SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.20 número1O nome de Moisés: uma torção na ordem do destinoA (de)vida angústia de morte: considerações a partir da filosofia e da psicanálise índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.20 no.1 São Paulo jan./jun. 2018

 

ARTIGOS DE FLUXO CONTÍNUO

 

O pressuposto emergentista da psicanálise freudiana: notas sobre a irredutibilidade da pulsão

 

The emergentist assumption of Freudian psychoanalysis: notes on the irreducibility of instinct

 

 

Érico Andrade*

Universidade Federal de Pernambuco

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Pretendo mostrar que as pulsões são irredutíveis a uma abordagem estritamente neurológica. Para tanto, tomo como hipótese que a base orgânica e, portanto, natural da pulsão não implica que as suas propriedades possam ser explicadas em termos estritamente fisiológicos. Ou seja, as pulsões são propriedades emergentes dos estímulos orgânicos internos e mostram a existência de fenômenos subjetivos. A hipótese do inconsciente, entendido como uma rede conceitual, é empreendida por Freud, como um esforço de criar uma disciplina com a tarefa de explicar como lidamos subjetivamente com o comportamento da pulsão.

Palavras-chave: emergência; pulsão; inconsciente; filosofia.


ABSTRACT

I'll would like to prove that the instincts can't to be irreducible to a strictly neurological approach. Therefore, I take the hypothesis that the organic base (natural) does not imply that its properties can be explained strictly by physiological terms. That is, the instincts are emergent properties of internal organic and to show the existence of subjective phenomena. The hypothesis of the unconscious, understood as a conceptual network, play a role of foundation of psychoanalysis and create a discipline with the task of explaining how we deal of the behavior of instincts.

Keywords: emergency; instinct; unconscious; philosophy.


 

 

1. Introdução

Segundo Freud, o conceito de pulsão é indispensável para a compreensão da vida psíquica Freud (1915a/2010, p. 53). Parte importante das investigações que a psicanálise empreende pressupõe que as pulsões agem na vida psíquica e que o seu destino sobredetermina parte do nosso comportamento. Com efeito, o próprio Freud admite a dificuldade desse conceito. Não está completamente claro ao que o conceito de pulsão se refere, e seu significado varia no interior da obra de Freud (1915a/2010, p. 53). Sobre essa dificuldade, vários textos foram escritos com vistas, em muitos casos, a afastar a hipótese de que o referido termo guarde exclusivamente uma base biológica (Laplanche, 1989). Discussões nem sempre muito producentes, como, por exemplo, a busca pela palavra perfeita para traduzir o termo "der trieb", cujo arco de significados em alemão permite inclusive que ele seja tomado como sinônimo de instinto (Hanns, 1999, pp. 29-36), foram feitas sempre com a expectativa de livrar Freud da pecha de cientificistas e reducionista. O intuito era garantir a autonomia da psicanálise em face da neurologia. Ou seja, o esforço sempre foi, especialmente dos leitores lacanianos de Freud (sobre este ponto, ver Bezerra, 2013), de esvaziar o componente biológico da noção de pulsão, sob o temor de que uma vez tomada como uma função biológica, a pulsão poderia ser objeto de uma teoria neurocientífica cuja atuação colocaria em xeque a necessidade e importância da psicanálise (Simanke, 2014).

No entanto, acredito que, com o conceito de pulsão, Freud tenciona demonstrar que a origem biológica da vida psíquica não exclui a existência de propriedades psíquicas cuja explicação não se reduz aos termos de uma investigação de natureza estritamente biológica. Assim, o que é essencial não é elidir a base fisiológica do conceito de pulsão, o que, aliás, Freud provavelmente não pretendeu, nem muito menos inviabilizar um diálogo com a neurociência, mas reconhecer, a partir desse conceito, o caráter emergente da vida psíquica que acredito que seja um pressuposto fundamental da psicanálise. Sustentarei que Freud aposta que propriedades de um sistema de segunda ordem não podem ser redutíveis aos elementos que lhe constituem enquanto fonte ou causa material.

Defenderei também, na segunda etapa do meu artigo, que o inconsciente é uma hipótese levantada por Freud para nuclear uma série de conceitos responsáveis, por seu turno, pela explicação do destino das pulsões e de como se enredam os conflitos da vida psíquica. Esses conflitos são responsáveis por vários efeitos somáticos, mas eram inobserváveis pela investigação estritamente fisiológica na época de Freud. Meu ponto é que a hipótese do inconsciente afasta definitivamente a psicanálise de Freud de uma posição epifenomenalista, entendida aqui nos termos de Putnam como "a ideia de que os estados mentais não têm eficácia causal" (Putnam, 2008, p. 125), porque a explicação das várias doenças, cujos diagnósticos médicos não conseguiam identificar a sua origem estritamente fisiológica, passou a se concentrar nos estados mentais dos pacientes que causavam distúrbios corporais. Isto é, na medida em que não assume uma posição epifenomenalista, a psicanálise assume um compromisso ontológico com a primeira pessoa, com a subjetividade, reconstruída no processo clínico, pela tomada de consciência dos conflitos de natureza psíquica, que possuem um poder causal sobre o corpo. Acredito que meu artigo terá cumprido o seu objetivo se ajudar a corroborar a tese de que do pressuposto da pulsão à hipótese do inconsciente há um caminho que é pavimentado pela compreensão, atestada posteriormente pela observação clínica (no que consiste o campo empírico da psicanálise), de que os fenômenos psicológicos são, na forma da primeira pessoa, em termos de subjetividade, irredutíveis a uma análise puramente fisiológica.

 

2. Pulsão: algumas observações iniciais

O essencial do conceito de pulsão e o que o faz intrigante é que ele se refere a uma disposição psíquica que deriva, como Freud afirma, "do interior do próprio organismo" (Freud, 1915a/2010, p. 54). A fonte da pulsão é orgânica. Todavia, Freud não explica como a pulsão deriva do organismo. Ele se limita a traçar, nas suas palavras, vários ângulos por meio dos quais se poderia subsidiar a explicação da pulsão como algo derivado do organismo. Ele tenta, primeiramente, no texto "Pulsões e seus destinos", recuperar a base fisiológica sobre a qual o conceito passou a ser pensado por ele. Nesses termos, Freud relaciona os conceitos da fisiologia do estímulo e o esquema de arco-reflexo ao conceito de pulsão para sublinhar que ocorre, uma vez que a pulsão é desencadeada, um processo espontâneo e, em certa medida, imediato tal como a reação natural a certos estímulos. A mente (psique) é submetida a vários estímulos de natureza estritamente fisiológica, para os quais há uma resposta imediata do organismo, como, por exemplo, o estímulo que a luz desencadeia e que nos faz tomar consciência, para tomar de empréstimo um termo corrente na filosofia da mente contemporânea, da experiência qualitativa (os qualias) e subjetiva da luz. Por outro lado, a pulsão advém de um ou vários estímulos internos, no entanto, ela é de natureza inconsciente, e, portanto, de natureza distinta dos processos conscientes.

Por conseguinte, não é qualquer estímulo ou estímulos que desencadeia a pulsão ou as pulsões. Freud faz uma distinção importante por meio da qual ele tenta sublinhar quais estímulos poderiam ser responsáveis pelo desencadeamento de certas pulsões: "Primeiro, o estímulo instintual [pulsão] não provém do mundo exterior, mas do interior do próprio organismo. Por isso, atua de modo diferente sobre a psique e requer outras ações para ser eliminado" (Freud, 1915a/2010, p. 54). Para Freud, a fonte do estímulo que gera a pulsão está em nosso interior. Ela é orgânica. Diferente dos estímulos externos, como o impacto da luz sobre nossos olhos, que podem ser facilmente identificáveis, a pulsão é estimulada pelo organismo sem se derivar de um estímulo de um objeto exterior. Isso por si só já dificulta identificar claramente o fator somático preciso responsável pela fonte exata da pulsão. Essa dificuldade é acentuada porque, ao contrário dos estímulos que advêm do mundo externo, os estímulos que desencadeiam a pulsão não cessam num átimo de tempo, como pode acontecer com estímulos externos cujo desaparecimento da fonte (quando vamos para um ambiente que não tem luz, por exemplo) implica o fim do estímulo. Nesses termos, Freud alerta que "A pulsão, por sua vez, não atua jamais como uma força momentânea de impacto, mas sempre com uma força constante. Desde que não ataca de fora, mas do interior do corpo, nenhuma fuga pode servir contra ela" (Freud, 1915a/2010, p. 54). O caráter constante da pulsão se deve ao fato de ela não depender de um estímulo externo que, em geral, é intermitente.

Ao contrário dos estímulos externos, o organismo atua constantemente na psique ou mente. Nesses termos, a pulsão é algo necessário porque é perene. Um estímulo externo pode acontecer ou não. Todavia, os estímulos internos não podem ser paralisados por meio de uma decisão da mente em relação à fonte do estímulo. Não é possível, afirma Freud, um pouco mais à frente no texto, suspender a fonte do estímulo interno. Não é possível que a mente possa, por assim dizer, se desconectar do corpo, da sua estrutura orgânica para, por meio de um ato volitivo, deliberar por não estar submetida a uma pulsão. Posso escolher não sentir mais o impacto da luz sobre os meus olhos e, consequentemente, não reagir de modo espontâneo a esse impacto, mas não posso desviar-me do meu próprio organismo. Eu sou esse organismo. Assim, diferentemente dos estímulos externos, que o organismo pode controlar por meio de sua não exposição a esses estímulos, não é possível controlar os estímulos internos por uma espécie de ato vontade. Posso deliberar de forma consciente sobre a minha exposição ao sol e cessar o estímulo que a luz provoca em meus olhos quando eles estão expostos diretamente ao sol. Todavia, não posso, por um ato de vontade, deliberar por não sentir essa força, impulso ou disposição, traduzida pela noção de pulsão. Não temos controle sobre os estímulos internos como de alguma forma sobre os externos.

A pulsão é, de algum modo, um termômetro da dinamicidade do organismo. O organismo não para e, por isso, as pulsões continuam agindo sobre a vida mental. Portanto, ele estimula a pulsão a agir constantemente e, por isso, ela passa a ser necessária, no sentido de que ela está invariavelmente presente na mente humana na forma de sua representação. Ela age como uma tendência ou disposição inexorável para determinado fim. A comparação com o arco-reflexo é crucial porque revela que não nos é facultado eliminar, por um ato da vontade, determinada reação pulsional; assim como não podemos, analogamente, por uma decisão da vontade, deixar de reagir a certos comandos inscritos na noção de arco-reflexo. Somos compelidos pelas pulsões a ter certos estados mentais e, muitas vezes, a partir de conflitos de origem pulsional, a termos certos comportamentos. A dificuldade de localizar precisamente o lugar dessa disposição humana, diferentemente de outros reflexos ou instintos que podem ter a sua origem bem identificada, repousa no fato de que ela não pode ser identificada num lugar físico específico, como se ela pudesse estar numa espécie de glândula pineal cartesiana. Essa dificuldade parece ter levado Freud a admitir a pulsão como um conceito limite, uma zona de interstício: "Voltando-nos agora para a consideração da vida psíquica do ângulo da biologia, o 'instinto' nos aparece como um conceito-limite entre o somático e o psíquico, como o representante psíquico dos estímulos oriundos do interior do corpo" (Freud, 1915a/2010, p. 57).

Assim, o conceito de pulsão não expressa propriamente uma região ou lugar indefinido que estaria prestes, com o avanço da ciência, a ser povoado por uma explicação materialista eliminativista, para usar os temos da filosofia contemporânea que explicarei com maiores detalhes mais à frente (Bezerra, 2013). A pulsão emerge do organismo. Nesse ponto é que o conceito de pulsão assume uma característica absolutamente ímpar na história da psicologia. A minha hipótese é que ele caracteriza um estado de emergência que constitui a própria vida psíquica. Com essa hipótese pretendo, por um lado, esclarecer esse obscuro conceito freudiano, por meio de uma ferramenta conceitual que Freud não dispunha, embora ela já remontasse ao século XVIII (McLaughlin, 2008), a saber, o conceito de emergência e, por outro, tenciono mostrar que a psicanálise pressupõe o caráter emergentista das pulsões.

 

3. O caráter emergentista da pulsão

Não é fácil tornar homogêneas as diferentes posições na filosofia da mente do que seria uma propriedade emergente (Bedau, 2008). Não existe uma única teoria da emergência. De fato, ainda não há unanimidade quanto à maneira mais apropriada de caracterizar uma posição emergentista cuja aplicação à filosofia da mente – é importante ressaltar ainda – não necessariamente coincide com a sua aplicação à filosofia da ciência. Algumas variações e sutilezas logo aparecem quando o leitor cruza as primeiras páginas de qualquer coletânea de artigos ou manual de filosofia da mente, mas com muita frequência se entende que propriedade emergente é "irreducible, to be unpredictable or unexplainable, to require novel concepts" (Bedau e Humphreys, 2008, p. 9). Nesses termos, uma interpretação ontológica da emergência considera que "emergent entities to be genuinely novel features of the world itself, arising from but also separate in some sense from more basic aspects of the system" (Bedau e Humphreys, 2008, p. 11). Essa definição geral não elimina a dificuldade que repousa especialmente no modo como se relacionam as propriedades de dois sistemas (inferior e superior) distintos no que concerne especialmente à dependência das propriedades emergentes do sistema, a partir do qual elas emergiram, e em que termos se dá a irredutibilidade das propriedades emergentes em relação à base da qual elas surgiram. Ainda que não seja fácil definir o conceito de emergência, é possível traçar, pelo menos, um mapa mínimo das dificuldades que estabelece dois níveis gerais de problemas quanto à caracterização de uma posição emergentista. No primeiro plano, temos problemas quanto à definição de emergência. No segundo plano, existem problemas relacionados à melhor forma de testar e avaliar posições emergentistas. O primeiro plano revela uma dificuldade em termos mais teóricos que ressoa nas diferentes possibilidades de se compreender o conceito de emergência como oposto à posição reducionista presente, sobretudo, no materialismo eliminativista. O segundo plano revela a preocupação em evitar que o termo "emergência" seja uma forma nova e sofisticada de defender uma espécie de propriedade milagrosa ou oculta, portanto, impassível de qualquer teste empírico.

Particularmente, o debate com o materialismo eliminativista me interessa aqui. É possível entender que o materialismo eliminativista se caracteriza não apenas pelo reducionismo, mas também pela negação da mente e dos estados mentais e os toma, parafraseando Churchland (1990), como uma teoria radicalmente falsa. Ou seja, o vocabulário mental se refere a um domínio de objetos inexistentes e, por conseguinte, não faz sentido tomar estados mentais como propriedades que requerem um nível epistemológico próprio de explicação. Assim, a identificação na forma de uma simetria entre estados mentais e estados cerebrais permite ao materialismo eliminativista avançar a tese de que estados cerebrais nada mais são do que estados físicos. Promove-se, com isso, aquilo que Searle (2008; 2010) chama redução ontológica, conforme a qual se afirma que certas coisas (estados mentais, no presente caso) não são rigorosamente nada a não ser indicações de outras coisas (relações neurológicas) realmente existentes. O materialismo eliminativista sustenta que cabe à neurociência fornecer uma explicação robusta para as atividades cerebrais que poderão eliminar o vocabulário mentalista. Não se trata, portanto, de reduzir o vocabulário mentalista (a chamada folk psychology) aos termos de uma neurociência absolutamente estabelecida, mas de simplesmente eliminar este vocabulário e com ele toda explicação da mente que não esteja calcada em termos estritamente físicos.

Tenho consciência das dificuldades que acompanham a caracterização de uma posição emergentista em termos de filosofia da mente, mas acredito que as diferentes compreensões da emergência convergem quanto à oposição ao materialismo eliminativista. Assim, entender propriedades emergentes como propriedades irredutíveis a um sistema de primeira ordem parece ser um dos pontos de maior convergência entre as diferentes formulações em filosofia da mente do termo emergência. Isso não impede, contudo, uma divisão ainda relevante que classifica a emergência em duas possibilidades quanto à sua relação com o tempo. Por um lado, temos a emergência sincrônica que "the emergent feature is simultaneously present with the basal features from which it emerges". Por outro, a diacrônica em que "the base precedes the emergent phenomenon which develops over time from them" (Bedau e Humphreys, 2008, p. 5). No caso dos fenômenos mentais, outro ponto de convergência quanto ao conceito de emergência é possível, visto que, em geral, se atribui à emergência sincrônica a melhor forma de entendê-los, porque os fenômenos mentais ocorrem simultaneamente às relações neurais. É com esse conceito de emergência sincrônica que vou seguir no presente artigo, pois acredito que ele se coloca como a melhor forma para explicar o conceito freudiano de pulsão cuja irredutibilidade à sua fonte orgânica justifica em parte a necessidade da psicanálise como área própria de compreensão dos nossos estados mentais ou, para ficarmos com as palavras de Freud, de nossos atos psíquicos.

Nesse sentido preciso, Freud acredita que a pulsão deriva do orgânico sem se reduzir a ele. Isso nos permite perceber que Freud está claramente comprometido com uma orientação naturalista – portanto, nesse ponto específico materialista, ver sobre a distinção entre materialismo e naturalismo em Chalmers (1996) –, porque apenas fatores naturais causam estados pulsionais. Não existem, para Freud, entidades não orgânicas, sobrenaturais, responsáveis pelas pulsões. No entanto, não é possível por meio de uma investigação das propriedades naturais ou fontes das pulsões (a base, portanto, fisiológica das pulsões) explicar as propriedades sistêmicas que as pulsões comportam, pois para Freud as pulsões se caracterizam como propriedades de segunda ordem genuinamente novas e que emergem de um conjunto favorável de condições orgânicas e, portanto, materiais. Ou seja, ainda que a pulsão seja causada pelo organismo, a sua causa é, portanto, material, no sentido de que ela depende, quanto à sua existência, do organismo, as propriedades que lhe acompanham e que, de algum modo, são instituídas por ela, são irredutíveis ontologicamente, nos termos de Searle, à base orgânica, cuja explicação está no âmbito da terceira pessoa. O fato de o corpo possuir propriedades físicas não elimina, segundo Nagel (2004), as propriedades mentais. Para Freud, o conhecimento das fontes das pulsões não explica as propriedades das pulsões. Nesse sentido, Freud advoga em favor da tese de que as consequências de determinada ação natural podem fazer emergir propriedades, cuja explicação o conhecimento das causas materiais contribui muito pouco: "Um conhecimento mais exato das fontes pulsionais não é estritamente necessário para fins de investigação psicológica" (Freud, 1915a/2010, pp. 59-60).

Freud parece argumentar que as pulsões representam propriedades sistêmicas derivadas de um conjunto de entidades orgânicas. Assim, Freud sustenta que "por fonte (Quelle) da pulsão entendemos o processo somático que ocorre em um órgão ou em uma parte do corpo e do qual se origina um estímulo representado na vida psíquica pela pulsão" (Freud, 1915a/2010, p. 49). Essa passagem indica que as entidades orgânicas não determinam as propriedades das pulsões. Elas operam, permitam-me recorrer ao vocabulário aristotélico, como causas materiais e eficientes sem que seja possível reconhecer na natureza da fonte as propriedades das pulsões, a sua finalidade, a sua meta, em uma palavra, a sua causa final ou destino, para usar os termos de Freud.

Lembro-me que parte da discussão da filosofia da mente contemporânea tenta combater o reducionismo por meio da complexificação, que pode ser entendida também como uma retomada de Aristóteles (Nussbaum, 2009; Putnam, 2008), do conceito de causa, retirando-lhe a sua base metafísica dogmática. Um mesmo objeto pode ter diferentes causas que concorrem para existência dos seus atributos ou propriedades. Dentre essas causas não há uma única que possa subsumir as demais. Ou seja, é possível que um determinado objeto tenha determinadas propriedades graças à sua composição material, mas isso não significa que todas as suas propriedades possam ser explicadas apenas pela composição material das partes que o compõem. Assim, a causa material não subsume outras causas, como a causa final. Por exemplo, a causa material de determinada estátua pode ser o aço ou o mármore. Isso garante que a estátua tenha determinadas propriedades, ou seja, ela poderia oxidar, caso seja feita de aço. Contudo, a beleza da estátua, que é uma de suas propriedades, não pode ser deduzida da sua constituição material. Ela só tem sentido quando é colocada como uma construção humana para representar algo, algum sentimento, por exemplo, que seria a sua causa final. Em uma palavra: o seu fim. Ou seja, a intenção ou, na linguagem de Aristóteles, a finalidade da estátua de representar sentimentos ou mesmo a beleza não pode ser compreendia pela investigação da composição material das partes da estátua. Para se compreender certas propriedades da estátua se requer, por assim dizer, um estudo estético sobre a beleza que a estátua pode eventualmente representar.

Num mesmo ente pode existir um feixe de causas diferentes que abrem diferentes possibilidades de investigação. Dessa maneira, ainda que a própria noção de causa guarde um elemento comum, o porquê das coisas e que as diversas causas possam guardar um grau de dependência entre elas, a referida noção aponta no interior da filosofia aristotélica para o fato de que a explicação das propriedades dos entes, seus predicados ou atributos, pode ser feita de diversos modos. Analogamente, é possível conceber que a atividade psíquica pode ser explicada em termos materiais, pelo funcionamento do cérebro, mas ela não pode ser esgotada, levando-se em consideração apenas uma única causa responsável por uma série de propriedades distintas. Freud aposta nisso quando faz a distinção entre as propriedades das pulsões e as propriedades relativas à vida sexual no que ela diz respeito ao caráter reprodutivo da espécie. Não é preciso negar que os seres humanos, em geral e assim como os demais animais, fazem sexo sobredeterminados por um propósito ou instinto da espécie de se reproduzir e, por conseguinte, se perpetuar, para acatar que temos uma pulsão de caráter sexual responsável pelo desencadeamento de uma série de propriedades psíquicas cuja explicação não pode ser completamente reduzida à biologia.

Assim, Freud acredita que a intencionalidade das pulsões, o que ele chama de destino ou mesmo a sua meta, não pode ser entendida pela investigação da fonte das pulsões, nem pode, consequentemente, ser eliminada pelo conhecimento orgânico dos fatores somáticos responsáveis pelo desencadeamento das pulsões, bem como o significado da estátua, acima exemplificada, não pode ser entendido pelo estudo da composição material de suas partes. Ademais, diferente de outras funções orgânicas como a digestão, em que é possível identificar as propriedades do sistema digestivo às partes que o compõem, aos seus órgãos para ser preciso, não é possível identificar as pulsões a nenhum órgão específico ou a uma parte do corpo humano, porque elas representam psiquicamente (mentalmente) a intenção do corpo como um todo na medida em que apresentam estímulos que podem desencadear certas disposições para alguns comportamentos.

Nessa perspectiva, acredito que Freud pressupõe que as pulsões devem ser entendidas pelo que chamamos hoje de emergentismo sincrônico, visto que as propriedades que elas acarretam não podem ser redutíveis às propriedades orgânicas; responsáveis por sua causa material. A finalidade das pulsões não coincide com o material orgânico do qual elas emergem, nem com as propriedades decorrentes da própria composição do organismo. Pulsão é, nesses termos, um impulso do próprio organismo, uma reação natural ou uma disposição cuja intenção não pode ser explicada completamente por uma análise apenas da composição orgânica de sua fonte, em linguagem aristotélica, de sua causa material. Nesse sentido, a pulsão pode ser entendida como uma espécie de instinto porque ocorre de modo imediato e necessário, mas não se esgota numa função definida por um órgão humano específico. Por isso, Freud afirma que o "caráter impulsivo é uma característica geral das pulsões, é mesmo a essência delas" (Freud, 1915a/2010, p. 57). Esse caráter impulsivo (instintivo no sentido de imediato e espontâneo) ao qual Freud faz referência no texto é uma propriedade de segunda ordem própria da pulsão, cuja função na vida psíquica só pode ser avaliada por uma investigação que não se reduza a uma análise fisiológica.

Embora a pulsão derive do organismo, Freud não nega a fonte orgânica (material) da pulsão, a abordagem metodológica e epistemológica dos fenômenos mentais pressupõe outro nível de explicação que se compromete ontologicamente com outras propriedades. As propriedades mentais que são ensejadas pelas pulsões representam uma complexificação dos sistemas orgânicos, por assim dizer, primários, que não podem ser reduzidas ao nível das entidades físicas, como as partículas subatômicas, nem mesmo ao nível das células do sistema nervoso central. Esse foi o motivo pelo qual Freud sustentou que o avanço da ciência referente ao conhecimento da atividade cerebral, que permite relacionar partes do cérebro com determinadas atividades mentais, não substitui o papel da prática psicanalítica: "fracassaram radicalmente todas as tentativas de a partir disso encontrar uma localização para os processos anímicos" (Freud, 1915b/2010, p. 112).

Nessa passagem, Freud guarda uma simetria forte com uma posição não reducionista em filosofia da mente. Se podemos considerar que

[…] para os emergentistas, apesar de todos os factos de segunda ordem serem determinados por factos físicos de primeira ordem, os últimos são incapazes de explicar os primeiros. O mundo pode ser fundamentalmente um mundo físico, mas pode perfeitamente incluir factos fisicamente inexplicáveis. (Kim, 2001, pp. 645-646)

Freud pressupõe uma posição definitivamente emergentista quando afirma que as propriedades mentais não podem ser explicadas por meio da sua localização em uma determinada parte do cérebro. Um evento mental ou psíquico não acontece, por assim dizer, num mundo paralelo, mas não pode ser localizado numa parte do cérebro porque emerge das propriedades físicas de base na forma de um sistema distinto de propriedades de segunda ordem. Por isso, os fenômenos mentais não podem ser explicados unicamente pela neurociência, levando em consideração apenas uma investigação da atividade cerebral. Fenômenos mentais são causados materialmente e de modo indireto pelo organismo, mas a sua causa final, as suas propriedades, não pode ser reduzida a uma explicação estritamente neurológica.

O conceito de pulsão não expressa uma indefinição entre dois campos de investigações distintos, mas expressa a compreensão de que a dependência do psíquico da sua base orgânica não elimina a distinção entre propriedades mentais e propriedades biológicas. A fonte da pulsão é somática, mas a pulsão compreende um campo representacional que nucleia várias disposições afetivas. Nesses termos, o conceito de pulsão aparece como uma camada da vida orgânica que não se reduz a ela. Em outras palavras, a origem orgânica da pulsão não coincide com as suas propriedades no sentido de que essa origem orgânica não serve de horizonte para o qual se deve voltar a compreensão da atividade pulsional. Analogamente, a origem física da vida não elimina uma compreensão biológica e orgânica dela. A psicanálise não precisa negar a origem orgânica da psique, nem que os seres humanos guardem com os animais certos instintos em comum ou mesmo pulsões, se pensamos em espécies evolutivamente semelhantes à nossa, mas ela investe no entendimento de que os fins da pisque humana são inesgotáveis por uma análise estritamente fisiológica; o que torna inviável uma posição materialista eliminativista das pulsões. A questão que se coloca agora é como é possível o conhecimento das propriedades pulsionais?

 

4. A psicanálise como uma ciência (atividade) reconstrutiva da subjetividade

Com a noção de pulsão, Freud pretende explicar, por um lado, as razões pelas quais a vida sexual não começa pela puberdade e, por outro, que ela não necessariamente coincide com os fins estritamente reprodutivos. A pulsão na sua forma de libido indica uma disposição do organismo para o prazer que está além da função de reprodução. Por isso, uma das primeiras metas da pulsão é o prazer que se localiza materialmente ou é, por assim dizer, instanciado em diferentes partes do corpo, pelo menos na forma de libido. Nesses termos, Freud afirma que "na teoria psicanalítica não hesitamos em supor que o curso tomado pelos eventos mentais está automaticamente regulado pelo princípio do prazer" (Freud, 1940/2010, p. 17). Contudo, é verdade que a procura pelo prazer não é a única meta da pulsão. Em "Além do princípio do prazer" é possível identificar uma mudança na obra de Freud materializada no seu direcionamento para o princípio, por assim dizer, oposto à procura pelo prazer, a saber, o princípio da destruição, dor ou, para ser preciso, a pulsão que nos impele a retornar ao estado inanimado, estado de morte (Freud, 1940/2010).

Embora a pulsão de destruição ou de morte (tanatos) possa ser estranha, ou mesmo, como afirma Mezan, "pouco compatível com o que a metapsicologia afirma do funcionamento psíquico" (Mezan, 2014, p. 243), ela aparece na obra de Freud como uma espécie de reordenamento das disposições da vida orgânica, concebida a partir de uma dicotomia estrutural. Vida e morte não são polos intocáveis, mas enredam a vida desde seu interior; contraditória. Conflito que não é contingente, mas estrutural. Não pretendo subestimar as possíveis contradições ou dificuldades que a ampliação do escopo da pulsão acarreta na obra de Freud. Meu interesse, contudo, não é discutir a coerência desse conceito na obra de Freud, porque mesmo que as suas propriedades possam ser ampliadas, há algo de essencial que permanece no conceito e que responde pela noção de emergência. Ou seja, independentemente da obra de Freud apresentar uma mudança do conceito de pulsão, o meu ponto é que esse conceito traduz propriedades emergentes para cujo conhecimento é necessário um campo próprio de atuação, qual seja, a psicanálise. A partir disso, que considero um pressuposto fundamental da psicanálise, vou mostrar o modo pelo qual Freud introduz a hipótese do inconsciente como conceito nucleador para a explicação do destino, meta e papel das pulsões na vida psíquica.

Depois de hesitações quanto à natureza da pulsão, assumidas pelo próprio Freud, é possível recuperar uma descrição bastante satisfatória das duas pulsões no texto "Esboço de psicanálise". As suas principais propriedades são apresentadas do seguinte modo: "Depois de muito hesitar e vacilar decidimos presumir a existência de apenas dois instintos básicos, Eros e o instinto destrutiva" (Freud, 1940/1979, p. 201). Embora tenham objetivos diferentes, as duas pulsões constituintes da psique têm como característica em comum certa disposição intencional para determinado fim. As ações de unir e destruir convivem no ser humano porque elas governam nossas ações, nosso comportamento na medida em que indicam a direção para a qual tendem as nossas ações. O que pretendo sublinhar agora é como o pressuposto de que as pulsões sobredeterminam nosso comportamento é acompanhado pela perspectiva de que uma teoria poderia rastrear o destino das pulsões. Meu ponto é que, para reconhecer a intencionalidade das ações humanas a partir de uma dualidade que lhe constitui, mas à qual não temos acesso direto, é necessária a construção de um arcabouço teórico capaz de traçar a reconstrução do destino das pulsões.

Para isso, Freud lança a hipótese do inconsciente para configurar uma espécie de rede conceitual que se projeta sobre a vida psíquica no intuito de tentar mapear o modo como essas propriedades emergentes, as propriedades da pulsão, afetam o nosso comportamento de forma decisiva e contribuem para a formação de nossa subjetividade. Ou seja, o inconsciente constantemente ativo representa o campo conceitual com o qual a psicanálise atua na explicação do modo pelo qual as pulsões influem em nossa mente (psique). Nesses termos, ele carrega uma série de compromissos ontológicos, no sentido de que as entidades teóricas postuladas pela ideia do inconsciente referem-se, como modelos explicativos, aos estados mentais responsáveis por governarem os comportamentos humanos. Isto é, o inconsciente é uma hipótese fundadora da psicanálise porque, repito, ele nucleia os principais conceitos responsáveis pela explicação do comportamento humano.

Ao recolher na clínica uma série de comportamentos contraditórios, denunciados em nossos sonhos, nos chistes e atos falhos, Freud pôde desenvolver a hipótese de uma região, entendida como um espaço de propriedades mentais, capaz de explicar aquilo que escapava a uma análise estritamente somática das patologias. O inconsciente é postulado para lançar luz sobre o terreno até então inobservável das vivências humanas que são responsáveis por comportamentos psicossomáticos; como os apresentados em abundância, por exemplo, nas neuroses traumáticas. Quando os exames laboratoriais não conseguem identificar sintomas orgânicos que poderiam ser responsáveis pelo comportamento histérico, a ciência, assim pensava Freud, deve avançar na direção da hipótese de que existem forças psíquicas que atuam em nosso comportamento e às quais não temos um acesso direto. Como elas não podiam ser objeto de uma investigação fisiológica, restava identificar as origens do mal-estar psíquico na história subjetiva humana. Nesse sentido, a psicanálise assume, em termos de filosofia da mente, um dualismo de propriedades conforme o qual a explicação das propriedades emergentes do organismo, responsáveis pelas propriedades mentais, só pode ocorrer num campo próprio de atuação que opera com a investigação da vida psíquica a partir dela mesma; sem fazer referência, portanto, à causa física do inconsciente. Assim, as pulsões nascem do pressuposto, amparado em evidências científicas, de que nosso comportamento não é determinado num nível orgânico, apenas, ao passo que a noção de inconsciente é lançada para dar conta do modo como se estruturam as representações das pulsões na vida humana. Freud acredita que, com a hipótese do inconsciente, ele poderia explicar patologias que a medicina não conseguia diagnosticar, porque se referia a uma instância mental cujo arco de propriedades não pode ser redutível a uma investigação estritamente orgânica. A psicanálise é instituída para abrigar dentro de si a resposta quanto ao destino das pulsões e dos seus efeitos sobre a vida psíquica humana. Ela irá agir por tentativa e erro, calcando-se sempre no compromisso empírico ou observacional com a clínica, de onde ela surge.

Por conseguinte, a psicanálise desvia para a clínica o foco da psiquiatria, ainda incipiente na época do Freud, constituindo, com esse desvio, um novo campo observacional para as teorias do comportamento humano cujo epicentro repousa na reconstrução subjetiva da gênese do distúrbio ou patologia. Nesse sentido preciso, o modus operandi da psicanálise é modelado por um procedimento muito próximo ao procedimento científico. Talvez, por isso, Freud nunca tenha tido o pudor de se referir à psicanálise como uma ciência.

Considerando que o inconsciente é uma hipótese, a demonstração de sua existência ou, para usar emprestado um termo de filosofia da ciência, a demonstração de sua eficácia explicativa só pode ser atestada a posteriori. O seu campo de comprovação é a clínica. Por isso, Freud escreve que "se, além disso, pudermos edificar, sobre a hipótese do inconsciente, uma prática bem-sucedida, mediante a qual influímos no curso dos processos conscientes, teremos neste sucesso uma prova indiscutível da existência daquilo suposto" (Freud, 1915b/2010, p. 102). A eficácia do inconsciente depende, por conseguinte, de como essa hipótese pode mobilizar o campo de entidades teóricas capaz de explicar como a pulsão age sobre a vida psíquica. Em outras palavras, o trabalho da psicanálise consiste em compreender a dinâmica das pulsões como uma atividade emergente para qual é lançada a hipótese do inconsciente como tentativa de estruturar uma rede de entidades teóricas capaz de lançar mais de uma compreensão de como as pulsões agem na vida psíquica.

Nesse sentido, o inconsciente não é um lugar no cérebro onde repousaria um conjunto de fatos esquecidos de nossa vida. Ele é uma estrutura teórica que mapeia como a vida psíquica lida com a destinação das pulsões. Nessa perspectiva, uma das primeiras preocupações de Freud é estabelecer o destino das pulsões. Considerando que elas têm a sua origem numa disposição orgânica involuntária, a questão que se coloca é por que elas não se manifestam em todos os nossos comportamentos de modo uniforme.

Para responder a essa questão, Freud postula o conceito de recalque. O recalque é um dos destinos mais comuns da pulsão. Nesses temos, Freud afirma que "um destino possível para um impulso instintual [pulsão] é encontrar resistências que buscam torná-lo inoperante. Em determinadas condições, que passaremos a examinar mais detidamente, ele chega ao estado da repressão" (Freud, 1915c/2010, p. 83). Se a pulsão é uma disposição do organismo que tende a realizar ações contraditórias, inscritas nas pulsões de amor e morte, ela pode ser identificada enquanto tal em função do esforço do inconsciente humano em reprimir a sua ação. Desde já, coloca-se uma fissura na psique humana que é obrigada a conviver com o paradoxo de desejar e repreender o desejo, sem que isso passe, contudo, no âmbito de uma atividade mental plenamente consciente. A psicanálise se funda na hipótese de que o inconsciente registra, pelo menos em parte, o recalque do desejo e opera sobre a mente humana no sentido de lhe constranger a tomada de certas decisões, materializadas em ações de modo geral. A investigação psicanalítica das psiconeuroses nos ensina, segundo Freud, "que seus sintomas devem ser remetidos a impulsos diretamente sexuais que são reprimidos, mas permanecem ainda ativos" (Freud, 1921/2010, p. 177). Com a psicanálise, a atividade das pulsões é monitorada por uma topografia conceitual da vida psíquica governada pela hipótese de que o inconsciente pode articular, numa mesma cadeia conceitual, a gênese e desenvolvimento da subjetividade humana.

Desse modo, do pressuposto das pulsões, Freud introduz o inconsciente como uma hipótese que permite compreender a dinâmica não apenas do destino, mas, sobretudo, o modo como as pulsões operam na vida psíquica. Por conseguinte, o inconsciente aparece como a hipótese responsável por mapear os dramas da existência humana nos níveis tanto psíquico quanto subjetivo. Assim, Freud assegura que essa hipótese é "inteiramente legítima, na medida em que, ao adotá-la, não nos afastamos da maneira de pensar que para nós é a habitual e tida como a correta" (Freud, 1915b/2010, p. 104). O inconsciente é uma hipótese legítima, porque Freud pressupõe que existem forças – pulsões – que determinam o nosso comportamento, mas que não se explicam em termos de uma atividade estritamente consciente. Muitas vezes somos movidos por desejos que não planejamos de modo consciente. A hipótese do inconsciente visa preencher essa lacuna deixada pela consciência para trazer o conteúdo recalcado à tona, à própria consciência, procurando, para tanto, eliminar as resistências da vida psíquica.

O desejo compreendido na ideia de pulsão é muito frequentemente castrado, limitado por uma atitude de contenção das pulsões. O lugar para o qual o desejo é varrido, enquanto conteúdo recalcado, é o esquecimento. No entanto, o epicentro da psicanálise repousa sobre a ideia de que o esquecimento não é a tradução de um eclipse absoluto de nossas vivências subjetivas. Ele está presente na tomada de decisões que fazemos com relação a um leque variado de escolhas. O inconsciente não é, para usar um conceito do Leibniz, uma mônada sem janelas. Ele consegue passar pelas fendas das forças repressivas e se apresentar à consciência de modo cifrado, mas não intraduzível ou impassível de ser significado.

Como acontece em todo procedimento científico, a hipótese do inconsciente só pode ser validada pelas consequências práticas que ela porta para a teoria. A prática, sabemos, é a clínica. Assim, se por meio dessa hipótese for possível edificar, Freud assere, "uma prática bem-sucedida" será possível influir "no curso dos processos inconscientes" (Freud, 1915b/2010, p. 102). A fissura causada na psique humana, materializada na forma de tópicas, é a estratégia de Freud para explicar um campo de fenômenos que não poderia ser colonizado unicamente pela neurociência, porque se refere a propriedades essencialmente inobserváveis pelos exames laboratoriais da época – hoje sabemos que é possível mapear o cérebro em atividade por meio de novos e sofisticados exames, por exemplo, por emissão de pósitrons –, pois elas são consequências emergentes de disposições orgânicas. Nesses termos, Freud reconhecia nas neuroses traumáticas, especialmente as que se desencadeavam no pós-guerra, poderiam ser a prova cabal de que um quadro sintomático de patologias que não poderia ter a sua origem em falhas estritamente orgânicas. Um campo profícuo de experimentação da hipótese do inconsciente foi a guerra porque ela, segundo Freud, "pôs fim à tentação de atribuir a causa do distúrbio a lesões orgânicas do sistema nervoso, ocasionadas pela força mecânica" (Freud, 1920/2010, p. 23). Notadamente, vários solados apresentam distúrbios muito próximos da histeria (como vários sintomas motores) sem que houvesse qualquer lesão cerebral ou fisiológica que pudesse oferecer indícios de que se tratava de algo passível de um tratamento médico. Se era claro o evento que desencadeou o trauma, isto é, a guerra, para a medicina da época eram um mistério as razões daqueles sintomas. Esse mistério para a medicina da época não era por acaso, visto que só a postulação da hipótese do inconsciente poderia lançar luz sobre as vivências subjetivas (inacessíveis aos exames fisiológicos até então) sobre cuja ancoragem repousava a chave de explicação privilegiada daqueles comportamentos. Era preciso resgatar as vivências que a situação traumática aflorou e ajudar o paciente a lidar com elas.

O trabalho da psicanálise, por conseguinte, é essencialmente de reconstrução hermenêutica (de interpretação dos nossos sonhos e de nossa narrativa tecida no espaço da clínica), mas sem a pretensão de instanciar no corpo os fatores que levaram a comportamentos patológicos. O epicentro da psicanálise é a clínica no sentido de que por meio dela se faz uma reflexão pessoal – subjetiva – responsável por levar o paciente a tornar consciência do seu conflito pulsional (fortemente recalcado pelas forças do inconsciente) e a traçar estratégias para lidar com ele. Assim, a própria natureza da pulsão só permite um tratamento em que a ontologia da primeira pessoa – aqui tomo de empréstimo o conceito de John Searles para me referir à irredutibilidade da experiência subjetiva – seja o foco do compromisso ontológico da psicanálise. Nesse sentido, a psicanálise não rivaliza com outras ciências, especialmente com as neurociências, pelo contrário, é perfeitamente possível uma relação íntima entre psicanálise e neurociência (Lyra, 2007). No entanto, seu foco central consiste na tarefa hermenêutica de interpretação e significação do paciente a respeito de suas próprias vivências subjetivas, e, por conseguinte, ela se dirige essencialmente a uma ontologia da primeira pessoa. É o testemunho do paciente que compõe o campo de investigação da psicanálise, porque, sem esse testemunho – na forma de narrativa dos sonhos e reconhecimento dos atos falhos –, não é possível vislumbrar o conflito psíquico provocado pela repressão dos desejos. Se mesmo a medicina e, mais especificamente, a neurociência precisam ainda do testemunho da primeira pessoa para pelo menos dar celeridade a algumas investigações, sem o relato pessoal certos diagnósticos são difíceis de serem estabelecidos. Na psicanálise, o testemunho é convertido em elemento central do processo de cura porque ele se refere a conflitos de ordem psicológica que, embora tenham efeitos somáticos, eram inobserváveis pelos testes fisiológicos da época de Freud, mas podiam ser tratados com uma terapia psicanalítica. Ou ainda, para encerrar este artigo com as palavras de Freud, "a psicanálise é o nome de um procedimento para a investigação de processos mentais que são quase inacessíveis por qualquer outro modo" (Freud, 1923/1976, p. 287).

 

5. Referências

Bedau, M. (2008). Downward Causation and Autonomy in Weak Emergence. In M. Bedau & P. Humphreys (Orgs.). Emergence: Contemporary Readings in Philosophy and Science (pp. 155-189). Cambridge, MA: The MIT Press.         [ Links ]

Bedau, M. & Humphreys, P. (2008). Introduction. In M. Bedau & P. Humphreys (Orgs.). Emergence: Contemporary Readings in Philosophy and Science (pp. 1-19). Cambridge, MA: The MIT Press.         [ Links ]

Bezerra, B. (2013). Projeto para uma psicologia científica: Freud e as neurociências. São Paulo: Civilização Brasileira.         [ Links ]

Chalmers, D. (1996). The Conscious Mind: in Search of a Fundamental Theory. Oxford: Oxford University Press.         [ Links ]

Cheniaux, E. & Lyra, C. (2014). The Dialog between Psychoanalysis and Neuroscience: What Does Philosophy of Mind Say?. Trends Psychiatry Psychother, 36(4), 186-192.         [ Links ]

Churchland, P. M. (1990). Eliminative Materialism and the Propositional Attitudes. Oxford: Blackwell.         [ Links ]

Freud, S. (1905). Três ensaios sobre a sexualidade. In Sigmund Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad.; Vol. 1, pp. 77-102). Rio de Janeiro: Imago, 1979.         [ Links ]

Freud, S. (1910). Cinco Lições sobre a psicanálise. In Coleção Os pensadores Freud. (D. Marcondes, Trad.; Vol. 1, pp. 1-37). São Paulo: Abril Cultural, 1979.         [ Links ]

Freud, S. (1915a). Pulsões e seus destinos. In Sigmund Freud. Edição das obras completas de Freud (P. Souza, Trad.; Vol. 12, pp. 51-88). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.         [ Links ]

Freud, S. (1915b). O inconsciente. In Sigmund Freud. Edição das obras completas de Freud (P. Souza, Trad.; Vol. 12, pp.99-151). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.         [ Links ]

Freud, S. (1915c). Repressão. In Sigmund Freud. Edição das obras completas de Freud (P. Souza, Trad.; Vol. 12, pp. 81-99). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.         [ Links ]

Freud, S. (1920a). Além do princípio do prazer. In Sigmund Freud. Edição das obras completas de Freud (P. Souza, Trad.; Vol. 12, pp.90-150). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.         [ Links ]

Freud, S. (1920b). A psicogênese de um caso de homossexualismo na mulher. In Sigmund Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad.; Vol. 1, pp. 77-102). Rio de Janeiro: Imago, 1976.         [ Links ]

Freud, S. (1921). Psicologia de grupo e análise do ego. In Sigmund Freud. Edição das obras completas de Freud (P. Souza, Trad.; Vol. 12, pp. 50-120). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.         [ Links ]

Freud, S. (1923). Dois verbetes de enciclopédia. In Sigmund Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad.; Vol. 1, pp. 77-102). Rio de Janeiro: Imago, 1976.         [ Links ]

Freud, S. (1940). Esboço de psicanálise. In Coleção Os pensadores Freud (J. Abreu, pp. 195-244). São Paulo: Abril Cultural, 1979.         [ Links ]

Hanns, L. (1999). A teoria pulsional na clínica de Freud. São Paulo: Imago.         [ Links ]

Kim, J. (2001). Physicalism. In R. Wilson & F. Keil (Orgs.) The MIT Encyclopedia of the Cognitive Sciences (pp. 165-182). Cambridge, MA: The MIT Press.         [ Links ]

Laplanche, J.; Cotet, P. & Bourguignon, A. (1989). Traduire Freud. Paris: PUF.         [ Links ]

Lyra, C. E. S. (2007). O inconsciente e a consciência: da psicanálise à neurociência. Psicol. USP, 18(3), 55-73.         [ Links ]

Mclaughlin, P. B. (2008). The Rise and Fall of British Emergentism. In M. Bedau & P. Humphreys (Orgs.). Emergence: Contemporary Readings in Philosophy and Science (pp. 19-62). Cambridge, MA: The MIT Press.         [ Links ]

Mezan, R. (2014). O tronco e os ramos. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Nagel, T. (2004). Visão a partir de lugar nenhum. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Nussbaum, Martha. (2009). A fragilidade da bondade: fortuna e ética na tragédia e na filosofia grega. São Paulo: WMF Martins Fontes.         [ Links ]

Putnam, H. (2008). Corda tripla: mente, corpo e mundo. Porto Alegre: Ideias e Letras.         [ Links ]

Searle, J. (2008). Reductionism and the Irreducibility of Consciousness. In M. Bedau & P. Humphreys (Orgs.). Emergence: Contemporary Readings in Philosophy and Science, (pp. 111-127). Cambridge, MA: The MIT Press.         [ Links ]

Simanke, R. T. (2014). O Trieb de Freud como instinto: sexualidade e reprodução. Scientiae Studia, 14(1), 60-82.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Érico Andrade

E-mail: ericoandrade@gmail.com.

 

 

* Doutor em Filosofia e professor associado de filosofia da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: ericoandrade@gmail.com.

Creative Commons License