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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.19 no.1 São Paulo jul. 2017

 

ARTIGOS DE FLUXO CONTÍNUO

 

As mulheres de Nietzsche e Freud: uma leitura laplancheana

 

The women of Nietzsche and Freud: a Laplanchean reading

 

 

Vinícius Moreira Lima*; Fábio Roberto Rodrigues Belo**

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Nietzsche e Freud produziram representações teóricas das mulheres e do gênero feminino muito similares. Por meio do método hermenêutico-crítico e da crítica historicista, a comparação entre essas representações corrobora a hipótese de que ambos os autores contribuem para a construção de uma rede representacional que articula fortemente a mulher a elementos de passividade, masoquismo, pudor, maternidade, submissão, docilidade e rebeldia. A análise permite-nos demonstrar a tese de Jean Laplanche, segundo a qual o gênero é um esquema narrativo ou um código que traduz a sexualidade inconsciente. Para a teoria laplancheana, os arranjos de gênero fornecem uma organização possível – mas não necessária – ao sexual infantil, ajudando no processo de recalcamento. Isso se vincula a uma tradução generificada da atividade e da passividade originária em termos de masculinidade e feminilidade. Assim, acreditando que, em suas teorizações, tanto Freud quanto Nietzsche fazem uso dessa engrenagem tradutiva, herdada do social,torna-se fundamental desconstruir a imagem da mulher presente nos dois autores a fim de abrir espaço para representações menos comprometidas com a perspectiva falocêntrica.

Palavras-chave: gênero; mulher; sexualidade; falo; passividade.


ABSTRACT

Nietzsche and Freud have produced very similar theoretical representations of women and the feminine. By using a critical-hermeneutic method and a historicist critique, the comparison between these representations confirms the hypothesis that both authors contribute to the construction of a representational network that strongly articulates women to the elements of passivity, masochism, shame, maternity, submission, docility, and insurgency. Our analysis lets us demonstrate Jean Laplanche thesis' that gender is a narrative scheme or a code that translates unconscious sexuality. For Laplanchean theory, gender arrangements provide a possible – but not necessary – organization to the infantile sexuality, aiding the process of repression. This gets associated to a gendered translation of activity and original passivity in terms of masculinity and femininity. Thus, believing that, in their theories, both Freud and Nietzsche utilize this translation engine, inherited from the culture, we find it essential to deconstruct the image of woman present in both authors, in order to open the way to representations that are less compromised to a phallocentric perspective.

Keywords: gender; woman; sexuality; phallus; passivity.


 

 

Introdução e advertência metodológica

Pretendemos demonstrar as múltiplas coincidências nas obras de Freud e Nietzsche quanto à construção de uma representação do que é e do que deseja uma mulher. Este estudo enquadra-se dentro de uma pesquisa já ampla e de múltiplas perspectivas que trata da representação da mulher a partir do discurso psicanalítico, como encontramos em Karen Horney, Sándor Ferenczi, entre outros. Nossa pesquisa, no entanto, contribui para esse campo na medida em que propõe uma metodologia laplancheana e foucaultiana na abordagem do tema, o que não foi feito até então.

Sustentamos que tal construção do feminino faz parte da epistemé que encorpa tanto as formulações iniciais da psicanálise quanto as considerações nietzschianas, muito características da virada do século XIX para o XX. Essa imagem da mulher velada, pudorenta, maternal, submissa, dócil, ressentida, passiva e masoquista funciona como uma "ajuda à tradução" (Laplanche, 2015b, p. 202) do pulsional para a criança, constituindo esquemas narrativos, "roteiros mais ou menos ricos, populares, flexíveis" (Laplanche, 2015c, p. 286), facilitados pela cultura, "para ordenar, para historizar seu destino" (Laplanche, 2015b, p. 202), traduzindo atividade e passividade em termos generificados: masculinidade e feminilidade.

Essa representação da mulher serve de suporte tradutivo para "dar uma forma narrativa" (Laplanche, 2015c, p. 286) às mensagens sexuais veiculadas pelos adultos. Essa narratividade é composta por elementos mais ou menos fixos, em número limitado, designados continuamente à criança pelo socius, auxiliando a tradução dos ruídos inconscientes que interferem nas mensagens dos cuidadores. Assim, os "grandes esquemas narrativos transmitidos e depois modificados pela cultura vêm ajudar o pequeno sujeito humano a tratar, isto é, a ligar e simbolizar, ou ainda, a traduzir as mensagens enigmáticas traumatizantes que lhe vêm do adulto" (Laplanche, 2015b, p. 205).

Freud e Nietzsche também estão inseridos numa cultura, também pertencem a um regime de verdade, de visibilidade, de práticas discursivas, de enunciados. A produção dos saberes não é neutra; "cada formação histórica vê e faz ver tudo o que pode, em função de suas condições de visibilidade, assim como diz tudo o que pode, em função de suas condições de enunciado" (Deleuze, 1988, p. 68). O fazer teórico é comprometido com o inconsciente e com a formação histórica a que diz respeito, bem como o percebeu Laplanche (1997) em sua fórmula: a teoreticogênese reproduz a ontogênese, no sentido de que "a 'teoreticogênese', isto é, a própria evolução da teoria com suas metamorfoses, tem tendência a reproduzir a ontogênese, isto é, o destino da sexualidade e do inconsciente no ser humano" (Laplanche, 1997, p. 12), destino que sempre se liga a algum socius historicamente localizado. Nietzsche parecia intuir algo nessa direção: "Por mais que o homem se estenda em seu conhecimento, por mais objetivo que pareça a si mesmo: enfim nada tirará disso, a não ser sua própria biografia" (Nietzsche, 1878/2005a, p. 243).

Em relação a nosso tema, o filósofo foi ainda mais específico: "Em todo problema cardinal fala um imutável 'sou eu'; sobre o homem e a mulher, por exemplo, um pensador não pode aprender diversamente, mas somente aprender até o fim – descobrir inteiramente o que nele está 'firmado' a esse respeito" (Nietzsche, 1886/2005b, p. 125). Em seguida, no mesmo trecho, anuncia que dirá "algumas verdades acerca da 'mulher em si': supondo que desde já se saiba que são apenas verdades minhas" (Nietzsche, 1886/2005b,p. 125, grifos do autor). Nietzsche, ao que nos parece, suspeitava do comprometimento da teoria com o inconsciente, com as traduções que nele foram firmadas a partir do socius.

Ainda assim, importante notar, nosso intuito não é o de fazer uma psicanálise selvagem dos dois autores. Seguindo Laplanche, "uma psicanálise de Freud não parece conduzir para onde eu quero" (Laplanche, 1997, p. 10); a ideia é "detectar, em certos momentos, uma espécie de 'cripto-Freud', encoberto pelo Freud oficial" (Laplanche, 1997, p.10). Desse modo, poremos em evidência momentos de tensão dentro do pensamento de Freud, cotejando-os com as considerações de Nietzsche, para tentar extrair daí a economia psíquica dominante de uma época, a partir das representações das mulheres que foram construídas por esses autores.

Finalmente, cabe ainda advertir que tomamos a obra de Nietzsche não em seu sentido filosófico, mas tão somente naquilo que ela traz de representação da mulher. Trata-se de um recorte epistemológico que visa à análise das formas históricas e discursivas empregadas pelo autor, e não àespecificidade de seu “sistema” filosófico. O que implica desconsiderar a rede conceitual na qual se encaixam essas formulações. Isso na medida em que tais representações não são criadas a partir do nada; antes, elas são narratividades tomadas da cultura e utilizadas a serviço de tratar algo do pulsional que se apresenta para cada um, a partir das contingências singulares de sua história libidinal. Nosso objetivo é investigar esse conjunto de representações, que é comum aos autores aqui em questão, como sendo da ordem de um recurso da cultura que permite uma simbolização possível do pulsional traumático –mas que não precisa ser traduzido necessariamente dessa forma. Tentaremos, então, apontar para simbolizações que sejam menos recalcantes e menos mortíferas para a pulsão.

 

Gênero como código tradutivo

No presente artigo, analisando trechos das obras de Nietzsche e Freud, pretendemos fazer trabalhar a ideia de que gêneros são códigos tradutivos e esquemas narrativos (Laplanche,2015a; 2015c), os quais funcionam como engrenagens sociais para traduzir e recalcar o sexual infantil, fluido, perverso e polimorfo. Tradução que, inevitavelmente, sempre deixará um resto: "o Sexual é o resíduo inconsciente do recalque-simbolização do gênero pelo sexo" (Laplanche, 2015a, p. 155, grifos do autor). Isso porque as designações de gênero, as verdadeiras prescrições generificadas que os adultos realizam sobre as crianças, confrontam os infantes com mensagens enigmáticas, emitidas em nível consciente-pré-consciente, mas com intrusão de um "ruído" (Laplanche, 2015a, p. 168) do sexual inconsciente, infantil e recalcado, do adulto, um sexual que vem comprometer essas mensagens, evidenciando seu fundo pulsional, opaco, enigmático, sem sentido, traumático e conflitivo.

O gênero precede o sexo, mas, ao invés de organizá-lo, é organizado por ele (Laplanche,2015a, p. 168). A identidade de gênero, apoiada no par fálico-castrado, serve, portanto, para recalcar o polimorfismo e a parcialidade do sexual infantil, que é recalcado porque é sexual, e é sexual porque é recalcado. Sustentamos que esses códigos-esquemas narrativos, tal como vêm sendo construídos, apresentam implicações políticas radicalmente negativas, ao reforçarem um arranjo contingente de gênero, que busca organizar, de maneira binária, um sexual infantil perverso, polimorfo e fluido: como se apenas a mulher, numa superposição entre gênero e sexo, tivesse contas a prestar com a passividade; como se a mulher devesse alcançar a passividade como seu destino, ao passo que os homens deveriam buscar a atividade, desmentindo sua passividade originária. O gênero, portanto, age no sentido de recalcar o sexual por meio do sexo, ao usar códigos tradutivos e esquemas narrativos, papéis sociais organizadores e binários, justificados através da diferença das genitálias, em defesa contra o sexual originário, profundamente desorganizado e desorganizador.

 

A mulher em Nietzsche

A mulher, o véu e a verdade. Nietzsche foi um pensador fundamental para a virada pós-moderna e para o desenvolvimento dos estudos de gênero. Em sua obra, abundam críticas aos universais, às pretensões a verdades absolutas, às tentações metafísicas e às naturalizações indevidas. Em oposição à sistematicidade e sobriedade das construções filosóficas que ordenaram a tradição ocidental, o alemão optou por um formato filosófico que desse maior vazão a seus afetos. "Uma visão antimetafísica do mundo – sim, mas uma que seja artística" (Nietzsche, 1968, p. 539, tradução nossa). Em relação a esse seu projeto, a mulher e o feminino não ficam de fora. Como observa Giacoia (2002, p. 10), Nietzsche constantemente recorre à mulher para ilustrar uma concepção da verdade que se opõe ao "dogmatismo filosófico".

Com efeito, o recurso à mulher – tal como o alemão a entende – metaforiza bem sua posição frente à verdade, como no aforismo "Vita femina [A vida é uma mulher]": "talvez esteja nisso o mais forte encanto da vida: há sobre ela, entretecido de ouro, um véu de belas possibilidades, cheio de promessa, resistência, pudor, desdém, compaixão, sedução. Sim, a vida é uma mulher!" (Nietzsche, 1882/2012, p. 204). Os aspectos enigmáticos que o filósofo percebe na mulher simbolizam sua visão da verdade como estando do lado "do disfarce, do véu, da aparência, da sedução, do simulacro" (Giacoia, 2002, p. 13), o que lhe confere uma posição antiplatônica par excellence. Assim, suas críticas à "mulher emancipada" recaem sobre a tentativa, por parte da "mulher científica", de "esclarecer os homens sobre a 'mulher em si'" (Nietzsche, 1886/2005b, p. 125), isto é, sobre uma "hipóstase metafísica 'da mulher'" que lhe "ficciona algo como uma essência objetiva" (Giacoia, 2002, p. 15).

Nesse sentido, Nietzsche elogia as mulheres que se oporiam a tal concepção essencialista, como fica claro pelo seguinte trecho de Além do bem e do mal: "Por trás da vaidade pessoal, as próprias mulheres têm o seu desprezo impessoal – pela 'mulher'" (Nietzsche, 1886/2005b, p. 64). Isso é bem desenvolvido no artigo de Giacoia (2002). No entanto, ele limita a mulher e o feminino nietzschianos a essa relação com a verdade. Giacoia simplesmente ignora uma série de outras considerações nietzschianas sobre a mulher e o feminino que têm pouca ou nenhuma relação com seu antiplatonismo. Antes, são pontuações marcadamente afetivas, como nos seguintes trechos de Ecce homo: "A mulher, por exemplo, é vingativa: isso é determinado por sua fraqueza, tanto quanto sua sensibilidade à aflição alheia" (Nietzsche, 1888/2008, p. 29); "A mulher é indizivelmente mais malvada que o homem, também mais sagaz; bondade na mulher é já uma forma de degeneração…" (Nietzsche, 1888/2008, p. 56); "'Emancipação da mulher' – isso é o ódio instintivo da mulher que não vinga, ou seja, não procria, à mulher que vingou" (Nietzsche, 1888/2008, p. 56). Esses elementos, totalmente deixados de lado em uma série de estudos, são o que nos cabe aqui examinar, na medida em que relevam de uma economia psíquica que pode nos auxiliar em uma compreensão dos processos inconscientes envolvidos na constituição dos gêneros, a partir do caminho aberto por Freud e Laplanche.

A mulher e o pudor. Um dos elementos que sustentam a metáfora nietzschiana, a que articula a mulher à verdade, é uma segunda associação: a mulher e o pudor. Nietzsche descreve a verdade como um elemento de superficialidade; a retirada do véu, do aspecto velado das coisas, impossibilita o efeito (de fundo ficcional) da verdade, por remover seu pudor, seu caráter de encobrimento. Essa intenção de retirar o véu faz parte do projeto moderno de ciência, que o alemão critica, por exemplo, no seguinte trecho: "A ciência ofende o pudor das verdadeiras mulheres. Elas têm a sensação de que se pretende observá-las sob a pele –pior: sob as vestes e os adornos" (Nietzsche, 1886/2005b, p. 68). Assim, a ciência moderna pretenderia observar a mulher por baixo de seus aspectos superficiais, enigmáticos, sedutores, o que ofenderia o "pudor" das "verdadeiras mulheres"; afinal, o "enfeitar-se é parte do eterno-feminino" (Nietzsche, 1886/2005b, p. 126).

Não deixa de causar estranhamento a tensão entre as concepções do feminino que vimos considerando: em um primeiro momento, Nietzsche pareceu criticar os universais construídos sobre a mulher, denunciando as tentativas de dizer sua "verdade"; em um segundo momento, entretanto, o filósofo constrói uma concepção do que seriam as "verdadeiras" mulheres…E ainda prossegue com inúmeras naturalizações, a exemplo deste trecho, também de Além do bem e do mal: "Comparando no todo o homem e a mulher, podemos dizer: a mulher não teria o gênio para o ornamento, não tivesse o instinto para o papel secundário" (Nietzsche, 1886/2005b, p. 70). Logo após desmontar a noção de uma ontologia essencial da mulher, Nietzsche acaba por criar uma também, como fica explícito alguns parágrafos adiante: "[A] mulher perde o pudor. Acrescentemos logo que também perde o gosto. Desaprende a temer o homem: mas a mulher que 'desaprende o temor' abandona seus instintos mais femininos" (Nietzsche, 1886/2005b, p. 129, grifos do autor).

Em seu projeto artístico e antimetafísico de filosofia, o autor acaba por reforçar uma série de construções sociais realizadas em torno da mulher e do feminino, dizendo de instintos "femininos", de "verdadeiras mulheres", de "papel secundário", o que recai numa concepção essencialista e naturalista da mulher e do feminino, inclusive sem realizar uma adequada distinção entre sexo e gênero. Nietzsche cria uma espécie de natureza feminina, tal como neste trecho, ainda de Além do bem e do mal:

A mulher tem muitos motivos para o pudor; há tanta coisa pedante, superficial, sabichã, mesquinhamente arrogante, mesquinhamente irrefreada e imodesta escondida na mulher […], que até o momento, e no fundo, só o temor ao homem reprimiu e conteve da melhor maneira. (Nietzsche, 1886/2005b, p. 125)

Como se o "temor ao homem", uma construção social de gênero, um arranjo pulsional comprometido com o inconsciente, fosse essencial para a contenção de uma natureza feminina malévola, que precisaria ser reprimida –pelo homem.

 

A mulher em Freud

A justiça, o trançar e o tecer. Assim como em Nietzsche, na obra de Freud, a mulher também é associada ao disfarce. Examinemos a analogia que o autor estabelece entre a capacidade de tecer e a vergonha, tipicamente "feminina". Em sua conferência XXXIII, "Feminilidade", Freud (1933/1996j) associa às mulheres algo do disfarce e do pudor, além de atribuir a elas pouca capacidade de justiça. A vergonha é considerada por ele "uma característica feminina par excellence" (Freud, 1933/1996j,p. 131), que teria como finalidade a "ocultação da deficiência genital", ou seja, ocultar o fato de a menina se considerar castrada por não ter um pênis. O autor prossegue dizendo que a vergonha ainda adquire outras funções posteriormente: ao lançar a hipótese de que talvez tenham sido as mulheres que inventaram a técnica de trançar e tecer, Freud acrescenta que isso deve ter tido motivações inconscientes. "A própria natureza parece ter proporcionado o modelo que essa realização imita, causando o crescimento, na maturidade, dos pelos pubianos que escondem os genitais. O passo que faltava dar era fazer os fios unirem-se uns aos outros" (Freud, 1933/1996j, p. 131). Dessa maneira, seria no intuito de compensar uma suposta deficiência feminina original que a vergonha se instalaria como parte de uma pretensa natureza das mulheres, levando-as a criar a técnica de trançar e tecer.

Acreditamos ser não apenas possível, mas também necessário criticar essa representação da mulher elaborada por Freud. A análise freudiana leva em conta apenas uma lógica da diferença, uma lógica fálica, baseada em ter ou não ter; ou se tem o pênis, ou não se tem. Sendo que, em verdade, essa não é uma interpretação necessária e inevitável, como Freud faz parecer. Laplanche (1988, p. 23) denuncia essa teoria da castração como sendo apenas uma teoria sexual infantil, sem qualquer teor universalizável, sem qualquer indicação de que deva servir como direção necessária para a psicanálise. Pelo contrário, os psicanalistas não deveriam se basear em uma lógica da diferença sexual, que funciona por dualidades exclusivas; pois não basta dizer "não-pênis" para dizer "vagina" (cf. Laplanche,1988, p. 44). Antes, a orientação deve ser para uma lógica da diversidade, dos n sexos, e não apenas dois. Afinal, não é forçoso que a interpretação da menina seja "ele tem um pênis e eu não tenho"; outras posições são possíveis, como "eu não tenho um pênis, eu tenho outra coisa, tenho uma vagina" (cf. Laplanche,1988, p. 71).

Freud (1933/1996j) ainda percebe como consequência do feminino já castrado um comprometimento na formação do superego das mulheres, instância moral da psique; sua formação deve "sofrer um prejuízo; não consegue atingir a intensidade e a independência, as quais lhe conferem sua importância cultural" (Freud, 1933/1996j,p. 129). Portanto, por já ser castrada, a menina vê comprometida a formação de seu senso de justiça, visto que ela não tem um pênis que possa ser perdido, situação imaginária que lhe daria melhores condições de realizar julgamentos morais e submeter-se às exigências da vida. Assim, os homens seriam mais capazes de julgar moralmente e de internalizar a lei, visão que também repudiamos, visto que a presença ou ausência de pênis não pode ser determinante do senso moral de alguém.

Para retomar o exemplo do trançar e tecer: é preciso questionar o que leva as mulheres a se envergonharem do seu corpo. Isso não se daria por razões biológicas constitutivas, por uma natureza feminina, mas, antes, pelas narrativas binárias de gênero, que constituem e são constituídas por relações de poder, produtoras de corpos investidos por interpretações culturais recalcantes. Estas, por sua vez, sustentadas pelo falocentrismo e pelas designações de gênero (cf. Laplanche,2015a, p. 169), é que inauguram uma pretensa inferioridade feminina, um "sentimento narcísico de humilhação ligado à inveja do pênis" (Freud, 1925/1996i, p. 284). Afinal, o pênis não é invejado por suas características intrínsecas (ser maior que o clitóris, por exemplo), mas, sim, por ser uma insígnia de poder (Laplanche,1988, p. 49) numa estrutura social que garante privilégios aos seus portadores.

 

A mãe e a submissão feminina em Nietzsche

A mãe: teleologia da mulher? Nietzsche foi um árduo crítico da teleologia na filosofia, a exemplo deste trecho de A gaia ciência: "Guardemo-nos de crer que o universo é uma máquina; certamente não foi construído com um objetivo" (Nietzsche, 1882/2012, p. 126). Não há, em sua filosofia, uma finalidade intrínseca às coisas; o que há é apenas caos e acaso, a inocência do devir. No entanto, quando o filósofo descreve a mulher, parece que há uma teleologia em relação à maternidade. Do ponto de vista psicanalítico, também temos que criticar a ideia de uma teleologia psíquica, ou seja, um tipo de finalidade identitária a ser alcançada. Freud sustenta isso, com uma sugestiva ambiguidade, no seguinte trecho:

[…] estamos sempre demasiadamente prontos a esquecer que, de fato, o que influi em nossa vida é sempre o acaso, desde nossa gênese a partir do encontro de um espermatozoide com um óvulo –acaso que, no entanto, participa das leis e necessidades da natureza, faltando-lhe apenas qualquer ligação com nossos desejos e ilusões. (Freud, 1910/1996c, p. 141, grifos nossos)

Aqui, o psicanalista defende o acaso como elemento originário na vida psíquica, afirmando a primazia da contingência na formação de nossos desejos, que não levam em consideração as "leis e necessidades da natureza". Linha que se desvia nos textos mais tardios, em especial a partir de 1915, nos quais parece haver uma inevitabilidade interpretativa: a anatomia seria o destino.

Assim, há uma tensão importante na teoria psicanalítica. Por um lado, ao pressupor que a pulsão não tem objeto fixo desde o início (cf. Freud, 1905/1996b, p. 140), Freud está supondo que a ligação entre a pulsão e seu objeto é contingencial. Por outro lado, em textos como "Sobre a psicopatologia da vida cotidiana", Freud (1901/1996a, p. 240) mostra que não há acaso na vida psíquica, ou seja, que sempre será possível analisar um lapso ou uma ideia qualquer, traçando uma longa rede de razões inconscientes para qualquer ato psíquico. Essa é uma tensão que deve ser sustentada, uma vez que as ligações pulsionais, na medida em que se estabelecem, arranjam-se de tal forma a fazer parecer que não poderiam ter sido de outro modo. Isso fica especialmente claro nas ligações pulsionais narcísicas, aquelas que sustentam a unidade do próprio eu. O gênero é um tipo de ligação identitária que visa justamente fazer desaparecer esse tipo de contingência originária; mesmo que narrativas binárias nunca deem conta de esgotar a pulsão. Mas um dos efeitos do narcisismo é a produção da crença por parte do sujeito de que sua orientação sexual e sua identidade de gênero se impõem como se sempre tivessem existido e como se fossem imutáveis.

Nesse sentido, mesmo com essa tensão positiva, Freud parece desviar-se inúmeras vezes ao recair em teleologias e em naturalismos, como a da mulher em relação com a maternidade, bem como percebemos também na obra de Nietzsche.

A natureza materna da mulher. Há uma tensão negativa entre o Nietzsche que diz da inexistência dos universais, da ausência de teleologia no universo, e o Nietzsche que fala das mulheres e, em especial, das mães. A exemplo do seguinte trecho de Assim falou Zaratustra: "Tudo na mulher é um enigma, e tudo na mulher tem uma solução: que se chama gravidez. O homem é, para a mulher, um meio: o fim é sempre o filho" (Nietzsche, 1883-1886/2011, p. 63). Seu personagem mais famoso, Zaratustra, diz que quer a mulher "apta para a criação" (Nietzsche, 1883-1886/2011, p. 201). Dessa maneira, o filósofo parece estabelecer um papel de gênero bastante limitante, tanto para a mulher quanto para o homem: ela, "apta para a criação"; ele, "apto para a guerra" (Nietzsche, 1883-1886/2011, p. 201). De modo que o discurso emancipatório do feminismo do século XIX não seria nada mais do que "o ódio instintivo da mulher que não vinga, ou seja, não procria, à mulher que vingou" (Nietzsche, 1888/2008, p. 56). A mulher que vinga é a que procria; as mulheres "emancipadas", "degeneradas", são as "não aparelhadas para ter filhos" (Nietzsche, 1888/2008, p. 56).

É pela lógica fálica que Nietzsche tenta solucionar sua questão com o feminino: a gravidez é a finalidade da mulher, a direção para onde ela deve caminhar. Essa dobra entre o feminino e o maternal está explícita neste trecho de Humano, demasiado humano: "Em toda espécie de amor feminino também aparece algo do amor materno" (Nietzsche,1878/2005a, p. 200). Como se não houvesse distância entre as duas construções. Há aqui um elemento ao mesmo tempo naturalista e teleológico demasiado antinietzschiano para o que esperamos do alemão. Pois só com a gravidez a mulher viria a se redimir, posição de fortes implicações ontológicas. E, além disso: "A gravidez tornou as mulheres mais brandas, mais pacientes, mais temerosas e dispostas à submissão" (Nietzsche, 1882/2012, p. 97).

Ainda assim, a gravidez é apenas uma das formas discursivas que Nietzsche usa para submeter a mulher a uma lógica de dominação masculina; tal submissão fica notável sob outras roupagens: "Um homem que ama como uma mulher torna-se escravo; mas uma mulher que ama como uma mulher torna-se mais perfeita como mulher […]. A mulher quer ser tomada e aceita como posse, quer ser absorvida na noção de 'posse', de 'possuído'" (Nietzsche, 1882/2011, p. 238); "O homem deve ser educado para a guerra e a mulher, para o descanso do guerreiro: tudo o mais é tolice […]. A felicidade do homem é: eu quero. A felicidade da mulher é: ele quer" (Nietzsche, 1883-1886/2011, p. 64). No amor, ao homem caberia tomar, e à mulher caberia dar e conceder, pois "obedecer deve a mulher" (Nietzsche, 1883-1886/2011,p. 64).

Há uma ligação visceral, portanto, entre ser mulher e ser mãe. Para a psicanálise, tal ligação é contingencial e estará sujeita às vicissitudes das fantasias inconscientes que a sustentarão. Há um vislumbre disso em Nietzsche quando ele suspeita do amor materno como um tipo de aprisionamento: "O espírito livre respira aliviado, quando afinal decide se desvencilhar dos cuidados e da proteção maternais com que governam as mulheres à sua volta" (Nietzsche, 1878/2005a, p. 210), que promoveriam uma "sensação oprimente"; afinal, "o leite que lhe é dado pelo sentimento maternal das mulheres ao seu redor pode facilmente se transformar em fel" (Nietzsche, 1878/2005a,p. 210). Assim como os conflitos na infância "com uma mãe infantil e colérica"; "Se vivenciamos algo assim, por toda a vida não superaremos a dor de saber quem foi realmente nosso maior e mais perigoso inimigo" (Nietzsche, 1878/2005a, p. 207). Além do mais, as "dissonâncias não resolvidas na relação entre o caráter e a atitude dos pais ressoam na natureza da criança e constituem a história íntima de seus sofrimentos" (Nietzsche, 1878/2005a, p. 199).

 

A menina, a mãe e a submissão feminina em Freud

A construção da mulher como submissa e a articulação disso à maternidade também está presente em Freud. A leitura de dois artigos nos mostra que, ali onde deveríamos esperar a contingência da construção do gênero, encontraremos uma espécie de via facilitada quase impossível de não ser seguida que é a maneira por meio da qual a anatomia é interpretada. No artigo de 1924, "A dissolução do complexo de Édipo", Freud (1924/1996h) sustenta que o Édipo se resolve muito mais facilmente no caso das meninas, porque lhe basta "assumir o lugar da mãe e adotar uma atitude feminina para com o pai" (1924/1996h,p. 198). Além disso, a "renúncia ao pênis não é tolerada pela menina sem alguma tentativa de compensação" (1924/1996h, p. 198). Em uma equação simbólica, o desejo da menina deslizaria do pênis para um bebê – do pai. A menina quereria dar ao pai um filho seu. Mas, de maneira supostamente não conflitiva, esse desejo seria apenas abandonado, devido à sua insistente não realização.

Ainda assim, esses dois desejos – um pênis e um bebê – persistiriam fortemente catexizados no inconsciente e ajudariam "a preparar a criatura do sexo feminino para seu papel posterior" (Freud, 1924/1996h, p. 198). Como se houvesse um "papel posterior" necessário, ao invés de contingente, nos arranjos de gênero. E, no caso, há uma domesticação radical do desejo feminino, localizando-o de acordo com a lógica fálica, falocêntrica, regulada pelo falo: ele está orientado para um pênis ou para seu pretenso substituto, o bebê. Interessante pensar que Freud acreditava ser esse um desejo quase natural e espontâneo das meninas, mas não levava em conta o fato de que são os adultos cuidadores que dão bonecas às meninas desde cedo, num processo de produção incessante desse desejo, cujo efeito principal é o apagamento de sua origem alteritária e sua transformação na ilusão óptica de um instinto materno, natural.

Em seguida, Freud (1924/1996g) ainda prossegue afirmando que, por causa da ausência de pênis na mulher, do "crescimento retardado de seu pênis", sua pulsão sexual tem menor contribuição sádica, o que facilitaria a transformação de tendências sexuais diretas em tendências "de tipo afetuoso" (Freud, 1924/1996g,p. 198). De maneira que a constituição biológica da mulher, sua "ausência de pênis", iria manter baixo seu nível de sadismo e de agressividade (atribuíveis à presença de pênis), ajudando a construir uma imagem de mulher dócil, afetuosa, carinhosa, pronta para o destino da maternidade, em que a mulher encontraria o bebê que já deseja, no inconsciente, como substituto simbólico para seu pênis perdido.

Essa visão também se prolonga em outro artigo, "Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos", em que Freud (1925/1996i) descreve motivos para que a menina abandone a mãe como objeto de amor original e se volte para seu pai. Isso se daria na fase fálica, quando ocorre "uma momentosa descoberta que as meninas estão destinadas a fazer" (Freud, 1925/1996i,p. 280, grifo nosso): elas "notam o pênis de um irmão ou companheiro de brinquedo, notavelmente visível e de grandes proporções, e imediatamente o identificam com o correspondente superior de seu próprio órgão pequeno e imperceptível; dessa ocasião em diante caem vítimas da inveja do pênis" (Freud, 1925/1996i, p. 280, grifo nosso). Assim, Freud parece colocar uma interpretação forçosa, um arranjo necessário, ali onde encontramos uma construção contingente, uma lógica fálica. "A antítese aqui é entre possuir um órgão genital masculino e ser castrado" (Freud, 1923/1996f, p. 161, grifos do autor).

Para Freud, a menina, ao ver que não tem pênis, faz "seu juízo e toma sua decisão num instante. Ela o viu, sabe que não o tem e quer tê-lo" (Freud, 1924/1996h, p. 281). Isso apontaria para uma interpretação quase inevitável que determinará sua relação com seus progenitores: a menina desenvolverá ódio da mãe por não ter lhe dado um pênis e se direcionará amorosamente para o pai, na busca de um filho seu como substituto fálico (Freud,1924/1996h, p. 284). Importante ressaltar que é bastante dubitável que haja interpretações fenomenológicas imunes à rede ideológica que institui o campo do visível e de como interpretar o que se vê.

Nesse sentido, faria parte do desejo inconsciente das mulheres esse deslocamento simbólico do pênis para o bebê, desejo desencadeado pela falta de pênis na mulher. Como se a maternidade fosse o destino das mulheres, que também é encontrado na obra nietzschiana.

 

Docilidade e sadomasoquismo na mulher

Em Nietzsche: a mulher rebelde e/ou dócil. Há duas imagens da mulher em Nietzsche facilmente destacáveis: uma rebelde e outra dócil. A primeira é descrita de tal forma a fazer crer que a mulher traz um risco que é necessário controlar, na medida em que ela carregaria a ameaça, por exemplo, de levar os artistas e os gênios à "ruína" (Nietzsche, 1888/1999, p. 15). Para Nietzsche, o "amor feminino" costuma ser apenas um "parasitismo refinado", "à custa do 'hospedeiro'" (Nietzsche, 1888/1999, p. 15).

A imagem da mulher rebelde em Nietzsche aparece de forma bem clara:"A mulher, por exemplo, é vingativa: isso é determinado por sua fraqueza, tanto quanto sua sensibilidade à aflição alheia" (Nietzsche, 1888/2008, p. 29); "Poderia uma mulher nos prender (nos 'cativar', como se diz), se não acreditássemos que em algumas circunstâncias ela saberia manejar um punhal (qualquer tipo de punhal) contra nós?" (Nietzsche, 1882/2012, p. 95, grifo do autor). Tal imagem está atrelada à atitude violenta dos homens a ser endereçada a elas: "De antigas novelas florentinas – e também da vida: 'buona femmina e mala femmina vuol bastone' [boa ou má, a mulher quer bastão]" (Nietzsche, 1886/2005b, p. 70). Bem como no trecho de Assim falou Zaratustra (Nietzsche, 1883-1886/2011, p. 65): "'Vais ter com as mulheres? Não esqueças o chicote!'". Talvez por ser rebelde, a mulher deva ser aprisionada: "conceber a mulher como posse, como propriedade a manter sob sete chaves, como algo destinado a servir e que só então se realiza" (Nietzsche, 1886/2005b, p. 129). A pressuposição é a de que sua condição natural é de docilidade. Se não é assim, sua violência e resistência ao julgo é interpretada como rebeldia que deve ser punida e controlada.

Em contraposição à mulher rebelde, uma outra imagem dela é proposta. Nietzsche vai descrever a natureza da mulher em termos de sua docilidade, que faria parte de uma "lei dos sexos" (Nietzsche, 1882/2012, p. 95), clara naturalização de um código narrativo de gênero com fundo contingente, comprometido com arranjos pulsionais recalcantes. "A natureza do homem é vontade, a da mulher, docilidade – assim é a lei dos sexos, uma lei dura para as mulheres, verdadeiramente!" (Nietzsche, 1882/2012, p. 95). Em Além do bem e do mal, há uma passagem similar, que retrata as mulheres como "algo mais delicado, mais vulnerável, mais doce, selvagem, exótico e cheio de alma – mas como algo que se prende, para que não fuja voando" (Nietzsche, 1886/2005b, p. 128).

Em Freud: a mulher ressentida e/ou invejosa. Paralelamente, encontramos em Freud (1924/1996g, p. 198) o argumento de que a ausência de pênis na mulher faz com que sua pulsão sexual tenha menor contribuição das forças do sadismo, o que facilitaria sua transformação em tendências "de tipo afetuoso". De maneira que a constituição biológica da mulher, sua "ausência de pênis", manteria baixo seu nível de sadismo e de agressividade (atribuíveis à presença de pênis), ajudando a construir uma imagem de mulher dócil, afetuosa, carinhosa. Quando não é assim, a mulher é vista como rebelde, ressentida, afinal, a "renúncia ao pênis não é tolerada pela menina sem alguma forma de compensação" (Freud, 1924/1996g, p. 198). Assim, a mulher seria profundamente motivada pela inveja do pênis, que nunca cessaria, mas se deslocaria, por exemplo, para a forma do ciúme (Freud, 1925/1996i, p. 282), o qual desempenharia um "papel muito maior" (Freud, 1925/1996i, p. 282) na vida mental das mulheres do que na dos homens devido à sua ausência de pênis.

Ademais, na conferência "Feminilidade", Freud (1933/1996j,p. 118) sustenta que a diferença genital acarreta claras diferenças pulsionais, justificando-se com o seguinte exemplo: "Uma menininha é, em geral, menos agressiva, desafiadora e autossuficiente; ela parece ter mais necessidade de obter carinho e, por esse motivo, de ser mais dependente e dócil". O psicanalista também tem a impressão de que "maior coerção foi aplicada à libido quando ela é moldada para servir à função feminina, e de que –falando teleologicamente–a Natureza tem em menor conta as suas exigências referentes a essa função do que às da masculinidade" (Freud, 1933/1996j, pp. 130-131, grifo nosso), ou seja, a masculinidade, por ser ativa, é tida em maior conta por uma teleologia da natureza. E a frequente frigidez sexual das mulheres confirmaria esse descaso natural. Freud prossegue dizendo que a razão dessa diferença "pode estar – novamente pensando em termos teleológicos –no fato de que a realização do objetivo da biologia foi confiada à agressividade dos homens e se tornou, em certa medida, independente do consentimento das mulheres" (Freud, 1933/1996j, p. 131, grifo nosso).

Há uma tensão percorrendo a obra de Freud a esse respeito. No estudo de 1910 sobre Da Vinci, ao exaltar o acaso como elemento originário de nossa vida psíquica, o psicanalista afirmava não haver qualquer ligação das leis e necessidades da natureza com "nossos desejos e ilusões" (Freud, 1910/1996c, p. 141). Posteriormente, no entanto, em trabalhos de épocas variadas (Freud, 1915/1996d, 1924/1996h, 1933/1996j), ele enxerga uma teleologia na natureza, uma lei biológica, determinando os comportamentos sádicos, ativos, como "masculinos" e os comportamentos masoquistas, passivos, como "femininos". Ainda assim, sua posição é carregada de ambiguidades, a exemplo desta obscura passagem de 1915: "A junção da atividade com a masculinidade e da passividade com a feminilidade nos defronta, na realidade, com um fato biológico, mas não é de forma alguma tão invariavelmente completa e exclusiva quanto tendemos a presumir" (Freud, 1915/1996d, p. 139, grifo nosso), afinal, como escreve numa nota de rodapé desse mesmo ano para os Três ensaios, "a masculinidade e a feminilidade puras não são encontradas nem no sentido psicológico nem no biológico" (Freud, 1905/1996b, p. 208).

A mesma ressalva é encontrada em trechos de 1925; em um momento, Freud (1925/1996i, p. 283, grifo nosso) assegura que as "reações de indivíduos humanos de ambos os sexos naturalmente se constituem em traços masculinos e femininos", mas, poucas páginas adiante, ele adverte que "a masculinidade e a feminilidade puras permanecem sendo construções teóricas de conteúdo incerto" (Freud, 1925/1996i, p. 286).Em seguida, na conferência "Feminilidade", Freud (1933/1996j) alerta contra a superposição entre atividade-passividade com masculinidade-passividade e ainda enfatiza os processos culturais que impõem à mulher uma "supressão da agressividade" (Freud, 1933/1996j, p. 116), mas, ao mesmo tempo, comete um desvio biologizante ao dizer que tal supressão também lhe é "instituída constitucionalmente" (Freud, 1933/1996j, p. 116), mais que culturalmente. De maneira que o masoquismo é "verdadeiramente feminino" (Freud, 1933/1996j, p. 117). Diante desse apanhado teórico, diríamos que a anatomia é o destino –até mesmo da interpretação cultural…

 

A mulher e o feminino atrelado à passividade

Em Freud, encontramos em vários momentos um atrelamento apressado entre feminino e passividade. Descrevendo os tipos de masoquismo, o masoquismo feminino seria aquele que colocaria o sujeito "numa situação caracteristicamente feminina" (Freud, 1924/1996g, p. 180), que o psicanalista traduz por "ser castrado, ou ser copulado, ou dar à luz um bebê" (Freud, 1924/1996g, p. 180). Tal nomeação se daria porque o fato de já ser "castrado" "deixa um traço negativo de si próprio nas fantasias" (Freud, 1924/1996g, p. 180). Há uma espécie de hipóstase da condição do feminino, como se fosse o papel natural da mulher estar na posição passiva que sofre, que é copulada (cf. Freud, 1919/1996e, p. 212). Se esse não é o papel dado desde o início, acaba sendo o papel que ela tem de conquistar, ao longo de seu desenvolvimento, abrindo mão do masculino inicial, seu ponto de partida. Quase como uma teleologia, um objetivo a cumprir. Como se apenas a mulher fosse passiva, penetrável; como se os homens nada tivessem com isso, como se eles não participassem disso, nem mesmo em seus cuidados originários…

Tudo isso fica bastante claro quando Freud, analisando o caso de um menino, afirma que a fantasia de "ser espancada" "corresponde, no caso de menino, a uma atitude feminina, e é, portanto, expressão daquela parte da sua propensão que pertence ao sexo oposto" (Freud, 1919/1996e, p. 216). O psicanalista parece não perceber que promove aí uma cola entre sexo e gênero, ao atrelar o "ser espancada" a uma atitude feminina que seria característica do sexo das mulheres. Ele reforça isso ao dizer dessa mesma fantasia no caso da menina; agora, sim, essa fantasia "representa uma atitude feminina e corresponde ao seu sexo manifesto e dominante" (Freud, 1919/1996e, p. 216). Pois, para Freud, tanto "no caso de meninos como de meninas, a fantasia de espancamento corresponde a uma atitude feminina –isto é, uma atitude na qual o indivíduo se demora na 'linha feminina'" (Freud, 1919/1996e, p. 217), ao passo que "existem também desejos e fantasias que mantêm a linha masculina a partir da sua própria natureza, e que são expressões de impulsos instintuais masculinos –tendências sádicas, por exemplo" (Freud, 1919/1996e, p. 217).

De modo que a masculinidade se associa ao ativo, ao sadismo, e a feminilidade, ao passivo, ao masoquismo. A tal ponto que, ao se perguntar sobre o motivo de as meninas pararem de se masturbar, Freud defende que a masturbação, mesmo a clitoridiana, é "uma atividade masculina" (Freud, 1925/1996i, p. 283) e, logo, ativa, tornando necessário que a menina abandone esse exercício para aceder à feminilidade, passiva, à qual estaria "biologicamente destinada" (Freud, 1933/1996j, p. 119). Tanto em Nietzsche quanto em Freud, a mulher é, em geral, atrelada à passividade. A novidade do pensamento freudiano é atrelar a essa representação conjugada o termo masoquismo. Isso torna ainda mais temerária a associação sinonímica entre feminilidade e passividade.

 

Conclusão

A comparação entre Freud e Nietzsche no que tange às concepções de ambos os autores sobre as representações da mulher nos auxilia a mostrar que tais representações não são fruto apenas da reflexão psicanalítica. Ao contrário: a imagem da mulher velada, pudorenta, maternal, submissa, dócil, ressentida, passiva e masoquista é presente nos dois pensadores e parece apontar para a força de um "murmúrio anônimo no qual posições são apontadas para sujeitos possíveis" (Deleuze, 1988, p. 64). Precisamos ainda frisar: não se trata de eximir Freud e Nietzsche, culpando uma epistemé por suas posições quanto às mulheres. Trata-se, isso sim, de atentar para o comprometimento político de toda teoria com as relações de poder-saber que inevitavelmente permeiam toda formação histórica.

Por um lado, tal aproximação entre os dois pensadores mostra que cada época "enuncia perfeitamente o que há de mais cínico em sua política, como o mais cru de sua sexualidade […]. Cada época diz tudo o que pode dizer em função de suas condições de enunciado" (Deleuze, 1988, p. 63). Fazer dialogar Freud com o seu tempo é uma ferramenta metodológica importante, pois desconstrói a ideia de uma teoria oriunda exclusivamente de uma genialidade individual (Belo, 2011). Isso, por sua vez, historiciza a teoria, permitindo redescrever e reavaliar o que antes era visto de maneira imutável. No que tange às descrições de identidade de gênero, o processo de historicização mostra novas possibilidades clínicas de se pensar o que é o sujeito do ponto de vista de suas relações amorosas e sexuais.

Por outro lado, acreditamos, com Laplanche, que a construção da representação da mulher atrelada à passividade e aos elementos que discutimos possibilitou uma enorme engrenagem tradutiva que auxiliou a fixar a identidade de gênero a determinadas identificações que enrijecem posições subjetivas a partir de normas sociais. A tradução generificada da passividade originária em feminilidade vem atender a uma fantasia inconsciente sadomasoquista, que se torna uma representação ideológica das mulheres. É esse tipo de fantasia que é necessário fazer trabalhar na clínica, no intuito de procurar simbolizações mais abertas, mais múltiplas, mais flexíveis, que não tentem fixar identificações rígidas com base em um gênero binário e recalcante, apoiado no sexo, na diferença sexual, ter ou não ter, que é usado para traduzir o par atividadepassividade em masculinidade-feminilidade. É a partir da desmontagem dessa interpretação falocêntrica que acreditamos ser possível repensar o trabalho clínico, atentando para essas engrenagens sociais que vimos descrevendo e propondo traduções que não sejam tão recalcantes para a passividade originária, traduções que sejam menos mortíferas e mais englobantes.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Vinícius Moreira Lima

E-mail: vmlima6@gmail.com

Fábio Roberto Rodrigues Belo
E-mail: fabiobelo76@gmail.com

 

 

* Graduando em Psicologia pela UFMG, pesquisador na área de Psicanálise e Filosofia, bolsista de iniciação científica pelo PIBIC-CNPq.
** Professor adjunto do Departamento de Psicologia (UFMG), doutor em Estudos Literários (UFMG).

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