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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.18 no.2 São Paulo dez. 2016

 

RESENHAS

 

Resenha: Corpo e psicossomática em Winnicott, de Vera Regina Ferraz de Laurentiis

 

Laurentiis, V. R. F. Corpo e psicossomática em Winnicott. São Paulo: DWW, 2016.

 

 

Cassiano Sydow Quilici*

Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

Endereço para correspondência

 

 

A experiência psicossomática e a arte do cuidado

Numa época em que as referências ambientais – familiares, profissionais, sociais – são, muitas vezes, difusas e instáveis, o corpo transforma-se num "objeto" hiperinvestido pela cultura, tornando-se matéria-prima de uma intensa produção de imagens e representações que comunicam modelos identitários e padrões de comportamentos. Reduzida, muitas vezes, ao seu sentido meramente físico, nossa experiência somática é alvo de uma multiplicidade de técnicas e disciplinas destinadas a moldá-la segundo as expectativas predominantes, encobrindo demandas por um processo real de personalização e integração.

Mesmo saberes especializados e sofisticados, como os da medicina e os da ciência moderna, que têm nos trazido contribuições inestimáveis, ainda tendem a trabalhar com um corpo "objetificado" e cindido do psiquismo, mostrando dificuldades em apreender a experiência viva que solicita um contínuo trabalho de elaboração desde os primórdios de nossa história até a velhice. Diante de tais desafios, fazem-se cada vez mais necessárias abordagens interdisciplinares capazes de apontar para novas formas de compreensão e cuidado, realizando, ao mesmo tempo, a crítica da nossa cultura.

A abordagem que Laurentiis desenvolve em seu instigante livro Corpo e psico-somática em Winnicott enfatiza justamente a vocação da psicanálise como área de conhecimento que opera nas fronteiras entre os saberes e as áreas do conhecimento. A própria trajetória de Winnicott, trabalhando como pediatra e psicanalista, já caracteriza uma situação singular, a partir da qual foram desenvolvidas contribuições originais e significativas para ambos os campos. Nesse sentido, destaca-se também o interesse do psicanalista inglês pelo trabalho conjunto entre profissionais da área da saúde, criando condições para que houvesse intervenções tendo por base diferentes perspectivas.

Desde o princípio, Laurentiis enfatiza sua intenção de abrir um diálogo com as diversas áreas profissionais ligadas às questões corporais e psíquicas. Seu trabalho, redigido numa linguagem clara e generosa e acessível ao leitor não especialista, não abdica de um tratamento rigoroso dos conceitos e procedimentos clínicos, oferecendo-nos uma exposição exaustiva do tema. A obra traz tanto as férteis contribuições teóricas do autor como suas inovações em relação à prática terapêutica, valendo-se de diversos exemplos. O livro torna-se assim um material privilegiado tanto para psicanalistas interessados na questão do corpo e da psicossomática como para profissionais da saúde, educadores, artistas e pensadores sensíveis a um problema fundamental da cultura contemporânea.

Filiando-se à perspectiva desenvolvida por diversos autores ligados ao "Centro Winnicott", Laurentiis enfatiza, nos dois primeiros capítulos, as contribuições revolucionárias do autor que representariam uma quebra de paradigma no campo psicanalítico. A estratégia da pesquisadora foi a de apresentar inicialmente os conceitos fundamentais do pensamento winnicottiano, para depois expor em detalhes sua visão do processo de amadurecimento do ser humano, considerando-se as diversas etapas necessárias para que a pessoa construa, aos poucos, uma integração psicossomática.

O tema do corpo ganha destaque, em primeiro lugar, porque Winnicott descarta as especulações metapsicológicas e as tendências muito abstratas da teoria, enfatizando o olhar para o ser humano "de carne e osso". No princípio, a criança experimenta a vida de forma não representacional e não verbal por meio de situações e encontros. Se o ambiente fornece a sustentação e o cuidado necessários, as vivências somáticas poderão ser elaboradas imaginativamente pelo bebê. A partir daí, podem emergir também os primeiros gestos e acenos em direção ao mundo, ganhando ou não acolhimento e ressonância no ambiente.

Procurar descrever a experiência "encarnada" da criança não significa, porém, recair nas ilusões de uma leitura "objetiva" dos fenômenos. A autora destaca como Winnicott sempre se colocou contra uma abordagem "técnica" do cuidado com o outro, o que conduziria a uma homogeneização dos procedimentos, típicos de algumas abordagens organicistas. O corpo não é uma entidade meramente física, mas uma experiência viva e singular que demanda do cuidador, além de conhecimento, uma sensibilidade acurada para os acontecimentos.

Nessa direção, Laurentiis acena, mesmo que de forma sutil e indireta, para as conexões do trabalho psicanalítico com o campo da arte. Nos títulos dos capítulos encontramos citações de João Guimarães Rosa, Mario de Andrade, Caetano Veloso, Chico Buarque e William Shakespeare. São frequentes as menções à dança em geral e à dança butô de Kazuo Ohno em particular. Também aparecem comentários sobre bodyart, Andy Warhol, Francis Bacon e movimentos de vanguarda. Mesmo o setting psicanalítico é abordado como um espaço em que se dá uma espécie de jogo, comportando tanto a linguagem verbal e as interpretações quanto os encontros silenciosos, as linguagens gestuais e as práticas lúdicas. A convocação de todas essas referências reforça a ideia da vida humana como um processo contínuo de criação da pessoa na relação com o outro e da prática terapêutica como uma forma de ativação dessa potência.

Sabe-se que o conceito de criatividade é central na obra de Winnicott, ultrapassando a ideia de uma faculdade que se exerceria unicamente nas atividades culturais e artísticas. Trata-se de um aspecto primário da "natureza humana" que nos permite elaborar criativamente os acontecimentos que nos afetam desde a mais tenra idade. O bebê, com a sustentação do ambiente, cria para si um pequeno mundo ilusório em que seus gestos podem começar a ganhar potência e significação.

Essa criatividade primária se expressa também na elaboração imaginativa das experiências somáticas, vividas inicialmente como estados fragmentados e não integrados. Aos poucos, o bebê se apropria imaginativamente do corpo em diferentes níveis e graus, até gradativamente adquirir certa autonomia. A capacidade de criar é, portanto, uma qualidade humana universal, brotando do corpo vivo num contexto relacional, condição fundamental para uma vida significativa. Aqui, poderíamos acenar para outra referência artística não explorada pela autora: a concepção expandida de arte do escultor e performer alemão Joseph Beuys, para quem "cada homem é um artista", sendo a criatividade o diferencial que caracteriza a ação e o trabalho especificamente humanos.

No entanto, para Winnicott, a emergência do gesto espontâneo e criador se localiza dentro de uma trajetória mais ampla em que a condição humana é pensada mais radicalmente. Na etapa originária da nossa vida, a questão que se coloca é a da passagem do não-ser para o ser. Antes de ser possível o gesto em direção ao mundo, começo de nossa singularização, há o estado de vulnerabilidade e dependência quase absoluta que se inicia na vida intrauterina, desdobrando-se na transição do interior do corpo da mãe para o mundo exterior, com sua grande quantidade de estímulos, temperaturas, luminosidades, sons.

Um ambiente de acolhimento e proteção responde primeiro a uma necessidade de a criança "ser", de se perseverar vivendo, antes de qualquer busca, gesto ou movimento na direção do mundo "objetivo". Do ponto de vista corpóreo, o simples ato de respirar encarna o "só ser" anterior ao fazer. Daí, talvez, a grande importância dada à respiração em práticas milenares de contemplação, em particular na meditação budista e na ioga, o que possibilitaria a integração de uma função somática muito primitiva.

A abordagem dessa pré-história da nossa existência nos oferece uma referência que ajuda a aguçar a percepção para os primeiros passos na jornada do amadurecimento. O cuidar não necessita tanto de um saber técnico, mas de uma sensibilidade para o que ocorre entre a dupla mãe-bebê na experiência da dependência. Estar aberto e receptivo aos impulsos que vêm do novo ser, perceber a "dança" de seus movimentos, sentir o ritmo de suas demandas, sustentando uma presença que proporcione a confiança e a segurança necessárias, são atitudes humanas essenciais. Essas formas de relação não-verbal constituem uma espécie de linguagem que ajuda a cultivar um ambiente vivo extremamente importante para o bebê.

A experiência dos estados excitados poderia, assim, ser vivida sob um pano de fundo que garante certa tranquilidade e serenidade, protegendo a criança de ansiedades graves e de "agonias impensáveis". O olhar que devolve ao outro o sentimento de ser uma pessoa inteira, abrindo espaço para um encontro real, apoia o processo de integração das experiências somáticas.

A sensações ligadas às durações e à passagem do tempo são também experiências fundamentais a serem elaboradas. O alto grau de formalização da vivência do tempo na sociedade industrial tende a empobrecer nossa subjetividade, submetendo-nos, quase sempre, aos ditames da produtividade e do lazer pré-programado. Nossa escravidão às agendas e aos tempos esquadrinhados podem bloquear nossa fruição e apreensão dos acontecimentos.

A sensação dos próprios ritmos corpóreos, o saudável esquecer-se do tempo no brincar e a percepção do dia e da noite, dos climas e das atmosferas da natureza são experiências primeiras que inauguram uma relação viva com o tempo. Como podemos nos preparar para encarar a impermanência e a finitude das coisas e de si mesmo se tais vivências não tiverem deixado vestígios suficientemente fortes? Como abrir-se gradativamente para outras dimensões do tempo, presentes nas altas elaborações da cultura, sem o enraizamento num espaço íntimo e confiável que nos fortaleça?

A apresentação do mundo em doses suficientes para que a criança tenha condição de assimilá-lo, apropriando-se subjetivamente dele, parece estar na contramão dos ambientes agressivos e superexcitados, característicos de boa parte da experiência contemporânea. O medo de não se integrar socialmente pode, muitas vezes, submeter o indivíduo a processos que atropelam seu processo de maturação, conduzindo-o a uma frágil "integridade" pessoal e a uma vida empobrecida de sentido.

Tais estados iniciais de amadurecimento formariam a base para a compreensão do campo das relações egoicas, em que a criança vai viver seus desejos e frustrações em diferentes intensidades. Se, nas primeiras etapas, o que está em jogo é a garantia da continuidade do sentimento de ser e a experiência do apetite e da amamentação, posteriormente a criança terá de elaborar o contato afetivo, não excitado com a mãe, e os sentimentos ambivalentes de ódio e amor. Só então começa a ser possível uma relação entre pessoas inteiras, em que a criança pode se colocar no lugar do outro.

A abertura progressiva da vida subjetiva do bebê para o mundo objetivo demanda a existência de espaços potenciais em que os objetos são transformados e recriados imaginativamente na brincadeira. As relações interpessoais e a comunicação podem se tornar mais explícitas, demandando acordos e regras que possibilitem o jogo. Aqui estamos já num campo da criação que envolve mais intensamente o mundo e as nossas possibilidades de transformá-lo, mesmo que de forma lúdica. As relações entre o brincar da criança e os processos criativos dos artistas são mais próximas, diferindo no seu grau de complexidade.

Como um pesquisador das artes presenciais e corporais (teatro, dança, performance), fui bastante estimulado e provocado pelas ideias e pelos problemas abertos pela autora. Pergunto-me se, numa teoria do amadurecimento, não seria necessário abordar mais intensamente aquilo que, no corpo, parece resistir a uma integração completa. Não haveria sempre uma espécie de opacidade na nossa corporeidade, que insiste como um resíduo impossível de ser assimilado? Não é isso que aparece em alguns trabalhos de Samuel Beckett, como na peça Fim de partida, em que o autor expõe com insistência os processos de desintegração e dependência, próprios da velhice e da doença?

Não que o denso trabalho de Laurentiis evite tais temas e não mencione questões referentes à velhice e ao fim da vida. No entanto, em seu meticuloso relato reflexivo, tais aspectos aparecem numa posição ainda secundária. Penso que, talvez, a última tarefa da existência seja compreender o caráter ilusório do "ego psicossomático" que tanto nos custou construir. Como no conto "A terceira margem do rio", de Guimarães Rosa, temos também de saber nos despedir e desaparecer, abrindo-nos para uma experiência do vivo que sabe de sua radical impermanência e insubstancialidade.

 

Endereço para correspondência
Cassiano Sydow Quilici

E-mail: cassianosyd@uol.com.br

 

 

* Livre docente na área de teorias do teatro e da performance e professor-associado e pesquisador no Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

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