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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.21 no.1 São Paulo jan./jun. 2019

 

NOTA EDITORIAL

 

Dossiê Heidegger: Variedades da intencionalidade – transcendência e acontecimento apropriativo

 

 

Alexandre O. Ferreira

Unifesp

 

 

O dossiê Heidegger, publicado na presente edição da revista Natureza Humana, surgiu dos debates ocorridos durante o XXII Colóquio Heidegger, na Unifesp, cujo tema versa sobre a radicalização operada por Heidegger do conceito fenomenológico de intencionalidade.

Como se sabe, em Husserl a intencionalidade é tomada como uma estrutura transcendental cujos elementos essenciais, a consciência e seus atos intencionais (noese) e o objeto no seu modo de ser intencionado (noema), constituem os diversos nexos de significação no interior dos quais as coisas se mostram a nós segundo determinados modos de objetividade. Nesse contexto a filosofia busca revelar o horizonte total de todos os objetos possíveis que se perfaz na dialética entre noese e noema. Heidegger radicaliza a noção de intencionalidade ao inseri-la na questão do ser, na qual a abertura de sentido é pensada como sendo anterior a dicotomia entre noema e noese, sem que haja a necessidade de um sujeito ou consciência que a constitua ou de um substrato que lhe sirva de fundamento. Assim, o título do dossiê aponta para os dois eixos principais da radicalização ontológica da intencionalidade em Heidegger: a transcendência, radicada nas "extases" temporais do Dasein no assim denominado "primeiro Heidegger" e, após a Kehre, o acontecimento apropriativo, o movimento de mútua apropriação entre homem e ser (Ereignis), pensada a partir dos envios epocais do próprio ser.

Os textos do dossiê, seguindo a tradição dos Colóquios Heidegger, vão além de uma mera reprodução exegética da obra de Heidegger, posicionando-se de modo crítico em relação ao autor e inserindo-o em uma discussão filosófica mais ampla.

Assim, baseado em textos que antecedem Ser e Tempo e abrem caminho para a elaboração da ontologia fundamental, Tito Marques Palmeiro, em seu ensaio "Intencionalidade e a transposição do pensamento", explora os diversos usos que Heidegger faz da palavra transposição (Versetzung) e suas variantes como modo de se aproximar da noção tradicional de intencionalidade e, ao mesmo tempo, de abandoná-la. Embora não haja um sentido unívoco do termo em Heidegger, ele parece ser empregado em vários momentos de sua reflexão filosófica. Segundo o autor, Heidegger nunca teria adotado a noção de intencionalidade husserliana, nem a teria transposto para âmbito da existência do Dasein, por se mostrar insuficiente para o projeto inicial de seu pensamento que abre caminho para analítica existencial, a saber: a elaboração de uma filosofia da vida. Em Husserl existe o projeto de retorno as coisas mesmas a partir de um afastamento da tese do mundo natural e um retorno à consciência e seus atos intencionais. Esse retorno garantiria o acesso a uma região eidética que pode ser apreendida imediatamente pela intuição, mas não nos garantiria o acesso a vida em sua profundidade e excepcionalidade, na qual se funda a verdadeira atitude filosófica. Assim o termo transposição indicaria um movimento que, ao contrário de uma análise fenomenológica da intencionalidade, "surge como uma qualificação do caráter tentativo de um pensamento que procura se aproximar do que se trata de pensar, sem nele se perder, justamente porque o que deve ser pensado resiste".

Robson Ramos dos Reis, em seu artigo "Fenomenologia zoocêntrica e normatividade", discute o problema, ainda pouco explorado, acerca do paramundo dos animais, abordado por Heidegger no texto Conceitos Fundamentais da Metafísica, cujos temas são desdobramentos da ontologia fundamental. O autor insere Heidegger nas discussões biológicas da época, tais como desenvolvidas pelos biólogos e fisiólogos Uexkühll, Driesch e Spemann, para os quais os diversos organismos não se reduzem a meras respostas mecânicas a um mundo exterior previamente dado, mas possuem certa intencionalidade e constituem um mundo próprio, um paramundo dotado "de um análogo normativo à normatividade da intencionalidade existencial [humana]". O organismo é pensado como uma unidade pulsional intencional que antecipa possíveis interações com o meio ambiente e, em certa medida, delineia as regras que permitem a sobrevivência do indivíduo e da espécie. Assim os animais, como constituintes de paramundo, não podem ser pensados nem como meros subsistentes e nem como utensílios.

A fenomenologia do paramundo animal abriria um campo para investigação ontológica da vida levando a algumas questões fundamentais acerca, por exemplo, da normatividade do paramundo; da interação entre o mundo humano e o paramundo animal; da influência do paramundo animal no desenvolvimento histórico do mundo humano e da possibilidade de se pensar um historicidade das espécies, dotando as divisões biológicas das espécies de um caráter ontológico e não meramente classificatório.

Irene Borges Duarte, em seu belo texto "A apropriação propícia – pensar e amar como acontecimento em Heidegger", aborda a radicalização da intencionalidade no Heidegger tardio, mostrando o caráter primordial da tonalidade afetiva do amor na abertura da compreensão do ser e na inauguração da história do ser. Partindo da análise de alguns poemas de amor de Heidegger a Hanna Arent (magistralmente traduzidos pela autora e nos quais surpreendentemente se misturam pensamento do ser e erotismo) e passando pela análise das paixões em Nietzsche, a autora mostra a analogia que Heidegger estabelece entre o amor erótico e a noção de Ereignis como "acontecimento propício" no qual se dá a mútua apropriação entre homem e ser. Assim como amar, segundo uma passagem citada de Heidegger "é a vontade de que o amado seja, que ache a sua essência e nela se essencie [Wesen, wese]". Assim também o pensar propício (Ereignis-Denken) "é um querer que o Ser seja, que haja Ser e um entregar-se-lhe em propriedade, que é aquilo em que consiste o seu acontecer enquanto tal". Seria mediante essa mútua apropriação e entrega que irrompe o momento cairológico e inaugural no qual se dá a história e reside a possibilidade do surgimento de uma outra história do ser, uma saga do ser no qual o ser vem à palavra no dizer poético.

Por sua vez, Bernhard Sylla, em seu ensaio "A esperança depositada na linguagem – fenómeno passageiro?" questiona radicalmente a aposta de Heidegger no poder da linguagem poética como modo de irrupção de algo novo e de superação do esquecimento do ser na época da técnica. O autor situa a crença no poder salvador da linguagem em uma tradição que se inicia com Humboldt, para qual, ao lado do poder coercivo e coletivo da linguagem existe a possibilidade de os falantes de uma língua, mediante seus escritores, poetas e filósofos, introduzirem alterações profundas no sistema da língua que mudariam o próprio modo como eles usam a linguagem e pensam. No século vinte essa tradição, abraçada por Heidegger, teria um desenvolvimento posterior, mutatis mutandis, em autores como Roland Barthes, Jacques Derrida, Peter Sloterdijk e Michel Foucault, entre outros. Bernard Sylla lança a hipótese ousada de que essa tradição estaria condenada ao fracasso no século XXI. Partindo sobretudo do pensamento de Vilém Flusser, o autor sugere que a nova linguagem já está aí, baseada no desenvolvimento do código numérico "que permite uma decomposição do mundo em pontos ou grãos, que servem como matéria bruta para compor o mundo de novo." Essa linguagem que tem uma primeira aplicação na fotografia e no cinema, ganhando um impulso sem igual na computação, abala os padrões lógicos pelos quais estruturamos o mundo e faz a ver "a realidade como uma rede gigantesca de relações compostas a partir da base material dos pontos e onde cada sujeito é apenas uma parte infinitesimal desta rede." Ao juntar-se ao fazer tecnológico, essa nova linguagem transformaria a plasticidade do mundo, possibilitando imprimir a imaginação humana na realidade e abrindo espaço para "uma reconfiguração ontológica e deontológica do mundo".

No artigo "O projeto de uma "metapolítica" nos Cadernos Negros de Heidegger", Giovanni Jan Giubilato retoma o polêmico envolvimento de Heidegger com o nacional socialismo à luz da recente publicação dos "Cadernos Negros": anotações e reflexões filosóficas que Heidegger fez entre 1931 e 1948 e quis que fossem publicadas apenas postumamente. O termo metapolítica surge nos Cadernos Negros em relação direta ao pensamento onto-historial do "acontecimento apropriativo" para designar um modo da política que não se refere ao espaço humano da pólis, mas ao ser ele-mesmo. Partindo da ideia do fim da filosofia e da necessidade da preparação de um outro pensar, a metapolítica se insere em uma concepção da história do ser que vê o atual estágio de desenvolvimento da metafísica ocidental como a época do esquecimento total do ser marcada pela maquinação tecnológica, apontando para a necessidade da preparação de um outro começo. "Assim, os Cadernos Negros dos anos 30 apresentam um testemunho único e extraordinário do projeto heideggeriano de levar a cabo uma revolução filosófica e política capaz de preparar a humanidade ao "completamente novo", ao "completamente diferente", a um "outro início" do mundo espiritual." O artigo revela a inquietante e perturbadora tentativa de Heidegger de usar seu pensamento histórico-ontológico para fundamentar e justificar o nacional socialismo como movimento que possibilitasse a irrupção de um novo começo para o ocidente, no qual o povo alemão ocuparia um lugar de destaque na hierarquia das nações, a ponto de o filósofo afirmar a existência de um "Nacional-Socialismo intelectual" que se diferencia de um nacional-socialismo "vulgar." O artigo termina com uma citação de Franco Volpi segundo a qual: "Por se aventurar demais no mar do Ser, o pensamento do Heidegger afunda"; mas "quando o que está a ruir é uma grande embarcação, o espetáculo que se oferece à visão é sublime."

Esperamos que as questões discutidas nos textos aqui selecionados ajudem o leitor na compreensão e no aprofundamento do pensamento de Heidegger e que possamos, para repetir um antigo jargão, pensar com Heidegger, mesmo que para isso seja necessário algumas vezes pensar contra Heidegger.

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