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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.20 no.1 São Paulo jan./jun. 2018

 

TRADUÇÕES

 

Tradução e comentários à conferência de Freud sobre a Histeria masculina: uma contribuição à historiografia da psicanálise

 

Commented translation of Freud's conference on male hysteria: a contribution to psychoanalysis's historiography

 

 

Caio Padovan*, I, II; Wilson de Albuquerque Cavalcanti Franco**, III

ICentre de recherches psychanalyse, médecine et société (Paris 7)
II
Université Paul Valéry Montpellier – França
IIIUniversidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Apresentamos neste artigo uma tradução inédita de uma das atas da conferência de Freud sobre a histeria masculina, comunicação proferida pelo futuro psicanalista diante da Sociedade de Médicos de Viena em 15 de outubro de 1886. A conferência tornou-se conhecida no interior do movimento psicanalítico principalmente em função da ideia de que, na ocasião, Freud teria sido objeto de escárnio e rejeição por parte da comunidade médica e acadêmica. Além da tradução, ofereceremos ainda um panorama técnico e contextual com o objetivo de contribuir para a elucidação de alguns equívocos recorrentes ligados à história deste episódio. Assim, enquanto caso exemplar, tal evento nos servirá também como pivô de uma crítica mais ampla a certas historiografias da psicanálise.

Palavras-chave: psicanálise; histeria; história da psicanálise; Sigmund Freud; história da psiquiatria; história da medicina; história da psicologia.


ABSTRACT

This article is based on a translation of the notes on the proceedings of Freud's conference on masculine hysteria, presented by him before the Vienna Society of Physicians. The conference gained prominence within psychoanalytical discourses mostly due to the idea that Freud would have been object to scorning and rejection by the medical and scientific community present on the occasion – perception this article aims to put into question and to rectify. A technical, contextual and critical overview on the events and elements in question is also provided in the article, with the purpose of supporting and furthering the insights we aimed to provide with the publication of this translation; we also meant to shed new light into the events and to rectify some misunderstandings unfortunately recurrent in the historiography of psychoanalysis as related to this specific episode and its significance. Thus, as an exemplary case, we understand this event as the axis for a broader critique on some assumptions and positions regarding psychoanalytical historiography.

Keywords: psychoanalysis; hysteria; history of psychoanalysis; Sigmund Freud; history of psychiatry; history of medicine; history of psychology.


 

 

1. Introdução

Propomos no presente artigo uma tradução comentada da conferência proferida por Sigmund Freud em 1886 sobre a histeria masculina. Em um primeiro momento, nosso objetivo será o de oferecer um relato pormenorizado da sessão em questão acompanhado de um cotejamento crítico da forma como a conferência de Freud foi tratada e apresentada por alguns de seus biógrafos e historiadores da psicanálise. Considerando o fato de não contarmos com a estenografia da sessão, nem com o texto lido por Freud, nossa tradução e nossos comentários iniciais tomarão como base alguns documentos publicados à época, dentre os quais podemos destacar o registro da comunicação presente na Wiener Medizinische Wochenschrift (Revista Vienense de Medicina) e as atas oficiais da Sociedade de Médicos de Viena, sociedade onde a conferência fora pronunciada.

Na sequência, além de oferecer a primeira tradução em língua portuguesa deste material, esperamos poder contribuir de maneira ainda mais ampla para a compreensão do episódio a partir de um estudo detalhado dos argumentos mobilizados por Freud na ocasião. Em meio a esta análise, será também o caso de chamar a atenção para a relação destes argumentos com os debates em andamento no interior da comunidade médica europeia.

Conhecida através do relato feito por Freud em sua autobiografia de 1925 e discutida por diversos autores ao longo do século XX, esta conferência transformou-se em uma espécie de pedra de toque da história da psicanálise. Como veremos mais adiante, ela será inicialmente tomada como um "episódio fundador" da relação de Freud com sua época e com seus interlocutores. A partir do fim dos anos 1960, sobretudo através das versões contadas por Freud (1925), por Ernest Jones (1953), seu principal biógrafo, e por James Strachey (1966), tradutor e editor de suas obras completas em inglês, o episódio ocupará um lugar de destaque no contexto das disputas em torno da "justa medida" na interpretação da psicanálise em sua relação com seu contexto científico. Nesta mesma época, no entanto, principalmente com os trabalhos do psicanalista e historiador da psiquiatria Henri Ellenberger (1968; 1970), um discurso crítico a respeito desta narrativa tida como oficial começa a ganhar corpo.

Posto isso e reconhecendo a carência de trabalhos em língua portuguesa que discutam a temática em questão, acreditamos poder contribuir significativamente com este artigo para dirimir mal-entendidos que se estendem no seio da comunidade psicanalítica brasileira, sobretudo aqueles relativos à recepção de Freud e da psicanálise no interior do contexto científico de sua época.

1.1. Contexto geral da conferência

No dia 15 de outubro de 1886, o dr. Sigmund Freud (1856-1939), recém-nomeado professor auxiliar (Privat-dozent)1 de Neuropatologia da Faculdade de Medicina de Viena, profere diante da k. k. Gesellschaft der Ärzte in Wien2 uma conferência sobre a "Histeria masculina". A sessão estava programada para começar às 19 horas e duas outras conferências estavam ainda previstas: a de Michael Grossmann (1848-1927), pesquisador vinculado ao laboratório de patologia experimental do Hospital Geral de Viena, que discutiria um caso de "lúpus de laringe"3, e a de Johann Latschenberger (1847-1905), professor de química fisiológica, toxicologia e higiene da Universidade de Freiburg, que apresentaria uma comunicação intitulada "Sobre a presença e a origem da bilina em tecidos e fluidos em casos de doenças graves em animais" ("Über das Vorkommen des Gallenfarbstoffes in Geweben und Flüssigkeiten bei schweren Tierkrankheiten und seine Entstehungsweise").

As atividades da sessão foram coordenadas por uma mesa científica composta por quatro membros: Heinrich von Bamberger (1822-1888), presidente da mesa (Vorsitzender) e professor titular da Universidade de Viena; Moritz Rosenthal (1833-1889), professor associado de Neuropatologia da Universidade de Viena; Theodor Meynert (1833-1892), professor titular de psiquiatria na mesma instituição e diretor da clínica psiquiátrica ligada ao Hospital Geral de Viena4; e o professor Maximilian Leidesdorf (1816-1889), diretor do Niederösterreichische Landesirrenanstalt (Asilo Nacional da Baixa-Áustria).

Na qualidade de presidente da sessão (Hofrath), Heinrich von Bamberger dá início aos trabalhos saudando o público e transmitindo alguns informes preliminares. Grossmann é o primeiro a tomar a palavra. Depois, vem a conferência de Freud, à qual se segue um debate animado pelos coordenadores da mesa. Finalmente, Latschenberger encerra o evento proferindo sua conferência e um segundo debate será travado na sequência entre o conferencista o presidente da mesa, Heinrich von Bamberger. A sessão foi registrada pelo secretário da Sociedade, Otto Bergmeister (1845-1918), professor auxiliar de Oftalmologia na Universidade de Viena5.

1.2. A comunicação de Freud

O texto lido por Freud nesta ocasião não foi reproduzido integralmente nas Atas da Sociedade. No registro oficial da sessão consta apenas a transcrição do debate que se seguiu à conferência (Hajek, 1887, p. 149-151). No entanto, alguns ouvintes fizeram registros da comunicação que foram posteriormente publicados em revistas médicas da época. Até o momento, para além do registro oficial da Sociedade, temos notícia de cinco relatos da conferência do dia 15 de outubro, publicados nos seguintes periódicos: Wiener Medizinische Wochenschrift, Wiener Medizinische Presse, Wiener Medizinische Blätter, Allgemeine Wiener medizinische Zeitung e Münchner Medizinische Wochenschrift – os quatro primeiros sediados em Viena e o último em Munique, então parte do Império Alemão.

Propomos neste artigo uma tradução da versão publicada no primeiro destes periódicos, o Wiener Medizinische Wochenschrift, revista fundada em 1851 e editada na época pelo médico húngaro Leopold Wittelshöfer (1818-1889). Esta versão foi escolhida por duas razões: primeiro porque se trata do relato mais completo da comunicação (considerando os cinco registros dos quais temos conhecimento até o momento), e segundo por se tratar de um relato publicado em um periódico para o qual Freud trabalhava como revisor desde 1883, o que nos leva a crer que, de uma forma ou de outra, este texto tenha passado pelas suas mãos6.

1.3. A literatura crítica sobre o episódio

As referências históricas feitas à conferência de Freud sobre a histeria masculina – e a consequente transformação deste evento ordinário em um importante capítulo da história da psicanálise – podem ser divididas cronologicamente em três momentos distintos:

1) O primeiro destes momentos foi, por assim dizer, inaugurado por Freud em 1900, em um breve comentário feito pelo psicanalista na primeira edição de sua grande obra, a Interpretação dos sonhos. No sexto capítulo desse trabalho, mais precisamente no tópico sobre os "sonhos absurdos", Freud afirma ter entrado em uma controvérsia com Meynert em torno do estatuto da histeria masculina, diagnóstico cujo fundamento teria sido inicialmente negado por este último e posteriormente admitido em seu leito de morte (Freud, 1900, pp. 251-252)7. O assunto seria retomado por Freud em seu texto autobiográfico de 19258, no qual o psicanalista nos traz uma versão mais detalhada dos acontecimentos em questão, revelando ter tido uma "má recepção" (üble Aufnahme) por parte dos membros da Sociedade de Médicos de Viena. Freud ainda acrescenta que Bamberger havia declarado na ocasião que tudo aquilo que tinha sido dito era "pouco crível" (unglaubwürdig) e que Meynert o teria "encarregado" (auffordern)9 de encontrar em Viena casos semelhantes àquele que ele havia apresentado na Sociedade (Freud, 1925; 1928). Segundo Freud, no entanto, os médicos-chefe [Primarärzte] das diferentes clínicas que compunham o Hospital Geral de Viena não o teriam permitido entrar em contato com esse material e que um deles em particular, "um velho cirurgião", teria inclusive dito: "mas meu caro colega, como pode o senhor dizer coisas assim sem sentido! Hysteron quer dizer útero. Como poderia um homem ser histérico?" (Freud, 1925, p. 6)10.

Esta hipótese da "má recepção", acompanhada de uma denúncia de "má-fé" da parte de alguns médicos vienenses, seria endossada inicialmente por Fritz Wittels, primeiro biógrafo de Freud, em seu Sigmund Freud, o homem, a doutrina e a escola11, publicado em 1923. Neste trabalho, anterior à publicação do dito Estudo autobiográfico, Wittels afirma que durante a conferência sobre a histeria masculina o jovem doutor teria sido objeto de chacota por parte de seus colegas (Wittels, 1923, p. 25). Ainda segundo este autor, que no mais contextualiza o evento de maneira bastante precisa, teria sido Meynert – e não um "velho cirurgião" – o médico que negaria a existência da histeria masculina lançando na ocasião o seguinte comentário a Freud: "mas, meu caro, hysteron quer dizer útero!" (Wittels, 1923, p. 25)12.

Posteriormente, em 1953, no primeiro volume de sua influente biografia, Ernest Jones nos oferece uma boa descrição do mesmo evento, mas não contribui para a desmistificação dos acontecimentos tal como eles vinham sendo contados (Jones, 1953, p. 252-3)13. Assim, Jones se limita a reproduzir em seu comentário aquilo que Freud teria supostamente experimentado em termos subjetivos na ocasião – um sentimento de rejeição – narrativa que seria finalmente eternizada em 1966 a partir da nota editorial de James Strachey à tradução inglesa do primeiro volume das obras completas de Freud (Strachey, 1966).

2) O segundo momento desta história começa em 1962, com a publicação do importante livro do psicanalista sueco Ola Andersson, intitulado Estudos sobre a pré-história da psicanálise (Andersson, 1962). Nesta obra, Andersson aponta para a existência de dois relatos, até então desconhecidos, da conferência de Freud sobre a histeria masculina, publicados nas revistas Wiener Medizinische Wochenschrift e Wiener Medizinische Presse. Como precisa o psicanalista, ambos não haviam sido recenseados nem por Alexander Grinstein (1956), nem por Alan Tyson e James Strachey (1956) em seus índices bibliográficos. Porém, apesar de chamar a atenção para a importância destes documentos, Andersson não chega a problematizar a narrativa de Jones com base neles.

Alguns anos mais tarde, no entanto, motivado pelas pistas deixadas pelo psicanalista sueco14, Ellenberger publica em 1968 o polêmico artigo "A conferência de Freud sobre a histeria masculina (15 de outubro de 1886): um estudo crítico" (Ellenberger, 1968)15. O texto de Ellenberger assume a missão de "desmistificar" o episódio e de fornecer um relato mais próximo dos fatos – posição assumida em função de seu compromisso em verificar fontes primárias e de reconstituir o mais fielmente possível os acontecimentos, reinserindo-os assim em seu contexto social, histórico e psicológico. O propósito do texto de Ellenberger, quando de sua publicação e na apreciação do próprio autor, seria justamente apresentar sua proposta de uma metodologia historiográfica renovada para o acesso à história da psiquiatria, tomando a apresentação de Freud como mote e "caso exemplar", justamente por considerá-la relativamente "fácil de elucidar". Assim, Ellenberger estabelece um verdadeiro "programa" de correção acerca das imputações avançadas pelo "mito" recorrente em torno do evento – abordando desde o tema mesmo da comunicação, a reação dos membros da mesa, o tom que teria prevalecido durante os trabalhos e as implicações da interpretação "isolacionista" que teria prevalecido no seio da comunidade psicanalítica. Em resumo, a crítica do historiador recusará veementemente a interpretação dos fatos oferecida pelo próprio Freud em sua autobiografia a partir do recurso ao contexto (social, histórico e psicológico), reconstituído a partir do apreço à consolidação de um arcabouço bibliográfico e arquivístico sólido e confiável. Este será o mote maior do trabalho de Ellenberger, bem como desse "segundo momento" na apreciação da comunicação de Freud como um todo.

O argumento de Ellenberger será retomado de forma resumida em 1970, em sua grande obra A descoberta do inconsciente – na qual, no entanto, o pendor polemista se vê diluído em função da conformação do texto, mais próximo a se oferecer como novo fundamento que como plataforma de confrontação e debate.

Um artigo crítico não menos importante sobre o mesmo episódio, ainda que menos conhecido e menos citado, seria publicado pelo psicanalista francês Léon Chertok neste mesmo ano de 1970 (Chertok, 1970)16. Neste trabalho, Chertok busca reconstruir a história dos debates em torno da histeria masculina a partir dos anos 1870, a fim de demonstrar que a má recepção de Freud em Viena poderia ser mais bem interpretada como um reflexo da má recepção das teses de Charcot nos países de língua alemã. Retomaremos este argumento mais adiante em nossa discussão.

3) Por fim, o terceiro momento do debate histórico sobre a conferência de Freud terá início a partir dos anos 1970, com a citação sistemática mais ou menos crítica de diversos autores às versões do episódio narradas por Jones e por Ellenberger. Desde então, nada – ou muito pouco17 - foi, no entanto, trazido de novo à discussão. Surpreende-nos, em todo caso, observar que figuras como René Major (1974) e Didier Anzieu (1988) continuaram sustentando uma versão pouco verossímil dos eventos em questão. Entre os posteriores biógrafos, talvez a posição mais ponderada a este respeito seja aquela expressada por Peter Gay. Em Freud, uma vida para o nosso tempo, Gay afirma que teria sido em função de sua "sensibilidade exacerbada" (exasperated sensitivity) que Freud decidira interpretar a atitude de seus colegas como uma "pura reação obtusa" (Gay, 1989, p. 53-4). Uma síntese imparcial e bem documentada a respeito da conferência de Freud e do problema da histeria masculina em geral será feita por Marc Micale em 2008 (Micale, 2008).

 

2. Tradução

Sociedade de Médicos de Viena

Sessão de 15 de outubro de 1886

 

O Professor Dr. Freud conduz uma conferência intitulada: "Sobre a histeria masculina".

O presente conferencista, que teve a oportunidade de conhecer durante sua viagem de estudos a Paris os mais recentes trabalhos de Charcot – autor que hoje se dedica quase que exclusivamente ao estudo da histeria – toma a liberdade de expor aqui os pontos de vista deste último, considerados como sendo ao mesmo tempo novos e importantes.

O conferencista espera não encontrar qualquer oposição ao dizer que médicos em geral não atribuem à histeria qualquer conceito científico realmente sólido. O adjetivo "histérico" é frequentemente empregado como sinônimo de "nervoso". Falta-nos um bom critério para diferenciar esta doença de outras neuroses, sendo que seu diagnóstico, na maior parte das vezes, se baseia em condições acidentais [Nebenumstände], como a idade do paciente, o sexo, seu percurso, a instabilidade dos sintomas etc., e não nos sintomas positivos e estáveis do quadro clínico [Krankheitsbild] em questão. Além disso, prevalece uma desconfiança quase geral em relação à queixa desses pacientes, assim como uma falta de interesse ou aversão ligada à investigação dos detalhes desses fenômenos. Enfim, a relação com o sistema genital feminino continua a ser afirmada como um traço característico da histeria.

Diante disso, Charcot vem propor – tal como o fez no caso do estudo de outros quadros clínicos – um tipo para a histeria, uma forma extrema da afecção, da qual será possível partir visando o diagnóstico das formas mais rudimentares.

Este tipo, designado "Grande hystérie", apresenta os seguintes sintomas:

I. Ataques característicos que, introduzidos por uma aura particular, permitem o reconhecimento de quatro fases [Phasen] bem delimitadas. A primeira fase é aquela dos espasmos epileptoides que se assemelham bastante a um ataque epiléptico. A eles se seguem os "grands mouvements", movimentos de considerável amplitude, movimentos de saudação, posições em forma de arco etc. Por fim, o estágio das "attitudes passionnelles", gestos carregados de afeto, fim dos movimentos descoordenados, o doente se mostra em meio a falas e movimentos dominados por alucinações. O "délire terminal" marca a sua conclusão.

II. Perturbações próprias à sensibilidade, tais como hemianestesia de natureza cerebral, entre outras.

III. Perturbações características no nível dos órgãos dos sentidos, em particular nos olhos – ambliopia18 unilateral ou bilateral com retraimento do campo visual, por exemplo – assim como confusão na percepção das cores.

IV. Presença de pontos particularmente sensíveis, de placas histerógenas, que demonstram uma relação notável com [a deflagração d']os ataques.

V. Tendência a perturbações motoras, tais como paralisias e contraturas, cujos detalhes são bastante característicos.

O orador pondera dizendo que não se pode esperar encontrar sempre, em cada um dos casos, todos estes sinais distintivos; trata-se, por exemplo, como na doença de Basedow, de casos completos e rudimentares, cujos últimos são reconhecidos pela sua semelhança com os primeiros.

Na sequência, o conferencista chama a atenção para o mérito de Charcot, por ele ter desconstruído a partir de suas investigações a ideia preconcebida de que todos histéricos são simuladores, o que em parte se deve à lucidez científica das suas observações, apoiadas em um grande número de fenômenos, em parte à forma como ele as ilustra.

Ademais, Charcot demonstrou, especialmente a partir dos seus estudos sobre a histeria em homens e, melhor ainda, naquele sobre a histeria traumática, que a correlação entre neurose e irritabilidade dos órgãos genitais [Reizungszuständen der Geschlechtsorgane] fora superestimada e que tal correlação não deve ser tomada como necessária considerando as características da doença.

O conferencista discute agora a histeria em homens. Comenta que alguns casos isolados chegavam a ser reconhecidos, mas que, no entanto, acabavam sendo tomados como raros, refletindo assim isso que, para nós, ainda parece chocar – a saber, a aparente contradição ligada ao sentido etimológico da palavra. O período da puberdade, as condições hereditárias, a transmissão da predisposição [Übertragung der Anlage] de mãe para filho [são] importantes, mas isso não quer dizer que homens de idade madura estejam imunes.

No que refere aos sintomas, não existem diferenças essenciais em relação à histeria em mulheres. Assim, encontramos a Grande hystérie [também] em homens com todas as características que lhe são próprias. [Em homens] os ataques são apenas mais violentos e assustadores [schreckenerregender]19, fazendo com que o quadro clínico [só] pareça mais grave. Também na histeria em homens, uma correlação com a atividade sexual pode ser verificada apenas em alguns casos, mas não em outros. Determinantes são tão-somente os casos que tiveram a sua origem em um trauma.

O dr. Freud faz menção a um caso desse tipo que ele teria observado em meio a muitos outros na companhia de Charcot. Na época, quando Ch[arcot] havia começado a estudar tais casos, fora por ele examinado um jovem rapaz de 17 anos, hereditariamente comprometido, pedreiro, dotado até então de boa saúde. Após cair de um andaime, o paciente apresenta uma leve contusão; há perda de consciência por alguns minutos. Três dias mais tarde, [observou-se uma] leve fraqueza do braço esquerdo [e uma] insensibilidade na mão. No 22º dia, [observa-se] paralisia total e anestesia do braço; a presença simultânea de uma insuficiência cardíaca parece estar correlacionada à paralisia; os sintomas da paralisia, que Charcot não dava como certos, se mostravam, no entanto, de forma a levá-lo a excluir afecções orgânicas [correspondentes] e a presumir uma histeria. Uma investigação mais detida mostrara, na realidade, que também existiam uma hemianestesia e uma analgesia do lado esquerdo, uma limitação do campo visual, uma perturbação na percepção das cores. Além disso, por meio de uma investigação acerca das placas histerógenas, a pressão sobre um ponto sensível desencadeara o primeiro ataque histero-epiléptico, o que confirmou o diagnóstico. A mobilidade do braço se reestabeleceu depois de um novo ataque. A hemianestesia [porém] permaneceu.

Esta teoria da histeria em homens tem ainda um lado prático importante. Charcot está inclinado a afirmar, por analogia a estes casos, que uma grande parte dos estados que se seguem a acidentes em estradas de ferro – conhecidos como Railway Spine ou R. Brain e que se encontram em acordo com os achados de diversos pesquisadores americanos – são também casos de histeria. Ainda que esta afirmação, que encontrou oposição entre os pesquisadores alemães, não esteja completamente demonstrada – dado que Charcot não estudou estes casos diretamente – tal indicação dirigida aos médicos praticantes lhe pareceu digna da maior atenção20.

O prof. Rosenthal faz menção a dois casos de histeria em meninos por ele observados. Descreve em detalhe a forma dos espasmos [die Art der Krämpfe] e o modo como eles evoluem [der Typus des Ablaufes]. A partir daí, chega à conclusão de que na grande maioria dos casos a excitação vem provavelmente do córtex, o que não exclui, contudo, que a oblongata21 possa desempenhar também aí um papel importante.

O prof. Meynert comenta que em sua clínica são observados há alguns anos casos nos quais sobrevêm, na maioria das vezes após um ataque traumático, certas modificações psíquicas acompanhadas de espasmos epilépticos e de distúrbios da consciência, estados que são designados por ele como epileptoides. Seria interessante [observar] se todos estes casos, tais como este que acabou de ser apresentado por Freud, oferecessem regularidade na série sintomatológica.

O Hofrath von Bamberger acredita não poder reconhecer, apesar de toda a sua consideração aos méritos de Charcot, nada de muito novo nesta interessante conferência. Exceção feita à suposta conexão estabelecida entre a Railway Spine e a autêntica histeria. Em todo caso, as observações que o conferencista fizera a este respeito não correspondem ao quadro em questão, ainda que uma semelhança possa ser afirmada. Seria em todo caso prematuro qualificá-lo desde já como sendo de histeria.

O prof. Leidesdorf observou repetidas vezes em sua clínica casos de pessoas jovens que, após acidente em estradas de ferro, apresentam afecções graves da medula espinhal e paralisia progressiva, afecções que não poderiam ser de forma alguma confundidas com histeria. Isso não quer dizer que estados histéricos não possam ser criados por um trauma. Seria, portanto, arriscado dar ao trauma o estatuto de causa, uma vez que não se pode estabelecer a dimensão das alterações em jogo; se observa também em pessoas jovens, vítimas de traumas cranianos sem lesão exterior visível, certas modificações como hipersensibilidade e insônia, reações que nada têm a ver com a histeria, ainda que possam ser concebidas como resultantes de um tipo de comoção [Erschütterung] do sistema nervoso.

 

3. Comentário

Realizada na respeitada Sociedade Real e Imperial de Médicos de Viena, instituição criada oficialmente em 1837 por Franz Wirer von Rettenbach (1771-1844) e Ludwig Freiherr von Türkheim (1777-1846) como um espaço de debate e de formação contínua de médicos praticantes22, a conferência de Freud tinha como objetivo apresentar à comunidade médica vienense as teses de Charcot sobre a histeria masculina. Tratava-se, portanto, não apenas de uma comunicação científica em sentido estrito, mas também de uma fala de divulgação.

Neste sentido, já de saída, podemos entender que a recepção do jovem Freud pelos médicos de Viena, ainda que possa ter sido de fato "má", deveria ser pensada de maneira mais complexa, fazendo recurso ao contexto, e não apenas às inclinações ou pendores individuais dos atores envolvidos. Assim, em primeiro lugar, há de se ter em vista o fato de Freud ter sido nesta ocasião porta-voz de outro pesquisador, Charcot – elemento que deve ser reconhecido de forma crítica, considerando fatores institucionais da sociedade onde a conferência fora proferida. Em segundo lugar, sabe-se que Charcot representava uma tradição científica cuja aceitação no interior da comunidade médica de língua alemã não era unânime. Nesse sentido, é bom lembrar que a agenda científica de pesquisas de Charcot não contemplava apenas a histeria23, mas incluía também outros temas bastante discutidos na época, como, por exemplo, o estatuto neuropsicológico das afasias24, assunto que também dividia opiniões nos países de língua alemã. Em terceiro lugar, em se tratando de um espaço de discussão e formação, comprometido com a crítica e o rigor, seria esperado que os membros da banca necessariamente tensionassem a apresentação, independentemente do orador envolvido ou do tema por ele abordado.

A fim de nos aprofundar no conteúdo propriamente dito da conferência, nosso comentário será dividido a partir de agora em duas partes. Na primeira delas, nos ocuparemos da exposição de Freud, na segunda nos concentraremos na discussão que a ela se seguiu. Nosso objetivo será o de oferecer ao leitor uma contextualização histórica, ainda que básica, dos argumentos evocados tanto por Freud como pelos seus colegas.

3.1. A conferência de Freud

3.1.1. Comentários preliminares feitos pelo conferencista

Antes de se dedicar ao tema específico da histeria masculina, Freud tece alguns importantes comentários preliminares; pode-se mesmo dizer que é nesse ponto, das colocações preliminares, que Freud estabelece as bases para a compreensão de sua comunicação, nos termos como ela se deu. Esses comentários referem-se principalmente ao "ineditismo" da abordagem charcotiana da histeria, à problemática da simulação na histeria e à sua etiologia.

Começamos, então, pela questão do "ineditismo": Freud abre sua exposição lamentando o fato de que até o momento nenhum "conceito científico realmente sólido" havia sido atribuído à histeria, o que por um lado se justifica, mas não completamente. Desde o início dos anos 1860, após o aparecimento do influente tratado sobre a histeria de Pierre Briquet (Briquet, 1859), diferentes concepções foram atribuídas ao fenômeno clínico da histeria, tanto no interior da tradição neurológica de língua francesa como naquela de língua alemã25. No entanto, e neste sentido Freud teria razão, podemos considerar que até o início dos anos 1880 nenhum pesquisador havia definido um verdadeiro "quadro clínico" [Krankheitsbild] da histeria, dotado de sintomas "positivos" e "estáveis" para além da descrição dos seus estados "acidentais" ou "acessórios" [Nebenumstände]. É provável, em todo caso, que a colocação de Freud tenha gerado na ocasião um incômodo nos membros da mesa, levando a crer que o então jovem médico fazia tabula rasa do tema, descartando toda uma tradição de debates, inclusive aquela representada pelos seus próprios colegas.

No entanto, para compreender o comentário crítico de Freud a este respeito, seria necessário retomar aqui um princípio fundamental da medicina moderna, segundo o qual uma doença se define do ponto de vista clínico pela estabilidade e pela positividade dos seus sintomas. Assim, por mais que a histeria tivesse sido estudada e descrita por diversos autores até o início dos anos 1880, nenhuma descrição adequada do quadro clínico da histeria havia sido de fato estabelecida até então. "Diante disso", como chama a atenção Freud, Charcot poderia ser de fato apontado como um dos primeiros, senão o primeiro, a propor uma definição estável e positiva para esse conjunto de fenômenos assim reconhecidos desde a antiguidade, e isso em função da proposição de um "tipo" para histeria.

A noção de tipo será empregada por Charcot e pelos seus alunos como um conceito metodológico maior no estudo clínico das ditas doenças do sistema nervoso. Trata-se, grosso modo, de uma descrição dos traços mais claros e pronunciados de uma doença, aqueles que nos permitem diferenciá-la de outras a partir de um modelo nosográfico hipotético, que na maior parte das vezes não encontra um paralelo perfeito na realidade clínica26. Em 1872, por exemplo, Charcot vai definir a paralisia infantil como um "tipo", um caso paradigmático de paralisia ou, em suas palavras, uma "doença de estudo" (maladie d'étude) (Charcot, 1872, p. 169). O mesmo será afirmado em 1878 em relação à histeria que, enquanto tipo patológico, será então definida nos termos da Grande hystérie (Charcot, 1878), forma completa da doença que se opunha às chamadas formas imperfeitas ou "frustres", a pequena histeria. Enquanto quadro clínico, ela será pela primeira vez descrita em seus quatro períodos em 1879, por um de seus alunos, Paul Richer (1849-1933), em sua tese de doutorado intitulada "Estudo descritivo do grande ataque histérico ou ataque histero-epiléptico e das suas principais variações"27.

Em sua conferência, Freud retoma estes quatro períodos da Grande histeria descritos por Charcot e Richer, chamando também a atenção para alguns sintomas isolados desta mesma doença, como certas perturbações da sensibilidade ("hemianestesia" e "ambliopia") e da motricidade ("contraturas" e "paralisias"). Dentre as perturbações da sensibilidade, Freud salienta ainda a presença de "placas histerógenas" que, de acordo com o médico, "demonstram uma relação notável com a deflagração dos ataques". A manifestação de cada um destes sintomas isolados havia sido também estudada em detalhe por Charcot em suas Lições sobre as doenças do sistema nervoso, lições que acabavam de ser traduzidas por Freud para o alemão e publicadas neste mesmo ano de 1886 (Charcot, 1886). No que diz respeito à observação das ditas "placas" (Plaques) histerógenas – inicialmente associadas ao fenômeno de "hipersensibilidade ovariana", descrito por Charcot já em 1872 – elas serão definidas em 1878 em termos de "zonas histero-epileptógenas" e, finalmente, estudadas de maneira exaustiva por Paul Richer em 1881. Neste trabalho, Richer vai se referir a elas como "zonas histerógenas", ampliando a sua delimitação anatômica para as regiões mamárias, subaxilares, costais, ilíacas e dorsais (Richer, 1881, p. 35-6). Não seria um exagero de nossa parte estabelecer aqui um paralelo entre as zonas histerógenas observadas na Salpêtrière e as ditas "zonas erógenas" [Erogenen Zonen] definidas por Freud mais de vinte anos mais tarde em seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). O próprio Freud o reconheceria desde a primeira edição desta obra, dizendo que "as zonas erógenas e histerógenas exibem as mesmas características" (Freud, 1905, p. 39).

Logo na sequência, após propor uma delimitação dos sintomas positivos e do quadro estável da histeria, Freud pondera dizendo que nem sempre é possível encontrar em cada caso "todos estes sinais distintivos" e que, na maioria das vezes, nos vemos diante de manifestações incompletas e rudimentares da doença. Assim, a título de exemplo, o jovem médico cita a definição clínica da chamada doença de Basedow, quadro descrito inicialmente em 1840 por Carl von Basedow (1799-1854) e marcado pela tríade de sintomas: exoftalmia (protuberância dos olhos), bócio (aumento do volume da glândula tireoide) e taquicardia. Tal como a histeria, a doença de Basedow era também considerada por alguns autores alemães como uma afecção funcional, ou seja, uma afecção sem correlato anatomopatológico bem definido, mas cujos sintomas tendiam a se manifestar de maneira estável e regular28. No que diz respeito aos sinais distintivos da histeria, lembramos que eles serão retomados por Freud para os casos particulares das paralisias histéricas flácidas em 1893, em seu estudo comparativo sobre as paralisias motoras orgânicas e histéricas que vinha sendo preparado desde o seu retorno de Paris, em 1886 (Freud, 1893).

Antes de abordar propriamente a questão da histeria masculina, Freud fará ainda menção a dois outros temas ligados à histeria em geral, o tema da "simulação" e o da etiologia genital dos sintomas histéricos. A este respeito, nos limitaremos a fazer apenas algumas observações com o objetivo de chamar a atenção para certos mal-entendidos, infelizmente frequentes e persistentes na história da psicanálise.

No que concerne à questão da simulação histérica, seria possível localizar pelo menos dois problemas distintos considerando o contexto científico da época. O primeiro deles, mais evidente e repetido com mais frequência entre os comentadores, era o de que a histeria seria entendida pela medicina dos anos 1880 como uma espécie de dissimulação ou fingimento. Ora, diferentemente do que por vezes somos levados a acreditar, já eram poucos os médicos que na época entendiam os sintomas neuróticos ou histéricos como pura e simples simulação, o que nos leva a constatar que, neste sentido, Freud não teria tido dificuldades em se fazer entender. O segundo, menos evidente e quase nunca mencionado, era o de que muitos médicos da época, sobretudo aqueles de língua alemã, entendiam que os métodos de investigação da histeria utilizados pelos pesquisadores da Salpêtrière não eram confiáveis do ponto de vista científico e que, por essa razão, seus resultados não poderiam ser considerados como absolutamente seguros. Entre esses críticos estava, por exemplo, Theodor Meynert, que sustentava que uso de métodos hipnóticos para fins de pesquisa – meios efetivamente empregados por Charcot e seus alunos – não garantia objetividade à observação, podendo inclusive produzir sintomas de maneira artificial, conduzindo, portanto, à simulação29. Nestes termos, a noção de simulação estaria menos associada às condições inerentes ao quadro, e mais à abordagem proposta, quer dizer, a seus inconvenientes e riscos. Esse segundo ponto sem dúvida nos ajuda a compreender alguns elementos da recepção crítica da comunicação de Freud por alguns dos seus colegas da Faculdade de Medicina de Viena.

O segundo destes temas "preliminares" abordados por Freud, relativo à etiologia genital da histeria, se mostra ainda mais complexo. Durante a primeira metade do século XIX, médicos de renome, como Jean-Baptiste Louyer-Villermay (1776-1838), aluno de Pinel, entendiam a histeria como uma doença exclusivamente feminina e diretamente ligada ao órgão reprodutor feminino (Louyer-Villermay, 1816)30. Já nos anos 1850, no entanto, com o avanço das pesquisas anatomoclínicas, tal paralelo entre histeria e útero foi pouco a pouco perdendo o sentido, como nos demonstra outro médico francês, Augustin Grisolle (1811-1869). Em seu Tratado de patologia interna, Grisolle argumenta que "para 39 autópsias, o útero ou suas partes anexas teriam sido apenas 29 vezes a sede de diferentes lesões. No entanto, estas alterações materiais, que certamente podem desempenhar o papel de causa excitante, não são a razão anatômica da doença" (Grisolle, 1855, p. 773). No interior da tradição médica de língua alemã, o mesmo argumento pode ser visto em uma importante obra publicada por Moritz Rosenthal – um dos médicos presentes na conferência de Freud. Na segunda edição de seu Neuropatologia clínica, publicado em 1875, Rosenthal nos traz uma série de dados estatísticos que demonstram aquilo que Grisolle já havia constatado, ou seja, que, embora a histeria pudesse ser provocada por alterações dos órgãos genitais femininos, estes mesmos órgãos não poderiam ser entendidos como a sua sede anatômica (Rosenthal, 1875, p. 463-4). Alguns anos antes, Moritz Benedikt (1835-1920), outro neuropatologista vienense, já criticara a tese genital chamando a atenção no lugar disso para a importância do elemento sexual (libido) na gênese da histeria (Benedikt, 1868, p. 423-4). Enfim, será essa mesma noção de causa excitante, ligada à alteração dos órgãos femininos, que será retomada por Charcot em seus estudos sobre a histeria. Nestes, porém, como sublinha Freud, a preponderância dos fatores genitais será relativizada em relação a outros que serão julgados como mais relevantes. De qualquer forma, é bom lembrar que a relação entre histeria e órgãos genitais, tanto femininos quanto masculinos, não será completamente descartada e que intervenções cirúrgicas nestes órgãos – realizadas com objetivos terapêuticos – não eram incomuns na época31.

3.1.2. A histeria masculina

Entrando finalmente no tema da histeria masculina, Freud comenta que, em função da origem etimológica do termo histeria, os "raros" casos de histeria masculina teriam sido até então negligenciados, argumento que nos parece retórico, visto o abandono relativo da hipótese uterina por boa parte da comunidade científica a ele contemporânea. Na sequência, o conferencista discute o peso de elementos predisponentes na origem de sintomas histéricos, apontando para a possível transmissibilidade hereditária desta "predisposição" (Anlage). Lembramos que a questão da predisposição às doenças mentais, e em particular à histeria, assim como a sua transmissibilidade aos descendentes, poderiam ser entendidas na época como um lugar comum, mas não isenta de críticas. Em duas de suas lições sobre os fenômenos da contratura histérica, realizadas em 1882 e traduzidas por Freud em 1886, Charcot chega a afirmar que essa transmissão da predisposição – por ele chamada de "diátese histérica" – é inclusive mais frequente em homens, o que talvez tenha sido mencionado por Freud durante a conferência (Charcot, 1882a)32. Em todo caso, Freud sublinha que os casos "determinantes", quer dizer, aqueles em relação aos quais podemos ter algum grau de certeza, são apenas os que "tiveram a sua origem em um trauma". Neste momento de sua exposição, vemos Freud tomando partido na discussão sobre a etiologia da histeria, privilegiando as causas ditas "acidentais" em detrimento das causas "predisponentes" e problematizando a hipótese hereditária. Sabemos que esta problematização será retomada em tom crítico por Freud nos anos 1890, principalmente em seu artigo sobre "As neuropsicoses de defesa" (Freud, 1894).

Na sequência, a fim de ilustrar seus argumentos, Freud faz referência a um dos casos de histeria masculina descritos por Charcot durante as suas lições na Salpêtrière. Trata-se do caso de um "jovem de 17 anos" que podemos identificar como sendo "Pin…", paciente apresentado por Charcot em 1885 durante a segunda de suas lições Sobre seis casos de histeria em homens (Charcot, 1885, p. 289) – "Pin..." é o sexto caso, o último a ser apresentado – traduzida por Freud ao alemão em 1886. Cabe lembrar que casos de histeria masculina já vinham sendo observados por Charcot e seus alunos desde os anos 1870.

Feita a descrição do jovem Pin…, Freud chega ao ponto alto de sua fala, momento em que evoca o paralelo recém-estabelecido por Charcot entre certos casos de histeria e os casos de neurose traumática, "analogia" que, segundo o conferencista, encontraria "oposição entre os pesquisadores alemães".

Em primeiro lugar, antes de entrar nos detalhes deste segundo quadro clínico da "neurose traumática", é importante salientar que "os pesquisadores alemães" mencionados aqui não formam neste caso um grupo homogêneo, pois nem todos eles se mostram realmente críticos às ideias de Charcot a esse respeito. Em segundo lugar, cabe ainda dizer que, mesmo no interior desde subgrupo de "pesquisadores alemães" que se mostram avessos à analogia entre as afecções em questão, haveria diferentes posições em jogo. Não será o caso de nos aprofundarmos neste debate. Mesmo assim, nos permitimos trazer aqui de maneira não sistemática alguns elementos considerados por nós como esclarecedores e pouco discutidos pela literatura especializada – a começar por um diálogo contemporâneo à conferência de Freud travado entre dois médicos alemães sobre o estatuto da histeria.

Logo após o aparecimento da tradução alemã das lições de Charcot sobre as doenças do sistema nervoso, Leopold Laquer (1857-1915), médico em Frankfurt, publica em 1887 uma resenha da obra no periódico alemão Neurologische Centralblatt, em que faz elogios aos trabalhos neurológicos de Charcot, mas critica suas hipóteses clínicas sobre a histeria. Segundo Laquer, casos como aqueles descritos pelo neurologista da Salpêtrière são demasiado raros na Alemanha, sobretudo em homens, e não se manifestam com a mesma regularidade sintomatológica. Além disso, Laquer coloca em questão as observações feitas pelos pesquisadores da Salpêtrière, apontando para o fato de que a neurologia alemã, fundada segundo ele por Moritz Heinrich Romberg (1795-1873), acabou se distanciando em muito daquela que então se pratica na França. Em tom irônico, Laquer faz também referência a Freud, tradutor da obra (Laquer, 1887).

Também no ano de 1887, em um número posterior deste mesmo periódico, Adolf Strümpell (1853-1925), médico formado em Leipzig, responde ao comentário de Laquer negando sistematicamente cada uma de suas críticas. De saída, Strümpell considera falsa a distância afirmada pelo seu interlocutor entre a neurologia francesa e a alemã, acrescentando que as motivações de seu colega não poderiam se sustentar senão por "nacionalismo". Na sequência, sustenta que as observações feitas por Charcot se encontram apoiadas no solo firme das evidências clínicas e que enquanto médico praticante ele mesmo já havia presenciado em território alemão as manifestações da Grande histeria, assim como numerosos casos de histeria masculina (Strümpell, 1887). Sabemos que os mesmos pontos de vista já haviam sido defendidos por Strümpell três anos antes, em seu Manual de patologia e terapia de doenças internas, no qual o autor dedica várias páginas à descrição dos fenômenos histéricos, apoiando-se para tal – e em grande medida – nos trabalhos de Charcot (Strümpell, 1884).

Aliás, no que diz respeito à analogia entre a histeria e as ditas neuroses traumáticas, Strümpell será um dos primeiros a defender a hipótese de Charcot na Alemanha, notadamente em um artigo publicado em 1888 sobre o assunto (Strümpell, 1888). No entanto, até 1886, poucos eram os autores que levavam realmente a sério este paralelo.

Neste sentido, podemos citar aqui como bastante representativa a obra de Ernst von Leyden (1832-1910) – professor da Faculdade de Medicina de Strasbourg – sobre as doenças da medula espinhal (Leyden, 1874-6). Neste trabalho, publicado em dois volumes, Leyden reconhece a existência de traumas medulares e cerebrais de origem psíquica ocasionados por "violentos afetos psíquicos" (heftige psychische Affecte), afecções que tinham como modelo as chamadas Railway Spine e Railway Brain (Leyden, 1874-6, p. 106, 109), ambas categorias discutidas pelo médico inglês John Eric Erichsen (1818-1896) em 1867 (Erichsen, 1867, p. 22). No entanto, este autor não chega a estabelecer qualquer relação entre os sintomas traumáticos e histéricos, sendo a histeria inclusive pensada como uma doença ligada a estados de "irritação medular" sem lesão (Leyden, 1874-6, p. 10). Considerando a posição de Leyden sobre a natureza funcional das afecções histéricas e sobre a origem psíquica de sintomas decorrentes de traumas psíquicos – posição compartilhada por outros autores como Friedrich Jolly (apresentada exemplarmente em Eulenburg et al., 1875) e Wilhelm Erb (1882) – notamos enfim que a medicina de língua alemã estava longe de ser um "solo virgem" quanto às questões abordadas por Freud.

Retomando agora as pesquisas de Charcot, vemos que essas investigações o conduziriam a uma compreensão ligeiramente distinta daquela que marca o debate alemão, ainda que não pudesse ser pensada em termos de absoluta oposição, mas impondo certo "trabalho de nivelamento e acomodação" por parte dos pesquisadores alemães interessados em encetar um debate com ele e sua equipe. A analogia sugerida por Freud entre os sintomas histéricos e os sintomas traumáticos será pela primeira vez estabelecida por Charcot em 1882, em sua lição sobre os dois casos de contratura histérica de origem traumática – mencionado por nós mais acima. Tal como eles serão descritos, ambos os casos, cujos sintomas sensoriais e motores serão desencadeados após um acidente inofensivo do ponto de vista anatômico, demonstram uma semelhança notável com alguns casos de histeria local que vinham sendo estudados pelos médicos da Salpêtrière. Em 1885, no entanto, com o caso "Pin…", o jovem de 17 anos descrito por Freud em sua conferência, este paralelo se torna ainda mais evidente, uma vez que, para além de apresentar sintomas de histeria local, o rapaz manifesta também sintomas próprios à Grande histeria. Durante o exame clínico deste paciente, a equipe de Charcot localiza no jovem "pontos histerógenos" que, mediante estimulação, eram capazes de provocar de maneira clara e inequívoca cada um dos quatro períodos do grande ataque histérico. Charcot descreve em detalhe a crise de Pin… em sua lição (Charcot, 1885, 295-6). Lembramos que, a partir de 1885, o autor de base considerado por Charcot para se pensar a noção de trauma não será mais Erichsen – autor citado por Leyden –, mas aquela de "choque nervoso" proposta por Herbart Page (1885).

Damo-nos conta, enfim, que aquilo que o jovem médico de Viena estava tentando sustentar diante de seus pares é que a histeria não era apenas uma doença funcional do sistema nervoso, nem que os sintomas traumáticos eram apenas o resultado de traumas psíquicos, mas sim que traumas psíquicos eram capazes de provocar em homens um ataque histérico completo. Além disso, algo que não fora aparentemente discutido por Freud na ocasião, mas que poderia ser tomado como implícito pelos seus colegas vienenses, é que Charcot considerava o trauma como um elemento inteiramente psíquico, que poderia ser inclusive introduzido de maneira artificial em um sujeito predisposto à histeria através de sugestões em estado hipnótico.

O que fica claro, em resumo, é que a apresentação de Freud levanta uma série de problemas, de ordens e magnitudes distintas, em função da complexidade do debate e dos elementos em jogo. Não é de se espantar que as colocações dos membros da mesa incluíssem considerações de ordem comunitária e institucional, que se referissem a tradições e experiências clínicas individuais. Como nos esforçamos em demonstrar, não se trata apenas da histeria masculina na comunicação de Freud: trata-se da histeria em geral, de sua etiologia, de sua relação com os traumatismos e em particular com os acidentes ferroviários; trata-se também das tradições específicas e das sutilezas do diálogo entre a comunidade francófona e germanófona atuando nesses campos. Isso significa, em suma, que Freud não "trouxe uma novidade" à Sociedade de Médicos de Viena, mas sim tomou parte em um debate efervescente e muito mais complexo do que costumamos considerar.

3.2. A discussão que se segue à conferência

O primeiro a tomar a palavra no debate que se segue à comunicação de Freud é Rosenthal, que já de início faz referência a dois casos de histeria em meninos que incluíam crises espasmódicas e cuja evolução poderia encontrar, quem sabe, paralelo com o grande ataque histérico. Uma versão mais completa deste comentário, publicada no Wiener medizinische Presse, nos revela que Rosenthal reconhece a existência da histeria em homens, ainda que a considere menos frequente do que a histeria em mulheres. Assim, o debatedor teria dito na ocasião que "é sabido que a histeria se produz em homens e que ela é 20 vezes mais rara do que em mulheres". No relato oficial da sessão, presente nas Atas da Sociedade, observamos que o médico faz referência a Briquet como fonte para os dados estatísticos apresentados33. Além disso, Rosenthal confirma que os sintomas próprios à histeria poderiam ser provocados por "choques psíquicos" ou mesmo por traumas sem importância do ponto de vista anatômico, algo que segundo ele já era conhecido pela literatura especializada34. No texto das atas da Sociedade, os sintomas de um dos dois casos por ele citado serão descritos como tendo sido provocados por "severos castigos" administrados por um preceptor. Outro elemento interessante trazido por Rosenthal é que estes acidentes histéricos encontrariam sua causa na hiperexcitação dos centros corticais, o que nos revela que este pesquisador sustentava também uma concepção psicológica, e não puramente reflexa ou medular, dos sintomas histéricos.

Na sequência, Meynert intervém para atestar que também em sua clínica – há mais de dez anos, segundo o relato publicado no Wiener medizinische Presse – casos de "modificações psíquicas acompanhadas de espasmos epilépticos e de distúrbios da consciência" teriam sido causados por traumas psíquicos. Em um tom aparentemente amigável, Meynert se mostra pronto a colocar à disposição de Freud o material de sua clínica a fim de verificar se a série sintomatológica observada por Charcot em Paris poderia ser também constatada em Viena; quer dizer – como podemos ler no relato publicado no Wiener medizinische Blätter – se estes casos se encaixam ou não "no tipo da Grande histeria". Enfim, Meynert diz não poder confirmar a opinião de Rosenthal em relação à excitação dos centros corticais na histeria, problematizando assim, por sua vez, o seu possível caráter psicológico.

Ainda em relação à fala de Meynert, não temos como saber em que medida seus comentários foram ou não feitos de modo irônico e se este material clínico ao qual ele se refere fora efetivamente colocado à disposição de Freud. O que podemos constatar, no entanto, é que dois meses mais tarde, na sessão do dia 26 de novembro de 1886, Freud apresentaria "um caso de hemianestesia histérica em um homem" diante desta mesma Sociedade. Na ocasião, Freud comenta que a presente comunicação teria sido estimulada pelo seu "venerado mestre" [Verehrter Lehrer], o prof. Meynert (Freud, 1886). É provável, portanto, que até este momento a relação entre os dois médicos fosse ainda amistosa, mesmo considerando a aversão do psiquiatra de Viena a alguns dos princípios metodológicos sustentados por Charcot35.

Por outro lado, sabemos que esta situação começa a mudar a partir de 1888. No dia 16 de março, Meynert faz uma comunicação diante da Sociedade de Médicos de Viena em que critica o uso de meios hipnóticos para fins de pesquisa e tratamento (Meynert, 1888a), opinião que será retomada três meses mais tarde em uma conferência dedicada inteiramente assunto (Meynert, 1888b). Nesta segunda conferência, realizada no dia 2 de junho, Meynert chega a afirmar que a hipnose é uma técnica irresponsável e que rompe inclusive com certos princípios fundamentais das ciências naturais. Neste mesmo ano, no prefácio à sua tradução da obra do médico francês Hippolyte Bernheim, Freud (1889) ataca frontalmente Meynert, que, por sua vez, lhe responde um ano mais tarde em uma conferência que toma justamente como objeto a questão das neuroses traumáticas (Meynert, 1889). Nesta ocasião, em tom claramente irônico, Meynert lamenta durante sua intervenção que Freud, tendo recebido "uma rigorosa formação fisiológica", tenha se tornado um "dogmático em termos científicos". Somos levados a crer que, nessas condições, a relação entre ambos foi pouco a pouco degradando, o que talvez explique a hostilidade que seria mais tarde expressa por Freud em seus textos autobiográficos – ainda que não justifique a imputação dessa hostilidade como algo presente já em 1886 e menos ainda como sendo determinante na recepção e encaminhamento do debate suscitado por sua conferência sobre a histeria masculina.

Chegamos, nesse momento, à intervenção de Bamberger, de quem Freud havia sido aluno durante sua formação médica36. Os relatos mais completos dos comentários deste pesquisador se encontram publicados na Wiener medizinische Presse e no Wiener medizinische Blätter. Como podemos ler na versão aqui traduzida, Bamberger questiona quão novas seriam as contribuições de Charcot, assim como a relação de analogia estabelecida por este último entre os casos de Railway Spine e aqueles de histeria, afirmando ser o estabelecimento deste paralelo uma atitude precipitada. A partir das demais versões, notamos que Bamberger também critica a distinção entre grande e pequena histeria, definidas, respectivamente, pelas suas formas completas e incompletas, chamando a atenção para o fato de que, mesmo em casos graves, os ataques podem se mostrar ausentes. Em relação à histeria masculina, o mesmo pesquisador confirma, na esteira de seus colegas, que se trata de uma afecção já bastante conhecida, não chegando, portanto, a questionar a sua existência. Por fim, ao atribuir a fatores hereditários o valor de causa determinante, o trauma enquanto causa eficiente dos sintomas histéricos será indiretamente questionado. Neste caso, notamos que o comentário feito por Freud em 1925, acerca da recepção de sua fala, não parece muito distante da realidade, já que Bamberger de fato considerou o conteúdo de sua conferência como "pouco crível" (apesar de não haver indícios de que tenha recorrido explicitamente a esses termos).

Enfim, terminamos com Leidesdorf, que parece também emitir opiniões de forma aparentemente técnica e conceitual, sem recurso à ironia ou ao desdém que o leitor poderia esperar a partir dos relatos oferecidos por Freud, Wittels ou Jones. Sabemos que, em 1885, Freud havia trabalhado sob a supervisão de Leidesdorf no Asilo Privado (Privatheilanstalt) de Oberdöbling, instituição dirigida na época por Heinrich Obersteiner. Sabemos também, como consta em um dos seus relatórios, que neste estabelecimento a sugestão hipnótica era empregada como meio terapêutico no tratamento de algumas doenças mentais, o que nos leva a pensar que Leidesdorf era no mínimo simpático a este tipo de abordagem (Obersteiner, 1891).

Pois bem: em seu comentário, este pesquisador afirma ter observado repetidas vezes pacientes que, "após acidente em estradas de ferro, apresentam afecções graves da medula espinhal e paralisia progressiva", mas que tais afecções "não poderiam ser de forma alguma confundidas com histeria". Aparentemente, considerando as patologias evocadas por Leidesdorf, percebemos que a noção de trauma não está sendo aqui considerada em seu aspecto psicológico, quer dizer, em termos de "choque psíquico", mas sim em seu aspecto anatômicos, ou seja, em termos de choque mecânico. Na sequência, concordando com Bamberger, o psiquiatra acrescenta que fenômenos histéricos talvez possam ser desencadeados por traumas, mas, visto que do ponto de vista clínico não é possível medir com exatidão o alcance das alterações em jogo, seria arriscado atribuir a este fator o estatuto de causa para a histeria.

 

4. Considerações finais

Como já mencionado, uma das razões pelas quais Ellenberger se dispôs, em 1968, a fazer seu estudo crítico acerca da conferência sobre a histeria masculina foi a suposição de que se tratava de um tema cujos mal-entendidos seriam "fáceis de elucidar". Porém, cinquenta anos mais tarde, tratando da mesma conferência e dos mesmos mal-entendidos, podemos dizer com segurança que não se trata de uma elucidação tão fácil quanto o autor parecia na época admitir.

No que se refere ao contexto brasileiro, somos levados a pensar que a conferência de Freud continua suscitando uma série de mal-entendidos. Isso não apenas em função da possível falta de acesso por parte de nossos leitores a fontes históricas confiáveis, mas também, e principalmente, pelo fato destes mal-entendidos comunicarem algo de importante a um certo número de praticantes e historiadores da psicanálise em nosso país. Notamos assim que, de alguma forma, o "mito" de origem da psicanálise parece se beneficiar da narrativa segundo a qual Freud teria sido vítima de perseguição, maus-tratos e zombaria diante da Sociedade de Médicos de Viena. Tal narrativa possuiria então, por si só, um grande poder de persuasão. Consequentemente, produções que vão mais ao encontro desta leitura tendem a ser mais facilmente acessíveis. Elas acabam circulando mais do que aquelas que matizam, problematizam, questionam e põem em contexto esse mesmo mito, privando-o, justamente, de seu apelo afetivo e retórico.

Neste sentido, consideramos que a conferência de Freud aqui traduzida e comentada pode ser entendida como um elemento bastante simbólico no campo da historiografia psicanalítica. Simbólico na medida em que se constitui como um episódio alçado à condição de caso elucidativo da relação entre a psicanálise então nascente e as práticas científicas de sua época – elucidação assumida e repetida sem que se fizesse recurso a material historiográfico, técnico e/ou documental compatível com a proporção da asserção em questão. Ao que tudo indica, foi assim que o ocorrido se transformou em mito fundador da recepção da psicanálise pela medicina (e até mesmo, através de uma extrapolação recorrente, pela sua época de uma maneira mais geral), num entendimento que só é sustentável se desconsideramos uma enorme massa de dados técnicos, clínicos e históricos que ponderam, contextualizam e mesmo refutam tal leitura. As expressões míticas deste episódio, acompanhadas de suas características imprecisões históricas, não deixam de demonstrar ainda o seu insólito poder de resistir por décadas nos relatos e no imaginário de pesquisadores de peso no campo da psicanálise e da historiografia psicanalítica – tudo isso a despeito da existência contemporânea de trabalhos historiográficos sólidos capazes de questionar esse viés de leitura. Torna-se, com isso, símbolo de uma certa maneira de a psicanálise se relacionar com a história e com as ciências37– atendo-se a mitos de origem e passando ao largo da verificação de sua procedência e robustez.

O próprio Ellenberger, no já referido artigo de 1968, parecia atento e este fenômeno ao afirmar que os mal-entendidos que organizam este mito "giram em torno de um tema central: o do herói mítico que aporta à humanidade um dom inestimável, mas que é, no entanto, rejeitado e maldito" (Ellenberger, 1968, p. 223). Sabemos o quanto a psicanálise recorre ao mesmo argumento, segundo o qual ela estaria sujeita à confrontação, ao ataque e à rejeição unicamente e justamente em razão de sua função heroica e da descoberta inestimável que segue sendo injustamente massacrada porque aponta para uma dolorosa "ferida narcísica da humanidade". Longe que estejamos de questionar a importância da descoberta psicanalítica e de seu valor, propomo-nos aqui a questionar os desvios e manipulações históricas que ratificam essa história ao custo de torná-la falsa; acreditamos que a psicanálise não precisa manipular a história para justificar seu valor, e nessa exata medida devemos nos opor a esse tipo de procedimento – para que a psicanálise sustente seu valor enquanto descoberta e enquanto prática, não a partir de mitos e lendas, mas a partir do valor (e da validade) de estudos minuciosos, vigilantes para que possam estar imunes aos vícios e preconceitos que se consolidaram ao longo de gerações de mal-entendidos.

Esperamos, com a tradução e os comentários oferecidos aqui, contribuir para que esse episódio da psicanálise seja abordado em outros termos que não aqueles dos "relatos heroicos" – o que, em nossa esperança e entendimento, contribuiria para superar a forma como a psicanálise (enquanto movimento e corporação) se aferra a um juízo, aparentemente autoinfligido, de isolamento, incompreensão e marginalidade.

 

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Endereço para correspondência

Caio Padovan
E-mail: caiopadovanss@gmail.com

Wilson de Albuquerque Cavalcanti Franco
E-mail: wilsondeacfranco@gmail.com

 

 

* Psicólogo pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), mestre em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutor em Psicopatologia e Psicanálise pela Université Paris Diderot (Paris 7). Atualmente pesquisador associado ao Centre de recherches psychanalyse, médecine et société (Paris 7) e professor de Psicologia clínica e psicopatologia na Université Paul Valéry Montpellier – França E-mail: caiopadovanss@gmail.com.
** Psicólogo e psicanalista, mestre e doutorando em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. E-mail: wilsondeacfranco@gmail.com.
1 Em termos de progressão de carreira, havia na Universidade de Viena os postos de Privat-dozent, Extraordinarius e Ordinarius. Para fins de tradução, estabelecemos aqui um paralelo com a progressão de carreira nas universidades brasileiras, entre professor auxiliar, associado e titular. A título informativo, lembramos que Freud se tornaria professor associado da Faculdade de Medicina em 1902 e titular em 1919.
2 Sociedade Real e Imperial de Médicos de Viena. As siglas "k. k.", kaiserlich und königlich, "imperial e real", eram usadas na época para designar o vínculo de uma determinada instituição ao regime Austro-Húngaro, composto pelo Império Austríaco (Kaisertum Österreich) e pelo Reino da Hungria (Königreich Ungarn).
3 Lupus des Larynx. Infecção de origem bacteriana que corresponde ao que hoje designamos Lupus vulgaris ou tuberculose luposa.
4 Fazemos aqui referência à segunda clínica psiquiátrica ligada ao Hospital de Viena, criada em 1875. Sobre o assunto, ver Lesky (1965, p. 380). Uma versão condensada dessa história se encontra em Wyklicky (1997).
5 Os dados expostos neste item foram retirados do registro oficial da seção "summarischer Bericht", publicado em Hajek, (1887, p. 147-8), e de Puschmann (1884).
6 O leitor irá sem dúvida notar, porém, que seu estilo nada tem a ver com aquele que normalmente é atribuído a Freud, o que se explica em função do caráter resenhístico deste relato em terceira pessoa que muito provavelmente não fora redigido pelo futuro psicanalista.
7 Segundo Freud, Meynert teria admitido em suas últimas palavras que ele mesmo teria sido "um dos mais belos casos de histeria masculina". A complicada relação estabelecida com Meynert a partir da segunda metade dos anos 1880 se revela em alguns comentários dirigidos por Freud a Fliess. A este respeito, ver em especial as cartas dos dias 19 de fevereiro e 29 de agosto de 1888 e do dia 12 de julho 1892 em Freud (1986).
8 Sabemos que esse texto será reeditado em 1928, no décimo-primeiro volume dos escritos reunidos de Freud, dando origem à versão que serviria de base às suas futuras traduções.
9 Estes dois termos, "unglaubwürdig" e "auffordern", foram traduzidos na Standard Edition inglesa como "incredible" e "to challenge" e, consequentemente, na Standard brasileira como "inacreditável" e "desafiar", termos que acabam dando um peso diferente à situação como um todo.
10 É provável que este "velho cirurgião" de quem Freud fala seja um dos dois chefes de clínica cirúrgica do Hospital Geral de Viena, Eduard Albert (1841-1900) ou Theodor Billrot (1829-1894). Sobre a história das diferentes clínicas que compunham o Hospital Geral de Viena, ver Tragl (2007).
11 Uma tradução inglesa com o título Sigmund Freud: His Personality, His Teaching & His School foi publicada em 1924 a partir de algumas correções sugeridas por Freud. Sobre o assunto, ver a carta de Freud a Wittels datada de 18 de dezembro de 1923, publicada em E. Freud (1980).
12 Como veremos mais adiante, este comentário não consta em nenhuma das transcrições disponíveis da conferência de Freud.
13 Ver outros comentários em Kris (1950), Bernfeld (1951) e Bernfeld e Bernfeld (1952).
14 Ambos os psicanalistas vinham trocando cartas desde 1963. A correspondência entre Ellenberger e Andersson fora editada por Élisabeth Roudinesco e Magnus Johansson em Correspondance entre Ola Andersson et Henri Ellenberger (1963-1976) e publicada em Andersson (1997).
15 Uma versão em inglês do mesmo artigo seria publicada mais tarde em Micale (1993).
16 Uma adaptação do texto para o inglês seria publicada um ano mais tarde em Chertok (1971).
17 Algumas contribuições menores podem ser encontradas em Trosman e Wolf (1973), Lebzeltern (1973), Sulloway (1979), Masson (1985), Rabain (1998).
18 Disfunção oftálmica caracterizada pela diminuição da acuidade visual. (Nota da tradução)
19 No original, lemos schreckenerrender, o que constitui um provável erro de digitação. Agradecemos aos editores da revista Natureza Humana, em particular a Alícia Toffani, por ter chamado a nossa atenção para este detalhe.
20 A partir desse ponto, o relator da sessão passa às considerações da banca, que compõem a discussão da comunicação de Freud. Não há separação entre as partes nem indicação dessa passagem na publicação original. (Nota da tradução)
21 Termo anatômico utilizado na época para designar o que hoje chamamos de "medula oblonga" ou "bulbo raquidiano". Trata-se da porção inferior do tronco encefálico responsável por fazer a ligação entre o encéfalo e a medula espinhal. (Nota da tradução)
22 Para uma história da instituição, ver Gesellschaft der Ärzte (1938).
23A respeito das especificidades do programa de pesquisa em neurologia criado por Charcot, ver: Charcot (1882b). Para uma visão mais ampla, ver Bonduelle, Gelfand e Goeltz (1995).
24 Acerca dos trabalhos de Charcot sobre as afasias, ver Gasser (1995). Para uma visão geral sobre o debate em torno das afasias na segunda metade do século XIX, ver Forest (2005).
25 Briquet será um dos primeiros a estudar os fenômenos histéricos de maneira sistemática, estabelecendo uma classificação rigorosa de suas manifestações clínicas, definindo o curso e a natureza dos seus sintomas, estabelecendo uma etiologia e os princípios do seu tratamento. A este respeito, ver Trillat (2006, pp. 84-87).
26 Em uma de suas Lições das terças-feiras, proferida no dia 20 de março de 1887, Charcot dirá: "La méthode de l'étude des types est fondamentale en nosographie […]: elle est indispensable et la seule efficace pour faire sortir du chaos des notions vagues une espèce morbide déterminée. L'histoire de la Médecine, qui représente une grande et une longue expérience, le démontre. […] alors la maladie créée par la méthode des types apparaît sous un jour nouveau. Le champ s'élargit ; elle prend plus de place dans la pratique et, pour le plus grand bien des malades, eux-mêmes, le médecin s'efforce de la reconnaître alors même qu'elle en est à ses premiers rudiments". A este respeito, ver a décima terceira lição publicada em Charcot (1892, p. 196).
27 Dois anos mais tarde, este trabalho será incorporado em seu monumental Estudos clínicos sobre a histero-epilepsia ou Grande histeria (Richer, 1881). A segunda edição revisada e consideravelmente aumentada desta mesma obra foi publicada em 1885, ano em que Freud fez sua viagem à Paris (ver Richer, 1885).
28 Em suas lições traduzidas por Freud em 1886, Charcot dedica uma dela à questão da chamada doença de Basedow. A este respeito, ver a vigésima oitava lição em Charcot (1886, pp. 347-357).
29 Sobre o assunto, ver Meynert (1888). Uma discussão mais ampla sobre o mesmo problema se encontra em Mayer (2013).
30 Neste tratado, o autor dirá que "a histeria é uma afecção do útero e, como todas as doenças deste órgão, ela não pode ser observada senão em mulheres. Pela mesma razão, o homem é o único exposto às afecções especiais do testículo, do pênis e da próstata" (Louyer-Villermay, 1816, p. 11).
31 Como demonstra o historiador Carlo Bonomi em alguns de seus artigos, em particular em Bonomi (1998), o próprio Freud a praticara. Para um trabalho de síntese publicado na época a este respeito, ver Tissier (1885).
32 Curiosamente, ao abordar a predisposição à histeria e sua transmissibilidade, Charcot não faz menção aos trabalhos de Bénédict-Augustin Morel (1809-1873), conhecido pelas suas teses sobre a degenerescência, mas sim aos de outro médico francês, Prosper Lucas (1808-1885).
33 A proporção será apresentada aqui nos termos de 50 sobre 1.000 casos.
34 De fato, como havíamos chamado à atenção mais acima, Leyden e Strümpell já discutiam em seus trabalhos estes mesmos fenômenos a partir de diversas outras fontes, sobretudo inglesas. Para uma contextualização a este respeito, ver os dados trazidos por Guinon (1889). No segundo capítulo de sua obra, inteiramente dedicado ao problema do choque nervoso, Guinon faz referência a diversas fontes primárias e secundárias sobre o assunto.
35 Ver a este respeito o prefácio de Meynert ao seu tratado de psiquiatria, no qual os princípios de um diagnóstico exclusivamente clínico das doenças do sistema nervoso, como aquele defendido por Charcot (1882b), serão duramente criticados (Meynert, 1884).
36 Freud seguiu os cursos de Bamberger durante três semestres, entre 1877 e 1879, nas disciplinas de "Patologia médica especial, terapia e clínica" e "Exame clínico por meio de instrumentos". A este respeito, ver Hemecker (1991).
37 É importante salientar que o plural que adotamos em ciências dá notícia de que, para nós, ciência não é uma prática uníssona, unívoca e unidirecional, mas um conjunto de várias práticas, regulando-se e afetando-se mutuamente.

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