problema, ao tempo em que põe em questão seu pressuposto conceitual.

Dito isso e em conformidade com a indicação que dá título a este artigo, pretende-se desenvolver considerações referentes a essa mudança de posição do filósofo em direção a uma radicalização da metafísica e, por consequência, indicar que o Heidegger tardio visa remeter a verdade do ser para uma dimensão desconhecida da tradição metafísica.

 

2) O domínio da metafísica

Heidegger interpreta a metafísica como o horizonte no qual o homem ocidental tem desenvolvido sua percepção de mundo e concebido a si próprio como sujeito dotado de razão. Segundo o filósofo, ainda quando o homem não está a serviço da ciência, das letras e não tenha por ocupação o saber, mesmo assim ele reside sob o jugo da metafísica. Conforme Heidegger, a metafísica subjaz na discussão acerca do homem e do mundo, seja do ponto de vista do senso comum, seja do ponto de vista das ciências.

[...] pois o que são os "fatos" da ciência natural e de toda ciência senão determinados fenômenos, interpretados segundo princípios expressos, implícitos ou mesmo absolutamente desconhecidos de uma metafísica, isto é, de uma doutrina do ente na totalidade?!? (Heidegger, 2007a, p. 290)

Assim como na citação anterior da obra Nietzsche, Heidegger expressa inúmeras vezes em seus textos o domínio da metafísica como modo de ser do homem ocidental. Essa mesma concepção é exposta na seguinte afirmação contida no texto O retorno ao fundamento da metafísica (Der Rückgang in den Grund der Metaphysik), de 1949: "Enquanto o homem permanecer animal rationale é ele animal metaphysicum" (Heidegger, 1996a, p. 78).

Em ambas as citações, Heidegger apresenta a metafísica como o modo de o homem ocidental interpretar o mundo e pautar as relações sociais. Conforme o filósofo, a lida do Dasein com os entes em geral se movimenta no horizonte do saber metafísico ao transcender aos entes em direção ao ser.

O tema metafísica está presente desde os primeiros textos de Heidegger. Sua importante obra Ser e tempo representa uma espécie de síntese e aprofundamento a que chegam suas investigações e reflexões desse período. Intentamos mostrar, com base em textos dessa época, a visão de Heidegger focada nos problemas da metafísica e em permanência ao pressuposto da concepção metafísica tradicional que questiona e compreende o ser a partir da relação entre ser e ente. Decorre dessa constatação que, nesse período, o tema metafísica permanece inquestionável em seu pressuposto conceitual.

A partir desse enfoque, apontamos, nos textos dos anos 1920, a assunção da concepção de ser mediada na relação entre ser e ente e, em meio a essa exposição, mostraremos em textos pós anos 1920 o realinhamento que se opera em decorrência do abandono da concepção de ser, até então vinculada à relação já referida.

Desde cedo, a temática metafísica tem sido a tônica diretora no pensamento do Heidegger. O início de sua incursão na filosofia se deu no confronto com Aristóteles (Volpi, 1984; Berti, 1992) a partir da leitura da dissertação de Franz Brentano, Sobre o múltiplo significado de ser em Aristóteles (1862)6. A temática do ser se mostrou como a questão por excelência, e realmente o acompanhou durante sua vida de pensador.

Sua posição fundamental, sobretudo nos textos pós-virada, reside na concepção segundo a qual o ser impera como acontecimento vigente que possibilita e conduz o dizer, o pensar e o fazer. Em uma passagem da obra Nietzsche I, Heidegger elucida um fragmento do Fedro, de Platão, no qual cita o ser como acontecimento vigente que propicia a relação do homem com o ente.

O homem é o ser que se comporta em relação ao ente como tal. No entanto, ele não poderia ser esse ser, ou seja, o ente não poderia se mostrar para ele como ente, se já não tivesse sempre em vista, de antemão, o ser por meio da "teoria". A "alma" do homem precisa ter visto o ser, pois o ser não é captável com os sentidos. O ser é isso do que a alma "se alimenta". O Ser, a ligação discernente com o ser, concede ao homem a relação com o ente [...]. Essa forma de vida chamada homem seria pura e simplesmente impossível se já não reinasse nela desde o seu fundamento e para além de tudo a visão do ser. (Heidegger, 2007a, p. 173)

Assim como nessa interpretação, na alusão ao Fedro de Platão, Heidegger se utilizou de outras obras e outros filósofos para, ao tempo em que intenta dar a conhecer o pensamento destes, apresentar sua própria interpretação. A referida interpretação expõe a relação ser e ente como questão guia que determina a metafísica tradicional.

Segue-se um sucinto mapeamento do tema metafísica em textos recorrentes de Heidegger que delineiam o significado e a curvatura dessa temática em sua filosofia, tanto no que se refere ao domínio do ser como acontecimento que se traduz como metafísica quanto na relação ser e ente como pressuposto da metafísica tradicional. Para tanto, além dos textos do filósofo, nos servimos também da contribuição de especialistas que discorreram especificamente sobre o tema.

No trabalho sobre categorias e significado em Duns Scot, em 1916, Heidegger estabelece uma relação entre o fundamento da lógica e da filosofia com a história e a vida, com vistas a posicionar a metafísica como saber que antecede às determinações lógicas. Conforme o texto, a pesquisa sobre as categorias conduz necessariamente para além da lógica e deve visar os problemas e o âmbito originário da lógica. A lógica como teoria da verdade teria o dever e a tarefa de fornecer uma análise metafísico-teológica da consciência (Ficara, 2010, p. 154).

A ideia defendida por Heidegger reafirma a indicação contida no quarto livro da Metafísica (1987) de Aristóteles, que legisla como tarefa primeira da ciência fundar os princípios lógicos, de modo a corroborar a afirmação aristotélica da primazia da metafísica em relação aos outros saberes.

O texto Interpretações fenomenológicas sobre Aristóteles: indicação da situação hermenêutica (Phänomenologische Interpretationen zu Aristoteles: Anzeige der hermeneutischen Situation), de 1922, é considerado significativo por estabelecer a ligação entre os primeiros escritos de Heidegger, de 1912 a 1916, e o tratado Ser e tempo, de 1927. Nesse texto, o termo "metafísica" não aparece e, ao fazer referência à ontologia, Heidegger utiliza o termo investigações filosóficas (Heidegger, 2002a, pp. 30-34). Quando faz referência aos problemas da metafísica, usa o termo problemática epistemológica e ontológica (Heidegger, 2002a, p. 38).

O texto de 1922 estabelece a fenomenologia e a lógica como base para compreender a interpretação fenomenológica de Aristóteles e concebe ontologia e lógica em uma unidade originária (Heidegger, 2002a, p. 47), entendendo que essa unidade deve ser remetida à problemática da facticidade (Heidegger, 2002a, p. 39). Em ano subsequente, o filósofo dedica uma atenção especial à temática da facticidade.

Em 1923, em Freiburg, Heidegger ministra um curso e o publica posteriormente em 1924 com o título Ontologia, hermenêutica da facticidade (Ontologie, Hermeneutik der Faktizität). Nesse curso, apresenta pela primeira vez o programa da hermenêutica da existência, cujo desfecho se realizou anos depois com a obra Ser e tempo. No ano de 1923, ele explica que, para a tarefa a que se propõe, visa o termo "ontologia" em seu sentido tradicional. Ontologia significa doutrina do ser (Heidegger, 1999, p. 17, tradução nossa), no sentido de uma indicação.

Conforme Heidegger, a ontologia é um interrogar e um qualificar direto ao ser, no qual o ser mesmo permanece indeterminado. O termo ontológico destina a explicar e conceituar categorias que surjam. Ontologia e ontológico são utilizados apenas no sentido vazio, isto é, sem indicação e sem comprometimento algum (Heidegger, 1999, p. 18), devendo-se entender por ontologia a antiga metafísica sem a mínima possibilidade ou tendência a uma pesquisa que coloque questões.

Dito isso, o filósofo adverte que não se trata de tomar o termo ontologia em seu sentido moderno, isto é, como teoria do objeto, como pesquisa formal sobre a objetualidade em geral. Todavia, pondera, o conceito moderno de ontologia concorda com a antiga ontologia no ponto em que visa o âmbito geral. Em sentido fenomenológico, a ontologia tradicional não pergunta qual é o âmbito do ser que origina o sentido de ser que é decisivo e que direciona toda a problemática (Heidegger, 1999, p. 19), assim, ela perde o acesso ao existente decisivo da problemática filosófica, isto é, o Dasein a partir do qual e pelo qual a filosofia é (Heidegger, 1999, p. 19).

Heidegger usa os termos ontologia e metafísica antiga como sinônimos e faz distinção entre ontologia ou metafísica antiga e ontologia fenomenológica da escola de Husserl. Ele declara e considera pertinente o termo no sentido mais aproximado ao tradicional como doutrina do ser.

Na obra supracitada, Heidegger introduz a noção de tempo como ponto chave que promove a diferença entre a concepção de ontologia como hermenêutica da existência e a concepção da ontologia ou metafísica antiga. O tempo é apresentado como o horizonte que anula o caráter dogmático da ontologia tradicional. Em vista disso o termo hermenêutica da facticidade passa a nomear a hermenêutica da existência.

O tempo aponta para a finitude da existência na medida em que a ontologia heideggeriana é tematizada sob a denominação de hermenêutica da facticidade. Afirma Heidegger: "facticidade é o caráter de ser do 'nosso' próprio ser aí". Mais exatamente, a expressão significa "ser-aí em cada ocasião (fenômeno de cada instante) (...) de modo que em seu caráter de ser, existe, está aqui, é" (Heidegger, 1999, p. 25, tradução nossa). O "viver fáctico significa dizer: nosso próprio existir o estar-aqui enquanto 'aqui', enquanto expressão aberta, no que toca ao ser em seu caráter de ser" (Heidegger, 1999, p. 26).

Por hermenêutica, o filósofo designa um modo de acesso particular ao Dasein. "A relação entre hermenêutica e facticidade não é a que se dá entre apreensão de um objeto e objeto apreendido ao qual aquela tenderia a ajustar-se, mas a interpretação mesma é um 'como' específico do caráter de ser da facticidade" (Heidegger, 1999, p. 33). Nesse sentido, o ser aí (Dasein) no âmbito especificamente filosófico implica uma abertura da questão metafísica ao tema da temporalidade e da facticidade. Com a concepção do Dasein, o filósofo intensifica o distanciamento com a ontologia ou metafísica antiga, no ponto em que evita a redução do ser a um ente particular (Deus). Evita igualmente, desse modo, o dogmatismo e as superstições.

No entanto, Heidegger permanece no postulado da metafísica tradicional, visto que a fenomenologia é a assunção da pesquisa pautada na compreensão de ser como ser do ente, e a hermenêutica da facticidade é a investigação que se elabora com vistas a perseguir essa relação entre ser e ente.

Anos depois, Heidegger apresenta em Ser e tempo o primado da diferença ontológica entre ser e ente, sob a acusação de a metafísica tradicional compreender o ser como outro ente e, com isso, perder de vista a diferença entre ambas as noções. Esse primado, embora seja um divisor entre o modus operandi da metafísica antiga e o como hermenêutico da filosofia heideggeriana, ainda indica que a filosofia de Heidegger permanece no pressuposto da metafísica tradicional no ponto em que pensa e investiga o ser como ser do ente.

Com vistas ao que foi dito, constata-se que a hermenêutica da facticidade foi a reflexão decisiva para a configuração do tratado Ser e tempo. Essa obra coloca em evidência a questão sobre o sentido do ser a partir do ente que pergunta pelo ser e abre a pesquisa. Entende-se que, na exposição do Dasein como ente que põe a questão sobre o ser, o filósofo visou reconduzir devidamente a metafísica como pesquisa que deve reportar-se ao âmbito investigativo do Dasein que põe a pergunta sobre o ser, compreende o ser e, desse modo, se realiza a cada instante como o horizonte que abre o espaço para o conhecimento.

Conforme Heidegger, a ontologia deve corresponder a uma hermenêutica da vida. Para ele, o modo em que a facticidade tenta compreender-se e conceituar-se contemporaneamente é um discurso sobre o ser. Hermenêutica significa, assim, o próprio da existência efetiva que se desenvolve sobre si mesma, procurando compreender-se.

No referido curso de 1923, os termos metafísica e ontologia são tratados como sinônimos e designam a pesquisa que se ocupa do ser em modo preliminar e privado de determinação. Não se trata de um âmbito particular do ser, a exemplo da obra Ser e tempo, que empreende a analítica do Dasein como horizonte ontológico do ser do homem. No texto Ontologia – hermenêutica da facticidade, o filósofo designa por "ontologia" a análise hermenêutica da facticidade do Dasein e, nesse caso, o termo Dasein não se contrapõe ao significado geral de ontologia e metafísica e também não é um termo para precisar um ente especial. Assim, a ontologia como hermenêutica da facticidade tem como tarefa tratar do ser do ente em geral (Heidegger, 1999, p. 19).

No semestre de inverno de 1925-1926, Heidegger retoma, em certo sentido, a discussão, explicitação e fundação da lógica como âmbito originário, a fim de estabelecer a supremacia do questionamento metafísico. Esse curso, com o título Lógica, a pergunta pela verdade (Logik. Die Frage nach Der Wahrheit), contrapõe a lógica tradicional à lógica filosofante. Nele, Heidegger pergunta pelo logos na pretensão de tratar da lógica da verdade sob a tutela da filosofia.

O curso estabelece um confronto entre a interpretação de verdade em Aristóteles e a interpretação de verdade no horizonte da existência. A pergunta radical pela verdade se dá no horizonte da analítica da existência, guiada na problemática do tempo7 posto por Kant na obra Crítica da razão pura.

No texto do semestre de inverno de 1926-1927 em Marburg, intitulado História da filosofia de Tomás de Aquino até Kant (Geschichte der Philosophie von Thomas von Aquin bis Kant), Heidegger faz uma distinção entre conceito vulgar e conceito científico de metafísica. Em sentido vulgar, a metafísica corresponde à pesquisa ôntica, isto é, ao conhecimento do ente já posto, dado, existente em sua concretude para, então, compreendê-lo, descobrindo o seu ser e o seu sentido. Em sentido científico, corresponderia à ontologia.

Conforme Heidegger, o conceito científico de metafísica é o que interessa ao filósofo investigar, sendo a sobriedade e a gélida frieza dos conceitos seus únicos instrumentos (Heidegger, 2009, p. 22). Em nota, o editor da obra observa a passagem em que a pesquisa ôntica vem contraposta ao ontológico-metafísico e é corrigida pelo próprio Heidegger, quando este retira o termo "ontológico" e permanece apenas o "ôntico" contraposto ao "metafísico".

A correção feita por Heidegger, somando-se a outros indícios, mostra, no período que antecede Ser e tempo e mesmo em Ser e tempo, o entendimento da metafísica como pesquisa filosófica capaz de cumprir a tarefa do questionamento do ser8.

O filósofo se ateve em Ser e tempo à tarefa de erigir uma ontologia fundamental por entender que a questão mesma do ser caiu no esquecimento. O desenvolvimento da pesquisa com vistas à investigação do ser do ente em geral se constituiu para Heidegger em um problema fundamental da metafísica que precisava ser revisto e redimensionado. Em lugar do questionamento ao ente em geral, o filósofo apresenta o Dasein como o ente privilegiado da possibilidade de compreensão do sentido do ser.

Em síntese, o método fenomenológico possibilitaria a hermenêutica do Dasein com vistas a promover a diferença ontológica e, desse modo, construir as condições de possibilidade de toda ontologia (Heidegger, 1998, pp. 68-69).

 

3) A posição de Heidegger em relação à metafísica

A partir do exposto, pode-se dizer que o Heidegger dos anos 1920 ainda não havia radicalizado seu discurso em relação à metafísica, embora atentasse para os diversos problemas inerentes a ela, sem, ainda, vislumbrar o construto conceitual de metafísica como uma questão problema.

Em discurso posterior à publicação de Ser e tempo, Heidegger declara que, nessa obra, empreendeu a tentativa de pensar a questão do ser com base na verdade do ser e não mais na verdade do ente, na diferença ao trabalho desenvolvido pela tradição.

Convém ressaltar que, embora o filósofo mencione em Ser e tempo a tentativa de pensar o ser com base na pergunta sobre a verdade do ser e não do ente, sua pesquisa se desenvolve mediada na relação ser e ente, a partir da via exclusiva e estrutural da tradição que pensa o ser como ser do ente. Ou seja, Ser e tempo toma como referência o horizonte do ser como ser do ente. Isto significa que a obra segue a via metafísica que investiga o ser como ser do ente: "No tratado Ser e tempo, foi empreendida a tentativa de determinar, com base na pergunta sobre a verdade do ser e não mais sobre a verdade do ente, a essência do homem a partir de sua relação com o ser e a partir apenas dessa relação" (Heidegger, 2007b, p. 145, grifo nosso).

A permanência significativa de Ser e tempo no domínio da metafísica tradicional fica cada vez mais clara para Heidegger, de modo que, em outras passagens, ele se refere ao tratado como uma obra de transição (Übergang) da metafísica para a questão básica sobre o ser (Heidegger, 2007c, pp. 84, 223, 229, 234).

Como obra de transição, Ser e tempo dá um passo além da tradição metafísica. Ela rompe paradigmas quando, por exemplo, nomeia o Dasein como o ente privilegiado em acesso ao sentido do ser, na diferença ontológica entre ser e ente, ou seja, na diferença à pesquisa filosófica tradicional que investiga o ser como se fosse um ente, sem atentar para a diferença entre ambas as noções. A analítica do Dasein se desenvolve na pretensão da diferença ontológica e, como exposição do ser do homem, não se reduz ao conceito de sujeito nem de animal racional. Ser e tempo atenta para a diferença ontológica entre ser e ente por justamente incidir no pressuposto da relação ser e ente.

Como se pode ver, somos tentados a querer determinar o lugar em que transita o pensamento de Heidegger: se no domínio da metafísica tradicional ou se fora desse domínio. Convém pontuar que as dificuldades e controvérsias suscitadas quanto ao lugar do pensamento de Heidegger na metafísica se dão muito mais em razão dos pronunciamentos posteriores do filósofo em relação a Ser e tempo do que propriamente do conteúdo dessa obra.

Esse impasse vem à tona neste artigo unicamente na pretensão de mostrar que os textos de Heidegger até os anos 1930 tratam dos problemas da metafísica sem questionar a metafísica em seu pressuposto conceitual. A partir dos anos 1930, tem-se a chamada virada, expressa na radicalização do seu discurso filosófico, razão pela qual desde então a concepção estrutural da metafísica tradicional passa a se apresentar ao filósofo como cerne da problemática que convém investigar.

Conforme já mencionado, os pronunciamentos de Heidegger referentes ao tratado Ser e tempo são, em grande parte, responsáveis por abrir o leque de discussão sobre o âmbito de inserção da obra, sobretudo porque algumas dessas declarações são ambíguas: ora admite a ontologia fundamental de Ser e tempo comprometida com a metafísica tradicional, ora como caminho de transição, ora como passo fora da metafísica. Um de seus pronunciamentos está no segundo volume de sua interpretação sobre a filosofia de Nietzsche:

A distinção entre ser e ente é visada como o fundamento da possibilidade da ontologia. No entanto, a "diferença ontológica" não é introduzida, a fim de resolver, com isso, a questão da ontologia, mas a fim de denominar a única coisa que, enquanto algo até aqui inquestionado, tornou-se toda "ontologia", isto é, toda metafísica, no fundo questionável. (Heidegger, 2007b, pp. 156-157)

Essa passagem ressalta o primado de Ser e tempo, isto é, a diferença ontológica entre ser e ente, inquestionada pela tradição. No entanto, esse primado parte do mesmo pressuposto dado na tradição: a metafísica como investigação do ser como ser do ente, posição está que o Heidegger tardio questiona e tipifica como estrutura nomeadora e norteadora da metafísica tradicional. Ou seja, a estrutura conceitual da metafísica tradicional não é questionada em Ser e tempo.

Conforme já exposto, Ser e tempo se propõe a examinar a linha expositiva da tradição, apontar suas lacunas e apresentar as reais condições de possibilidade para a investigação filosófica. Ser e tempo cita os preconceitos da tradição9 na concepção do ser e, conforme Heidegger, esses preconceitos se apresentam como obstáculo à devida investigação. Com esse exame, o filósofo visa conduzir devidamente a ontologia ao seu propósito. "Repetir a questão do ser significa, pois, elaborar primeiro, de maneira suficiente, a colocação da questão" (Heidegger, 1998, p. 30).

O tratado elenca uma série de problemas pertinentes à metafísica e sinaliza o propósito de atacá-las e redimensionar a pesquisa filosófica. Heidegger afirma:

A referência à diferença ontológica denomina o solo e o "fundamento" de toda ontologia, e, por isso, de toda metafísica. A denominação da diferença ontológica deve indicar que está chegando um instante histórico, no qual se apresentam a urgência e a necessidade de questionar o solo e o fundamento da "onto-logia". É por isso que se fala em Ser e tempo de "ontologia fundamental". (Heidegger, 2007b, p. 157)

Ser e tempo realmente apresenta indícios da necessidade de questionar o solo e o fundamento da ontologia, mas a obra ainda não o faz efetivamente, e é com essa percepção que Heidegger continua:

Não precisamos discutir aqui se com essa ontologia fundamental não se busca senão imputar à metafísica enquanto um edifício já erigido um outro "fundamento", ou se resultam da meditação sobre a "diferença ontológica" outras decisões quanto à "metafísica". (Heidegger, 2007b, p. 157)

Segue-se a essa outra afirmação em que o filósofo se refere a Ser e tempo como indício para a radicalização frente à concepção e estrutura de metafísica, sem que tenha promovido essa radicalização ou esteja efetivamente nesse horizonte: "A referência à 'diferença ontológica' só procura indicar a conexão interna entre a nossa meditação atual sobre um conceito mais originário de metafísica e aquilo que foi comunicado antes" (Heidegger, 2007b, p. 157).

O período que vai de 1927 até a virada (die Kehre)10 descreve a tentativa de Heidegger em fundar uma metafísica originária (Heidegger, 2007b, p. 157). Essa tentativa, além de pretender apresentar uma dimensão mais originária da metafísica, isto é, uma nova metafísica, mantém-se em conexão ao pressuposto conceitual da metafísica tradicional e, por isso, não significa ainda a radicalização do filósofo em relação à metafísica. A referência a uma conexão decorre da tentativa de pensar o horizonte do ser mediado na relação ser e ente, na qual a própria metafísica é requisita para resolver seus problemas.

No semestre de verão de 1928, em Marburg, um ano após a publicação de Ser e tempo, Heidegger ministrou um curso no interesse de pesquisar os princípios metafísicos da lógica. Ele publica o curso posteriormente com o seguinte título: Princípios metafísicos iniciais da lógica a partir de Leibniz (Metaphysische Anfangsgründe der Logik im Ausgang von Leibniz). Essa obra contém reflexões sobre a "ontologia fundamental" e mostra que a complexidade de Ser e tempo requisitava aprofundamento em direção a uma maior radicalização.

A partir desse curso, se evidencia o reconhecimento do filósofo referente à complexidade do termo metà-tà-physiká. Ele apreende essa complexidade como um embaraço filosófico fundamental que o conduz a reconhecer que o problema da metafísica aponta em direção a ela mesma. Disso se depreende não ser suficiente repetir a questão do ser com vistas a superar os problemas da metafísica. É necessário reconhecer ela, a metafísica, como o problema. A metafísica precisa, a partir de então, ser questionada em seu poder ser. Ao se reportar à reflexão acerca da metafísica, Heidegger a denomina "meta-ontologia":

De aqui se segue a necessidade de uma peculiar problemática que tem por tema o ente em sua totalidade. Esta nova pesquisa está radicada na essência da ontologia mesma e produz a partir de sua transformação, sua metábole. Designo esta problemática meta-ontologia. E aqui, no âmbito do interrogar meta-ontológico existencial, corresponde também ao âmbito da metafísica da existência. (Heidegger, 2007d, p. 184, tradução nossa)

Três aspectos devem ser observados com base na citação anterior: 1) Heidegger constata que a metafísica como investigação centrada no ente na totalidade apresenta-se como problema; 2) essa nova pesquisa, nomeada por meta-ontologia, está fundamentada na essência da ontologia (diferença ontológica entre ser e ente) – a pesquisa sinaliza que a metafísica tradicional se mostra incapaz de movimentar-se na diferença ontológica, e tal constatação conduz igualmente a ontologia na sua essência mesma a ter que resultar em mudança na metafísica; e 3) a meta-ontologia existencial corresponde ao âmbito da metafísica da existência.

Embora nesse momento o filósofo se volte para o horizonte conceitual da metafísica, ele ainda pensa como tarefa de investigação da metafísica investigar o ser visado e questionado na relação ser e ente. O filósofo passa a colocar o conceito de metafísica como problema, mas ainda não vislumbra a saída dessa equação. Nesse sentido, passa a requisitar que a ontologia fundamental aponte outro caminho, mas ainda, sob a tutela da estrutura da metafísica tradicional, na medida em que o ser como ser do ente continua sendo o aporte necessário para a pesquisa.

A meta-ontologia só é possível sobre o fundamento e a perspectiva da problemática ontológica radical e unicamente com ela; precisamente a radicalização da ontologia fundamental provoca a mencionada conversão da ontologia a partir de si mesma. O que aqui separamos aparentemente em diversas "disciplinas" as que lhe damos um rótulo é uma só coisa – do mesmo modo que a diferença ontológica é também uma só coisa, isto é, o fenômeno originário da existência humana! – Pensar o ser como ser do ente e captar de modo universal e radical o problema do ser quer dizer, à sua vez, que o ente se converte em tema à luz da ontologia em sua totalidade (Heidegger, 2007d, p. 185, tradução e grifo nosso).

Na primeira frase em destaque, observa-se que o filósofo atribui a tarefa da radicalização da ontologia em ontologia fundamental como tarefa da própria ontologia. Na segunda frase em destaque, ele afirma que o ser do ente, captado de modo universal e radical, trata do ente na perspectiva da ontologia em sua totalidade. Em outra passagem do livro, expõe que:

[...] o problema fundamental da metafísica exige, para radicalizar-se e universalizar-se, uma interpretação do Dasein tendo em conta a temporalidade que permite esclarecer a possibilidade interna da compreensão do Dasein e, assim, da ontologia [...]. Esta totalidade da fundação e elaboração da ontologia é ontologia fundamental; é 1) analítica do Dasein e 2) analítica da temporalidade do ser. Esta analítica é, porém, ao mesmo tempo, a virada na qual a mesma ontologia retorna expressamente na metafísica ôntica em que de modo implícito sempre esteve. Convém, mediante o movimento de radicalização e universalização, levar a ontologia à conversão nela latente. Então se leva a cabo o giro e a sua conversão tem lugar como meta-ontologia. (Heidegger, 2007d, p. 186, tradução nossa)

Nessa declaração, Heidegger assinala que a ontologia fundamental deve ser concebida em modo amplo e na consideração à temporalidade. Isso significa que a interpretação do Dasein como temporalidade deve ser integrada à reflexão sobre o ser em geral, mas condicionada à sua estrutura temporal seguida, ao mesmo tempo, de uma reflexão meta-filosófica sobre a tarefa e os limites de si mesma. Essa nova abordagem requisitada por Heidegger para a ontologia fundamental se constitui como mudança, metábole para a ontologia, fomentada e possibilitada como meta-ontologia.

Heidegger conclui que a analítica do ser iniciada em Ser e tempo deve ser entendida como metafísica, e aponta que: "ontologia fundamental e meta-ontologia constituem juntas o conceito de metafísica", isto é: ontologia fundamental + meta-ontologia = metafísica.

A ontologia fundamental e a meta-ontologia constituem em sua unidade o conceito de metafísica. Mas, nisto não se expressa mais que a variação de um problema fundamental da filosofia mesma [...]. E isto é apenas a concretização respectiva da diferença ontológica, isto é, a concretização da realização da compreensão de ser. Com estas palavras: a filosofia é a concretização central e total da essência metafísica da existência. (Heidegger, 2007d, p. 186, tradução nossa)

As afirmações do filósofo nesse curso mostram que o tratado Ser e tempo visa à tarefa da metafísica e, por outro lado, mostra o embaraço no que se refere ao conceito de metafísica. Segundo a reflexão do filósofo, a metafísica deve ser concebida não apenas como investigação acerca do ente em geral, mas também reflexão sobre si mesma. Sobre sua própria condição nesse caso se desdobra como meta-ontologia no questionamento de si mesma na relação ao ser do homem e à totalidade do ente em geral. Nessa afirmação, Heidegger atribui à metafísica a tarefa de pensar a questão do ser. Isso significa que, nesse momento, o filósofo ainda não vislumbra um pensamento de todo livre das amarras da metafísica tradicional. A despeito de a metafísica passar a ser vista como problema, a tarefa de repensá-la caberia a ela mesma no sentido da meta-ontologia por ele indicada.

Depois desse curso, não se tem conhecimento de Heidegger ter se utilizado do termo meta-ontologia nem se referir à estreita relação entre ontologia fundamental e metafísica. A partir de então, ele se refere à relação entre ontologia fundamental e metafísica sempre de modo ambíguo, conforme já exposto.

Resumidamente, nos textos antes da virada, pode-se afirmar um pensamento que se movimenta na esteira da metafísica tradicional, no ponto e na medida em que pensa o ser como ser do ente e, nessa relação, desenvolve a pesquisa filosófica repetindo a concepção tradicional da questão do ser na relação ser e ente. Nessa fase, Heidegger se ocupa com os problemas da metafísica e defende como condição de possibilidade da pesquisa filosófica a hermenêutica da facticidade. A hermenêutica da vida ou da facticidade centra-se na perspectiva da existência como via de acesso ao sentido do ser.

Apesar de "inacabada", a obra Ser e tempo reúne e expõe o amadurecimento filosófico dessa fase com diferença significativa ao que tinha sido produzido até então, a exemplo dos textos que a antecedem, em que o filósofo apresenta a hermenêutica da facticidade sem ainda se deter na estreita dimensão específica homem e existência11, que se converterá em Ser e tempo em guia para a condução da pesquisa filosófica.

A "essência" deste ente está em ter de ser. A qüididade (essentia) deste ente, na medida em que se possa falar dela, há de ser concebida a partir de seu ser (existência). Neste propósito, é tarefa ontológica mostrar que, se escolhemos a palavra existência para designar o ser deste ente, esta não tem nem pode ter o significado ontológico do termo tradicional existentia. Para a ontologia tradicional, existentia designa o mesmo que ser simplesmente dado, modo de ser que não pertence à essência do ente dotado do caráter do Dasein. (Heidegger, 1998, p. 42)

O filósofo reúne dois termos para se referir ao âmbito fundamental do Dasein: existência e essência. "A essência do Dasein está em sua existência" (Heidegger, 1998, p. 77). Nesses termos, o Dasein passa a ser designado e interrogado como o ente especial sobre o qual o filósofo requisita primazia na pesquisa filosófica, tendo em vista seu caráter extremamente atípico em relação a todos os demais entes. O privilégio constitutivo de seu ser é o de abertura que possibilita a compreensão de si e de todos os demais entes.

Mesmo sem ainda ter atentado para o problema do conceito estrutural de metafísica que investiga o ser condicionado à relação ser e ente, a investigação heideggeriana havia garantido com a concepção do Dasein a via de acesso legítima para a tarefa de investigação do ser do ente na relação ser e ente. O Dasein como ente privilegiado apresenta sua primazia na condição de ser que é, de modo a atender a exigência relacional estabelecida na tradição, isto é: a investigação do ser enquanto ser do ente. Em outras palavras, referenciar e legitimar o Dasein concomitantemente como ser e ente justificava a exigência tradicional segundo a qual o ser, pensado como ser do ente, era concebível na relação ser e ente.

Os textos de Heidegger que se seguem imediatamente após Ser e tempo denunciam que o filósofo começa a pensar no conceito de metafísica da metafísica tradicional como um problema, sem, todavia, conseguir ainda divisar o ponto específico em questão. Esse ponto é posteriormente levantado e explicitado em textos tardios, razão pela qual, ao tempo que retomou e escreveu sobre a filosofia kantiana, considerará Kant um herdeiro da metafísica tradicional.

O item seguinte coloca em discussão questões tratadas por Heidegger referentes ao problema da transcendência vinculada ao pensamento de Kant, tendo em vista que ela se constitui como chave para se compreender a transição no pensamento de Heidegger. No tema específico da transcendência, Kant se apresenta para Heidegger como seu interlocutor por excelência e, nessa perspectiva, o filósofo aprofunda a filosofia de Kant. Ele empreende uma leitura singular da obra Crítica da razão pura, para então afirmar que Kant desenvolve uma ontologia de peso.

 

4) A metafísica e o problema da transcendência

Nos cursos Interpretações fenomenológicas da Crítica da razão pura de Kant (Phänomenologische Interpretation Von Kants der reinen Vernunft), de 1927-1928, e em "Kant e o problema da metafísica", de 1929, Heidegger interpreta a obra kantiana como fundação da metafísica. Ele sinaliza a relação de identidade entre o problema da metafísica e a questão da ontologia fundamental de Ser e tempo: "A seguinte investigação se propõe à tarefa de interpretar a Crítica da razão pura de Kant como uma fundamentação da metafísica. O problema da metafísica se enfoca, pois, como problema de uma ontologia fundamental" (Heidegger, 1996d, p. 11, tradução nossa).

Assim como a ontologia fundamental tem a pretensão de explicitar a natureza do homem em seu ser (Dasein), isto é, no sentido do ser que compreende ser, a analítica transcendental trata do conhecimento a priori, ou seja, daquela compreensão anterior ao encontro com o ente e das condições desse encontro. Com base nessa identidade de tarefa, Heidegger interpreta o conhecimento transcendental sob a designação de ontológico, de modo que a analítica transcendental kantiana da Crítica da razão pura e a ontologia fundamental de Ser e tempo devem revelar, como modo de ser próprio a nós mesmos, o caráter transcendente e finito – transcendente na medida em que ultrapassa os entes em direção ao ser e cuja essência é a finitude, o que significa dizer ligado ao mundo e com o mundo sob a tutela do tempo e do espaço.

A comunhão que Heidegger estabelece entre Ser e tempo e Crítica da razão pura apresenta um distanciamento da metafísica tradicional apenas em parte, pois se mantém junto a ela na medida em que o ser do ente permanece como a tônica em questão.

Conforme Heidegger (1996d, p. 208), no apêndice de Kant e o problema da metafísica, a Crítica da razão pura não é uma teoria do conhecimento matemático científico nem uma teoria do conhecimento, mas é fundação da metafísica. Nesse termo, o filósofo se refere ao plano de construção da metafísica kantiana. Esse plano consiste em assinalar os limites arquitetônicos da metafísica e nela distinguir suas possibilidades intrínsecas, o que equivale a dizer: determinar sua essência.

Reiteradas vezes pontuamos que, após Ser e tempo, o pensamento de Heidegger se orienta no sentido de tratar a metafísica como problema. Esse período coincide com o tempo em que o filósofo passa a interpretar a Crítica da razão pura como fundação da metafísica12. É vigente nesse período o momento de transição. Embora Heidegger defenda que a crítica kantiana e Ser e tempo transitem em solo desconhecido da metafísica tradicional, esse solo, pelos motivos já elencados, se configura como uma extensão do solo da metafísica tradicional, razão pela qual o Heidegger tardio posicionará Kant no bojo da metafísica tradicional e atribuíra a retenção do projeto de Ser e tempo ao problema da linguagem metafísica e à questão do Dasein. Este, como ente privilegiado em consideração ao seu ser, ainda assim remete à interpretação sobre a questão do ser para a relação ser e ente.

A defesa da Crítica da razão pura como fundação da metafísica é empreendida por Heidegger como concepção originária de metafísica instituída na crítica kantiana. Heidegger não interpreta a Crítica da razão pura simplesmente como explicitação dos pressupostos da metafísica tradicional. Ele interpreta a referida obra como exposição das condições de possibilidades do saber metafísico, porém, conforme já se pontuou, a interpretação de Heidegger quanto à Crítica da razão pura não se mantém inalterável, pois, na fase tardia, o filósofo passa a reconhecer que a obra kantiana em questão transita, em certo sentido, no âmbito da metafísica tradicional, na medida em que a relação ser e ente se impõe como pressuposto investigativo, mesmo com a pretensão de alcançar unicamente a questão do ser. Ou seja, incide na Crítica da razão pura o mesmo problema de Ser e tempo.

Em Kant e o problema da metafísica, Heidegger se remete à definição de conhecimento transcendental13 dada por Kant e afirma que "o conhecimento transcendental não investiga o ente mesmo, mas ao exame da possibilidade da compreensão prévia do ser, o que quer dizer, ao mesmo tempo, da constituição ontológica do ser do ente" (Heidegger, 1996d, p. 24). Conforme Heidegger, o conhecimento transcendental não tem por objeto o ente e, sim, a compreensão de ser.

Para Heidegger, o ser só é acessível quanto ao seu sentido por meio do único ente que pergunta e compreende ser: o homem enquanto ser-aí (Dasein). Desse modo o conhecimento transcendental se ocupa das condições de possibilidade da compreensão, isto é, do Dasein, o ente que coloca a pergunta sobre o ser. Segundo Heidegger, essa é a perspectiva que Kant visa na questão de como é possível o conhecimento do objeto.

Mediante a transcendência do ente como tal, é possível uma compreensão e a justa explicação: "Elevar a possibilidade da ontologia à categoria de um problema equivale a perguntar pela possibilidade, isto é, pela essência desta transcendência da compreensão do ser; equivale a um filosofar transcendental" (Heidegger, 1996d, p. 24). Heidegger continua: "Por isso Kant usa o nome 'filosofia transcendental' em lugar de metafísica geral (ontologia), ao caracterizar a problemática da ontologia fundamental" (Heidegger, 1996d, p. 24).

Nas palavras de Heidegger, a verdade ontológica é a verdade transcendental definida por Kant na Crítica da razão pura (KrV/CRP, B185). Posteriormente, Heidegger aprofunda a questão e passa a afirmar que não é apenas a compreensão de ser que torna possível o conhecimento ôntico: incide na questão uma situação fundamentalmente obscura.

Embora os textos imediatamente posteriores a Ser e tempo e na referência à filosofia kantiana representem uma acuidade e um voltar-se de Heidegger em relação ao conceito de metafísica, o ponto em exposição neste trabalho não se altera.

Na continuidade de suas reflexões acerca da concepção da metafísica como problema, Heidegger passa a considerar que a questão da metafísica tradicional reside na sua fundação. Desde então, considera que o problema da entificação do ser na pesquisa filosófica remonta à concepção inaugural da metafísica tradicional que pensou o ser e o delimitou segundo a via investigativa condicionada à relação ser e ente e, por consequência, fundou a pesquisa filosófica do ser na relação ser e ente. Todavia, apenas nos escritos do Heidegger tardio se perfaz esse posicionamento, precisamente ao tempo em que reivindica a famosa superação da metafísica (Überwindung der Metaphisik).

Os anos de reflexão que se seguiram à virada (die Kehre) mostraram que a investigação do ser na relação ser e ente é encobridora da verdade do ser. Isso levou Heidegger a atentar para o conceito estrutural da metafísica tradicional. Repetir a questão do ser mostrou-se insuficiente, tendo em vista a condução dessa repetição esbarrar no problema do pressuposto conceitual de metafísica.

A metafísica torna-se problema, mas não para ser resolvido. Ela se torna problema no sentido de questão. Esse reposicionamento da metafísica conduz à retomada de sua história com vista à explicitação de seus fundamentos, de seus limites e de sua impotência. Conforme o filósofo, tais reflexões podem e devem conduzir ao clarão da verdade do ser e, com isso, a um novo horizonte sobre a questão do saber.

Com a virada, o filósofo reivindica a assunção de outra possibilidade para o pensamento na diferença ao que se assumiu e se cristalizou como metafísica tradicional. Essa reivindicação foi assumida em obras posteriores sob a denominação de superação da metafisica (Überwindung der Metaphysik).

A partir de então, apresenta-se para Heidegger um horizonte em que se coloca não apenas o problema de método na condução da investigação da metafísica tradicional, mas, sobretudo, em que a própria metafísica se coloca como questão que demanda uma reflexão inteiramente nova em relação a tudo que se viu até então.

 

5) Considerações finais

Destacamos, portanto, dois momentos estruturais do pensamento de Heidegger em relação à metafísica. No primeiro momento, correlacionado aos seus primeiros textos até a época de Ser e tempo, pontuou-se que o filósofo trata os problemas da metafísica sem colocar a metafísica mesma como questão. Essa pretensão foi categoricamente exposta no texto de 1923, Ontologia – Hermenêutica da facticidade, ao afirmar a necessidade de desmontar a tradição filosófica e caracterizar o significado do termo desmontar como sendo o retorno à filosofia grega de Aristóteles, para ver como o que era originário decai e fica encoberto. Nessa pretensão, intenta voltar a configurar de novo a filosofia para o que considera ter sido sua posição originária14 (Heidegger, 1999, p. 100). Em Ser e tempo, Heidegger reafirma essa pretensão ao esclarecer o termo "fenomenologia": "A palavra se refere exclusivamente ao modo como se de-monstra e se trata o que nesta ciência deve ser tratado" (Heidegger, 1998, p. 65), e mais adiante, em referência à hermenêutica do Dasein, acrescenta: "A hermenêutica da pré-sença torna-se também uma 'hermenêutica' no sentido de elaboração das condições de possibilidade de toda investigação ontológica" (Heidegger, 1998, pp. 68-69, grifo nosso).

O segundo momento está relacionado aos textos em que a metafísica se apresenta como questão problema. A caracterização da metafísica como questão problema contempla dois estágios. No primeiro estágio, imediatamente após a publicação de Ser e tempo e releitura da Crítica da razão pura, emerge uma crítica à metafísica tradicional. O filósofo considera sua ontologia fundamental e a filosofia transcendental de Kant como a fundação da metafísica. Nesse estágio, visava apresentar uma nova concepção de metafísica, uma metafísica originária com vistas a identificar uma espécie de fundamento original subjacente ao conceito tradicional de metafísica.

Trata-se ainda de um posicionamento em proximidade com o âmbito estrutural da metafísica tradicional na medida em que a concepção de ser, pensada e investigada na via exclusiva da relação ser e ente, continua inquestionável, de modo a permanecer inviolada a concepção do ser como ser do ente, ainda que apresente certa estranheza em relação a esse saber.

O segundo estágio é decididamente aquele em que a metafísica como questão problema alcança o ponto máximo na reflexão do filósofo. Heidegger percebe que não é suficiente reconduzir originalmente a investigação do ser pela via relacional ser e ente. Segundo ele, questionar o ser na relação com o ente implica inevitavelmente na exposição do ente em seu ser e concomitantemente na permanência do esquecimento do ser mesmo.

Nesse estágio, Heidegger busca romper com a indicação do ser como ser do ente e reivindica a superação da metafísica como condição para se pensar a outra possibilidade não assumida do pensamento, conforme se pode constatar no texto O fim da filosofia e a tarefa do pensamento (Das Ende der Philosophie und die Aufgabe des Denkens), em que o filósofo discute tematicamente o desafio que os novos tempos reservam ao pensamento.

Segundo Heidegger, a assunção desse desafio significa decisão (Schliessen), no sentido de fechar o ciclo da metafísica e voltar-se para o que precede toda forma de determinação: o ainda a-ser-pensado (Heidegger, 2002b, pp. 61-77).

Esse ainda a-ser-pensado não se refere à suposição de questões que a filosofia teria deixado de pensar, como uma falta aos temas que foram deixados de fora da reflexão e do pensar conceitual, como se a filosofia em sua estrutura tivesse cometido um lapso e, num esforço, pudesse se restabelecer. Heidegger não fala mais no sentido de haver problemas para a filosofia resolver. A filosofia não tem problemas, ela é uma questão problema.

Em textos específicos15, Heidegger trata da necessidade de superar o domínio da metafísica. A palavra pensamento (Denken) é por diversas vezes utilizada em lugar do termo filosofia para demarcar a diferença entre um pensar supenso e o pensar da filosofia que se confunde com a metafísica tradicional. Na afirmação filosofia é metafísica, Heidegger propõe a superação da filosofia como metafísica com vistas à virada decisiva para o interior do seer16 que dá início a um pensar não mais permeado na relação ser e ente.

[...] a virada decisiva para o interior do seer e da verdade do seer. Esta virada não é nenhuma mera inversão, mas um começo totalmente diverso que precisa dar adeus a tudo que se deu até agora. Isto é, que precisa dar adeus à metafísica enquanto tal. (Heidegger, 2000, p. 83)

Para demarcar o âmbito inaugural do pensamento que emerge, mediante a superação da metafísica tradicional, Heidegger utiliza como recurso a grafia Seyn na diferença à concepção de ser (sein) dada na interpretação metafísica tradicional. A grafia Seyn sinaliza para o âmbito da verdade do ser a partir do ser mesmo, livre da clausura que investiga o ser na via exclusiva da relação ser e ente.

Dito de outro modo, o pensar que se experimenta a partir do ser e para o ser mesmo se dá enquanto pensamento que se realiza sem a mediação relacional ser e ente.

Um pensar que acontece na dimensão do ser mesmo significa para Heidegger o abandono da interpretação metafísica da metafísica (Heidegger, 2007b, p. 284).

Decorre dessa apreensão a reafirmação da metafísica como questão diretora e condutora da filosofia de Heidegger em dois sentidos: enquanto retomada e revisão da metafísica tradicional com vistas à reflexão, interrogação e exposição, concebendo ela mesma como a questão problema em seu pressuposto conceitual, e como dimensão do pensamento que deve voltar-se para o que precede toda forma de determinação: o ainda a-ser-pensado.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Flávio de Oliveira Silva
E-mail: fosilva@uneb.br

 

 

* Professor adjunto da Universidade do Estado da Bahia (UNEB).
1 Reiner Schürmann se refere à existência de um esquema triplo no pensamento de Heidegger. Conforme esclarece Giani Carchia (apud Martinengo, 2008), trata-se de uma divisão tanto diacrônica quanto sincrônica, no qual o primeiro esquema relaciona a evolução do pensamento de Heidegger em diversas fases. Para Reiner Schürmann, a época de Ser e tempo compreenderia este primeiro momento como horizonte de discurso na distinção das diversas regiões da objetividade: Zuhandeheit, Vorhandeheit e Dasein. O segundo esquema articularia o pensamento de Heidegger numa compreensão dos temas desenvolvidos e, em lugar de Schürmann interpretar uma ruptura entre os textos do período de Ser e tempo e os textos posteriores, ele ressalta que se dá uma progressiva radicalização de um mesmo tema: a diferença ontológica. O terceiro momento se caracterizaria pela exposição decisiva do discurso em direção à topologia do ser.
2 O termo Kehre, utilizado por Heidegger, tem sido alvo de diferentes interpretações. Literalmente, Kehre significa virar, no sentido de levar para outra posição ou outra direção (Inwood, 2002, p. 202). Seu significado literal e imediato indica um reposicionamento, e Heidegger (2007a, p. 507) esclarece acerca da interpretação que lhe confere: "A virada não é nenhuma inversão, ela é um voltar-se para o interior do outro fundamento como ab-ismo (ausência de fundamento)".
3 Tradução do termo Dasein por Márcia Schuback na primeira tradução brasileira de Ser e tempo.
4 Heidegger informa que utiliza-se o termo ontologia em sentido formalmente amplo, isto é, na referência à metafísica como modo de saber (Heidegger, 1998, p. 56).
5 São textos do citado período referenciados neste artigo: Sobre a essência da verdade (Vom Wessen der Wahrheit), conferência de 1930 publicada em 1943; Nietzsche I, II, textos de 1936-1946 reunidos e revisados por Heidegger em 1961; O retorno ao fundamento da metafísica (Der Rückgang in den Grund der metaphysik), de 1949; Carta sobre o humanismo (Brief über den Humanismus), de 1946; A superação da metafísica (Überwindung der Metaphysik), de 1938-1939; Superação da metafísica (Überwindung der Metaphysik), de 1936-1946; e Heráclito, de 1943-1944.
6 "Em 1907, o único apoio de que dispunha para as minhas toscas tentativas de introduzir-me na filosofia" (Heidegger, 2009).
7 A partir dessa obra, Heidegger radicaliza o questionamento acerca do tempo. Walter Biemel, editor da obra heideggeriana em espanhol, ressalta que o tempo representa o núcleo da obra posterior, Kant e o problema da metafísica (Kant und das Problem der Metaphysik).
8 Essa interpretação corrobora uma das possibilidades apontadas por Elena Ficara (2010, p. 157). Tendo em vista essa correção, ela afirma a possibilidade de a metafísica constituir-se para Heidegger nesse período como a pesquisa autenticamente filosófica, apesar do problema de focar no ser do ente em geral. Essa posição do filósofo em relação à metafísica tradicional é distinta da posição que ele assume depois de Ser e tempo, na qual a metafísica, em decorrência de sua constituição estrutural, representa o questionamento engessado do ser mediante a relação conceitual ser e ente. Embora Ser e tempo tenha dado um passo radical em relação à ontologia tradicional, ainda repete o problema de empreender a pesquisa do ser submetida à relação ser e ente.
9 Ser é o conceito mais universal; o conceito de ser é indefinível; ser é o conceito evidente por si mesmo (conforme o parágrafo inicial de Ser e tempo) (Heidegger, 1998, pp. 30-31).
10 Termo utilizado por Heidegger em referência à mudança de "ser e tempo" para "tempo e ser". O termo remete à pretensão explícita do filósofo em pensar a questão do ser fora dos domínios da metafísica. Com a virada, o Dasein cede lugar para a história do ser como espaço de revelação do ser mesmo.
11 Heidegger gesta um novo conceito para o termo existência (Existenz), diferente daquele concebido na tradição filosófica que pensa o referido termo no sentido do ser simplesmente dado (Vorhandenheit), isto é, como algo já posto e já dado no mundo. Heidegger faz a distinção entre existência (Existenz) e ser simplesmente dado (Vorhandenheit). Conforme o filósofo é preciso entender que as coisas, os entes são, mas não existem. A pedra é, Deus é, mas apenas o homem (Dasein: ser-aí/pré-sença/existência), pensado na perspectiva do conceito de existência gestado por Heidegger, existe (Heidegger, 1988, pp. 310-312).
12 Embora Heidegger tenha dado um passo adiante no que se desloca dos problemas da metafísica para conceber a metafísica como problema, esse deslocamento não configura a lucidez que o Heidegger tardio experimenta em relação à metafísica. O momento de transição em que o filósofo passa a conceber a metafísica como problema não coincide necessariamente com o momento da iluminação em que ele apreende o entrave fundamental da metafísica: a determinação e a movimentação da metafísica tradicional vinculada à concepção do ser como ser do ente.
13 Definição segundo a qual o conhecimento transcendental trata não do conhecimento de objetos, mas do nosso modo de conhecer os objetos (KrV/CRP, B25).
14 A menção à filosofia grega e a posição originária nos textos desse período refere-se predominantemente à filosofia de Aristóteles. Nos textos do Heidegger tardio, o filósofo passa a se reportar ao pensamento originário em menção aos pré-socráticos, notadamente Heráclito, Anaximandro e Parmênides.
15 A exemplo dos textos A teoria platônica da verdade, O fim da filosofia e a tarefa do pensamento, Nietzsche II, entre outros.
16 Na tradução para o português brasileiro, o termo "seyn" foi traduzido por Casanova (2002, p. 316) como "seer" sob a justificativa de a grafia arcaica do termo "ser" em português se utilizar da dupla colocação da letra "e".

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