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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.20 no.2 São Paulo jul./dez. 2018

 

DOSSIÊ

 

Algumas considerações sobre a questão da transferência e da contratransferência na clínica do suicídio

 

Some considerations about the question of transference and countertransference in the clinic of suicide

 

 

Flavio Del Matto Faria*

Universidade São Judas Tadeu (USJT)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Nos dias atuais há suficiente conhecimento a respeito do fato de que a teoria winnicottiana do amadurecimento expandiu as possibilidades da clínica para muito além dos limites intrínsecos à técnica derivada da psicanálise tradicional. Entre muitas outras contribuições, a psicanálise encontrou nessa teoria elementos essenciais, teóricos e técnicos, para que pudesse apresentar maior efetividade no tratamento de pacientes suicidas. Por outro lado, essa efetividade tem um custo que nos é cobrado, também, na forma da exigência para que reexaminemos as questões relacionadas à transferência e à contratransferência. O objetivo deste trabalho é fazer o exame das questões relativas a esses dois conceitos no tocante à prática clínica junto aos pacientes que apresentam tendências suicidas. Parte-se do pressuposto de que tais pacientes apresentam, invariavelmente, falhas primitivas de integração, que exigirão regressão na transferência e o consequente trabalho, intenso, do analista com os elementos contratransferenciais.

Palavras-chave: suicídio; psicanálise; clínica psicanalítica; transferência; contratransferência.


ABSTRACT

Nowadays there is enough knowledge about the fact that Winnicott’s theory of maturation has expanded the possibilities of clinical practice far beyond the limits intrinsic to the technique derived from traditional psychoanalysis. Among many other contributions, psychoanalysis found in this theory essential, theoretical and technical elements, so that it could present greater effectiveness in the treatment of suicidal patients. On the other hand, this effectiveness has a cost that is also charged to us in the form of the requirement for us to reexamine issues related to transference and countertransference. The objective of this work is to examine the questions related to these two concepts regarding clinical practice among patients with suicidal tendencies. The assumption is that such patients invariably have primitive integration failures, which will require regression in the transference and the consequent intense work of the analyst with the countertransferential elements.

Keywords: suicide; psychoanalysis; psychoanalytic clinic; transference; countertransference.


 

 

A teoria do amadurecimento de Donald Woods Winnicott possibilitou que a questão do suicídio, para a qual a metapsicologia não havia apresentado suficiente aporte teórico e técnico, pudesse ser integrada ao campo de atuação da clínica psicanalítica. As contribuições de Winnicott para a psicanálise ultrapassam de longe o âmbito do suicídio, porém, na medida em que o olhar do clínico pôde se estender para além dos limites da pulsionalidade e das representações com que essa teoria explicava as origens do psiquismo, o suicídio pode ser visto como um dos problemas passiveis de serem pesquisados através dessa nova perspectiva.

Ao incluir o papel do ambiente como elemento facilitador para que a tendência inata ao amadurecimento possa se efetivar ele, implicitamente, propôs uma redescrição de alguns dos conceitos básicos da teoria, sem que a psicanálise assim redescrita precisasse deixar de ser psicanálise (Fulgencio, 2010). Essa redescrição, feita no âmbito do que Loparic (2006) considera como uma mudança paradigmática, promoveu o deslocamento do Complexo de Édipo para fora do eixo estruturante do psiquismo primitivo, de modo que agora o bebê winnicottiano podia escorregar, sem perder seu sentido humano, do leito materno para alojar-se no colo da mãe.

Assim humanizado e aliviado da tarefa de ser visto como dotado de uma sexualidade precoce e de uma organização psíquica que lhe exigiria habilidades mentais de cuja existência jamais poderia suspeitar, o bebê, alojado no colo materno, foi lançado na realidade e na inconsciência não representacional da dependência primitiva. Perdeu o paraíso da satisfação dos instintos, mas ganhou um mundo e um jeito de ser bem mais condizentes com sua real condição de existência. Vistos por essa perspectiva, é nessa condição de realidade que precisam, e devem, ser compreendidos todo os pacientes que chegam ao clínico, mas principalmente aqueles não tiveram a sorte de terem sido alojados, nos começos, num colo do ambiente-facilitador.

O ser humano que busca, de alguma forma, antecipar o inevitável fim de sua existência está lançado desde sua condição de ter de viver uma não vida, na mais aterradora e impensável agonia. No suicídio, que talvez possamos pensar como resultado da absoluta impossibilidade de encontrar sentidos, está a expressão máxima da incomunicabilidade daquele que não consegue existir na necessária dependência do humano. Perdeu-se o fio dos sentidos possíveis do ser e do não ser e a morte procurada pelo suicida não é a morte de quem pode chegar ao final de uma existência, na qual a condição de não estar vivo integra o repertório da experiência pessoal, numa consciência da finitude que ilumina a experiência da vida e que pode se estender inclusive na consciência do existir das futuras gerações. Para aqueles que podem ser a morte é, de fato, um final carregado de sentidos. Segundo Winnicott (1988, p. 154), "um estado de não-estar-vivo futuro, tingido pelas cores do estado – de não-estar-vivo originário, que antecedeu a solidão essencial".

A esse indivíduo, integrado na linha identitária e instintiva a partir da dependência primitiva de um ambiente-facilitador, a urgência pelo morrer do suicida pode ser até mesmo compreensível, em certos aspectos, mas jamais aceitável. Quem pode se sentir real em sua condição de ser-no-mundo pode estender-se no tempo e no espaço num modo de ser sempre nascente e sempre morrente, que permeará suas relações consigo mesmo e com o mundo, a partir de um si-mesmo integrado.

Nesse sentido, é possível afirmar que aquele ser humano que pode morrer não precisa morrer. Portanto, não há porque nos perdermos em discussões inúteis a respeito do livre-arbítrio do suicida, pois só podemos discutir a condição de não-ser a partir de nossa condição de ser-no mundo e esse sentimento de ser no mundo não pertence ao âmbito do suicídio que se configura como um envio do corpo para a morte já ocorrida no psiquismo. No modo como aqui estamos tratando a questão do suicídio, as coisas poderiam ser colocadas de uma maneira enganosamente simples: há uma condição de ser (consideradas aqui todas as variações) e há uma impossibilidade de ser que nos lança na agonia impensável. Coragem de morrer, altruísmo, desapego da vida, covardia ou qualquer outro termo que possamos empregar para definir a procura urgente pela morte, pertence mais ao domínio do mental – que nem sempre é o campo onde se configura a saúde – do que ao campo das realizações do ser do homem. Porém, essas conceituações podem, e frequentemente o fazem, permear e configurar a transferência e a contratransferência na clínica.

Na clínica construída a partir da metapsicologia, edificada sobre o pressuposto de que as bases de uma realidade psíquica podem ser consideradas, desde sempre, como já estabelecidas, a comunicação que supostamente se estabelece entre dois aparelhos psíquicos (ou entre duas pessoas inteiras) permite que a transferência se opere quase em tempo integral no campo das representações e no jogo do "como se" do fazer interpretativo que domina a cena. Nessa clínica, na maior parte do tempo, os papéis do analista e do paciente podem parecer mais claros e definidos. Na década de 1950, Winnicott (1955/2000) comenta a respeito desse modo de trabalho na transferência que partia do pressuposto de que todos os pacientes haviam tido bons começos e haviam estruturado um ego a partir de cuidados iniciais suficientemente bons: "Era possível, assim, aos analistas falarem e escreverem como se a primeira experiência do bebê fosse a primeira mamada, e como se a relação de objeto entre a mãe e o bebê fosse o primeiro relacionamento significativo" (Winnicott, 1955/2000, p. 393).

Sob o ponto de vista que pretendo apresentar aqui, essa clínica, que tomo a liberdade de chamar de clínica da presentidade, em que a existência do outro (paciente) está sempre suposta pelo analista, pode ser perigosa e até mesmo fatal, em algumas circunstâncias, para o paciente suicida cujo falso si-mesmo patológico é o único modo possível de operar, ou para aquele que sem ter conseguido ainda organizar defesas consistentes está sempre a pique de se suicidar como única forma de escapar ao aniquilamento devido à submissão do self. Para esses indivíduos, a falha do ambiente é sempre registrada como uma intrusão. Esse tipo de paciente estará sob risco se suas atuações, sejam elas configuradas na expressão motora do adolescente ou em discursos aparentemente integrados e profundos de um falso si-mesmo alojado na mente, encontrarem no setting apenas o recurso interpretativo que, de diferentes modos, e sendo esse um modo de agir a contratransferência, servirá para atestar a incomunicabilidade de seu sofrimento.

Posso citar aqui o caso de um paciente extremamente bem dotado intelectualmente, pessoa de real valor na sua área de atuação, que frequentemente avançava em profundas e atraentes considerações sobre os mais diversos assuntos, a ponto de levar seu jovem analista a pensar que não havia área do conhecimento que ele não tivesse explorado, tendo em algumas ocasiões levado o profissional a se perguntar se seria "suficiente" para atendê-lo, pois chegara a sentir-se impotente diante do assombroso conhecimento esgrimido pelo outro, conforme pôde me contar. Esse analista viu-se, em mais de uma situação, tentado a interpretar essas demonstrações de prodígio intelectual como sendo um desafio de alguém que pretendia subjugá-lo com seu falo prodigioso, no que precisou ser contido pelo supervisor. Em uma dessas supervisões, quase acidentalmente, esse analista contou que vira o paciente, por diversas vezes, enchendo os bolsos com as balinhas que ele deixava disponíveis na sala de espera. A partir daí foi possível descortinar uma série de comportamentos daquele homem, que atestavam a intensidade de sua urgência em se ver atendido em aspectos muito mais primitivos e não intelectualizados, mas que haviam escapado ao olhar atônito do analista, contratransferencialmente quase aniquilado pelo sentimento de impotência intelectual que o outro lhe provocava. Quando isso pôde ser trazido, através de sucessivas aproximações, ao contexto da análise, o trabalho teve avanços significativos que repercutiram de modo consistente na vida pessoal e familiar do paciente.

Certamente, tais situações, quando ocorrem na clínica, podem ser compreendidas de muitas formas diferentes, mas o que gostaria de frisar aqui é que se perdermos de vista os aspectos mais básicos e primitivos subjacentes a elas, poderemos ficar cegos para o que realmente importa em termos da possibilidade e de esperança de que um si-mesmo venha a se integrar a partir de uma experiência de continuidade que deverá ser sustentada no tempo pelo analista.

Na clínica com pacientes suicidas é bastante alto o risco de nos deixarmos envolver pelo sentimento de impotência diante da agonia explicitada ou mascarada pela ilusória integração do falso si-mesmo. Nas duas situações, se não nos propusermos a rever nossas questões pessoais e também nossa técnica, conforme ilustra Winnicott (1964/1989) ao relatar um de seus casos poderemos com alguma facilidade abandonar o paciente à própria sorte, sendo tal abandono mascarado, em alguns casos, pela diligente procura por parte do clínico, de recursos institucionais e medicamentosos que, mesmo sendo necessários, não podem substituir a presença viva do analista, que deverá permanecer sustentando a situação no tempo. Nessas situações, entendo que rever nossa técnica seja quase um sinônimo de abandonar toda a técnica, pois quando se considera o primitivismo das necessidades desses pacientes o que se precisa é corpo, e não ideias. De presença, e não terceirização dos cuidados. De voz, e não exatamente das palavras certas.

Num outro sentido daquilo que afirmei acima, os riscos de nos deixarmos levar pelo sentimento de impossibilidade de toda ajuda podem nos conduzir à fuga para as compreensões teorizantes a respeito do suicídio e incorrermos em discursos fáceis, como também já afirmei, sobre o arbítrio, sobre a complexa multiplicidade de causas, incluindo-se as psicológicas, sociológicas, genéticas e muitas outras mais, para o suicídio. Emprestando-lhe, desse modo, sentidos inócuos em termos de cura, para apaziguarmos nossa própria agonia diante do impensável.

Não estou afirmando aqui que todas essas diferentes propostas de interpretação do fenômeno sejam sem valor. Elas são sem valor para o suicida e para o clínico que se defronta com a realidade que o pensamento não pode abarcar. Até mesmo porque o discurso da multiplicidade de causas me parece mais representativo da fragmentação de nossos processos mentais diante do que não pode ser abrangido pelo pensamento do que um caminho para encontrarmos uma resposta que as integre.

O suicídio está no limite de toda a técnica e de toda a possibilidade do fazer mentalizador. Se ele é de fato o envio do corpo para uma morte já ocorrida no psiquismo, não será escudado por processos mentais ou por ações pautadas em um rigor técnico irrepreensível que poderemos ser úteis. Tampouco nos auxiliará o conhecimento da multiplicidade de vertentes explicativas sobre o fenômeno. Esses elementos apenas nos fragmentarão e nos impedirão de nos integrarmos na espontaneidade, caso a tenhamos, pois se não a tivermos não poderemos nos identificar com o não ser do paciente sem nos perdermos juntamente com ele em sua morte já ocorrida. Não estou afirmando aqui que toda a técnica deva deixar de existir ou que basta um abraço espontâneo para que tudo se resolva. Mas quero me arriscar a dizer, de modo quase paradoxal, que toda a teoria e toda técnica devem estar sempre presentes, como horizonte nas possibilidades de nosso si-mesmo, mas nunca sendo o recheio de nosso gesto de cura. Não devemos, e não podemos, em benefício de nossos pacientes, nos transformar em uma técnica encarnada, pois se o fizermos teremos nos perdido de nós mesmos. Entendo que por isso Winnicott tenha dito que não queria ter seguidores. Referia-se talvez a esse fazer clínico no qual a realidade do analista se perde numa colagem produzida por um falso si-mesmo, dos modos e sentidos tomados de outro. Na clínica, e especialmente na clínica do suicídio, é necessário sermos inteiros sendo nós mesmos (único modo de ser real) para que possamos compreender a transferência e tentando minimizar os riscos dos elementos contratransferenciais.

Se quisermos pensar em termos do conceito de transferência, teremos de considerar com especial atenção em como ela se opera em termos dos aspectos primitivos, não integrados ou em termos do desfazimento da integração das defesas construídas contra a agonia. Alguns desses elementos só podem ser trazidos ao setting numa comunicação não verbal, que pode estar oculta nas entrelinhas das verbalizações do paciente, tais como um olhar que não nos vê, porque não há de onde olhar, e que se mantém ao longo de um discurso muitas vezes claro e objetivo, da parte do paciente, que pode até mesmo nos oferecer insights significativos.

Permito-me ilustrar com alguns aspectos de um caso clínico que demandou dez anos de trabalho e que, após esse tempo, teve um desfecho satisfatório. O paciente era um rapaz possuidor de uma inteligência rara, bastante crítico, fluente em três idiomas que aprendera praticamente sozinho, professor de um desses idiomas em cursos livres nos quais conseguia se manter durante pouco tempo, pois a relação com os alunos se configurava para ele como um encontro penoso, desprovido de qualquer interesse que não fosse, assim ele o dizia, o retorno financeiro de que precisava para conseguir se tornar independente dos pais. A família desfrutava de boa condição financeira, sendo o pai um homem que apresentava um quadro depressivo de média intensidade, renitente, e a mãe uma mulher que se mostrava muito forte na administração da casa e na educação dos filhos. Ambos os pais também eram bem-dotados intelectualmente, sendo o homem engenheiro, e a mulher formada em matemática, profissão que ela nunca exercera. O paciente, na época de sua chegada à clínica, contava 22 anos e cursava faculdade de ciências humanas em uma universidade pública. Sua queixa na ocasião era a respeito de sua incapacidade para terminar o curso de graduação, sua inconstância nos empregos como professor, o ódio que nutria contra os pais devido à impossibilidade de conseguirem estabelecer qualquer relacionamento em que não o culpassem por algo e, finalmente, seu ódio de si mesmo por não conseguir concluir seu curso e de se sentir sempre dependente daqueles pais com quem era praticamente impossível conviver. Ele consumia álcool e maconha em grandes quantidades e não conseguia se ver na vida sem o apoio dessas substâncias. Não vou me estender aqui em mais dados biográficos do rapaz, apesar de haver muito material disponível sobre esse caso. Para os objetivos deste trabalho, penso que basta dizer que ele fez sua primeira tentativa de suicídio, das três que faria ao longo do tratamento, após quatro sessões iniciais, quando fechamos nosso contrato de trabalho. Foi uma tentativa relativamente leve, com ingestão de medicamentos tranquilizantes e álcool da qual se restabeleceu com rapidez. Esse episódio serviu para me alertar do que viria pela frente. Ao longo de um trabalho que exigiu de mim um grande empenho, com frequentes contatos com o psiquiatra que o atendia, entrevistas periódicas com os pais em sua presença e nas quais ele conseguia expressar todo o seu ódio contra o progenitor (servindo-se de minha presença como se me usasse como testemunha e como alguém que ao mesmo tempo pudesse protegê-lo de possíveis retaliações), sessões extras cuja necessidade era sempre questionada pelos pais que se mostravam avaros quanto aos gastos em relação às despesas com médico e psicólogo, ele conseguiu estabelecer algum relacionamento com uma namorada, obteve colocação mais estável em uma escola formal e iniciou um avanço considerável no curso universitário. Sua autoestima melhorada permitiu que ele reduzisse o consumo de álcool, mas manteve o uso da maconha. Nesse período, eu mesmo, já bastante desgastado pelas demandas constantes, vi com alívio aquele progresso e não me opus com a veemência necessária quando os pais se recusaram a continuar pagando por três sessões semanais, alegando que ele "já estava bem". Conversando com o psiquiatra, que corroborava com o discurso paterno, acedi quanto à redução das sessões, uma vez que ele mesmo se dizia bem melhor "em tudo". Seis meses depois, quando os pais novamente reduziram as sessões de análise para uma vez por semana, esse paciente fez uma tentativa de suicídio extremamente grave, tendo de ser internado em hospital psiquiátrico. Após esse episódio, fiquei sabendo que ele convencera o psiquiatra a lhe fornecer receitas com uma grande quantidade de medicamentos que misturou a outros que conseguira de diferentes fontes. Uma nota importante é que essa tentativa ocorreu na noite que antecedia sua sessão comigo e ele tinha conhecimento de que quando atrasasse, ou não comparecesse, eu entraria em contato para saber o que estava ocorrendo, pois, apesar de minha anuência com a primeira redução no número de sessões, não estava convencido de que ele poderia enfrentar nova alteração na frequência dos nossos encontros. No hospital psiquiátrico onde ficou aproximadamente vinte dias não lhe permitiam receber a visita do analista, tendo os pais ouvido do responsável do setor a justificativa de que "se analista fosse bom ele não estaria aqui agora". O recurso foi então, visitá-lo como alguém agregado à família e assim consegui vê-lo duas vezes por semana até que saísse da instituição. Nessa ocasião pude presenciar cenas incomuns da relação entre ele e os pais. Em certo encontro, pai e filho em pé conversavam virados para lados opostos, cada qual falando de coisas absolutamente discrepantes, como se ignorassem mutuamente a presença do outro, mas suas mãos se tocavam levemente, um suave roçar com as pontas dos dedos, sendo esse o único contato efetivo entre os dois. Entendi esse fato como expressão, ao mesmo tempo, de uma impossibilidade angustiante de comunicação e de uma ansiedade extrema por um contato que não poderia ser feito pelas palavras, único recurso de que a família parecia dispor. Esse caso teve, como já afirmei, um desfecho satisfatório. O rapaz conseguiu concluir seu curso nove anos depois de iniciado, atingiu alguma estabilidade financeira e manteve um relacionamento amoroso estável. Anos depois, quando incidentalmente o encontrei no metrô, ele realmente parecia bem, apresentando-se com um discurso bastante diferente de seus começos comigo. Gostaria de frisar apenas alguns aspectos do manejo que se fizeram necessários e me ficaram mais claros apenas depois de sua segunda tentativa de suicídio: a impossibilidade alegada de terminar o curso era para esse paciente um sinal de sua esperança de conseguir ainda se manter em uma relação de dependência emocional efetiva dos pais. Tornar-se independente seria jogar por terra todas as esperan&cce dil;as de conseguir tal sustentação. Nesse aspecto, sua incompetência acadêmica era expressão inconsciente de sua esperança. Esse apoio ele conseguiu, em parte ao menos, de mim, quando, após sua segunda tentativa de se matar, me atentei mais propriamente aos aspectos do manejo, mesmo quando precisasse lhe fazer alguma interpretação. Ele precisava comunicar necessidades muito primitivas, mas não encontrava caminho para fazer tal comunicação e somente pôde fazê-lo de forma mais efetiva quando correu o risco de realmente destruir o self total. E isso pode acontecer porque inconscientemente ele ainda tinha esperança de que eu estivesse por ali, apesar de eu mesmo ter falhado de modo claro quando consenti no abrandamento do ritmo de nossos encontros. E porque pude estar quando mesmo tendo falhado e tendo sido tomado pelo sentimento de inutilidade de todo o trabalho feito até sua tentativa de se matar, permaneci com ele, em alguns momentos mesmo sem ter muita clareza dos porquês de minha permanência. Penso que esses dados podem ser compreendidos e interpretados de múltiplas formas, mas não abro mão de uma delas: permaneci porque estava identificado muito primitivamente com sua necessidade de ser e a partir dessa identificação, abandoná-lo teria sido também um modo de me abandonar. Nesse aspecto, vale lembrar os riscos apontado por Winnicott de um trabalho desse tipo quando nos pergunta, referindo-se à questão do uso ou não do reasseguramento: e se o analista também fosse um suicida?

 

Referências

Fulgencio, L. (2010). Aspectos gerais da redescrição winnicottiana dos conceitos fundamentais da psicanálise freudiana. Psicologia USP, 21(1), 99-125.         [ Links ]

Loparic, Z. (2006). De Freud a Winnicott: aspectos de uma mudança paradigmática. Winnicott E-Prints, 1(1), 1-29.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1988). Natureza Humana. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1964). A importância do setting no encontro com a regressão na psicanálise. In D. W. Winnicott, Explorações Psicanalíticas. Porto Alegre: Artmed, 1989.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1955). Formas clínicas de transferência. In D. W. Winnicott, Da Pediatria à Psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago, 2000.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência
Flavio Del Matto Faria
E-mail: flaviofaria5982@gmail.com

 

 

* Doutor e mestre em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor e supervisor clínico do Instituto Brasileiro de Psicanálise Winnicottiana, professor e supervisor clínico do curso de psicologia da Universidade São Judas Tadeu (USJT). Fundador e coordenador do Programa de Atenção às Tentativas de Suicídio (PROATES-USJT). Especialista em psicoterapia psicanalítica de adolescentes pelo Instituto Sedes Sapientiae. Professor do curso "Adolescência diferentes abordagens" (Licenciado) – Instituto Sedes Sapientiae. Psicanalista associado do IBPW. Membro do grupo de pesquisa em filosofia e práticas clínicas na Unicamp/IWA. Psicanalista em consultório particular.

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