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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.21 no.1 São Paulo jan./jun. 2019

 

DOSSIÊ

 

O projeto de uma metapolítica nos Cadernos Negros de Heidegger (1931-1941)1

 

The Project of a "Metapolitics" in Martin Heidegger's Black Notebooks (1931-1941)

 

 

Giovanni Jan Giubilato*

Universidade Estadual de Londrina (UEL)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo pretende elucidar o conceito de metapolítica e explorar suas implicações no pensamento heideggeriano de uma história do ser, especialmente na década de 1930. Essa hermenêutica conceitual combina materiais antigos com a nova base textual fornecida pela publicação recente dos primeiros volumes dos "Cadernos Negros" de Heidegger os quais, independentemente de sua exposição excessiva à mídia e às leituras resumidas nos últimos anos, representam um importante desafio interpretativo para uma nova e independente pesquisa sobre o autor. E assim, mesmo se a metapolítica de Heidegger não diz respeito às rerum humanarum mas sim ao Ser em si e ao seu empoderamento, afirmando perigosamente um nacional-socialismo intelectual, ela acaba por significar um naufrágio intelectual e pessoal.

Palavras-chave: Heidegger, metapolítica, Cadernos Negros.


ABSTRACT

This paper intends to elucidate the intriguing concept of meta-politics and explore its implications within Heidegger's thought of a history of being, especially in the 1930s. This conceptual hermeneutics combines old materials with the new textual basis provided by the recent publication of the first volumes of Heidegger's "Black Notebooks" which, regardless of their excessive media exposure and summary readings in the last years, represent an important interpretative challenge for a new and independent Heidegger-research. And so, even if Heidegger's meta-politics does not concern the rerum humanarum but, rather, the being itself and its empowerment, dangerously supporting an intellectual National Socialism, it ends to be an intellectual and personal break down.

Keywords: Heidegger, Black Notebooks, Meta-Politics.


 

 

1. Introdução

Na complexa paisagem filosófica do pensamento onto-historial [seinsgeschichtlich] – ou pensamento do "acontecimento apropriativo" [Ereignisdenken] – de Martin Heidegger, a temática da metapolítica ocupa uma posição peculiar, representando um dos desafios mais atuais e urgentes para seus intérpretes e leitores. O termo provém dos discutidos "Cadernos Negros", que tanto escândalo e debate causaram (e ainda causam) na comunidade acadêmica e extra-acadêmica mundial. Devido sobretudo às passagens antissemitas aí presentes, alguns pesquisadores foram instigados e induzidos a considerar os "Cadernos" como um corpo estranho na obra de Heidegger, resistentes em aceitar as evidências de um inequívoco desse tipo de pensamento de sua parte.

Como vem sendo amplamente discutido em vários estudos, o antissemitismo de Heidegger não ocupou meramente um âmbito pessoal e privado, mas foi sobretudo filosófico, ou seja, enraizado em fundamentos e ideias filosóficas. Esse tipo particular de nacional-socialismo – afastado da ortodoxia partidária por razões filosóficas e construído sobre os mais tacanhos preconceitos raciais e as banalidades mais provincianas de sua época2 (Nancy, 2015) – o qual podemos identificar numa determinada fase da filosofia heideggeriana, vem sendo justamente caracterizado como um "antissemitismo onto-historial" (Trawny, 2015, p. 37) ou, ainda, como um antissemitismo metafísico (Di Cesare, 2014). É natural, portanto, que toda uma velha escola de pensamento, dedicada à preservação da imagem do filósofo, tenha se sentido duramente ameaçada e, assim, reagido imediatamente, ainda que de forma precária, concentrando seus esforços em depreciar o valor filosófico dos textos dos "Cadernos Negros" e em atacar qualquer leitura crítica a partir deles, a começar pela interpretação do próprio editor, Peter Trawny (Alfieri/Von Herrmann, 2016)3. Mas justamente a essa obra singular e única dentre os textos do corpus heideggeriano, que percorre 40 anos de sua produção intelectual4, é que Heidegger confia seus pensamentos e reflexões mais íntimos a respeito da necessidade de romper definitivamente e superar aquilo que compreendia como filosofia e, assim, preparar a chegada de algo completamente novo: a "metapolítica do povo histórico".

Concebida como uma ampliação e um aprofundamento da metafísica do Dasein, temática que definia o projeto filosófico de Heidegger ao final dos anos 1920, a concepção da metapolítica responde à incumbência ou ao encargo [Auftrag] de preparar um renovado empoderamento do Ser [Ermächtigung des Seins] em função da libertação do poder do próprio Ser na dimensão da historicidade e da finitude, contrastando-o heroicamente à decadência e ao desempoderamento [Entmächtigung] característicos da época moderna da "maquinação" e do aperfeiçoamento da técnica.

Não será possível desenvolver aqui uma discussão detalhada sobre o Heidegger político ou sobre a política em Heidegger: para nossos propósitos será suficiente dizer que, entre os catastróficos anos 1930 e 1945, o pensamento político do filósofo perpassa uma trajetória que se inicia com um entusiasmo nacional-messiânico, i.e., com a esperança de que o movimento Nacional-Socialista pudesse ter um potencial filosófico e histórico suficiente para desencadear um acontecimento fundamental e operar, assim, uma renovação do mundo espiritual, e termina com a "paranoia antissemita" de uma "conspiração mundial" do judaísmo (Di Blasi, 2016). A metapolítica que caracteriza esse período não se refere à política no sentido clássico da πολιτική τέχνη, não é a arte de governar a πόλις e de guiar a convivência civil na dimensão pública da vida dos cidadãos. Ela, portanto, não é o governo das coisas humanas (rerum humanarum) no sentido da res publica, distinta, segundo a definição clássica, do governo das coisas divinas (atribuído aos sacerdotes) e do governo da casa, da dimensão privada do οῖκος (atribuído aos pater familias). Se, como afirma Heidegger na Carta sobre o Humanismo, o seu pensamento a partir dos anos 1930 se move em um plano "[...] où il y a principalmente L'Être" (Heidegger, 1973, p. 357) e não o humano, isso implica uma transformação profunda do próprio sentido daquilo que se entende com política: ela não é o governo do estado das coisas humanas mas, antes, refere-se ao ser, é política do ser; não é portanto simplesmente política, mas metapolítica.

O que chama a atenção nesse período é o fato de que a temática da metapolítica seja tratada exclusivamente nos "Cadernos Negros" e que, com raras exceções, o próprio termo metapolítica apareça, dentro da imensa obra de Heidegger até agora publicada, somente neles. A consideração desses textos enigmáticos, ao contrário do que vem sendo repetidamente doutrinado, faz-se mais do que nunca necessária. Em referência direta a alguns trechos dos "Cadernos Negros", pretendo indicar as temáticas relacionadas à questão da metapolítica a partir do seguinte esquema:

1. A renovação do filosofar;

2. O fim da filosofia e a preparação de um outro pensar;

3. O pensamento onto-historial do "acontecimento apropriativo", especialmente dos anos 1930 e 1940.

 

2. A renovação do filosofar

A obra de Heidegger pode ser lida como uma imensa tentativa de renovar o discurso filosófico imperante, de modificar a forma da filosofia, de transformar sua linguagem, de alterar a modalidade do fazer filosofia, o seu "como" [Wie]. Isso resulta evidente já a partir da questão, central para Heidegger nos primeiros anos da década de 1920, do Vollzugssinn, ou seja, do sentido de atuação ou realização da filosofia, amplamente debatida nos cursos universitários daqueles anos. A atenção heideggeriana está dirigida a uma problematização radical da modalidade de referência da filosofia aos próprios objetos temáticos e à forma como se realiza e atua a modalidade de relação teórica (da "contemplação") com as coisas, fundamentalmente definida pela dicotomia sujeito-objeto. Essa distinção se tornou não apenas o ponto de partida da suspeita geral que Heidegger levantou contra a tradição e da acusação de uma cegueira constitutiva devido à modalidade de realização da filosofia, mas, igualmente, significou a inauguração daquele gesto profundamente anti-filosófico que requer uma impávida "desteorização" da filosofia. Como afirma no curso introdutório sobre a fenomenologia da religião (1920/21), o qual, não casualmente, tem início com um esclarecimento acerca da peculiaridade dos conceitos filosóficos e de sua relação com a experiência fática da vida: "toda teorização deve desaparecer da filosofia" (Heidegger, 1995, p. 16).

O abandono das modalidades clássicas da filosofia se mostra de forma mais evidente em relação à sua praxis filosófica experimental, constantemente dirigida à renovação e à transformação das formas e do medium do discurso filosófico (Giubilato, 2017, p. 128). A partir dessa perspectiva, numerosos são os elementos do corpus heideggeriano que demonstram a vontade explícita de inovar e de repensar o discurso filosófico em conformidade com a época contemporânea ou que revelam a exploração das implicações de uma ampliação e transformação da própria filosofia e do conceito mesmo de pensar, em particular em direção à dimensão performativa do dizer filosófico. Nessa perspectiva, o amplo repertório das experimentações heideggerianas – somente em parte textuais – com diferentes media mobilizados para uma atuação ou realização do pensar, não representa uma mera evasão ou abandono da argumentação lógica e racionalmente fundada, mas é, ao contrário, um sinal importante do esforço constante de buscar novas formas de expressão e de atuação do pensamento do Seer que lhe sejam adequadas. Trata-se, portanto, de um trabalho experimental a partir de um medium diferente do dizer filosófico. Vamos indicar a seguir alguns exemplos concretos desse trabalho experimental.

Um primeiro elemento (indireto) é oferecido pelos relatos e lembranças de muitos estudantes de Heidegger, nos quais se revela a força mobilizadora de sua fala, de sua atuação como docente em seus cursos e o modo como estes se tornavam verdadeiras atuações orais, impressionantes espetáculos de retórica e de filosofia que pareciam tomar vida. Reforçadas ainda pelas investidas contra a imobilidade estéril da rotina acadêmica, seus cursos de repente se transformavam em um live-act imperdível. Um segundo elemento (direto) da atitude explicita ou implicitamente performativa de seu pensar pode ser testemunhado em muitas passagens de sua obra, como, por exemplo, na conferência Por que permanecemos na província?, transmitida pelo rádio em 1933. Em terceiro lugar, chama a atenção a multiplicidade de palavras fundamentais e palavras-guia do léxico heideggeriano, cujo caráter é evidentemente dramático ou teatral. Podemos pensar nos seguintes exemplos: "salto", "caída", "autenticidade", "cordilheira do Ser", "quadratura", "quarteto", a "simplicidade", a "sobriedade" e o "recolhimento", o ser humano como "pastor do ser" e a "linguagem como casa do ser" etc.

Outro elemento importante diz respeito à política editorial de suas "Obras Completas" e, mais especificamente, à coreografia geral de sua planificação e disposição, inspirada pela experiência marcante do período em que participou de alguns trabalhos nos Arquivos Nietzsche – o que mereceria uma análise mais detalhada5. Em seguida, temos ainda toda uma série de desdobramentos concretos e inovadores que apontam para uma nova forma de fazer filosofia, uma forma que desafiava seus moldes tradicionais. Exemplos disso são a gravação da conferência "Identidade e diferença" (1958), a fala experimental sobre o palco do teatro de Viena, no mesmo ano, sobre "Pensar e poetizar", e os vários experimentos com o medium da televisão – entre eles, a famosa entrevista para o canal de televisão alemão ZDF, realizada em 1969, e a discussão com um monge budista tailandês (Bhikku Maha Mani) em 1958, registrada pela televisão alemã SWR em 1963.

Na última parte de seu percurso filosófico, Heidegger dirigiu sua atenção também à escultura. Nesse contexto, podemos mencionar ainda os happenings organizados pela galeria de arte Erker, na Suíça, e a participação de Heidegger com uma performance caligráfica: o texto "A arte e o espaço" foi inscrito sobre uma pedra pelo próprio Heidegger e posteriormente publicado juntamente com algumas collages do artista catalão Chillida. A publicação, em edição limitada, continha ainda um disco com a gravação do mesmo texto, lido por Heidegger.

Recordemos, por fim, a grande quantidade de material fotográfico, de áudio e vídeo produzido por Heidegger ao longo de sua vida – aos quais podemos nos referir concretamente como performances do pensamento "em ação" – e das diferentes encenações de um pensar que não quer ser filosofia nem teoria, mas praxis e gesto do próprio pensamento. Entre eles, destacam-se os sets fotográficos de 1966 e 1968 com a fotógrafa Digne Meller Marcovicz (Marcovicz, 1985), nos quais Heidegger reúne todos os elementos centrais do seu pensamento e os encena habilmente numa coreografia cheia de referências filosóficas. Digno de menção é a referência à figura de Heráclito e às coisas pobres e simples que caracterizam o outro pensar, não pertencente à tradição metafísica ocidental.

A característica comum a todos os elementos aqui enumerados consiste na investida contra o primado de uma lógica enunciativa, da lógica da referência e da representação, a favor de uma prática gestual do pensamento que se realiza em atos de encenação e, assim, na autoapresentação do próprio pensar – prática que pode ser encontrada em muitos textos heideggerianos. A intenção de Heidegger não é simplesmente a de evocar um irracionalismo ou um misticismo do Ser, mas a de provocar um deliberado deslocamento do pensamento filosófico a uma outra dimensão expressiva de realização. O tão criticado abandono, por parte de Heidegger, dos standards racionais e tradicionais da verificabilidade e do reconhecimento intersubjetivo sobre a base da argumentação lógica da filosofia recebe, nessa perspectiva, uma nova luz. O pensamento não é mais concebido como um enunciado que manifesta unicamente um conteúdo/significado, mas como uma performance que inclui, sempre, uma atenção particular instigada pela modalidade do acontecer. Há, portanto, em Heidegger, a marca de uma proeminência de apresentações, representações e atuações do pensar; encontramos aí mais imagens do pensamento (os famosos caminhos da floresta) do que atos discursivos (à la Habermas) e, da mesma forma, encenações (quase teatrais) e encarnações vivas do pensar na sua execução (como, por exemplo, em "A experiência do pensar" ou os "Diálogos no caminho de terra" etc.).

A famosa pregunta: o que significa pensar? implica necessariamente, em Heidegger, a colocação de uma outra pergunta: como pensar? Como é possível pensar na época do aperfeiçoamento da técnica e do "desencadeamento da maquinação" planetária? Essa pergunta e seu desenvolvimento concreto são partes integrantes do projeto de renovação da filosofia que estrutura todo o arco do pensamento heideggeriano desde os primeiros cursos de 1919/20 até seu fim. Nos interessa aqui a conclusão da Carta sobre o humanismo, onde se diz que "Já é tempo de desacostumar-se a supervalorizar a filosofia. […] na presente indigência do mundo é necessário: menos filosofia, mas mais desvelo do pensar. […] o pensamento futuro não é mais filosofia porque pensa mais originariamente que a "metafísica", nome que diz o mesmo" (Heidegger, 1973, p. 373).

 

3. O fim da filosofia

Aqui se manifesta o motivo do fim da filosofia e a correspondente alternativa que Heidegger pensa em oposição à tradição metafísica do pensamento ocidental, que ele chama de pensamento onto-historial [seinsgeschichtlich] ou de pensamento do acontecimento apropriador [Ereignisdenken]. Tomemos, por exemplo, o início da famosa conferência de Heidegger proferida na Universidade de Freiburg, em 1952, O que significa pensar? A fala começa com a fundamental tese antifilosófica segundo a qual "O que mais cabe pensar cuidadosamente [das Bedenklichste] nesse nosso tempo que tanto nos dá a pensar [in unserer bedenklichen Zeit], revela-se no fato de que ainda não pensamos" (Heidegger, 2001, p. 115). E não pensamos porque não estamos "dispostos a aprender a pensar" (Heidegger, 2001, p. 113), seguindo a "ocupação afanosa com a filosofia […] de modo mais caturro e cego" (Heidegger, 2001, p. 113) e nos iludindo "com a aparência de que pensamos" (Heidegger, 2001, p. 113).

Podemos ainda mencionar a conferência de 1964, estrategicamente intitulada "O fim da filosofia e a tarefa do pensamento", permeada pela exigência de uma transformação radical do pensamento em direção a uma modalidade mais originária do pensar. Todavia, mais de uma década antes da "Carta sobre o humanismo" (1946), no curso de verão de 1932, Heidegger já afirmava que a sua tarefa consistia na "decomposição [Abbruch] da filosofia […] a partir de um questionar originário do sentido (da verdade) do Ser" (Heidegger, 2012, p. 1). Essa passagem contém uma referência direta ao texto das "Reflexões II", título do primeiro caderno publicado sob a série que se convencionou chamar "Cadernos Negros", e que remonta aos anos 1931-1938. Aí Heidegger explica claramente a ideia da decomposição da filosofia:

Afinal, devemos romper hoje com o filosofar – porque o povo e a raça já não estão à sua altura e, por isso, sua potência vem sendo sempre mais desafiada e reduzida à impotência? Ou a ruptura já não é necessária, visto que há tempos já não há acontecimento algum? (Heidegger, 2014, p. 66)

Como já indica Trawny nos comentários sobre a paisagem historial do Ser (Trawny, 2015, p. 27), a alternativa parece ser a seguinte: deve-se romper com a filosofia porque ela chegou aos estágios finais de uma história de decadência, de desempoderamento, de um lento e constante arruinar-se ou porque ela mesma está debilitada e deteriorada a tal ponto que uma continuação não seria mais possível? No fim das contas parece que, embora as duas opções respondam a um diagnóstico cultural diferente, as saídas possíveis são as mesmas. É, portanto, necessário "sair da filosofia" com as forças de um pensamento diferente.

Ou a ruptura deve ser realizada tal como o início – de forma que essa interrupção dever-se-ia tornar um evento o mais próprio e último esforço. Mas o que é então rompido e finalizado? Tão-somente o desvirtuar-se pobre de início da história da "filosofia" posterior aos gregos. A decomposição de uma "ruptura". De modo que essa decomposição conduza à abertura do início, ao reiniciar do mesmo. A magnitude da queda seria alcançada – não como uma queda demeritória – mas como um agarrar e um persistir na incumbência designada ao alemão (Heidegger, 2014, p. 66).

Aqui começa a metapolítica. Numa anotação do outono de 1932, encontramos a seguinte passagem: "O fim da »filosofia«. Devemos realizar sua consumação e, com isso, preparar o inteiramente outro – a metapolítica" (Heidegger, 2014, p. 115). Realizar a consumação da filosofia significava, para Heidegger, regressar àquele "grande início" (Heidegger, 2014, p. 53) que "pertence a uma outra história" (Heidegger, 2014c, 131), à grande narração da história do Ser contada, sobretudo, nos "Cadernos Negros" e nos vários tratados onto-historiais (Über den Anfang, Besinnung etc.) dos anos 1930 e concebidos ao redor do projeto das "Contribuições à Filosofia" (Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis)). O conceito de metapolítica deve, portanto, ser analisado tanto em sua relação com o significado particular que o próprio Heidegger lhe conferiu nos "Cadernos Negros", quanto no contexto de seu incipiente pensamento onto-historial dos anos 1930 (Trawny, 2015, p. 26).

 

4. O pensamento onto-historial do "acontecimento apropriativo" dos anos 1930-1940

A narrativa da historicidade do Ser foi resumida por Heidegger da seguinte forma: "Primeiro começo: surgimento, ideia, maquinação. Outro começo: evento-apropriador" (Heidegger, 1998, p. 27). A totalidade desse movimento histórico seria o "Seer", cuja história se estrutura em dois começos e um fim trágico (Untergang) descrito como uma grande "maquinação", a qual representa, para a metafísica, a chegada ao seu fim: a técnica moderna. Nesse sentido, as anotações dos "Cadernos Negros" dos anos 1930 apresentam um testemunho único e extraordinário do projeto heideggeriano de levar a cabo uma revolução filosófica e política capaz de preparar a humanidade ao completamente novo, ao completamente diferente, a um outro início do mundo espiritual.

Nesse contexto, não é casual que as anotações relativas à superação da filosofia mediante um outro pensamento sejam acompanhadas por muitos comentários e observações sobre os eventos políticos da época. As apresentações filosoficamente impregnadas de referências a povos, eventos e formações políticas (como, por exemplo, os gregos, os alemães, os judeus, os russos divididos entre "russianismo" e bolchevismo, os ingleses, os franceses, os americanos ou o "americanismo", o europeu, os asiáticos, a igreja católica, os italianos etc.), enquanto elementos da concepção "onto-historial" do Seer, fazem parte da proposta metapolítica de Heidegger e estão ligadas à sua meditação sobre o Seer e ao desenvolvimento da sua verdade histórica através dos movimentos de "desocultamento" [Entbergung] e ocultamento [Verbergung] (Heidegger, 1989, p. 330). Assim, Heidegger deixa clara a sua convicção de que "A metafísica do Dasein deve se aprofundar e se estender, segundo a sua estrutura mais íntima, a uma metapolítica »do« povo histórico" (Heidegger, 2014, p. 94).

A metapolítica é essencialmente determinada, em primeiro lugar, como aprofundamento e extensão da metafísica do Dasein e, em segundo lugar, por sua referência ao povo histórico. A metafísica do Dasein é o termo que define o projeto filosófico de Heidegger nos anos posteriores a Ser e Tempo, 1927-1929, sobretudo no livro Kant e o problema da metafísica. O povo histórico é, por excelência, o povo alemão: "somente o alemão pode poetizar e dizer de novo e originariamente o Ser" (Heidegger, 2014, p. 27). A tarefa da metapolítica consiste então na preparação de uma "transformação do ente a partir do empoderamento do Ser" (Heidegger, 2014, p. 45), a fórmula utilizada à época por Heidegger para caracterizar o ofício do seu pensamento (Heidegger, 2014) e que, inspirando-se na vontade de poder de Nietzsche, apela para a "libertação do poder do próprio Ser" (Heidegger, 2006, p. 225). Dessa maneira, a práxis política se funda retrospectivamente, a partir da dimensão da historicidade e da finitude, naquilo que ela essencialmente é, a saber: a história do Ser. Por fim, trata-se de estabelecer e de realizar, entre o acontecimento apropriador da verdade do ser, por um lado, e a metapolítica e as realidades histórico-reais, por outro, um nexo de correspondência e de adequação baseado na noção de Auftrag: de incumbência ou encargo.

O encargo – não é nenhuma "ideia" impotente que às vezes pensamos, nenhuma "imagem" flutuante que até agora vemos, mas aquilo que é dado ao Dasein – no seu fundo – para ser carregado e assumido, como se ele estivesse numa corrente que nos vem de encontro (Heidegger, 2014, p. 113).

A unidade de história do Ser e metapolítica torna visível o modo como Heidegger justifica a necessidade do empoderamento do ser a partir da sua perspectiva onto-historial e como esse empoderamento está vinculado, no início dos anos 1930, à tomada de poder histórico-real do povo alemão. O alemão alcançaria, assim, seu status ontológico no topo da hierarquia dos vários povos e formações político-sociais que definem a topologia da paisagem historial do Ser (Heidegger, 2014b, p. 110). De um ponto de vista geral sobre as obras dos anos 1930 de Heidegger, e considerando os nomes que o autor dá ao seu projeto de pensamento, poder-se-ia dizer que a metapolítica é o trait-d'union que vincula a passagem da metafísica do Dasein à história do ser.

 

5. Conclusão

Terminamos esta apresentação do projeto metapolítico de Heidegger nos "Cadernos Negros" dos anos 1930 com algumas indicações concretas que mostram a perigosa proximidade dessa concepção com o nacional-socialismo da época. Em 1933, logo após a tomada do poder por Hitler no dia 30 de janeiro, Heidegger afirma:

O povo alemão está em vias de reencontrar sua essência mais própria e de se tornar merecedor do seu grandioso destino. Adolf Hitler, nosso grande líder [Führer] e chanceler, criou, através da revolução nacional-socialista, um novo Estado capaz de garantir novamente ao povo a duração e a continuidade de sua história. Esta revolução não foi obra humana, destas que somente subverte o que é simplesmente presente [Vorhandene] e excede o que é antigo ou, tomado de uma fúria cega, põe de lado tudo o que foi até agora, mas é obra daqueles que querem uma nova ordem espiritual e agem movidos pela mais profunda responsabilidade diante dos destinos de seu povo. Cada nação tem a primeira garantia de sua autenticidade e grandeza em seu sangue, seu solo e em seu crescimento corporal. O povo alemão quer se encontrar novamente para assumir a verdadeira responsabilidade por si mesmo. Somente um tal povo pode igualmente agir de forma responsável em relação a e em confronto com outros povos. Mas apenas um povo nascido da responsabilidade por si mesmo tem ainda o direito e o dever de exigir a confiança e a tomada de posição responsável por parte dos demais povos. E assim se configura nossa mais profunda crença de que através da revolução nacional-socialista o povo alemão não somente se reencontrou, mas que desse acontecimento surgirá uma nova e genuína comunidade dos povos e nações, construídas sobre o próprio poder e honra e sobre a responsabilidade dos povos individuais, apoiados pela fidelidade à grandiosidade e à essencialidade dos destinos humanos (Heidegger, 2000, p. 150).

No curso de verão de 1933, dedicado à Questão fundamental da filosofia, ele ainda afirma que "A filosofia é a ininterrupta luta que coloca a questão pela essência e pelo ser do ente. Esta questão é em si mesma histórica, isto é, é o chamado, a disputa e a adoração de um povo pela dureza e pela clareza de seu destino" (Heidegger, 2001b, p. 12).

Dessas e de muitas outras formulações resulta evidente a identificação da possibilidade metapolítica de um novo início com o movimento revolucionário do Nacional-Socialismo. Tudo o que em Heidegger está associado ao Nacional-Socialismo tem sua proveniência na narração da história do ser, na estrutura que contempla o "primeiro começo" com os gregos e o "outro começo" com os alemães. Como já foi notado, "esse enredo forma a base para que Heidegger tenha saudado a revolução nacional e se colocado ao seu serviço" (Trawny, 2015, p. 33), chegando a afirmar um Nacional-Socialismo "intelectual" (Heidegger, 2014, p. 42) diferenciado de um Nacional-Socialismo "vulgar" (Heidegger, 2014, p. 52). Tudo o que em Heidegger tem a ver com o Nacional-Socialismo é filosoficamente motivado na sua concepção da metapolítica. Esse fato está agora amplamente documentado nos "Cadernos Negros", nas cartas a seu irmão recentemente publicadas e na seguinte passagem dos anos 1938-1939:

Em um sentido puramente "metafísico" (isto é, onto-historial) é que, nos anos de 1930 a 1934, encarei o nacional-socialismo como a possibilidade de uma transição para um outro começo, e desta forma o interpretei. […] De uma visão integral do precedente engano acerca da essência e da vitalidade histórica do nacional-socialismo surgiu a necessidade de sua afirmação, e isso em função de razões do pensamento. Com isso está ao mesmo tempo dito que esse "movimento" permanece independente da forma então contemporânea e da duração dessas formas agora tornadas visíveis. […] Mas como pode dar-se que uma tal afirmação tão essencial seja pouco ou nada valorizada em contraste com o mero consentimento, geralmente superficial e então já desnorteado, ou tão-somente cego? (Heidegger, 2014b, p. 408).

Como afirma Klaus Held, comentando alguns dos trechos mais "expostos" dos "Cadernos" e a escolha das cartas que Heidegger intercambiou com o seu irmão Fritz nos anos 1930 a 1949, a linguagem de Heidegger destes anos é "[...] tão atravessada pelos topoi paradigmáticos do antissemitismo moderno" (Held, 2016, p. 264) que resulta "absolutamente incompreensível como ainda se tenta refutar o antissemitismo destes trechos" (Held, 2016, p. 264). Certamente não há nenhuma verdade definitiva sobre os "Cadernos", mas apenas suposições e interpretações que podem ser sustentadas a partir de vários trechos. Uma vez mais, com Heidegger e contra Heidegger, devemos afirmar que "[...] enigmático não é tanto o pensamento do último Heidegger, mas a admiração indolente e muitas vezes desprovida de espírito crítico que lhe foi atribuída, e que produziu tanta catequese" (Volpi, 2011, p. 298). Por "se aventurar demais no mar do Ser, o pensamento do Heidegger afunda", mas "[...] quando o que está a ruir é uma grande embarcação, o espetáculo que se oferece à visão é sublime" (Volpi, 2011, p. 299).

 

Referências

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Xolocotzi, A. (2009). Facetas heideggerianas. Puebla: Libros de Homero.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência
Giovanni Jan Giubilato
E-mail: giovannijangiubilato@hotmail.com

 

 

* Universidade Estadual de Londrina (UEL). Post-doc Fellow PNPD/CAPES.
1 As considerações que se seguem foram apresentadas, de forma resumida, na ocasião do XX Colóquio Heidegger "Variedades da Intencionalidade: Transcendência e Acontecimento" (26-28 de outubro 2017, Hospital do Rim, São Paulo). Essas considerações foram revisadas e ampliadas a fim de expor a novidade do projeto de uma "metapolítica" nos Cadernos Negros de Heidegger e as temáticas principais relativas a eles.
2 Heidegger poderia muito bem ter questionado os motivos e a origem do antissemitismo. Ele, tão competente em traçar as origens e as procedências (seja da língua grega ou da devastação tecno-calculadora moderna), nunca se colocou a pergunta pela origem do próprio antissemitismo. Aceita-o, como um dado do destino ocidental, acreditando de forma banal na vil propaganda antissemita dos "Protocolos dos Sábios de Sião".
3 O teor geral desse texto e da sua concepção essencialmente ideológica, cujas argumentações ad personam nada têm de filosófico e não fazem mais que revelar um aviltamento intolerável no âmbito da filosofia, pode ser exemplificado por trechos em que o editor responsável pela publicação das Obras Completas de Heidegger chega mesmo a afirmar que "os Cadernos Negros são filosoficamente irrelevantes" (Alfieri/Von Herrmann, 2016, p. 38). Todavia, bem antes do escândalo provocado pela publicação desses "Cadernos" – o que o levou à ameaça de interromper a publicação por considerar que os "Cadernos" teriam sido "manipulados" (Libero, 28/05/2015) – o mesmo editor não hesitava em afirmar que "somente quando esses volumes forem publicados e quando forem então lidos e devidamente compreendidos é que teremos uma imagem final do pensador Martin Heidegger. Ainda que esses volumes não mudem radicalmente a imagem que temos dele, eles nos darão, todavia, uma nova perspectiva" (Xolocotzi, 2009, p. 68).
4 O primeiro dos "Cadernos" data de 1931; o último, de 1975.
5 Sobre este aspecto particular da organização das Obras Completas de Heidegger, faço referência ao artigo de Babich, 2009.

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