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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.19 no.2 São Paulo dez. 2017

 

RESENHAS

 

Resenha: A memória, o esquecimento e o desejo, de Rogério Miranda de Almeida

 

Almeida, Rogério Miranda de (2016). A memória, o esquecimento e o desejo. São Paulo: Ideias e Letras. 243p.

 

 

Samuel Mendonça*

Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas)
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)

 

 

Esquecer-se e lembrar-se: o desejo em questão

Rogério Miranda de Almeida tem apresentado ao público importantes obras que discorrem sobre os paradoxos da existência humana. Filósofo e teólogo com doutorados na França (Filosofia – Universidade de Metz e Teologia – Universidade de Estrasburgo), o autor tem examinado, desde o ano de 2007, aspectos concernentes a diferentes obras de filósofos clássicos e, de forma mais contundente, investigado a letra, utilizando-se de expressão de Lacan que lhe é cara e a questão do desejo em Freud, mas também em Nietzsche e inclusive em Agostinho de Hipona. Se há uma questão central que perpassa todas as obras de Rogério Miranda de Almeida, seja em Nietzsche e o Paradoxo, Nietzsche e Freud (2005), Eros e Tânatos: a vida, a morte e o desejo (2007) ou A fragmentação da cultura e o fim do sujeito (2012), todos publicados pela editora Loyola, ou na mais recente obra: A memória, o esquecimento e o desejo, publicada pela Ideias e Letras (2016), por certo é o paradoxo do entre-dois, expressão preferida do filósofo. Curioso notar que Almeida tem atuação na filosofia e na teologia e problematiza questões e autores que podem ser, em um exame sem rigor, considerados estanques ou até mesmo contraditórios. Seu empreendimento é gigante para a filosofia e para a teologia, para a ciência e a religião, para o mundo acadêmico ou o mundo da clínica. O entre-dois, mais que um conceito que busca o que há de intermediário entre duas forças potentes e contraditórias, bem e mal, eros e tânatos, parece dizer respeito à forma de vida de um autor que teve sua formação no Brasil e na Europa, que lecionou nos Estados Unidos e na Itália, que sempre colocou em relevo a construção de um pensamento que é paradoxal, dado que há forças de construção e de destruição, há vida e há morte, há texto e há gozo. Se a escrita rigorosa do pensador de Crato se efetiva em mais uma obra, isto parece significar, justamente, a potência do desejo que supera o gozo e constrói um texto clássico.

A memória, o esquecimento e o desejo contém 238 páginas e está organizado em três capítulos, quais sejam: (i) Freud: do recordar e do esquecer, (ii) Nietzsche e a potência do esquecer e (iii) Agostinho de Hipona: a vontade, o desejo e a memória. A tese do livro é a de que a memória não diz respeito a uma substância inerte ou uma faculdade passiva, mas, justamente, "uma dinâmica de forças e de relações de forças que supõem as vicissitudes, os meandros, as resistências e, portanto, a possibilidade do esquecimento e, logo, do recalque e/ou da repressão" (Almeida, 2016, p. 164). Não se trata de texto cronológico sobre a questão da memória e do esquecimento e muito menos de exame estrutural de um ou outro filósofo que se debruçou sobre a temática. De forma singular e absolutamente rigorosa, isto é, fazendo uso de fontes primárias, o autor se utiliza de três grandes autores: Freud, Nietzsche e Agostinho, mas não se limita a eles, discorrendo igualmente sobre outros tantos pensadores, como é o caso de Platão, Aristóteles, Plotino, Sêneca, Diógenes Laércio, Cícero, Pascal, Schopenhauer, Kierkegaard, Marx, Lacan, na construção de um texto que deixa clara a construção desses filósofos no que diz respeito à compreensão de que não se pode pensar a memória sem o esquecimento. De outra forma, esquecer é um ato que reivindica a rememoração dado que se houve esquecimento, há lembrança do que se esqueceu, e, justamente, os detalhes do referido esquecimento podem ser acessados, seja por meio da clínica, na perspectiva de Freud e de Lacan, seja na hipótese do aparecimento do Übermensch de Nietzsche, ao assumir a vontade de potência como um conjunto de forças de construção e de destruição que não cessam de criar vida e a morte ou, mais precisamente, na dimensão da iluminação interior, no sentido do teólogo africano, isto é, na ação de Deus como base de criação e também de "dispensação" de todas as coisas (Almeida, 2016, p. 223).

No primeiro capítulo intitulado Freud: do recordar e do esquecer, Almeida investiga diferentes obras de Freud para colocar em questão a compreensão do recordarse e do esquecer-se. Para isso, temas centrais da psicanálise são colocados em destaque, como é o caso do recalque, da resistência e do desejo. Se os sonhos, os lapsos, o recalque e a resistência estão presentes em pacientes histéricos, é curioso notar a argumentação do filósofo do entre-dois, no sentido de deixar transparecer que estes mecanismos estão também presentes em pessoas consideradas normais. Mais do que isso, em Freud, a memória "se manifesta como uma faculdade ou, melhor, como uma potência seletiva" (Almeida, 2016, p. 45). De qualquer modo, o recordar-se e o esquecer-se, para o inventor da psicanálise, na argumentação de Almeida, se dão, apesar do sujeito, por algo que fala no sujeito. A partir da página 60 o filósofo analisa, de forma singular, uma espécie de "ato falho" de Freud ao tentar recordar-se do sobrenome do artista italiano Luca Signorelli. A análise é fecunda e remete à clínica justamente no sentido de propor associações diversas em torno do que significa o termo senhor em alemão "Herr" com aproximação direta ao termo equivalente italiano "signore", que remete ao nome do artista italiano. As formas de associação, utilizadas no contexto de clínica, permitem o recordar daquilo que está esquecido, no entanto, esse processo não é simples e muito menos automático. É preciso dispor de profissional aberto a ouvir o paciente e, portanto, interessado em permitir que a letra se manifeste.

Nietzsche e a potência do esquecer diz respeito ao segundo capítulo que parte da problematização em torno da questão da verdade. Tema caro para Nietzsche na medida em que, por meio da vontade da potência, a verdade final, derradeira, compreendida como Aufhebung terminal escapa continuamente de quem a almeja. Almeida apresenta as três fases do pensador do eterno retorno, constituídas, respectivamente, por: (i) escritos trágicos, (ii) período intermediário constituído, fundamentalmente, por Humano, demasiado humano I e II e (iii) fase em que temas como vontade de potência, eterno retorno e niilismo são dissecados e analisados de forma precisa. O pensador do entre-dois argumenta que essa classificação não significa dizer que os temas são estanques às fases, mas é possível observar esses momentos como de maior impacto em relação aos termos elencados. A vontade de potência, por exemplo, já está presente em um fragmento póstumo relativo ao primeiro período. Aliás, digno de nota é o uso que faz Almeida em relação ao texto de Nietzsche que inclui as cartas (Briefe). Por meio desse cuidadoso exame, ele permite ao leitor compreender que um gênio como Nietzsche ou mesmo como Freud não pode ser reduzido ou classificado como uma coisa ou outra. A leitura integral da obra de um autor permite compreendê-lo, e o contrário é verdadeiro e talvez por isso tantas incorreções em relação à interpretação de autores e mesmo de tradução de textos entre idiomas. Os escritos desses autores são, na linguagem de Almeida, paradoxais. Esse capítulo apresenta discussão potente em torno do direito e o equilíbrio de forças da justiça, além de apresentar, de forma acurada, discussão em torno da ideologia em Marx e em Nietzsche, deixando claras as singularidades dos autores e, em nenhum momento, aproximando o que não se pode aproximar neles, mas, justamente, demonstrando que a questão do esquecimento está presente tanto em um como no outro. Almeida finaliza o capítulo colocando em relevo a questão da escrita e a arte do esquecimento. A capacidade de esquecer é prerrogativa dos potentes e, por isso, o título do capítulo. É certo também, na análise de Almeida, que o esquecimento é associado à loucura e que, nas palavras de Nietzsche "Não é a dúvida, mas a certeza que torna louco…" (apud Almeida, 2016, p. 151). Por derradeiro, é a escrita do esquecimento que possibilita a palavra, e é a palavra que viabiliza a abolição de todas as fronteiras, de todos os limites (Almeida, 2016, p. 157).

É no terceiro capítulo, intitulado "Agostinho de Hipona: a vontade, o desejo e a memória" que o livro A memória, o esquecimento e o desejo terá a sua formal final, se é que Almeida encerra algum de seus escritos. Por meio da análise de diferentes obras do teólogo africano, Almeida demonstra como estão presentes intuições do descobridor da psicanálise e mesmo de Nietzsche. Aliás, o autor evidencia uma carta em que Nietzsche reconhece ter lido Agostinho. De forma crítica ao pensador francês Étienne Gilson, Almeida evidencia que a questão da reminiscência platônica jamais deixou de estar presente nos escritos do pensador da Cidade de Deus. O fato de Agostinho ter rejeitado essa teoria na obra Retractationes (Almeida, 2016, p. 231) não significa o abandono da questão. Aliás, é o paradoxo que marca a escrita de Almeida ao perceber, para além de críticas pontuais, nesse caso, feita por Agostinho, ao ler a obra do autor como um todo, observa-se abertura à questão da reminiscência das almas. É nas Confissões que a ambivalência da reminiscência das almas está presente (Almeida, 2016, p. 232). De forma específica, no caso do pensamento de Agostinho, é Deus o princípio, a verdade e o conhecimento e, portanto, é por meio da iluminação e do mestre interior que a fonte do esquecimento se realiza no ato de recordar-se, por uma via absolutamente constituída pela vontade do homem.

Cabe ressaltar, por fim, a importância das notas apresentadas por Almeida, no sentido de explicitar fontes, mas, muito além disso, de mostrar equívocos consolidados na história do pensamento, seja por meio de traduções equivocadas e, nesse caso, por duas vezes o pensador do entre-dois demonstra que os termos recalcamento (Verdrängung) e repressão (Unterdrückung) foram traduzidos erroneamente pela Editora Imago, que traduziu a obra de Freud da também incorreta tradução inglesa – Standard Edition –, por "repressão" e "supressão", respectivamente (Almeida, 2016, p. 164).

O leitor pode aproveitar as indicações de fontes primárias do livro e empreender suas leituras, então, trata-se de obra destinada a estudiosos da filosofia, da psicologia e das ciências humanas em geral. Mais do que uma área específica, a obra de Rogério Miranda de Almeida é destinada a todos os interessados em temas relativos à existência humana.

 

 

Endereço para correspondência
Samuel Mendonça
E-mail: samuelms@gmail.com

 

 

* Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas)/Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

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