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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.21 no.1 São Paulo jan./jun. 2019

 

DOSSIÊ

 

Fenomenologia zoocêntrica e normatividade1

 

Zoocentric phenomenology and normativity

 

 

Róbson Ramos dos Reis*

Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)

Endereço de correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo do presente artigo consiste em apresentar, em linhas gerais, as características da noção de normatividade, que resulta da fenomenologia do paramundo de animais delineada esquematicamente por Heidegger no "Conceitos Fundamentais da Metafísica". Iniciarei com a reconstrução da fenomenologia do paramundo dos animais, que tem como foco a determinação formal de três momentos: os comportamentos, os seus correlatos ambientais e a estrutura antecipatória do âmbito de acessibilidade do organismo. Em seguida, caracterizarei a normatividade no paramundo a partir dos conceitos de desinibição de pulsões e regulagem pulsional. O artigo é concluído com a indicação de problemas para o desenvolvimento ulterior da fenomenologia do paramundo dos animais.

Palavras-chave: Heidegger; normatividade; vida animal; paramundo.


ABSTRACT

This paper aims to sketch the features of a notion of normativity that results from the phenomenology of the paraworld of animals, which Heidegger schematically drawn in the Fundamental Concepts of Metaphysics. I begin with a reconstruction of the phenomenology of the paraworld of animals, which focuses on the formal determination of three moments: the comportments, their environmental references, and the anticipatory structure of the accessibility realm of the organism. Next, I shall characterize normativity in the paraworld based on the concepts of disinhibition of drives and drive regulation. The article concludes with an indication of some problems for the further development of the phenomenology of the paraworld of animals.

Keywords: Heidegger; normativity; animal life; paraworld.


 

 

1. A fenomenologia do paramundo de animais

A interpretação do modo de ser da vida, que é próprio de animais e plantas, foi esboçada por Heidegger nos "Conceitos Fundamentais da Metafísica". Explicitamente reconhecida como incompleta, pois elucida apenas a vida como organismo e não como movimento (Heidegger, 1983), a interpretação exibe uma distintiva característica metodológica. Diferentemente da interpretação fenomenológica da existência, que opera sem apoio no exame de conceitos fundamentais de teorias científicas sobre os seres humanos, a interpretação da vida de animais e plantas sustenta-se sobre uma elucidação de teses fundamentais das Ciências Biológicas (Heidegger, 1983). As noções de mundo circundante (Umwelt), totalidade (Ganzheit) e aptidão (Fähigkeit) são elaboradas por Heidegger a partir da recepção dos estudos de Uexkühll, Driesch e Spemann. Estas formam a base para apresentar a noção de organismo como designando uma unidade de aptidões intrinsecamente relacionada ao ambiente. A unidade de aptidões forma tecidos, órgãos e comportamentos aptos para o envolvimento no mundo circundante (Heidegger, 1983).

Uma notável característica dessa interpretação da vida orgânica é a atribuição a animais e plantas de uma constituição ontológica dotada de um paramundo (Skocz, 2004). Considerando que, segundo a analítica existencial de "Ser e Tempo", "mundo" designa um complexo tecido de relações de significatividade a partir da qual os comportamentos humanos recebem a característica de serem descobridores de algo determinado pela estrutura do algo enquanto algo (Als-Struktur), a atribuição de um paramundo na constituição ontológica da vida implica que as interações ambientais de animais e plantas são dotadas de um análogo normativo à normatividade da intencionalidade existencial. Isso significa que, através dos diferentes comportamentos ambientais, algo aparece de alguma maneira determinada para o organismo. Portanto, tais comportamentos não podem ser integralmente elucidados como sendo reações físico-químicas a estímulos ambientais desprovidos de significação para o organismo. Ao contrário, conceber os organismos vivos como ontologicamente constituídos por um paramundo implica reconhecer que, mesmo sem possuir a estrutura formal da intencionalidade dos seres humanos, as interações ambientais possuem um tipo próprio de direcionalidade normatizada2.

A análise ontológica da vida animal apresentada por Heidegger pode ser corretamente denominada de fenomenológica em razão do ponto de partida adotado, da base vivencial que permite a interpretação e do tríplice foco da análise. Na situação hermenêutica da descrição, os organismos não são tomados como sendo primariamente sistemas de células, tecidos e órgãos. Além disso, também não estão dados na situação como campos de sensações e movimentos relativos a um feixe de arcos-reflexos autocontidos (Skocz, 2004). Ao contrário, os organismos são tomados na situação hermenêutica como unidades relacionais que desdobram interações ambientais com acesso a algo.

Do ponto de vista metodológico, essa complexa investigação fenomenológica é possibilitada pelo possível acompanhamento das interações ambientais dos animais por parte dos seres humanos dotados de intencionalidade transcendental baseada na compreensão de ser. O acompanhamento dos humanos no âmbito das interações ambientais dos animais forma a base de acessibilidade para a investigação fenomenológica da vida animal. Dessa forma, abre-se a perspectiva de uma investigação genuinamente fenomenológica sobre a vida animal, abre-se uma fenomenologia zoocêntrica.3 Em termos esquemáticos, essa investigação visa um exame formal de três elementos das interações ambientais dos organismos animais, a saber: inicialmente, uma caracterização das maneiras em que ocorrem as relações ambientais dos organismos; em segundo lugar, um exame daquilo que aparece para um organismo como correlato de suas interações ambientais; e, por fim, o terceiro foco da fenomenologia da vida animal é a estrutura antecipatória, situada nos comportamentos ambientais, que delimita previamente o âmbito de acessibilidade para o organismo.

A relevância da interpretação do modo de ser da vida a partir da descrição de um paramundo é evidente a partir de dois aspectos. Primeiramente, a normatividade própria da experiência significativa perfaz um domínio complexo, no qual a normatividade especificamente existencial – baseada na Als-Struktur e na compreensão de ser – precisa ser diferenciada de outros tipos de normatividade, por exemplo, daquela que é derivada da estrutura formal do paramundo de animais e plantas4. Em segundo lugar, por analogia com o papel metodológico da intepretação do ser-no-mundo dos seres humanos, a elucidação do paramundo dos entes vivos ocupa uma posição central na interpretação da constituição ontológica dos organismos vivos. Desse modo, conceitualizar o que são os correlatos das interações ambientais de animais e plantas é parte de uma fenomenologia da experiência zoocêntrica que conduz à explicitação da constituição ontológica da vida.

 

2. Os comportamentos ambientais como cativamento apto e eliminativo

Em relação ao modo como se determinam os comportamentos ambientais dos animais, a diversidade de interações não é incompatível com a identificação de um traço formal: os comportamentos ambientais são relativos a aptidões (Fähigkeiten). As ações que um organismo realiza estão atreladas a aptidões, que correspondem a um tipo dinâmico de propriedade modal diferente das possibilidades existenciais humanas e das prontidões (Fertigkeiten) dos utensílios. A aptidão, por sua vez, opera como uma regulação que forma tecidos e põe os órgãos a seu serviço, chegando, por fim, às correspondentes interações ambientais (Heidegger, 1983).

Assim como as aptidões formam uma unidade, as interações ambientais dos animais não são simples justaposições ou sequências de movimentos, mas possuem uma unidade básica. A aptidão para envolver-se num ambiente, que aparece como aptidão básica, confere unidade à relação dos comportamentos entre si, que estão, portanto, formalmente determinados como interações que visam a preservação do envolvimento ambiental do organismo. Além disso, Heidegger atribui a característica de cativamento (Benommenheit) aos comportamentos ambientais dos animais, ou seja, eles são interações com algo que mantém o organismo perturbado e cativo. Em suma, os comportamentos aptos são cativamentos que exibem uma integral subordinação aos correlatos a que estão referidos (Heidegger, 1983).

A esse traço formal dos comportamentos animais, Heidegger acrescenta outra característica fundamental: o afastamento (Beseitigung) (Heidegger, 1983). Os comportamentos cativados não apresentam uma inserção naquilo a que estão referidos, mas são determinados como afastamento ou eliminação, algo que pode ser um devorar, aniquilar ou evitar. Reconhecendo a dificuldade da posição, na medida em que, assim como há exemplos empíricos do traço eliminativo dos comportamentos cativados, também há contraexemplos incontornáveis (a construção de ninhos, a assistência aos filhotes, o jogo e a brincadeira entre animais), Heidegger sustenta, contudo, que o afastar e deixar de lado é um traço intrínseco aos comportamentos animais (Heidegger, 1983). Além disso, a enigmaticidade (Rätselhaftigkeit) da característica eliminativa desses comportamentos fomenta a passagem para um nível mais básico de investigação. Nesse nível, as interações ambientais são formalmente concebidas como relações. Trata-se, por conseguinte, de determinar a que o comportamento animal está relacionado e como é tal relação (Heidegger, 1983).

A resposta a essa dupla pergunta descreve a característica fundamental desses comportamentos: não sendo relações com entes enquanto tais, os cativamentos ambientais não são modos de deixar ser os entes. Observa-se, portanto, uma clara determinação privativa dos comportamentos ambientais: não são relações a entes que aparecem como entes para os organismos, nem possuem a característica normativa de deixar os entes serem tal como são em si mesmos (Heidegger, 1983). É pertinente ressaltar, entretanto, que tal característica privativa não é concebida por Heidegger como derivada de uma suposta falta de pensamento e de razão nos animais. Os fatores explicativos da privação devem ser buscados no exame do segundo foco de atenção da fenomenologia zoocêntrica: o correlato dos comportamentos dos animais.

 

3. A referência comportamental: desinibidores de pulsões

A identificação de características formais dos comportamentos ambientais dos animais conduz ao problema da determinação daquilo com o que o animal está relacionado através de suas interações. De um lado, algo é manifesto para ele através de seus comportamentos, mas não lhe é patente como ente (Heidegger, 1983). Este é o ponto sensível de uma possível transgressão antropocêntrica a ser evitada. De outro lado, a relação que conecta o organismo animal e o correlato de seu comportamento não pode adequadamente ser tomada como redutível a uma interação causal de forças. A razão disso é que, sendo uma unidade de diversas aptidões, o organismo apto vai ao encontro de alguma "coisa", abrindo-se para algo diferente de si mesmo. A consideração mais detida desse fato fornece a perspectiva para determinar positivamente o correlato dos comportamentos dos animais.

Ao ser apto para..., o organismo está situado num âmbito de abertura para aquilo que se lhe apresenta nos seus comportamentos. O ser apto para... não é apenas a condição para a execução singular de certos comportamentos no ambiente: é também o fator determinante para que algo no ambiente do animal desempenhe o papel de ocasionar uma dinâmica modal. Trata-se de uma transição do virtual estar apto para um comportamento específico até a execução e manutenção de tal comportamento. Assim sendo, a unidade das diferentes aptidões em um organismo, que o determina como um ser apto para diferentes comportamentos, possibilita que o animal esteja aberto para um âmbito determinado em que os itens ambientais comparecem ocupando o papel de motivações ou ocasiões para desencadear um comportamento particular. Dito de outro modo, a desinibição de comportamentos em um organismo apto é a maneira como os diferentes itens ambientais são admitidos na abertura do animal (Heidegger, 1983).

Com base numa reflexão formal, Heidegger conclui que, se o ser apto para... condiciona a abertura de ocasiões desinibidoras da dinâmica que leva à execução sustentada de comportamentos, então os correlatos das interações dos animais somente comparecem para o próprio animal como desinibidores de comportamentos. As condições que qualificam como "desinibição" (Enthemmung) a maneira de acolher algo na abertura ambiental dos animais também determinam que o acolhido em tal abertura somente pode ser um item "desinibidor" da dinâmica comportamental específica. Esse é um resultado geral muito determinado, porque Heidegger sustenta que os comportamentos dos animais relacionam-se apenas e somente com o que solicita e mantém ativas as aptidões dos animais:

Porque o ser-apto para... domina por inteiro o modo de ser do animal, o ente que é segundo este modo de ser, ao entrar em relação com o outro, só pode alcançar o que "afeta", dá ensejo ao ser-capaz. Todo o demais não consegue de antemão penetrar no círculo do animal. Aqui não se trata ainda em absoluto do conteúdo particular, mas sim do caráter fundamental daquilo com o qual o animal pode em geral estar em relação (Heidegger, 1983, p. 369-70).

A última declaração é uma qualificação relevante para que o resultado da fenomenologia dos comportamentos animais não seja tomado como uma descrição particularizada das demais determinações dos correlatos comportamentais que podem ser patentes para os animais. A característica de desinibidor de dinâmicas nas aptidões é um traço formal da referência dos comportamentos dos animais. Essa característica fundamental indica, contudo, uma qualificação adicional do modo como estão determinadas as relações comportamentais dos animais. Os comportamentos são aptos, ou seja, são relativos a aptidões determinadas e estruturadas. As aptidões, além disso, são formalmente qualificadas como pulsionais. A aptidão implica, portanto, o fenômeno da pulsão (Trieb) (Heidegger, 1983). Tomada em sua estrutura, e não como atividade pulsional, a pulsão mostra-se como dotada de uma tensão interna, uma carga represada. É dotada de um represamento e de uma obstaculização que necessitam de uma desinibição a fim de que a aptidão possa desencadear a dinâmica que chega até a sustentação do comportamento (Heidegger, 1983). Seguindo a reflexão formal, tem-se que os correlatos dos comportamentos ambientais são patentes aos animais como desinibidores de pulsões.

Apesar de significativo, esse resultado fenomenológico seria aparentemente inconsistente com a recusa na determinação dos correlatos das relações ambientais segundo uma interação mecânica de forças. Se aptidões são pulsionais e se as pulsões são dotadas de uma tensão interna, cuja liberação é dada com a presença ambiental de um item desinibidor, então a fenomenologia da vida animal parece conduzir a um tipo de energética orgânica. Nesse caso, as noções de estímulo-resposta e os processos causais seriam suficientes para elucidar o estrato mais elementar da vida orgânica, dispensando noções propriamente fenomenológicas e procedendo com a descrição e a quantificação dos mecanismos de estímulo e resposta (Skocz, 2004). Na próxima seção, examinarei como a noção de pulsão, antes de permitir uma energética orgânica, ocupa uma posição-chave para alcançar o terceiro elemento da análise fenomenológica.

 

4. Estimulação como relação pulsional

A explicação da relação entre desinibidor e desinibição de pulsões com base nas noções de estímulo e resposta não implica por si mesma um compromisso com um modelo mecânico de elucidação do comportamento animal. Ciente disso, Heidegger apresenta uma dupla objeção estritamente filosófica à interpretação da relação ambiental dos animais como sendo uma relação de estimulação. De um lado, os fenômenos do estímulo e da estimulabilidade (Reizbarkeit) não estão suficientemente elucidados em razão de serem usados na Fisiologia e na Psicologia sem a exibição das condições de possibilidade da estimulabilidade (Heidegger, 1983). De outro, as noções de estímulo e resposta têm sido usadas a partir de uma interpretação particular da relação de estimulação e do próprio estímulo. Essa interpretação, por sua vez, ainda é vista como excessivamente orientada por uma comparação com relações mecânicas. Segundo Heidegger, as relações causais mecânicas são caracterizadas usualmente como bidirecionais, ou seja, a pressão e o impacto mecânicos sempre se apresentam em conjunto com uma contrapressão e um contraimpacto. A relação estímulo-resposta, por sua vez, não teria a bidirecionalidade, pois o estímulo não sofreria nenhum contraefeito do estimulado. Ela seria, portanto, uma relação causal sem a reciprocidade característica das relações mecânicas. Contudo, esse não é foco central da crítica de Heidegger, que incide na avaliação de que a interpretação usual da relação de estimulação, mesmo não sendo estritamente mecânica, encobre uma relação mais básica que está presente na relação de estimulação. Precisamente por não deixar aparecer uma relação decisiva, a interpretação usual da relação estímulo-resposta seria falsa (Heidegger, 1983).

O ponto central na crítica é o entendimento adequado dos conceitos de estímulo e relação de estimulação. Não se trata, porém, de que a relação de estimulação também fosse de efeito recíproco. O problema é que o estímulo, aquilo que é capaz de estimular, é concebido como independente do que é capaz de ser estimulado. A relação de estimulação seria, portanto, uma relação integralmente dependente do estímulo, no sentido de que a pulsão estimulável e capaz de ser desinibida por algum estímulo seria dotada de uma tensão interna indiferenciada (Skocz, 2004). Desse modo, o estímulo, sendo dotado de certas propriedades e ao entrar em relação com o organismo, estimula desinibindo a pulsão. A ocorrência da estimulação depende exclusivamente de o estímulo possuir, em certa quantidade e intensidade, as propriedades estimulatórias que disparam a resposta desinibitória da pulsão. Nessa interpretação, o organismo, como unidade de aptidões, é uma receptividade inqualificada, sendo a tensão interna às pulsões vista como uma espécie de tábula rasa estimulável.

Para Heidegger, essa interpretação é falsa precisamente porque encobre a relação decisiva que está presente na estimulação, a saber: já há uma relação de antecipação entre a pulsão estimulável e o estímulo desinibidor. Por conseguinte, o estímulo já está posto de antemão numa relação com a pulsão e a relação de estimulação apresenta uma dependência bidirecional. Em última instância, a tensão interna à pulsão não é indiferenciada. O decisivo na relação de estimulação consiste, portanto, no fato de que se trata de uma relação pulsional. A qualificação pulsional da relação de estimulação significa, diferentemente de ser uma dinâmica de forças, que a pulsão antecipa previamente o que pode ocupar o papel de estímulo desinibidor. A pulsão demarca, por assim dizer, o campo do que pode estimular, formando uma receptividade determinada (Heidegger, 1983). A unidade das aptidões pulsionais que formam um organismo não é, portanto, uma tábula rasa indiferenciada, mas, ao contrário, ela antecipa o campo do estimulável5.

A partir da interpretação da relação de estimulação e do próprio estímulo em termos pulsionais, torna-se compreensível o fato de que a receptividade a estímulos seja múltipla e particularmente distribuída entre os organismos e as espécies. O fundamento na variação da receptividade à estimulação reside, segundo Heidegger, na amplitude e na direção específicas da dinâmica pulsional de um organismo. Assim sendo, a presença de um estímulo intenso e grande pode não resultar numa resposta desinibitória da pulsão, caso o animal em questão não possua, na unidade de suas aptidões, aquela pulsão que antecipa uma receptividade sensível àquele estímulo. Não sendo pulsionalmente aberto para certas possibilidades de desinibição, um organismo animal não terá em sua receptividade estimulacional a possibilidade de ser afetado por determinado estímulo ambiental (Heidegger, 1983).

 

5. A dimensão pulsional como estrutura antecipatória

Com a interpretação da relação de estimulação como sendo uma relação pulsional em que a pulsão antecipa previamente o campo do estimulável para um organismo, formando uma receptividade determinada, Heidegger oferece uma indicação para chegar ao terceiro foco da análise fenomenológica do paramundo dos animais. O exame da estrutura da pulsão proporciona os componentes formais que constituem o momento antecipatório presente nas interações ambientais dos animais. Ao descrever a característica pulsional das aptidões, Heidegger sustenta que a pulsão concede à aptidão uma constituição dimensional, ou seja, lhe empresta uma dimensão intrínseca. Dimensão é um conceito usado em acepção formal, apresentando duas notas características básicas. A dimensão significa uma travessia de... até, ou seja, é a forma geral do movimento. Além disso, a dimensão é entendida como um âmbito de regras que acolhem uma multiplicidade6.

De acordo com essa análise, a dimensionalidade das aptidões orgânicas significa que a travessia pulsional consiste em formar órgãos e submetê-los ao serviço pulsional, levando-se à condição de ação continuada (os órgãos sempre postos a serviço da aptidão) e aos comportamentos ambientais. A travessia também significa autorregular-se. Como um âmbito de regras, a medida específica na dimensão da aptidão é o poder-ser pulsional. A formação de órgãos, o translado para a ação continuada, os movimentos orgânicos e os comportamentos ambientais perfazem a multiplicidade acolhida na dimensão da aptidão pulsional. Sendo pulsional, forma-se na dimensão das aptidões uma série de intrusões pulsionais escalares, unificadas e reguladas antecipativamente por uma pulsão básica (Heidegger, 1983). Essa estrutura de regulação pulsional determina a dimensão como um campo que condiciona previamente o que pode surgir da aptidão. Além disso, na medida em que a regulação pulsional da aptidão não é externa, mas a regra é trazida ao longo da série de impulsos subsidiários, a dimensão pulsional possui uma natureza de autorregulação que limita uma descrição matemática ou mecânica7.

Esses traços da estrutura dimensional e pulsional das aptidões orgânicas definem o componente de antecipação que reside internamente aos comportamentos ambientais dos animais. A unidade pulsional antecipa, ao modo de uma sintonia prévia, o âmbito das possíveis interações ambientais e desinibições pulsionais (Skocz, 2004). Ela põe antecipativamente a relação ao ambiente, que assume uma determinação particular e delimitada. A dimensão pulsional das aptidões orgânicas perfaz, em suma, o elemento antecipatório que, presente nos comportamentos ambientais, define de antemão um âmbito possível de interações com o que pode assumir o papel de desinibidor de pulsões.

 

6. O paramundo dos animais

A interpretação fenomenológica do paramundo dos animais esboçada por Heidegger oferece três resultados gerais: 1) os envolvimentos ambientais dos animais foram descritos como cativações ou perturbações relativas a aptidões pulsionais que se encontram em unidade; 2) tais comportamentos ainda se determinam como afastamentos daquilo com o que estão relacionados; e 3) as interações ambientais são relativas às pulsões que atuam nas aptidões, formando um contínuo comportamental derivado da ininterrupta desinibição de pulsões. As interações ambientais aptas formam um círculo. Num nível de maior generalidade, as interações ambientais dos animais são determinadas como maneiras de adaptação e de envolvimentos ambientais, de tal sorte que a unidade das aptidões promove uma ligação necessária com o círculo de desinibição, ligação essa que se determina dinamicamente como autopreservação e preservação da espécie (Heidegger, 1983)8.

A partir dessa determinação da maneira como ocorrem os comportamentos ambientais, deriva-se a determinação formal dos correlatos ambientais das interações do organismo animal. No seu ambiente, o animal está aberto para algo, que cativa o organismo e se determina como desinibidor pulsional. Por fim, nos comportamentos ambientais, encontra-se um fator que antecipa qualificadamente o âmbito de fenomenalização dos desinibidores de pulsões. A complexa dimensão pulsional presente na unidade das aptidões contém em si uma também complexa regulação que antecipa constitutivamente, ao delimitar a receptividade para os estímulos, um âmbito ou círculo de desinibições.

A partir desses resultados, podem ser destacadas quatro características do paramundo dos animais. O ambiente dos organismos animais é estruturado qualitativamente como um círculo ou uma zona de desinibição pulsional. O círculo está antecipado na dimensão pulsional complexa presente na unidade respectiva das aptidões do organismo. Há, portanto, um princípio de reciprocidade na intepretação fenomenológica do paramundo dos animais, pois Heidegger sustenta que há uma mútua determinação e interdependência de organismo e ambiente9. O ambiente não é um âmbito determinado apenas a partir de si mesmo, mas é relativo à constituição pulsional dos organismos, dos quais também ganha suas determinações. Sendo relativo à dimensão pulsional, que é determinante da dimensão especificamente espacial10, o círculo de desinibições possui uma espacialidade própria qualitativa. Trata-se de um espaço pulsional, não suficientemente descrito em termos puramente geométricos, e que é diferenciado relativamente aos organismos animais, ou seja, é um espaço vivido não homogêneo (Skocz, 2004). O ambiente das interações dos animais é diversificado no sentido de uma diferenciação relativa à diversidade de organismos e espécies. Além disso, ele é complexo porque está formado por uma articulação e interpenetração de diferentes círculos de desinibição pulsional. Por fim, o paramundo dos animais desempenha uma função de acessibilidade não apenas no sentido de permitir aos animais o encontro com algo diferente, mas também por discriminar um âmbito do que é possível e necessário para o organismo (Skocz, 2004). Acessibilidade significa, portanto, a discriminação de limites diferenciados de abertura para algo no ambiente. Desse modo, o paramundo permite o encontro dos organismos animais com desinibidores de pulsões, um encontro que acontece segundo diferentes delimitações, relativas às receptividades a estímulos desinibidores que são formadas pelas correspondentes unidades de aptidões pulsionais.

 

7. Normatividade no paramundo dos animais

A interpretação fenomenológica das interações ambientais dos animais oferece os elementos para apresentar a característica geral da normatividade presente no paramundo. Como foi visto, para que algo opere como um estímulo desinibidor de pulsões, não é suficiente que possua determinadas propriedades numa quantidade extensiva e intensiva. A função de desinibição não é uma determinação intrínseca de um item ambiental, mas uma propriedade relacional dependente da receptividade e da constituição pulsional do organismo. Portanto, a propriedade de ser um desinibidor pulsional é dependente de o organismo estar sob a regulagem da dimensão pulsional.

Aqui, é pertinente fazer uma distinção. De um lado, um desinibidor pulsional discrimina uma classe possível de comportamentos apropriados. O desinibidor apresenta um conteúdo modal para o organismo, pois oferece uma oportunidade para uma classe determinada de comportamentos. Evidentemente, o desinibidor pulsional pode se apresentar com um conteúdo imperativo local11. Diante do desinibidor, o organismo pode comportar-se da maneira adequada, ou seja, aquela que, em última instância, é adequada para a preservação da sua vida. Há, pois, uma dimensão de adequação na qual se distribuem os comportamentos. Pode-se dizer que as interações ambientais dos animais estão sob condições de sucesso – condições que não são de ordem veritativa, mas de sobrevivência (Okrent, 2018)12. De outro lado, que algo chegue ao papel de desinibidor pulsional é uma função da receptividade e, em última instância, da unidade pulsional correspondente. Nesse sentido, se uma determinada regulagem pulsional vigora na unidade de aptidões de um organismo, então ele estará dotado da condição geral para ter a receptividade que permite um item ambiental funcionar como desinibidor. As regras pulsionais formam, portanto, o estrato básico da normatividade no paramundo.

Com base nessa distinção, formula-se o problema do estatuto dinâmico da própria regra pulsional. A noção de pulsão designa um dinamismo de atravessamento de uma dimensão no qual a desinibição pulsional conduz à execução do comportamento possibilitado na unidade das aptidões. Tal dinamismo está sob a regulagem da regra pulsional, ou seja, a dimensão pulsional da aptidão é um âmbito regrado de acolhimento de uma multiplicidade de impulsos pulsionais. O problema aqui não diz respeito ao dinamismo proporcionado na aptidão pulsional, mas, sim, ao estatuto móbil da própria regulagem pulsional. Nesse sentido, uma indicação de resposta é oferecida por Heidegger ao distinguir os órgãos dos utensílios e os organismos das máquinas (Reis, 2012). No caso dos utensílios, suas regras de construção e de uso são instruções externas. No caso dos órgãos, a regra não é uma instrução externa. Ao contrário, a regulagem pulsional, que vai da formação de tecidos e órgãos até a execução dos comportamentos, é estabelecida por uma instrução interna. Ao formar uma série de impulsos subsidiários, a pulsão fundamental sempre traz consigo a regra.

A característica interna e não instrucional da regra pulsional implica duas determinações adicionais. A pulsão fundamental é mantida em cada impulso subsidiário integrante da série pulsional, havendo uma regulação antecipativa dos impulsos subsequentes. Em segundo lugar, o organismo, como unidade de aptidões pulsionais, está submetido a uma regulagem interna, uma autorregulação. Daqui se segue que os comportamentos desinibidos não são reações fixas inscritas rigidamente nas regras pulsionais, mas há uma plasticidade nas interações ambientais. Essa é a base, segundo Heidegger, que torna possível o adestramento, ou seja, que uma interação externa possa introduzir variação nos comportamentos aptos (Heidegger, 1983). A partir disso, a própria regulagem pulsional pode sofrer modificações? Em caso afirmativo, isso implicaria que o extrato básico da normatividade no paramundo de animais poderia sofrer modificações.

O ponto é aparentemente trivial, considerando a diversidade de organismos e espécies e a correspondente diversidade de comportamentos, aptidões e, portanto, de regulagens pulsionais. Contudo, esse fato implica uma série de pressuposições cuja elucidação filosófica não é trivial. Em particular, a elaboração do problema de se a própria regra pulsional determinante da normatividade ambiental poderia ser dotada de um dinamismo requer o exame do fenômeno do movimento próprio à vida animal. Heidegger não desenvolveu o tema, apesar de explicitamente reconhecer a mobilidade como uma determinação estrutural da vida orgânica:

O ser impelido da pulsão, a atividade pulsional de comutação de pulsões na totalidade do cativamento (Benommenheit), a luta pelo envolvimento no círculo, esta mobilidade pertence ao cativamento. Este não é um estado estacionário, não é uma estrutura no sentido de uma armação fixa estabelecida pelo animal, mas o cativamento é em si mesmo uma mobilidade determinada, sempre e a cada vez se desdobrando e atrofiando. Cativamento é ao mesmo tempo mobilidade, esta pertence à essência do organismo (Heidegger, 1983, p. 385-6).

A mobilidade orgânica relaciona-se, por sua vez, com outro problema que ficou igualmente sem elaboração: o da atribuição de história aos organismos individuais e às espécies. É natural presumir, contudo, que a atribuição de história para indivíduos e espécies animais seja um passo necessário para que própria normatividade no paramundo possa ser vista como condicionada por essa mesma historicidade.

 

8. Espécie, história e movimento

Heidegger não subscreve explicitamente a atribuição de história ao modo de ser da vida animal, mas limita-se a formular duas perguntas sobre o tipo de história que seria atribuída ao processo vital de um indivíduo animal e também à espécie. As perguntas não são respondidas; porém, ao fazer um comentário sobre o conceito de espécie, fica definida uma orientação para o desenvolvimento do problema:

A espécie não é de maneira alguma apenas um esquema lógico, no qual os indivíduos singulares reais e possíveis se encontram alojados. O caráter de espécie é muito mais um caráter essencial do ser do vivente, que se manifesta justamente no que temos conhecido como estrutura fundamental da animalidade: o cativamento, a luta pelo círculo de desinibição. Através do pertencimento a uma espécie, o círculo envoltório do animal singular não apenas se deslocou mais longe do que se o animal estivesse isolado, senão que a espécie enquanto tal resulta mais protegida e superior frente a seu meio circundante (Heidegger, 1983, p. 386).

Heidegger opõe claramente uma noção lógica a um conceito ontológico de espécie. Aparentemente, não se trata de uma noção ontológica referida a um indivíduo, à espécie como um indivíduo, mas trata-se, sim, de uma característica ontológica do modo de ser da vida. Como traço ontológico, a espécie se faz presente e se expressa na estrutura fundamental da animalidade, ou seja, o cativamento pulsional e a luta pelo círculo de desinibições. Isso implica que a dinâmica de autopreservação de um organismo está determinada não apenas individualmente, mas também pelo pertencimento do indivíduo a uma espécie. O pertencimento à espécie afeta, portanto, a maneira como acontece a luta pelo círculo de desinibições pulsionais. Caso a espécie fosse somente um esquema lógico, um constructo derivado das relações de identidade entre os indivíduos animais, não haveria essa determinação específica na interação do indivíduo com o seu ambiente13.

Ao descrever as implicações efetivas do pertencimento à espécie, entretanto, Heidegger parece conceber esta última como sendo um indivíduo capaz de sofrer mudanças. Ao pertencer à espécie, o círculo de desinibições de um indivíduo é deslocado, tornando-se mais amplo do que seria caso ele estivesse isolado14. Esse é um efeito do pertencimento à espécie no organismo individual. No entanto, com o deslocamento ampliativo do círculo envoltório do indivíduo, a própria espécie sofre uma modificação. A modificação refere-se à relação entre a espécie e o seu respectivo meio circundante. Esta torna-se mais protegida e mais sobreposta ao ambiente. Segue-se, portanto, que também as espécies podem sofrer modificações, o que sugere uma noção de espécie como indivíduo dinâmico, ou seja, um indivíduo suscetível a modificações15.

A partir dessas considerações, Heidegger retoma as perguntas sobre a relação entre história e vida animal. Contudo, as perguntas referem-se ao nível mais geral de uma história da espécie e de todo o conjunto das espécies animais, uma história do reino animal. O problema não é resolvido, mas desenvolvido em sua articulação. É possível atribuir história às espécies animais em particular e no seu conjunto? Faz sentido falar de história no âmbito ontológico da vida animal enquanto tal? É possível responder negativamente a essas perguntas, mas, assim procedendo, permanece o problema de elucidar o tipo específico de mobilidade que é próprio dos indivíduos e também das espécies animais (Heidegger, 1983).

É digno de nota que a falta de respostas a essas perguntas seja seguida de uma observação sobre o estágio da investigação biológica de então (Heidegger, 1983). De um lado, a amplitude e potência do conceito de desenvolvimento estariam sob questionamento. De outro, novos fenômenos teriam sido mostrados com a investigação biológica, ampliando e aprofundando a base para examinar o problema da mobilidade própria da organização do organismo. Heidegger cita explicitamente a investigação de Hans Spemann e presume-se que tinha em mente a descoberta do efeito organizador e da indução biológica16. Em suma, o avanço nas questões filosóficas relativas à mobilidade e à possível historicidade das espécies e dos indivíduos animais foi visto por Heidegger como dependente da investigação biológica concreta.

Essa conclusão pode, além disso, ser estendida para o problema de uma possível dinâmica na própria base da normatividade do paramundo dos animais, ou seja, o problema da mobilidade na regulagem pulsional dos organismos. Aparentemente, a tese sobre uma dinâmica na própria regulagem pulsional é consistente com a descrição da regra pulsional como não sendo uma instrução externa. Além disso, a possibilidade de adestramento implica a perspectiva de uma mudança comportamental e, portanto, de uma plasticidade que, em princípio, também poderia estar presente na própria regulagem pulsional. Por fim, o pertencimento à espécie e a correspondente dinâmica específica também são indicadores de uma mobilidade nas próprias regras pulsionais. Naturalmente, essa é apenas uma sugestão com base na consistência conceitual, sendo que precisaria ser examinada em particular e em detalhe a partir dos resultados da investigação científica. No entanto, a hipótese de uma dinâmica nas regras pulsionais e, por conseguinte, na normatividade do paramundo dos animais somente estaria em condições de ser admitida caso uma noção especificamente biológica de tempo pudesse ser elucidada e justificada. Mais uma vez, Heidegger identificou o problema, mas não o examinou (Heidegger, 1983). Não obstante, o reconhecimento de uma mobilidade e de um tempo próprios aos organismos animais aponta para uma determinação ontológica que, por sua vez, também teria uma função na determinação da normatividade no paramundo dos animais. Naturalmente, esse é um contexto em que a interpretação privativa não pode ser menos rigorosa17.

 

9. Desdobramentos da fenomenologia zoocêntrica da normatividade

Nas seções precedentes, apresentei os principais resultados da fenomenologia do paramundo de animais, que Heidegger delineou em "Os Conceitos Fundamentais da Metafísica". Tais resultados permitem a caracterização de um tipo próprio de normatividade em vigor nas interações ambientais dos animais. De acordo com a caracterização esboçada, os comportamentos dos animais são concebidos como respostas à presença ambiental de elementos desinibidores de pulsões. Esses elementos fomentam comportamentos que se situam num marco de adequação referido à continuidade da vida do organismo. O papel ou função de desinibição pulsional é, por sua vez, uma propriedade relacional dependente da regulação presente na unidade de aptidões pulsionais do organismo. Dessa forma, o ambiente de um animal é um espaço qualitativo, estruturado e diversificado cuja constituição é derivada em parte da regulação pulsional específica do organismo. Sendo dependente da dimensão pulsional complexa de um organismo, infere-se que o ambiente ou paramundo dos animais apresenta uma textura e densidade de dimensões. Ademais, a interpenetração dos diferentes círculos de desinibição introduz diversidade e heterogeneidade integradas no ambiente de vida dos animais.

Como já foi observado por Skocz (2004), o resultado da fenomenologia zoocêntrica de Heidegger oferece apenas um esquema formal e incompleto que precisa ser detalhado e desenvolvido, em particular a partir dos estudos sobre comportamento, cognição e afetividade dos animais. A investigação sobre como efetivamente se constituem e determinam os ambientes e interações ambientais dos organismos animais é própria da pesquisa empírica e não propriamente filosófica. Heidegger entendia, no entanto, que um conceito adequado de organismo teria implicações qualitativas para a investigação científica18. Ao mesmo tempo, porém, a complexa investigação sobre a vida animal deve poder revisar ou mesmo modificar substancialmente a fenomenologia do paramundo. Essa é uma característica epistemológica da fenomenologia, que qualifica o estudo da normatividade no paramundo como uma investigação intrinsecamente histórica.

Para concluir o presente ensaio, apresentarei três temas implicados na descrição da normatividade do paramundo dos animais, os quais discriminam problemas para um exame posterior. Em primeiro lugar, o tema da fonte da normatividade. Tem sido usual na abordagem fenomenológica da normatividade identificar as condições sob as quais um indivíduo pode ser descrito como estando sob uma norma e não apenas seguindo uma instrução. Racionalidade e colapso existencial têm sido propostos como noções básicas para solucionar a questão da fonte da normatividade própria da intencionalidade humana (Crowell, 2007). Evidentemente, quando está em análise a intencionalidade no paramundo de animais, a cláusula de uma interpretação privativa interdita de princípio uma solução nesses termos. Não obstante, o problema aparentemente tem sentido nesse contexto, dado que as interações ambientais são concebidas por Heidegger como desinibidores de pulsões e dado que a função de desinibição é uma propriedade relacional dependente de uma regulagem pulsional que não é derivada de instruções externas. Considerando, contudo, a diversidade de regulações pulsionais na constituição dos círculos desinibitórios, é plausível supor que o problema da fonte da normatividade no paramundo dos animais não admita uma solução geral mais desenvolvida19.

Ressalte-se que a dificuldade da questão não é apenas filológica (dado que Heidegger não formulou esse problema), mas conceitual. Caso a atribuição de autorreferência a um indivíduo seja uma condição necessária para reconhecer a vigência da normatividade, então seria preciso identificar um tipo de autorreferência nos organismos animais. Surge então o problema da atribuição de uma identidade própria a esses indivíduos. Nesse sentido, a tese de uma identidade própria não reflexiva não seria estranha à fenomenologia do paramundo dos animais apresentada por Heidegger, que admitiu explicitamente a atribuição de uma esfera de transposição e de uma unidade de propriedade a si mesmo aos indivíduos animais (sem a atribuição de personalidade, reflexividade e consciência) (Heidegger, 1983). Naturalmente, o problema de um self orgânico, por mais controversa que seja a noção, precisaria estar minimente desenvolvido para examinar a questão correlata sobre a natureza e o estatuto do vínculo de um organismo à normatividade complexa de seu paramundo20.

Em segundo lugar, temos o tema da unidade das aptidões e das regras pulsionais. Os organismos são interpretados por Heidegger como unidades de aptidões, o que implica uma unidade de pulsões e de regras pulsionais. A essa unidade de regras deve corresponder uma unidade no ambiente. Dado que também acontece uma interpenetração dos círculos ambientais, há igualmente uma unidade de outra ordem, interorgânica, por assim dizer. Nesse contexto, formula-se o problema sobre como devem estar constituídas as regras pulsionais para admitirem a formação de unidades num organismo e entre os diversos organismos que interagem no ambiente. Uma dificuldade adicional relaciona-se com o aspecto dinâmico da unidade pulsional, na medida em que tais unidades são formadas. Há, portanto, um problema mereológico especial nesse contexto. Novamente, o problema do movimento aparenta ocupar uma posição decisiva. Note-se que Heidegger restringiu a potência do conceito de cativamento para explicar a unidade da totalidade de aptidões do organismo. Cativamento não é o princípio de unificação do todo orgânico. Positivamente, no entanto, ele forneceu uma indicação para a continuidade da investigação ao sustentar que a organização do organismo não estará suficientemente esclarecida sem o exame do fenômeno do processo vital e da morte (Heidegger, 1983). Aqui, o problema do movimento e da mortalidade dos animais assume uma posição relevante no exame da formação de unidade nas aptidões e na normatividade baseada em regras pulsionais.

Por fim, chegamos à relação entre a fenomenologia da normatividade no paramundo dos animais e a fenomenologia da normatividade no mundo dos existentes humanos. Existir no mundo implica, para a espécie existencial, existir numa dimensão complexa que integra mundo e paramundo. Essa integração pode ser vista em dois aspectos.

No primeiro aspecto, o paramundo de animais comparece no mundo humano, ou seja, sendo dotado de compreensão de ser e existindo em função da verdade, os seres humanos estão vinculados normativamente ao paramundo dos animais. Sendo uma normatividade veritativa (Engelland, 2015), o acompanhamento humano no ambiente da vida introduz a obrigação de adequação na interpretação do paramundo dos animais. Existir em função da verdade, que é característico da espécie existencial, implica existir adequadamente no compartilhamento de mundo e paramundo. Sendo dotados de paramundo, os animais não possuem o modo de ser de coisas subsistentes, nem de máquinas ou utensílios. De que modo o compartilhamento de mundo e paramundo afeta o próprio acontecer histórico da existência? Qual é a classe adequada de comportamentos em relação aos indivíduos e às espécies animais? Qual é a estrutura da intencionalidade dirigida aos entes dotados de paramundo? Além das claras implicações prático-normativas desses problemas, eles também evidenciam o quanto uma fenomenologia da vida orgânica é relevante para a interpretação da existência. Afinal de contas, a interpretação privativa da vida orgânica interdita de saída que uma estrutura existencial do ser-com-a-vida seja obtida por modificação da intencionalidade social condicionada pela estrutura existencial do ser-com.

O segundo aspecto refere-se à integração de mundo e paramundo no próprio modo de ser da existência. A expressão "espécie existencial", que Heidegger não emprega, indica a unidade de dois modos de ser numa mesma classe de entes. Nos seres humanos, estão presentes o modo de ser da vida e o modo de ser da existência. Nesse sentido, o problema introduzido pela noção de fenômeno intermediário (Zwischenphänomen) mostra-se como apropriado para desenvolver a questão mereológica da unidade de modos de ser (Reis, 2018c). Além disso, o fenômeno do estranhamento (Unheimlichkeit) pode se apresentar não apenas com elementos existenciais, mas revelar-se nas ocasiões e atmosferas disruptivas em que a vida orgânica emerge na existência individual, modificando a unidade de modos de ser na espécie existencial. Nesse caso, a fenomenologia da normatividade no paramundo reveste-se de importância para a teoria fenomenológica da enfermidade e da Medicina, por exemplo.

Os três temas indicados implicam problemas para um desenvolvimento adicional e qualificado da fenomenologia da vida orgânica animal e em geral. Criticamente, deve ser registrado que é plausível reconhecer que muitos dos resultados de Heidegger devam ser revisados à luz dos imensos desenvolvimentos nas Ciências da Vida. Contudo, o reconhecimento de um tipo de normatividade na vida de animais e plantas aparenta ser uma aquisição relativamente persistente. Naturalmente, um cético pode considerar a fenomenologia zoocêntrica da normatividade como um estudo sobre Water-Babies. No entanto, esse mesmo ceticismo permite que a atitude fenomenológica, sob condições apropriadas, possa levar a ver muito na mesma coisa em que se costuma ver pouco.

 

Referências

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Endereço de correspondência
Róbson Ramos dos Reis
E-mail: robsonramosdosreis@gmail.com

 

 

* Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
1
Este trabalho recebeu o apoio do CNPq.
2
Heidegger admitia que os vegetais, sendo dotados do modo de ser da vida, também possuiriam um paramundo. Sobre as dificuldades e a possibilidade de uma fenomenologia fitocêntrica, integrante da ainda incipiente botânica filosófica, ver Moyle (2017), Mitchell (2015) e Marder (2013; 2014).
3
Agradeço a Eduardo Adirbal da Rosa por chamar minha atenção para o trabalho de Skocz (2004), no qual foi introduzida a expressão "fenomenologia zoocêntrica".
4
Ver Christensen (2004) para uma crítica à objeção de que a fenomenologia da vida animal, apresentada por Heidegger, estaria comprometida com um tipo de antropochauvinismo.
5 Há uma influência qualificada das concepções de Uexküll na tese de uma dependência do ambiente em relação ao organismo. Para isso, ver Malpas (2009), Kessel (2011) e Engelland (2015).
6 Examinei a noção formal de dimensão e a estrutura dimensional das aptidões orgânicas em Reis (2018a).
7
Sobre os limites da matematização da estrutura pulsional das aptidões orgânicas, ver Reis (2017).
8 Dada a limitação de espaço, não reconstruirei aqui a relação da fenomenologia da vida animal com as objeções de Heidegger ao darwinismo. Ressalto, no entanto, que a objeção central se dirige ao suposto filosófico da noção de adaptação: o organismo se adaptaria a um ambiente já determinado em si mesmo e com independência dos aportes do organismo.
9
Engelland (2015) argumenta que esse princípio da fenomenologia da vida animal ganha suporte no modelo de construção de nichos.
10 Sobre o significado não primitivo do conceito de dimensão espacial, ver Reis (2018a).
11 Sobre o significado modal e imperativo na paraintencionalidade de animais e plantas, ver Moyle (2017).
12 No caso dos seres humanos, a normatividade constituída por compreensão de ser é internamente referida à verdade (Engelland, 2015).
13
Ao mesmo tempo em que Heidegger não tem uma concepção apenas lógica do conceito de espécie, não há nenhuma indicação de ele que tenha adotado uma noção fixista. Sobre o conceito de espécie, em particular na biologia evolucionista, ver Torretti (2013).
14
Uma concepção similar é afirmada por Boveri (1906), a que Heidegger se refere explicitamente ao considerar o problema da historicidade de organismos (Heidegger, 1983).
15
Sobre a noção de espécie como referida a um indivíduo histórico, ver Torretti (2013).
16
Sobre Heidegger e Spemann, ver Reis (2017).
17 Sobre a interpretação privativa na ontologia da vida orgânica, ver Reis (2010).
18
De acordo com sua concepção existencial de ciência (Reis, 2018b).
19
O ponto torna-se mais evidente quando se considera as espécies de animais sociais, em cujos comportamentos há indícios de que os indivíduos possuem consciência corporal e coletiva de si mesmos (DeGrazia, 2009). Uma objeção à fenomenologia da vida orgânica sustenta que a estrutura do cativamento por desinibição pulsional é formulada por Heidegger com base em estudos sobre comportamento de animais isolados (Morris, 2005). O preconceito do animal solitário estaria na situação da hermenêutica da vida animal. Não posso examinar a objeção aqui, mas é plausível que ela implique a restrição, mas não a refutação, da análise da normatividade no paramundo em termos de desinibição pulsional.
20
Moyle (2017) ressaltou corretamente que Heidegger também atribuía aos organismos vegetais um tipo próprio de paramundo e, por conseguinte, também lhes deveria ser atribuída uma esfera de transposição.

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