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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.21 no.1 São Paulo jan./jun. 2019

 

DOSSIÊ

 

A apropriação propícia – pensar e amar como acontecimento em Heidegger

 

Propitious appropriation - thinking and loving as Ereignis in Heidegger

 

 

Irene Borges-Duarte*

Universidade de Évora

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A radicalização da problemática fenomenológica da intencionalidade atinge o seu clímax no conceito de Ereignis, que não tivera lugar em Ser e Tempo, mas constitui o cerne da meditação dos Beiträge. Nele, está pensado o tempo cairológico do mútuo apropriar-se do ser e do aí em que toma forma: o erigir-se dos humanos em ser-o-aí (do ser) no instante propício do mais próprio dar-se do ser. O acontecimento dessa apropriação recíproca manifesta-se de muitas maneiras: em palavra, gesto, ato, obra. Mas, no último Heidegger, tem a sua máxima expressão naquilo a que chama «pensar»: o «pensar-propício» (Ereignis-Denken), aquele que não é calculador nem metafísico, que é «outro» relativamente ao já sido, filosoficamente desenrolado, e que, em última instância, é um gostar (mögen) de ser (do ser), que torna possível (möglich) e grato (dankend) o novo, que só assim pode propiciar-se. O mesmo acontece no amor, enquanto apropriação que expropria e enquanto é apropriado para a diferença. O presente trabalho explora esse vínculo entre pensar e amar como âmbito propício ao acontecimento do novo e defende a sua irredutibilidade à concepção inicial de qualquer objeto intencional.

Palavras-chave: Apropriação; acontecimento; pensar; amar; propiciação.


ABSTRACT

Heidegger's radicalization of the phenomenological problematic of intentionality reaches its climax in the concept of Ereignis, in the context of the Beiträge. Ereignis means the mutual appropriation of being and its "there" place in human world, which has a cairological propitious moment. The event of this reciprocal appropriation manifests itself in many ways: in word, gesture, act, work. But in the last Heidegger, it reaches its highest expression in what he calls "thinking": the "propitious thinking" (Ereignis-Denken), which is neither calculating nor metaphysical, which is "other" in relation to what has already been (philosophically). About that "other thinking" Heidegger says that it is a way of liking (mögen) being, and so it makes the new possible (möglich) and grateful (dankend) to be propitiusly propriated. The same happens in love, as a "propriation" that "expropriates", being the appropriate soil to welkome difference. The present essay explores this link between thinking and loving as a propitious scope for the happening of the "new" and defends its irreducibility to the initial conception of any intentional object.

Keywords: Appropriation; Ereignis; think; love; propitiation.


 

 

A motivação para o presente desenvolvimento temático surgiu-me há anos, quando trabalhava na tradução dos poemas de Heidegger integrados no epistolário com Hannah Arendt. O Ereignis de que aí é questão, se bem que tendo um contexto claramente erótico, expõe o sentido da «apropriação» e do seu kairós como relação instituinte e originária. Não me pareceu alheio ao que, nos Beiträge, se dava a compreender. Mais recentemente, ao investigar a questão da pobreza, nos textos de meados dos anos 1940, as referências ao amor são, se não abundantes, pontualmente importantes. A minha hipótese da presença sub-reptícia do amor na concepção heideggeriana do Ereignis reavivou-se. A essas duas pontas da questão, junta-se a conhecida resposta heideggeriana a Binswanger acerca da inerência do amor ao cuidado, em Ser e Tempo, se bem compreendido. Embora atravessando um longo período da produção heideggeriana e da sua experiência vital e pensante, a questão da «apropriação» que se dá como acontecimento originário ou Ereignis afigura-se como densa de afetividade, na pobreza que aguarda e acolhe o puro dom de ser, na sua riqueza proteica. Esse dar-se acontece de fato, no aí do mundo humano, que é habitat, mas também existência fática ou compreensão afetiva articulada em palavra e obra, traduzindo-se em sentido, que dá o que pensar. Heidegger dedicou ao pensar, em 1951/52, um dos seus ciclos mais investidos1, onde defendeu que pensar começa no gostar e agradecer do que é percebido. Esse convolutum de ideias constitui o ponto de partida do presente trabalho.

Procederei em sete momentos estruturais. Começarei por (1) introduzir o sentido da «apropriação», que caracteriza o encontro do Ser como Ereignis, para, depois de (2) uma breve chamada de atenção metodológica, passar a (3) abordar o aflorar da questão do amor, nas referências breves e dispersas que Heidegger lhe dedica, começando (4) por dois poemas incontornáveis e demorando-me, depois, (5) na análise do amor-paixão, a propósito de Nietzsche, e na (6) relação amor-pobreza, de certa forma surpreendente, que o leva a ultrapassar esse enfoque. Procurarei, então, finalmente, (7) mostrar o caráter pensante do acontecimento da apropriação recíproca, chamando a atenção para a inequívoca necessidade do pensar amoroso ou afetivo na recuperação da aliança ontológica que funda a morada humana na terra; e concluirei, se a tal me ajudar o engenho e a arte, apontando a importância historial da via heideggeriana na superação do esquema filosófico tradicional.

 

1. Ereignis – a apropriação propícia

Tudo tem a ver, na verdade, com a concepção heideggeriana de Ereignis. Em seu uso, a partir dos Beiträge, essa noção aprofunda e sobrepõe-se ao que, inicialmente, se queria indicar com o termo Dasein, em sua poderosa riqueza conceitual. Não apenas, portanto, em sua dimensão de «ser-aí», que indica a facticidade do ser na sua modalidade humana, tendo de ser o que está já lançado a ser e preso à sua circunstância intramundana, mas também e sobretudo o seu «ser-o-aí», dimensão primordial, claramente sublinhada na carta a Jean Beaufret, de Novembro de 1945, que antecede a muito mais famosa de Dezembro de 1946, "Sobre o Humanismo" (Heidegger, 1964, 180-185)2. Na verdade, o fracasso do projeto de Ser e Tempo levou Heidegger não só a procurar elaborar a abordagem do que chamou História do Ser, como contraponto não antagônico da Ontologia Fundamental, mas também, nesse contexto, a introduzir uma nova nomenclatura para os conceitos essenciais, compreendidos à nova luz. O fazer-se obra da verdade no mundo e existência humanos passa a ser entendido não tanto na perspectiva (humana, mesmo se não antropológica) do aparecer articulado do sentido, mas sobretudo na sua dimensão temporal de acontecimento inaugurador (Ereignis) de história no local instantâneo (Augenblicksstätte) de um encontro do ser com o seu aí e do aí (humano) com o Ser, no kairós do seu entregar-se um ao outro. Esse acontecimento é o da mútua e primordial apropriação pela qual o ser, à maneira humana, se institui em guardião e pastor do Ser, na sua nua e fugaz originalidade. A partir daí, nasce uma história – que também é um acontecer, mas de outro tipo: Geschehnis, não Ereignis. Ao tempo do instante, junta-se, então, o do suceder ou transcorrer historial. Mas este depende daquele seu momento inicial. Só o encontro propicia o nascimento.

Não se pode, porém, esquecer que o uso heideggeriano do termo Ereignis é, como é habitual em seu idiolecto, de uma enorme riqueza e implicações linguísticas. Gerard Guest (2013, 464) recorda que "o termo Ereignis deve ser entendido (simultaneamente) nos seus três aspectos semânticos": como «acontecimento» (Ereignis), como «apropriação» (Er-eignis) e no sentido ótico de regarder en face (Er-äugen), que põe em relação com o título das conferências de Bremen, Einblick in das, was ist (Guest, 2013). Ou seja, é fundamental pensar a coalescência do sentido temporal e do duplo uso da etimologia. François Fédier, por sua vez, destaca muito especialmente a questão do olhar, que centra a atenção em Er-äugen, concluindo que "Heidegger ouve em Ereignis, 'aquilo que faz ver, levando-nos a abrir os olhos'" (Fédier, 2013, 144). Essa riqueza semântica é decisiva no nosso percurso, não deixando nunca de ser levada em consideração, mesmo se se opta por sublinhar um ou outro desses aspectos, segundo o contexto de sentido. Em particular, a escolha do termo «propiciar-se» ou «propício», na caracterização da «apropriação» e do seu acontecer, acentua o carácter cairológico do início, do chegar a «dar-se» quer da apropriação como acontecimento, quer do seu dar-se a ver, ao olhar que acolhe. Ereignis será, por isso, traduzido habitualmente como «apropriação propícia»3, embora, em alguns contextos, seja necessário recorrer ao termo «acontecimento».

 

2. Breve apontamento metodológico

Do ponto de vista metodológico, esta nova tentativa heideggeriana de dizer o Ser manifesta-se, como sabemos, numa linguagem e estilo muito diferentes da obra de 1927. Muitos leitores e especialistas defendem que se deu um abandono da visão e posição fenomenológicas. Conhecemos o que Heidegger diz a esse propósito em "O meu caminho na Fenomenologia", onde lemos que

A Fenomenologia, naquilo que lhe é mais próprio, […] é a possibilidade do pensar, que, indo-se transformando com os tempos, e só por isso, permanece como tal, para corresponder à exigência daquilo que há que pensar-se. Se assim fosse tomada e conservada, então bem pode desaparecer enquanto título, em favor da «coisa do pensar» (GA 14: Heidegger, 2007, p. 101; 2009, p. 288).

E na carta a William Richardson, de Abril de 1962, também podemos ler que "[...] a distinção […] entre «Heidegger I» e «Heidegger II» só se justifica se se tiver sempre em conta que só partindo do pensado em I se pode aceder ao que deve pensar-se em II. Mas também que I só é possível se está contido em II" (Heidegger, 1996, p. 18).

Uma consideração «historial» do próprio pensamento heideggeriano, requer, pois, que não estudemos separando, de forma objetualizante, o projeto «fenomenológico» da Ontologia Fundamental e o projeto «aletheiológico» e «topológico» da História do Ser, como se fossem compartimentos estanques de um decurso filosófico cronologicamente analisável. Como se, para Heidegger, o passado… passado fosse, e não tivesse mais vigência em seu novo projeto. E como se esse novo projeto não procedesse do que foi pensado, embora insuficientemente, no primeiro. Só nessa perspectiva de interação entre o alcance fenomenológico e a topologia historial é possível compreender a complexidade da investigação heideggeriana. É o que vou tentar fazer, com a brevidade possível.

 

3. O Amor como acontecimento

Na correspondência de Martin Heidegger com Hannah Arendt estão inseridos vários poemas, enviados após o reencontro de ambos, a partir de fevereiro de 1950. Alguns desses poemas – sobre diferentes aspectos da relação do ser ao seu "aí" humano e do seu acontecer originário – integram coletâneas que apareceram em várias publicações em diferentes momentos4. Mas a maior parte das poesias dirige-se claramente à amada, alguns com a indicação «Nur Dir» ou «Für H.», manifestando a profundidade do sentimento que os ligou, desde novembro de 1924 e apesar das vicissitudes existenciais de ambos, bem como a elaboração poética de um afeto que Heidegger, afinal, quase não tematiza em sua obra filosófica. Este último fato fez surgir como hipótese de trabalho a seguinte questão: não será esta faceta poética heideggeriana, na autenticidade do seu dizer fenomenológico, um fator importante da compreensão da sua ontologia do Dasein? Concretamente, não servirá sua poesia como complemento necessário da sua filosofia?

Num pensador que deu especial relevo no contexto do seu pensar mais próprio à importância do ditado poético (Dichtung) e ao cunho de alguns poetas grandiosos, desde a antiga Grécia até à contemporanidade, não seria de estranhar que os seus poemas e aforismos servissem o ensejo de dizer na linguagem poética o que a linguagem tradicional da filosofia não consegue traduzir. Quem ler "Aus der Erfahrung des Denkens" ou "Winke" dar-se-á conta desse ensaio de escrita como tentativa de dizer mais do que o alcançado nos textos teóricos. E se não falta quem critique essa ingerência tardia da poesia no pensar filosófico heideggeriano, desvirtuando o seu precoce fazer fenomenológico, também são abundantes os leitores que descobrem no «segundo» Heidegger o recoletor dos frutos da sementeira fenomenológica. O mais surpreendente, do meu ponto de vista, é o que se transmite de "Ontologia Fundamental" e de "História do Ser" nos poemas de amor enviados a Hannah Arendt: uma hermenêutica do aí em que o ser devém e des-devém e uma história de autenticidadade do que tem origem na mútua apropiação originária, designada como Ereignis. Não sendo, porém, simples a tarefa de traduzir esses textos, em nenhum caso poderia esta hipótese aspirar a ser mais que modesta.

Começarei por aquele que me parece menos problemático, pois manifesta claramente o contexto erótico, sem o qual não tem sentido: Uns ereignend (c. 4/05/1950), pertencente ao ciclo de Sonata sonans5.

 

 

São dois os aspectos que considero relevantes: as referências temporais e a que é feita, no último verso, ao pensar. O tempo aparece, desde o primeiro momento, no particípio presente do título "Uns ereignend" – que reaparece na quinta estrofe, equador e cerne do poema – e nas evocações ex-státicas ao presente (da chegada), ao por-vir e ao sido, a salvo no pensamento. O acontecimento de que aqui é questão é o que origina ou propicia o «nós» existencial da mútua apropriação, início de uma história. O local instantâneo assim criado – cume e abismo – não se extingue, ao abrir um por-vir, que não devém passado, porque é guardado, no pensar rememorativo. O ato amoroso será passageiro, mas não o vínculo entre os amantes na forma ôntica do amor humano sobre o fundo ontológico do apropriar-se, deixando-se apropriar pelo outro. Esse apropriar-se não é um tomar posse, mas um fazer-se próprio para ser em plena autenticidade: ser apropriado. E o ser, de que aqui é questão – o Worum –, é o do Dasein como ser-aí-com outro no mundo e como ser-o-aí do ser à maneira mais propriamente humana. E é esse encontro cairológico que é Ereignis.

Dois meses antes, na carta de 11 de março de 1950, seguira outro poema, com o título Das Ereignis (Arendt-Heidegger, 1999, p. 88; GA 81: Heidegger, 2007, p. 269)6:

 

 

Para além da relação explícita estabelecida entre apropriação e amor, parece-me relevante que o poema jogue com a raíz -eign em três variantes, que no seu conjunto caracterizam o acontecimento enquanto tal, Ereignis, enteignet e geeignet, que procurei traduzir pela referência ao «próprio» na apropriação, no ser expropriado7 (ou des-propriado) e no ser apropriado ou «próprio para»8. O que acontece é um tornar próprio que des-faz o próprio em aceitação da diferença. Esta é leal à alteridade, à diferença quer ôntica (entre os dois amantes), quer ontológica (entre o aí humano e o ser ele mesmo – a coroa). E a intencionalidade da procura des-faz-se – acepção presente no verbo ver-winden, que implica um torcer-se e des-torcer-se – ela mesma no puro «achado», no que vem ao encontro como diferente. A circularidade desse movimento é o sentido dos dois (o achar e o achado) no mesmo: na tonalidade do amor, a que se ligam pudor (Scheu) e lealdade (Treu), como abertura ao ser que se dá e se acolhe. O acontecimento dá-se, pois, ao nível da afeição, na facticidade do ato de ser-com, que tudo implica.

Essa abertura cairológica dá, pois, início a uma história, a uma via fática de compreensão do ser. Em diversos momentos de sua obra, Heidegger repete que, ao contrário do que é habitual dizer-se, o amor não é cego, antes faz ver. Nos "Prolegômenos à História do conceito de tempo", curso de 1925, quando o romance estava no seu auge – a propósito da caracterização do fenômeno do cuidado e das suas modificações, Heidegger distingue o amor da mera pulsão, dizendo que esta manifesta o cuidado, mas sem que a estrutura daquele se tenha ainda libertado no seu "ser próprio" ou "autêntico":

Na pulsão, o cuidado ainda é apenas o estar-ocupado do «de quem», e nada mais; enquanto tal, a pulsão ofusca, cega. É costume dizer-se que «o amor cega». Aqui ao falar-se de amor quer-se dizer pulsão, está a supor-se um fenómeno completamente diferente. Ora, bem pelo contrário, é o amor que, justamente, faz ver (GA 20: Heidegger, 1979, p. 410, tradução nossa)9.

Essa passagem, em que se analisam os fenômenos da inclinação, ou «estar pendente de», e da «pulsão» (Hang und Drang), reaparece em Ser e Tempo, em plena fenomenologia do cuidado, mas já sem se mencionar aí o amor (v. GA 2 § 41: Heidegger, 1977, p. 195-6). E é bem conhecida a ausência deste ao longo da obra de 1927, onde só é mencionado uma vez, em nota e de forma indireta, numa citação de Santo Agostinho retomada por Pascal. É certo que essa última referência, bem interessante, não alude ao amor-eros, do qual temos falado, e sim ao amor-charitas10. Convém, no entanto, recordá-la, porque também aí se chama a atenção para o que estamos tentando centrar: o caráter primordial do amor na abertura da compreensão do ser, seja enquanto Ereignis, seja enquanto modalidade do cuidado, em propriedade. Diz Pascal:

De aí procede que, em vez do que se diz, proverbialmente, ao falar-se das coisas humanas, que há que conhecê-las para as amar, os santos, falando das coisas divinas, digam, bem pelo contrário, que há que amá-las para as conhecer e que não se entra na verdade a não ser pela caridade. (GA 2 § 29: Heidegger, 1977, p. 139, tradução nossa)11.

Ora, se o conhecimento começa na compreensão amorosa e se esta irrompe como Ereignis, pensar e amar estão vinculados desde o início do tempo do cuidado, cuja facticidade se manifesta sempre no mundo, à maneira do em cada caso meu. Não é de se estranhar que a própria Hannah Arendt diga que em Heidegger se dá "um pensar apaixonado, em que pensar e estar vivo são uma e a mesma coisa" (Arendt & Heidegger, 1999, 184).

Tanto Giorgio Agamben12 (Agamben e Piazza, 2003), talvez o primeiro a tratar filosoficamente a questão do amor em Heidegger, como Xolocotzi e Tamayo (2012), em seu recente livro Los demónios de Heidegger, não deixam de recordar, nesse sentido, que o romance entre o filósofo e a jovem aluna se deu no período em que o projeto de Ser e Tempo se edificou (1925-1926), momento do doutoramento de Arendt, "O conceito de Amor em Agostinho". De uma maneira ou de outra, a apropriação foi propícia ao pensar, em ambos os casos13. O próprio Heidegger confessará que, para ele, "se a existência carece de paixão, a voz emudece e a fonte seca" (Heidegger, 2005, p. 313)14. Mas de pouco nos serve esse reconhecimento, pois pode ajudar a comprovar a fecundidade da disposição amorosa, nada nos diz do caminho pelo qual esta possa agir desse modo.

Voltando, pois, aos textos, sugiro dois caminhos pelos quais Heidegger se encaminha para uma "mostração" do caráter essencial da apropriação amorosa. O primeiro, em 1936 (GA 43: Heidegger, 1985), aparece na meditação sobre Nietzsche e sobre a doutrina deste acerca de paixão e afeto. O segundo, de 1943 (GA 73.1: Heidegger, 2013), deriva da proximidade estabelecida entre o amor e o que chama a «tonalidade fundamental da pobreza».

 

4. O amor-paixão

Em "Der Wille zur Macht als Kunst", curso do semestre de verão de 1936 que antecede imediatamente o início do trabalho nos Beiträge (1936/37, sg. von Herrmann; v. GA 65: Heidegger, 1989, p. 515), Heidegger segue a caracterização nietzscheana da vontade de poder, como «afeto», «paixão» e «sentimento» (Affekt, Leidenschaft, Gefühl), descartando que se possa reduzi-los a meros fenômenos psicológicos ou, metafisicamente, ao lado não racional da vida anímica, pois considera-os "maneiras fundamentais sobre as quais o Dasein humano descansa, a maneira como o homem sostém o «aí» em que ele está – a abertura franca e o encobrimento do ente" (GA 43: Heidegger, 1985, p. 52)15. Repare que primeiro diz serem maneiras «fundamentais» do Dasein e, logo a seguir, concentra-as em «a maneira» de ser o «aí» em que o seu próprio ser repousa. O que significa que Heidegger interpreta Nietzsche como radicando a vontade de poder na afetividade, em sentido lato, no sentido em que esta é o «aí» do ser do próprio Dasein, na sua facticidade16. E é nesse contexto que aborda o amor e o ódio enquanto paixões, em contraste com a alegria e a cólera, que seriam meros afetos17.

Embora reconhecendo que "Nietzsche, na maior parte das vezes [meist], usa o termo paixão no mesmo sentido de afecto" (GA 43: Heidegger, 1985, p. 55), sublinha a diferença que aquele introduz entre ambos os fenômenos, ao mesmo tempo que refere a vontade de poder tanto como sendo "a forma originária do afecto" (GA 43: Heidegger, 1985, p. 55), como sendo paixão – "um querer ir mais além de si, um querer mais" (GA 43: Heidegger,1985, p. 57) e como "um sentimento impulsivo [drängendes Gefühl]" ( GA 43: Heidegger, 1985, p. 58). Nos matizes dessa diferenciação, está a caracterização do amor-eros. Mas, fiel à sua metodologia, Heidegger chega lá pela via do contraste e começando pelos fenômenos negativos. Vejamos:

A cólera, por exemplo, é um afecto. Pelo contrário, quando falamos de ódio não queremos dizer só que é algo diferente da «cólera». O ódio não é apenas um afecto diferente, não é um afecto, é uma paixão. Embora chamemos a ambos sentimentos. […] A cólera não é algo que derive de uma deliberação ou decisão; assalta-nos, ataca-nos, «afecta-nos». Este ataque é súbito e tempestuoso; o nosso estar a ser é picado de maneira irritante; a irritação excita-nos e exalta-nos de tal maneira que, num ataque de cólera, deixamos de ser senhores de nós mesmos. (GA 43: Heidegger, 185, 53). […] O ódio também não é produzido por decisão, também parece assaltar-nos como num ataque de cólera. Porém, este assalto é de natureza completamente diferente. O ódio pode irromper de repente, num acto ou num comentário, mas só porque já nos tinha assaltado, porque desde há muito crescera em nós e fora, como costuma dizer-se, alimentado. Ser alimentado é algo que só pode ser aquilo que já lá está e pervive. Em contrapartida, nem dizemos nem pensamos que a cólera seja alimentada. Isto porque o ódio – tal como o amor – se entranha no todo do nosso ser, compenetrando-nos e trazendo ao nosso estar a ser coesão e durabilidade, enquanto que a cólera tal como chegou, vai-se – esfuma-se, como se costuma dizer. O ódio não se esfuma após o seu surto, crescendo e endurecendo-se, alimenta-se de si próprio e consome-nos. Mas esta constante coesão, que vem ao Dasein humano pela via do ódio, não o estupidifica nem o cega, mas, pelo contrário, torna-o capaz de ver e de reflectir. Quem se encoleriza perde a capacidade de meditar. Quem odeia intensifica a meditação e a reflexão até à mais extrema maldade. O ódio nunca é cego, mas clarividente; só a cólera é cega. O amor nunca é cego, mas clarividente; apenas o enamoramento é cego, passageiro e lábil – um afecto e não paixão. (GA 43: Heidegger, 1985, 55-56) […] Afecto: um ataque irritante e cegador. Paixão: uma invasão de clarividência e compenetração no ente (GA 43: Heidegger, 1985, p. 57).

Independentemente das limitações linguísticas do alemão, a questão que ocupa Nietzsche, e que Heidegger explora, é a da diferenciação entre o sentimento de ser afetado, implicando uma reação emotiva brusca e involuntária, e o sentimento passional, que é ele mesmo fonte e origem de ação e não de mera reação. Amor e ódio nunca são reações passageiras, pendentes de uma situação excitante ou irritante, como o enamorar-se repentino e passageiro de um sorriso ou de uma presença sedutora ou como um arrebato de ira ante uma provocação. Amor e ódio implicam a elaboração crescente de um afeto, nascido em algum momento, mas levado a uma radicalização que envolve, em cada caso, o ser do Dasein na sua integridade e autenticidade e, portanto, põe em jogo a máxima acuidade do sentido na existência. Na análise de Nietzsche, Heidegger procura mostrar como a vontade de poder enquanto paixão cresce no querer-se a si mesma, terminando no nihilismo da vontade de querer. Mas, no que aqui nos interessa, permite-nos uma compreensão do amor (a) na sua clarividência ou saber intrínseco do que quer; e (b) enquanto disposição integral a levar a cabo o que, amando, se propõe. Nenhuma dessas referências se liga à questão do acontecimento inaugurador ou apropriação propícia. Se ligam sim, em contrapartida, ao percurso iniciado: ao caminho amorosamente projetado, seja no horizonte de eros ou do cuidado solícito no ser-uns-com-os-outros no mundo.

 

5. O saber e a clarividência do amor

A questão da clarividência, que já aparecera nas Lições de 1925, antes mencionadas, e que numa carta a Hannah da mesma época também aparece sob a imagem de "a segurança do saber do amor" (Arendt & Heidegger, 1999, p. 27), liga-se, por sua vez, à própria ideia da Filosofia, que Heidegger trata em muitos dos seus cursos, e que explora nas suas origens gregas na ideia do «amor da sabedoria». Em Besinnung, manuscrito redigido entre 1938 e 1939, na sequência dos Beiträge e no horizonte de uma meditação propiciada como Ereignis-Denken, Heidegger diz

«Amor» [«Liebe»] é a vontade de que o amado seja, que ache a sua essência e nela se essencie [Wesen, wese]. Esta vontade não deseja nem exige. Benévola, apenas deixa que o digno de ser amado «venha a ser» o amado, sem, no entanto, o criar. O digno de ser amado é o que diz a palavra «sabedoria». «Sabedoria» é o saber essencial, o estar-instado na verdade do Ser. Este «amor», portanto, ama de uma única maneira, como uma predilecção ou ante-amor [Vor-liebe] pelo Ser; aquilo que ama é que o Ser «seja»; é para este, i.e, para a sua verdade e a fundamenção da mesma, que a vontade vale como saber essencial. Mas o Ser é o a-fundamento abissal. A «vontade» é do Ser, por este mesmo apropriada e propiciada [ereignet] na sua essência. A «vontade» não é um egoísmo prepotente e esforçado; «vontade» significa aqui paixão, aquela disposição de fundo que persevera na sua determinação e é um sofrer a urgência [Not] do a-fundamento. […] Este sofrimento [ou pathos] – que é como aquela paixão se propicia [ereignet] devindo saber essencial – é o que é chamado pelo Ser, mantendo-se numa via de resolução, a alcançar a entrega em propriedade [Übereignung] do homem à verdade do Ser, a partir do fundamento do Da-sein (GA 66: Heidegger, 1997, p. 63-64).

Nessa sequência, especialmente rica e alusiva aos nós entre os diversos pontos da nossa meada, o amor – que é paixão e vontade, no sentido que antes procuramos mostrar – é um querer que o Ser seja, que haja Ser e um entregar-se-lhe em propriedade, que é aquilo em que consiste o seu acontecer enquanto tal: em vez de vontade de querer, que se quer a si mesma na vacuidade do egoísmo prepotente, é vontade de amar o que se dá, na sua verdade, e aceitação do sofrimento que essa entrega ao puro a-fundar-se no abismo do que não tem fundamento traz consigo. Pois o Ser não tem porquê, e nada mais há a fazer senão dar-lhe lugar AÍ, na existência e história humanas, propiciadas no kairós da sua mútua apropriação. Mesmo se meramente implícita na compreensão, é esse o saber e a clarividência do amor: o deixar ser. Também no amor humano, deixar ser o amado ou a amada é deixar que eros sirva de guia e abra o caminho ao cuidado, no seu sentido pleno e próprio – é deixar que o ser mais próprio aconteça.

A ideia do projeto amoroso, envolvendo a própria temporalidade da existência, permite, ao mesmo tempo, compreender o que é a filosofia, na sua origem e essência enquanto amor18, como se lê na sequência da passagem anteriormente citada:

Não obstante, a filosofia não é uma criação humana, mas um passo da história da verdade do Ser, em cuja história acontece [geschieht] à essência do homem voltar-se para o Ser [mas também] voltar-lhe as costas [Zukehr, Abkehr] […]. O pensar originário [Er-Denken] do Ser não tem de que «ocupar-se», pois é a a-propriação do Ser ele mesmo – e nada mais que isso. A filosofia, que prepara o outro início, não alcança a sua posição fundamental e, assim, a sua essência, mediante uma transição que parta da metafísica, situando-se ao nível desta, mas apenas mediante um salto para um perguntar totalmente diferente, o que estabelece uma clivagem entre o pensar da história do Ser e a Metafísica (GA 66: Heidegger, 1995, p. 64 e 66).

O pensar – que, nessa época, Heidegger ainda não distinguia da filosofia propriamente dita, na sua função plena como «Saga do Ser» (GA 66: Heidegger, 1995, p. 64) – é então o que nasce da paixão da apropriação (Leidenschaft der Er-eignung), iniciando uma nova história, isto é, uma saga em que o Ser ele mesmo vem à palavra. É a clarividência do amor-paixão que permite divisar o que há de ser dito e levar avante, com determinação, o assim iniciado, que só o amor-cuidado pode articular temporalmente. Ora, esse dar a palavra ao ser enquanto pensar-propício pressupõe deixar-se usar pelo Ser. Mas não no sentido de submissão, pois

O Ser, na sua essência, nunca é potência [Macht] nem, portanto, impotência. Chamemos-lhe, então, sem-poder, o que não quer dizer que o ser esteja desprovido de poder, mas sim que o Ser, pela sua essência, fica livre do poder. Este não ter poder é, no entanto, domínio. No seu sentido inicial, não necessita do poder; vigora pela dignidade, pela simples superioridade da pobreza essencial, que não precisa de subordinados nem antagonistas para ser e que deixou para trás qualquer apreciação de grandeza ou pequenez (GA 66: Heidegger, 1995, p. 193).

Chegamos, assim, à encruzilhada em que Heidegger se desvia do caminho em comum com Nietzsche, e da sua culminação metafísica na vontade de poder, para investigar o trilho da pobreza, como tom fundamental da aventura pós-metafísica.

 

6. Amor e pobreza

É bem conhecido o mito contado por Platão, no "Banquete", que faz de Eros o filho de Poros e Penia, abundância e pobreza e, por isso, sempre a meio caminho entre uma e outra, sempre procurando a proximidade da beleza e sabedoria que lhe faltam: o eterno filósofo, demoníaco (202e) e intermediário entre o sábio e o ignorante (204b). (Um retrato de Sócrates?) Heidegger dedicou vários momentos lectivos, ao longo dos anos, comentando o "Banquete", mas não é por aí que chega à relação entre amor e pobreza.

É nos anos finais da guerra, entre 1943 e 1945, que essa relação se articula, à medida que ambas as noções vão ganhando presença na meditação heideggeriana. O texto controverso sobre "A pobreza", em sua versão mais primitiva, de 194319, que é menos apegada ao comentário do excerto de Hölderlin, o qual lhe serve de pretexto, desenvolve-se no sentido de explicitar o essencial da sua afirmação central, que é tomada como moto: "wir sind arm geworden um reich zu werden" (Hölderlin apud GA 73.1: Heidegger, 2013, p. 710).

Ser rico e ser pobre menciona, na linguagem habitual, o ter ou não ter possessões, portanto o não ser ou o ser carente, particularmente daquilo que é necessário para sobreviver, do que urge. Heidegger, numa reviravolta do sentido, característica do seu uso metódico do pensar, orienta a sua exposição para mostrar que a pobreza, longe de ser a carência do necessário ou imprescindível para viver, é a disposição a não necessitar de nada que não seja o que tem «de próprio», i.e., o "ser na posse do próprio" [im Eigentum sein]. E essa é uma nova definição do Da-Seyn, do Aí-Ser enquanto ser o «aí» do Ser, servi-lo para que aí apareça, em vez de se orgulhar de o «ter» à sua disposição e sob o seu domínio e poder. A relação [Verhältnis] com o Ser, em seu acontecer originário e em sua história, torna-se então a atitude comportamental [Verhalten] fundamental do Dasein, a sua reserva [Verhaltenheit]20 enquanto estilo do «pensar inicial no [seu] outro início».

Pensamos Verhältnis [relação] como o que está sendo em Verhalten [a atitude comportamental]. O que quer dizer: o conter-se em si [Ansichhalten], que suspende [innehält] – na medida em que, reservado [verhaltend], zela por tudo na sua essência, i.e., protege que aí repouse. Assim zelando, a atitude de relação junta tudo na doçura do repousado resguardo [Behütung]. […] A relação é o acontecimento [Ereignis] do zelar, que contendo-se em si, junta o que encontra protecção na doçura. A relação é o que liberta, porque é que torna livre. Liberta como o livre [o que se dá gratuitamente]. Livre [Freie, fry] … é o que é incólume, o que é poupado, o que não é utilizado [ou explorado]. Libertar significa zelar ou poupar […] (GA 73.1: Heidegger, 2013, p. 704)

E é nesse contexto, que centra no Ereignis – enquanto acontecimento de uma relação de apropriação que engendra um comportamento ou atitude, enquanto âmbito de acolhimento zeloso e protetor do ser, que o resguarda e deixa repousar incólume e docemente em si mesmo –, que Heidegger introduz a conexão, já perfeitamente preparada, do amor.

Libertar [freien] é aquilo em que consiste a essência do amor. O termo sânscrito correspondente ao germânico «fry» significa «amor» - o liberar da essência, o proteger que une, zeloso e parco, é a essência do amor e do amar. […] Amor é o que liberta para o gozo de todo o Ser, procedente da liberdade gratificante. Por isso, o «amor» e a palavra [que o diz] são também o que se cala na graça do silêncio. E, por isso, o amor é protector do não-dito» (GA 73.1: Heidegger, 2013, p. 705).

Não se trata aqui, claramente, do amor-eros ou amor-paixão, de que era questão no anterior momento da nossa análise. Também não é o sentido do amor-charitas ou solicitude, embora o inclua. Penso que o amor, nese contexto, é o que Heidegger encontrara no "volo ut sis" agostiniano21 e também o sentido que considera presente no conceito de cuidado, em Ser e Tempo, quando responde à objecção de Binswanger22, bem conhecida, no tempo dos Seminários de Zollikon:

O cuidado, bem entendido – isto é, à maneira ontologico-fundamental – não pode nunca distinguir-se do 'amor', pois não é senão o nome da constituição temporal ek-stática enquanto traço dominante do Dasein, mais precisamente, a compreensão do ser. [Assim,] o amor funda-se tão decisivamente na compreensão do ser como o cuidado, mencionado em sentido antropológico (Heidegger, 1987, p. 237).

É o amor como ser-o-aí do Ser, a disposição de gratuidade zelosa e doce, de acolhimento e guarda, que liberta para o gozo e graça do que se dá e retrai, deixando ser. Apesar da erotização metafórica, a que decerto não é alheio o romance de Heidegger com a princesa Margot de Sachsen-Meiningen, que teve lugar durante esses anos de guerra23, não é meramente o kairós do início que está sendo pensado aqui, mas a possibilidade aberta como história que se articula amorosamente na aliança em que o Dasein ele mesmo consiste. E é nesse sentido que se fala da pobreza como a tonalidade de fundo (Grundton) para a refundação da história, não do Dasein de um amante singular, mas de um povo (GA 73.1: Heidegger, 2013, p. 880-1)24.

«Pobre» e «rico» não têm já que ver com um «ter», mas com o Ser enquanto Da-seyn. O Daseyn é o que se possui como próprio [Eigentum], o que protege [hütet] a verdade do Ser. Pobre enquanto Ser é um «ter», que tem tudo, porque de nada carece – a não ser do não-necessário –, de tal modo que o não carecer de nada é o Ser do estar-instado. Vir a ser rico não significa ganhar possessões [Besitz], mas aprender a essência da riqueza. A riqueza é a abundância do Ser (do Da-seyn), para lá de todo o «ter», a partir da inesgotabilidade da pobreza na posse do é próprio [Eigentum] (GA 73.1: Heidegger, 2013, p. 711).

O amor é a serenidade do pertencer-se no proteger da pobreza, que prepara para Ser o que se possui como próprio [Eigentum], de onde nasce a morada [Behausung] (a linguagem) para o habitar de um povo, que enfim retorna ao lar na sua essência. A pobreza é a abundância (o deixar derramar-se, Überfliessen-lassen) do não-necessário (GA 73.1: Heidegger, 2013, p. 711).

Esse círculo se fecha. Mas abre-se para nós ainda um último: aquele que volta a unir o amor com o pensar enquanto agradecer.

 

7. O pensar como amor

Essa ligação do pensar, em seu sentido mais próprio e autêntico, com o amor começa com a própria ideia de filosofia, como já vimos. E acentuar-se-ia, se possível fosse, com a separação, já nos anos 1950, entre o "outro pensar" como tarefa e a "filosofia", cujo caminho desemboca e se extingue no mundo controlador e tecnológico da época de Ge-stell. O que significa que o pensar, em sua máxima acuidade, recuperador do fio inicial perdido na era metafísica, não procura senão aquele meditar que a filosofia começou por aspirar a ser antes de entrar em sua própria errância. Numa passagem do primeiro dos "Cadernos Negros", que o editor Trawny diz proceder de 1942, lê-se:

Até agora a Filosofia tem sido o amor pelo saber [zum Wissen]. […] Agora, experimentada na perspectiva da História do Ser, nem é o amor pelo saber, nem este mesmo saber a que se aspira, mas sim o amor do saber [des Wissens]. Que quer isto dizer? A Filosofia já não é o amor como eros (Metafísica). O saber já não é o representar (Ideia – consciência – autoconsciência). Sobretudo, aquilo que o amor ama não é o saber, o saber é que é o amante e o amor. Que ama o saber? Ama o Ser no chegar do seu regresso à apropriação propícia [Ereignis] (GA 97: Heidegger, 2015, p. 51-2).

O amor como saber reverte para a origem, retorna ao ponto de onde partiu: para o acontecimento inicial, para a apropriação do «aí» pelo Ser, do Ser pelo «aí», que constitui o ser do Dasein ele mesmo e do Ser no mundo humano. Dá o «passo atrás». A filosofia tradicional, como amizade do saber tradicional, esgota-se nos saberes particulares, que se movem na direção do que hoje são as ciências positivas. Têm o seu eros próprio, sem o qual não se ocupariam em buscar aquilo a que aspiram. Mas a sua procura é ainda uma manifestação de vontade de poder, de capturar e dominar as razões, as causas e os motivos que explicam os acontecimentos naturais ou morais. Conhecer para poder; poder para prover. Como fiar-se, então, da possibilidade de chegar à origem, ao originário, que escapa à corrente causal? Como saber aquilo de que a ciência não quer saber? Pelo amor…, mas de outro tipo:

Mas o amor é a serenidade do pertencer ao começo da pobreza, que prepara para Ser aquilo que se possui como próprio [Eigentum]. O amor do saber é a serenidade da saudade [AnDenken]. É esta que preserva a saga que aclara a verdade do Ser – ou seja, do saber. A serenidade da memória [Gedächnis] repousa na apropriação. O diálogo [Gespräch] é o propiciar-se da saga que guarda e aclara. Assim é o propiciar-se da linguagem na história. O termo philosophia torna-se inadequado; contudo, continua a ser o que nos soa (GA 97: Heidegger, 2015, p. 51-2).

Saímos, pois, do horizonte do que continuamos a chamar «científico», no sentido da investigação sistemática, segundo os cânones, sejam estes acadêmicos ou industriais. Mas aproximamo-nos do que, na prática vital de muitos séculos, tem sido o exercício da sabedoria do «sage», do homem sereno e clarividente, retirado do bulício intramundano, mas atento ao acontecer da vida e da história e ao vínculo com a livre manifestação de tudo quanto há, quer humano, quer não-humano. Se falássemos o idioma kantiano, diríamos «respeito» como sentido da praxis humana, embora estendendo-o a tudo quanto há. Heidegger prefere, nesses anos, chamar-lhe «amor». Mas é um amor sábio! É o cuidado do ser – não apenas do ser próprio, mas da possibilidade de que continue a haver ser e não nada. Não me parece que seja essencialmente diferente do que já estava lançado como projeto compreensivo em Ser e Tempo, quando se afirmava que "toda a compreensão é afetiva" e que toda a "afetividade é compreensiva", pré-compreensiva, e que o cuidado é o ser do Dasein. Mas, na nova configuração linguística e estilística, chama-se agora a atenção para o que Ser e Tempo não tinha chegado a dizer: a falta de configuração ôntica do elo que liga «ser» e «aí humano», enquanto mútua apropriação ontologicamente instituinte do Da-sein como tal. O pensar propício, aquele que leva em si o saber desse elo, desse «entre», é o que continua a ser uma reverberação desse acontecimento inicial.

Na verdade, a questão fenomenológica da intencionalidade não pode já ter lugar na forma de pensar que Heidegger quer propor. O pensar propício não visa nada: sente-se a si próprio em plenitude do estar já de sempre a ser na abertura à Quadrindade. E, por isso, sabe-se também enraizado na terra – ou seja, o pensar propício é a manifestação em propriedade do habitar.

Termino, pois, com uma última citação, extraída do texto com que encerra o primeiro volume de Zum Ereignis-Denken, sob o título de "Der Beginn":

A verdade é o claro albergar do encobrimento do começo. O trespasse do próprio [Vereignung] na luz silenciosa da docilidade de um olhar luminoso, que entrega a verdade, é o amor. A fundamentação [Gründung] da verdade no reino da terra, no solo do começo, é o pensar e o poetar, cujo diálogo é protegido pela harmonia do amor. O local da fundamentação da verdade que procede do amor é a terra-mãe [Heimat]. A encoberta continuidade do habitar reduz a intimidade do começo […]. Habitando, protege-se e guarda-se a verdade. A salvaguarda do começo na terra-mãe perdura na dor, que lhe foi transmitida, como uma homenagem. À escuta do silêncio do começo, o pensar é o que acontece como agradecimento [sich ereignende Dank] ao Ser. O agradecer acontece no amor, pois lhe é apropriado o começo (GA 73.1: Heidegger, 2013, p. 893)25.

O pensar, enquanto gratidão em plenitude de sentido, vem assim desdobrar aquilo que se inicia como amor, enquanto docilidade à verdade, permitindo, afinal, o enraizamento na terra e o começo de uma história. Com razão, fala Heidegger, a propósito do amor, de achar além do achado "a coroa do Mesmo", pois tudo, afinal, se entrança a partir da apropriação inicial.

 

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Endereço para correspondência
Irene Borges-Duarte
E-mail: ibd@uevora.pt

 

 

* Professora associada na Universidade de Évora.
1 "Que significa pensar?", hoje em GA 8: Heidegger, 2002.
2 Na edição francesa de Roger Munier, no final do texto da famosa carta, reproduz-se aquela com a qual Heidegger inicia o diálogo com Jean Beaufret, em 23 de novembro de 1945, em resposta à deste, que lhe fora entregue em mão por Jean Michel Palmier.
3 Justifico minha decisão de tradução, muito brevemente, pois o sentido de acontecimento, inerente ao termo alemão Ereignis, é onipresente, sendo pois mais importante ressaltar o tipo de acontecimento de que se trata. Este é o de uma apropriação recíproca (aí <-> Ser), a qual constitui a ocasião propícia e origem de um início. Etimologicamente, a raiz latina prope, que perdura no português próprio, é próxima da grega propetes, que transita ao latim propitius e ao nosso propício. Propício é o instante (Augen-blick) do dar-se a ver ou entrever do que terá lugar. Ambas as etimologias germânicas (eignen, äugen) aparecem, pois, unidas na expressão «apropriação propícia», que, além disso, guarda o sentido cairológico. Devo a sugestão de tradução a Félix Duque, embora ele se mantenha fiel a «acontecimento propício», que inicialmente também foi a minha.
4 Hoje todos esses textos em forma de poemas e aforismos foram recolhidos em GA 81: Gedachtes (Heidegger, 2007). Aí Heidegger esclarece que apesar do seu aspecto em verso e com rima, não se trata propriamente de poesia, mas de «pensamentos», expressos à maneira do que Parménides procurou fazer: "[...] trazer o que vem à presença, pela primeira vez, à linguagem como pensado." (GA 81: Heidegger, 2007, p. 320).
5 Reproduzo o original da correspondência, com a cursiva introduzida por Heidegger (Arendt-Heidegger, 1999, p. 99). Esse poema não foi, contudo, integrado em GA 81: Heidegger, 2007.
6 Reproduzo o original inserido na correspondência, com a respectiva cursiva, mas sem os comentários, que aclaram o sentido de «Luz» e «Som».
7
Günther Seubold chama especialmente a atenção para o fato de que Ereignis implica sempre Enteignis: "Indem das Ereignis das Sein, d.h. eine bestimmte «Weise» («Art») des Seins, ereignet, entzieht es eine andere möglichkeit des Seins, nicht nur eine andere, sondern viele andere möglichkeiten des Seins. […] In Heideggers Terminologie: «Ereignis» ist immer auch «Enteignis»" (GA 14: Heidegger, 2007, p. 23-44). Não posso aqui estender-me sobre esse ponto.
8 Omitindo a inerência recíproca dessas três variantes, Schuback (2012, p. 129), num texto em língua inglesa, introduz a temática do amor em Heidegger com uma tradução parcial do que constitui o centro do poema "Das Ereignis hat die Liebe". Dessa maneira, deixa de fora aquilo que pode justamente contribuir à descrição fenomenológica do amor enquanto acontecimento, que vem na continuação: "[…] an den Unter-Schied enteignet". O moto escolhido, na sua aparente pregnância, induz, pois, ao erro: o que Heidegger diz não é que "the event has the love", mas que o acontecimento da apropiação é, simultaneamente, o de uma des-apropriação: é a experiência da diferença (Schied) em sentido próprio, não como fusão ou posse, mas como respeito do que é separado – lealdade. Naturalmente, Schuback não pode, por isso, explorar o resto do poema inicialmente citado para explicitar a sua interpretação, pelo que recorre a uma variante deste (GA 81: Heidegger, 2007, p. 120), que começa com idênticas primeiras estrofes – "Aus Licht und Laut ist Welt getraut" – mas que se desenvolve de outra maneira, mais simples, suportando uma leitura da questão da subjetividade do amor (Schuback, 2012), que considero ausente de qualquer dos dois poemas.
9 "[...] der Drang als solcher blendet, er macht blind. Man pflegt zu sagen: Liebe macht blind. In diesem Rede meint man Liebe als Drang, man supponiert ihr ein ganz anderes Phänomen; Liebe dagegen macht gerade sehend. Drang ist ein Seinsmodus von Sorge, nämlich die noch nicht freigewordene Sorge, nicht aber ist die Sorge ein Drang. [...] Im Drang kommt die volle Struktur der Sorge noch nicht in das eigentliche Sein".
10 Não tem sido habitual, na ainda reduzida bibliografia secundária existente, reparar nessa importante distinção. Pascal David é, nesse aspecto, uma exceção, atendendo à ambiguidade do termo alemão Liebe, que tanto menciona eros, o amor de que é questão no "Banquete" de Platão, como ágape, o amor do próximo, que é charitas, na versão latina do "Novo Testamento". Veja David, 2013, p. 68.
11 Referem-se: Pascal, Pensées; e Agostinho, Contra Faustum: "[...] non intratur in veritatem, nisi per charitatem". Nessa referência agostiniana, já aparecia em GA 60: Heidegger (1995, p. 222), ao afirmar-se que o amor e o ódio são "eigentlich erkennenden Seinsart des Daseins" – um fenômeno originário do Dasein.
12 Agamben, 2003. Inicialmente publicado em 1988, sob o título de "La passion de la facticité", Cahiers du Collège International de Philosophie, nº 6.
13 Acerca da presença das temáticas e do estilo heideggeriano na dissertação de Arendt sobre Agostinho, veja Thomä (2003, 398). Para uma análise mais demorada e rica, tendo em conta "a questão da relação entre vida e pensamento", mas também e sobretudo a intenção de "soltar totalmente o conceito de amor do contexto biográfico e de o interpretar como parte da obra filosófica", veja o importante estudo de Tömmel (2013). Deste último, decerto o mais completo até agora publicado sobre esse tema em ambos os pensadores, convém destacar a importante tese, a que a presente investigação vem contribuir positivamente: "se bem que seja previsível que uma análise dos fragmentos sobre o amor possa permitir que, com o tempo, se possam completar passagens omissas e acabar por apresentar uma espécie de «sistema de fragmentos» […], não é de negar que uma das características importantes do conceito de amor em Arendt e em Heidegger é o seu ser fragmentário" (Tömmel, 2013, p. 23).
14 Veja na sua correspondência com a mulher, Elfriede, a carta de 23 de junho de 1956.
15"[...] um Grundweisen, in denen das menschliche Dasein beruht, um die Weise, wie der Mensch das «Da», die Offenheit und Verborgenheit des Seienden, in denen er steht, besteht".
16 Veja, sobre isso, Agamben em Agamben e Piazza, 2003, p. 40. Toda a sua interpretação se ergue sobre esta introdução da «facticidade» do Dasein no seu «aí».
17 À margem da nomenclatura, muito marcada pelo texto de Nietzsche, que Heidegger comenta, interessa-nos o contraste entre o caráter fugaz e involuntário do que é chamado "afeto" e a tenacidade e intensificação voluntária da paixão.
18 Já Valeria Piazza o antevira no seu belo estudo "L'amour em retrait" (Agamben & Piazza, 2003, p. 103): "Assim pensado, não é facil discernir o amor do pensar e da verdade. Aquilo que têm de comum... é o estar tendidos ao futuro a ser do ser, o tornar evidente o acontecimento do ser no seu devir existência, ao acolhê-lo e ao abandonar-se-lhe. […] este singular entrelaçar-se do amor e do pensar na sua tensão ontológica confirma definitivamente que a filosofia de Heidegger não só não é sem amor, mas bem pelo contrário é filosofia do amor sensu strictu, ou filosofia como amor, sendo que o pensar ele mesmo se justifica como abandono amoroso ao ser, como paixão do acontecimento".
19
Heidegger, M.: "Die Armut" (1943), inicialmente publicado em: Jahresgabe 1992 da Heidegger-Gesellschaft, em edição de von Herrmann. Uma segunda versão de 1945, mais completa e com variantes, apareceu, pela primeira vez, também em edição de von Herrmann, em: Heidegger-Studies 10 (1994), p. 5-10. Ambos os textos de 1943 e 1945, bem como as anotações e reflexões a eles ligados, estão hoje incluídos em Heidegger, M.: Zum Ereignis-Denken, Heidegger, GA 73. 1 e 2, 2013; ed. de P. Trawny, p. 701-712 e p. 871-884. Do texto de 1945 há uma versão portuguesa de A. Falcato (Heidegger, 2012a), produzida no contexto do projeto «Heidegger em Português».
20 Nos Beiträge, Verhaltenheit constitui o afeto articulador entre o susto [Erschrecken] (ante o intramundano já vivido) e o temor ou pudor (Scheu) (no aguardar do deus derradeiro e por vir). Veja GA 65 § 5: Heidegger, 1989, p. 14-5.
21
A expressão agostiniana, que dá título a um dos poemas incluídos em Gedachtes (GA 81: Heidegger, 2007, p. 109), aparece várias vezes nos seminários e cursos, por ex., em GA 83: Heidegger, 2012, 56: "Amo: volo ut sis, «dass du seist», der du bist: Gott Gott sein lassen, das Seiende das Seiende sein lassen, das es ist. «Liebe» - Wesen der Liebe." Mas também aparecia numa das cartas a Hannah, de maio de 1925 (Arendt e Heidegger, 1999, p. 31).
22 A obra de Binswanger, "Grundformen und Erkenntnis menschlichen Daseins" (1942), está concebida como uma investigação de Antropologia fundamental, que se ergue explicitamente sobre os alicerces de Ser e Tempo, enquanto obra de base para uma compreensão da existência (Dasein) humana, com a qual o diálogo do autor é permanente. Nesse sentido, Binswanger procura completar a visão heideggeriana do cuidado, que ele interpreta no sentido restringido do estar ocupado e preocupado cotidianos do ser-aí, imerso no mundo da vida, em relação quer com as coisas quer com os outros seres humanos, mediante uma ampla demonstração daquilo que considera faltar em Ser e Tempo e constituir o fundo e forma do mais autenticamente humano. Irredutível, na verdade, àquela perspectiva limitada da pragmaticidade do cotidiano, o amor, enquanto expressão profunda do ser humano, aparece, então, como outra forma de relação, criadora de um espaço-tempo diferente e comum, não à maneira intersubjetiva do meramente coletivo, mas de um «nós» característico dos amantes, que transforma o mundo vivido em próprio. A leitura de Binswanger depende, pois, fundamentalmente da sua própria limitação conceitual (Dasein como existência no mundo; Sorge como ocupação e preocupação na labuta intramundana), podendo ser vista como uma ressonância da primeira época de recepção de Ser e Tempo.
23 Xolocotzi (2012, p. 107) situa a relação amorosa com a princesa entre 1944 e 1946, mas esta fora aluna sua nos anos precedentes, entre 1941 e 1943.
24 "Die Armut ist der Grundton des noch verborgenen Wesens der abendländlichen Völker und ihres Geschickes".
25 Trata-se do ponto 6 (A Verdade [Wahr-heit] e o habitar), do manuscrito Der Beginn, que se reproduz com uma nota da princesa Margot von Sachsen-Meiningen, pelo que deverá ter sido redigido no mesmo período que o texto sobre a Pobreza.

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