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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.21 no.1 São Paulo jan./jun. 2019

 

ARTIGOS DE FLUXO CONTÍNUO

 

Sofrer pelo próprio ser: a Daseinsanalyse de Alice Holzhey-Kunz e a inclusão pré-ontológica da existência como fundamento do sofrimento existencial

 

Suffering from one's own being: Alice Holzhey-Kunz's Daseinsanalysis and existence's pre-ontological inclusion as the ground of existential suffering

 

 

Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo, viso apresentar a Daseinsanalyse desenvolvida por Alice Holzhey-Kunz, da segunda geração da Daseinsanalyse. Inicio indicando o objetivo de reintroduzir a hermenêutica na psicoterapia, tornando-a mais heideggeriana e freudiana. Em seguida, apresento o sentido do sofrimento psicológico: é sofrer com o próprio ser, isto é, com a condição humana (Dasein), cuja descrição é retirada de "Ser e Tempo", de Heidegger. O conceito-chave para esse paradigma é o de inclusão pré-ontológica: cada existência tem relação com o próprio ser. Na psicopatologia, a condição humana irrompe e limita o existir cotidiano. Por fim, indico consequências para a prática psicoterapêutica nesse paradigma.

Palavras-chave: Daseinsanalyse; Dasein; Psicopatologia; Hermenêutica; Martin Heidegger.


ABSTRACT

In this article I present Daseinsanalysis as developed by Alice Holzhey-Kunz, who is a member of the second generation of daseinsanalists. I begin by pointing to her objetive of reintroducing hermeneutics in psychotherapy and making it more heideggerian and freudian. I then indicate the meaning of psychological suffering: it is suffering from one's own being, that is, from 'human' condition, such as described by Heidegger in Being and time. The key concept in this paradigm is 'pre-ontological inclusion', which means that every existence relates to its being. The human condition shows itself and limits everyday living in psychopathological modes of being. I end this article indicating consequences for psychotherapeutic practice.

Keywords: Daseinsanalysis; Dasein; Psychopathology; Hermeneutics; Martin Heidegger.


 

 

A terapia Daseinsanalítica continua sendo pouco conhecida no Brasil, apesar do crescente interesse nos possíveis desdobramentos da filosofia de Heidegger para a Psicologia. Sua história já estava documentada nas revistas da "Associação Brasileira de Daseinsanalyse". A publicação da tradução do livro de Dastur e Cabestan (2015) contribuiu enormemente para a historiografia dessa ciência humana. Os nomes de seus fundadores são bem conhecidos nos meios da psicologia fenomenológica: Ludwig Binswanger e Medard Boss. Binswanger, psiquiatra, filho e neto de psiquiatras, é o primeiro a intitular seu método investigativo do sentido da psicopatologia de "Daseinsanalyse". Medard Boss, um pouco mais jovem, é quem encabeça, com apoio de Heidegger, o desenvolvimento de uma patologia geral daseinsanalítica. Ambos são médicos que recorrem à analítica do Dasein, realizada por Heidegger em "Ser e Tempo", como antropologia e epistemologia para fundamentar a interpretação dos fenômenos humanos saudáveis e patológicos.

Sendo pouco conhecida a obra da primeira geração de daseinsanalistas, que se dirá da segunda? Deve ser por isso que a obra de Alice Holzhey-Kunz é praticamente desconhecida no Brasil. Assim como são pouco conhecidas as pesquisas de Gion Condreau e dos psiquiatras fenomenológicos Hubert Tellenbach, Otto Dorr Zegers, Thomas Fuchs, que deram continuidade às pesquisas iniciadas por Binswanger, Jaspers e Minkowski. São nomes conhecidos por poucos especialistas, sendo as traduções para o português raras.

Este artigo objetiva apresentar a Daseinsanalyse de Alice Holzhey-Kunz, expoente da geração de psicoterapeutas que estudaram diretamente com Medard Boss. O paradigma daseinsanalítico gravita em torno do entendimento de sofrimento existencial, que, por sua vez, remonta à noção de Dasein, de "Ser e Tempo" (Heidegger, 2012), mais especificamente ao conceito de inclusão pré-ontológica.

A daseinsanalista Alice Holzhey-Kunz nasceu em 1943, formou-se em História e Filosofia em Zurique em 1971 e concluiu sua formação em 1976 como psicoterapeuta no Instituto Daseinsanalítico para Psicoterapia e Psicossomática fundado por Medard Boss. Em 1983, em razão de divergências com Boss, rompeu com o Instituto e juntou-se à Sociedade para Antropologia Hermenêutica e Daseinsanalyse, a qual preside atualmente e onde coordena os "Seminários Daseinsanalíticos de Zurique". A instituição inaugurada por Boss não existe mais.

 

1. Por uma Daseinsanalyse hermenêutica

A Daseinsanalyse de Holzhey-Kunz está em consonância com a proposta original de Medard Boss, onde o sentido da psicoterapia é "resgatar o desenvolvimento até aqui embotado ou inviabilizado em direção à medida a mais ampla possível em termos de abertura e liberdade" (Holzhey-Kunz, 2018, p. 39). Ou seja, possibilidades existenciais não estão sendo assumidas e realizadas abertamente e isso está limitando a quem e como a existência pode ser. O objetivo da psicoterapia é descobrir com o paciente quais são essas possibilidades e por que não as está podendo ser, a fim de confrontar e dissolver as resistências para uma existência mais livre. Assim como Boss e Binswanger, Holzhey-Kunz defende a metodologia psicoterápica freudiana. Aliás, sua proposta é ser ainda mais freudiana e mais heideggeriana do que Boss.

Para a daseinsanalista, a revolução promovida por Freud no campo da psicopatologia foi a descoberta de sentidos ocultos para os comportamentos interpretados pela psiquiatria tradicional como anormais, patológicos, bizarros. Esses sentidos não estão imediatamente dados. Eles precisam ser desvendados. A psicanálise é uma hermenêutica em razão disso: interpreta os sentidos ocultos dos comportamentos abertos.

Boss teria deixado de lado o caráter hermenêutico da psicanálise em favor de uma fenomenologia que se atém ao fenômeno. Em suas interpretações de sonhos, por exemplo, zela para que se atente exclusivamente aos significados que se apresentam; a que e como se mostra o que se mostra à existência que sonha. O mesmo pode ser dito dos fenômenos de transferência (modo de relação com o outro diretamente acessível) e resistência (recusa a apropriar-se de possibilidades existenciais), que devem ser entendidos tal como são e não como mecanismos de um suposto aparato psíquico. Mas, com isso, Boss perdeu, segundo Holzhey-Kunz, o caráter "aletheico" do comportamento humano, isto é, que ele mostra e esconde ao mesmo tempo, exigindo a hermenêutica para tirar da ocultação o que se esconde no aparente. Boss é "daseinsanalítico, mas não daseinsanalítico-hermenêutico" (Holzhey-Kunz e Fazekas, 2012, p. 40).

Hermenêutica também é a fenomenologia de Heidegger (2012, p. 121), dado que se dirige ao ser dos entes, que, nas palavras do filósofo, "permanece oculto no que se mostra", "pertence essencialmente ao que se mostra de pronto e no mais das vezes, ao ponto de até constituir seu sentido e fundamento". Assim é que a analítica existenciária de "Ser e Tempo" procede, desvelando o ser do Dasein que permanece encoberto pela ocupação cotidiana. Holzhey-Kunz visa, assim, reestabelecer a hermenêutica na Daseinsanalyse, defendendo que cabe a ela buscar os sentidos ocultos nos comportamentos humanos. Mais especificamente, são os sintomas que interessam ao Daseinsanalista, pois manifestam o sentido da perda de liberdade para a vida cotidiana que motiva a terapia.

Em "Ser e Tempo", a filosofia é tarefa hermenêutica de arrancar do encobrimento das interpretações impessoais e fazer ver o ser da existência do qual o ser-aí foge a cada vez. Toda Dasein tem um entendimento de ser, que é a condição de possibilidade de toda ontologia, ou seja, todo existente é um filósofo em potencial. Holzhey-Kunz se apropria dessa descrição, mas mostra que, assim como o filósofo pode assumir como tarefa explícita tematizar ser, toda existência se relaciona com seu ser e pode experienciar sua própria condição humana.

A psicanálise freudiana é hermenêutica, pois assume como tarefa descobrir o sentido oculto dos sintomas. Estes têm dois sentidos: seu "de onde" e seu "para quê". Isso está claramente posto por Freud (2014):

No "sentido" de um sintoma reunimos duas coisas: sua procedência e sua destinação ou motivação, ou seja, as impressões e vivências que o acarretaram e o propósito a que serve. A procedência de um sintoma se reduz, pois, a impressões vindas de fora, que já foram conscientes no passado, mas que o esquecimento pode ter tornado inconscientes. Mas a destinação de um sintoma, sua tendência, é sempre um processo endopsíquico, que pode haver se tornado consciente no início ou pode também jamais tê-lo sido, tendo permanecido desde sempre no inconsciente.

Ou seja, o "de onde" aponta para a proveniência histórica, de modo que um sintoma atual está ligado a uma experiência passada. Neste aspecto do sintoma, repousa seu caráter histórico-genético, que passa a ser pensado como causa. Já o "para quê" indica uma intenção, algo ainda não realizado, isto é, uma ação motivada que se dirige a um fim. Enquanto a psicanálise freudiana acabou privilegiando o "de onde" (as experiências infantis determinantes), a Daseinsanalyse dedica-se ao "para quê", ao "a fim de que" do comportamento tido como sintomático; volta-se ao sentido da ação, ao que esta existência realiza e cumpre agindo como age. Dasein, cujo ser é preocupação (Sorge), age sempre em virtude de si. Tendo seu ser em jogo, toda ação concerne, em última instância, o ser do Dasein. O martelar o martelo é articulado pelo poder abrigar-se das intempéries (Heidegger, 2012). O motivo de fechar uma janela é poder diminuir o barulho lá fora, explica Heidegger no Seminário de 9 de julho de 1964 em Zollikon, o que implica liberdade. Não há relação de necessidade entre antecedente e consequente. Explica o filósofo aos médicos:

O motivo não obriga. A pessoa não é obrigada, é livre. Ele me solicita fazer algo. O motivo é uma razão [Grund] que eu represento, que eu vivencio como algo que me determina. O motivo nesse caso é: quero sossego. [...] Do motivo faz parte faz parte o determinante, ouvir uma voz e corresponder a isso. Faz parte disso uma determinada relação com o mundo, uma situação determinada. O barulho não é causa do levantar (Boss e Heidegger, 1987/2009, p. 52).

Todo o gesto humano é um responder à significatividade que se apresente. Todo gesto humano é motivado. Assim, assumindo que o sofrimento existencial é um modo de ser do Dasein, conclui-se que não é passivo. É, pois, um modo de lidar com o próprio existir, é uma "resposta" à condição humana (Dasein) manifesta nas experiências ontológicas. "Quando o sujeito [...] é ativo no próprio sofrimento psíquico, então sua fraqueza manifesta simplesmente o preço por poder empreender veladamente os próprios interesses" (Holzhey-Kunz, 2018, p. 163). Os comportamentos chamados de sintomas são ações de uma existência que é, por condição, livre.

 

2. O sentido do sofrimento existencial

Na Daseinsanalyse de Holzhey-Kunz, os sintomas têm significados que podem ser explicitados. Mas, ao passo que na psicanálise o sintoma é fruto de reminiscências, na Daseinsanalyse sua origem é a condição existencial (Dasein, ser-aí). O sintoma revela o "sofrimento com o próprio ser" (Holzhey-Kunz, 2018, p. 166), é uma "experiência ontológica" (ontológico significa referente ao ser). Seu sentido pode (e deve) ser, portanto, desvelado pela hermenêutica na psicoterapia: trata-se de uma tentativa fracassada de ocultação da condição humana (Dasein) manifesta no cotidiano. A Daseinsanalista as define como situações em que se revela a condição de ser-aí finito dejecto no mundo público tendo que ser, unicamente responsável por si, a cada vez, corpóreo, em relação com outros e sujeito à angústia (experiência reveladora do próprio ser).

A condição humana (Dasein) pode se insinuar - e de fato se insinua - em razão de estar incluída ou implicada em cada experiência cotidiana. É a inclusão pré-ontológica de Dasein. Holzhey-Kunz retira de "Ser e Tempo" essa expressão. Lá, Heidegger (2012, p. 851) afirma que "Expressa ou não, adequada ou inadequadamente, a existência é de algum modo concomitantemente entendida. Todo entendimento ôntico tem suas "pressuposições" (Einschlüsse), embora sejam só pré-ontológicas..."1. O termo usado por Heidegger é Einschlüss, que significa "inclusão" ou "implicação".2 A inclusão pré-ontológica do Dasein, ou seja, o entendimento do ser (ontológico) implícito (não desenvolvido tematicamente) fundamenta toda possibilidade existencial (ôntica).

No mais das vezes, a condição ontológica permanece obscurecida por modos ocultadores de autointerpretação disponíveis no senso comum, que Heidegger nomeou "a-gente"3(das Man). O cotidiano público é caracterizado por isso. No "a-gente", diz o filósofo, "Cada um é o outro e nenhum é ele mesmo. A-gente, com a qual se responde à pergunta pelo quem do Dasein cotidiano, é o Ninguém ao qual todo Dasein já se entregou cada vez em seu ser-um-entre-outros" (2012, p. 367). Essa entrega à impessoalidade é descrita na página 367 parágrafo 38 de "Ser e Tempo" como tentadora, tranquilizante, "estranhante" e aprisionante. Para Holzhey-Kunz, trata-se de um mecanismo de defesa contra a verdade ontológica da existência: "fato de que eu tenho de viver minha própria vida sem as possibilidades de delegação da mesma" (2018, p. 48). Se o mecanismo de defesa falha, a verdade ontológica vem à tona.

A daseinsanalista exemplifica a inclusão pré-ontológica com situações banais: o desejar "bom dia" a alguém inclui (traz implícito) o fato de que não há garantias de como o dia será. Dizer "saúde" quando alguém espirra inclui (implica) o poder adoecer e, portanto, morrer. A existência "sabe" que seu ser está constantemente ameaçado; o ser-ameaçável (poder-não-ser) é constitutivo do existir. Mas a interpretação cotidiana pública encobre essa verdade ontológica com essas falas apaziguantes e as atribui, por exemplo, à educação e ao respeito.

Sem as interpretações da "a-gente" que fornecem explicações apaziguantes, o cotidiano seria impossível. Por exemplo, precisamos contar que estaremos vivos daqui a alguns anos para fazermos planos hoje e organizarmos nosso dia, mas a verdade ontológica do Dasein é que a morte pode acontecer a qualquer momento. É necessário ocultar essa possibilidade dada na condição humana para viver cotidianamente. Por esse motivo, as interpretações apaziguantes são ativamente buscadas, atualizadas e propagadas publicamente. Porém, quando alguém adoece, o entendimento de que se adoeceu está fundado na condição ontológica (pré-incluída) da finitude. Só faz sentido o adoecer sobre o pano de fundo da mortalidade.

Há três modos de proteção contra irrupções de experiências ontológicas: a ocupação cotidiana, o senso comum e os sentidos culturais. Na ocupação cotidiana, a existência esquece-se de si, absorvida por aquilo em que se ocupa. A existência, de início e no mais das vezes, se compreende à luz das ocupações. Quanto mais envolvido, mais seguro contra experiências ontológicas. O senso comum fornece máximas, expressas em ditados, que orientam, substitutivamente, a vida cotidiana. E cada cultura tem interpretações compartilhadas para as experiências existenciais básicas. Para nós, hoje, há uma multiplicidade de interpretações e sentidos para cada um apoiar sua vida, o que, por um lado, amplia o leque de visões de mundo encobridoras, mas, por outro, aumenta a carga do ter que se fazer de cada indivíduo. Esses três modos são coletivos, isto é, "a-gente" (das Man) se protege contra experiências ontológicas.

 

3. Sofrer com o próprio ser

A descrição fenomenológica da existência realizada por Heidegger em "Ser e Tempo" revela o caráter autoencobridor do próprio ser. Segundo o autor, "O que é onticamente mais próximo e conhecido é ontologicamente mais longínquo, não conhecido e constantemente deixado de lado em sua significação ontológica" (2012, p. 145). Em outras palavras, o existir cotidiano, perdido nos afazeres e na (auto)interpretação pública, encobre a si mesmo sua própria condição. Mas esse encobrimento é parcial, pois o ser da existência não é eliminado; é distorcido e mal compreendido, mas permanece inextirpável.

O sofrimento existencial é um modo de lidar com experiências ontológicas, isto é, aquelas que manifestam o ser de Dasein, sua condição. Assim, ao perguntar-se pela origem do sofrimento existencial, Holzhey-Kunz (2018, p. 166) responde que "o neurótico sofre com o próprio ser". Trata-se de um modo específico de relação com Dasein, por qual os mecanismos compartilhados de encobrimento da condição falham. Assim, o neurótico se mostra alguém mais sensível – ela usa a expressão de Boss "escuta aguçada" – à própria condição humana, mas seu cotidiano fica dificultado ou até mesmo impossibilitado por estar à mercê do que a ele se revela4.

Na psicanálise, os quadros chamados de psicóticos diferem dos neuróticos. Nesse paradigma, isso se deve a diferenças na estruturação do psiquismo. Na Daseinsanalyse essa divisão não faz sentido, pois a única estrutura é a existência. Portanto, também os modos de ser psicóticos são entendidos como tentativas por condição frustradas de encobrimento da condição humana. A existência que sofre tenta suprimir seu ser-aí, o que é impossível. Os quadros chamados tradicionalmente de psicóticos diferem dos neuróticos pela intensidade e pela abrangência. Enquanto a restrição neurótica se limita a um âmbito da existência, a restrição psicótica atravessa todo o ser-no-mundo.

 

4. Consequências para a psicoterapia

Como daseinsanalista que é, Holzhey-Kunz defende que se siga à risca a técnica freudiana. As três regras fundamentais da terapia são por ela defendidas: a livre associação, a escuta flutuante do analista e a abstinência tanto do paciente, no que diz respeito a falar seu desejo e não agir (act-out), no sentido de realizá-lo, na relação psicoterapêutica, quanto do analista, de não realizar o desejo do paciente, além de abster-se dos próprios. Portanto, cabe ao analista ser abstinente, ou seja, seu papel não é de entrar numa relação dialógica com o paciente e sim de ouvir com ele as experiências de ser indicativas de como lida com seu existir. Mais especificamente, considerando que quem procura psicoterapia está sofrendo com seu próprio ser, de deixar que apareçam os sentidos ocultos nos sintomas. Para isso, a relação psicoterapêutica precisa ser assimétrica.

Tal modo de estar com o paciente e o conhecimento da condição existencial contribuem para que o psicoterapeuta possa escutar as experiências filosóficas do paciente, ou seja, as experiências ontológicas encobertas por interpretações ônticas. Uma experiência angustiante inclui a angústia ontológica. O paciente deseja livrar-se dos sentimentos de angústia, mas, para isso, precisa dar ouvidos para a angústia como a condição de estar lançado sem causa nem fundamento nem determinações de como deve ser, entregue ao fato de que é e tem que ser. O psicoterapeuta precisa ter uma escuta filosófica para a verdade ontológica incluída na experiência do paciente.

 

Referências

Boss, M.; Heidegger, M. (2009) Os Seminários de Zollikon - Protocolos, Diálogos, Cartas. Trad. Fátima Almeida Prado. Petrópolis, RJ: Vozes. (1987/2009)        [ Links ]

Dastur, F.; Cabestan, P. (2015) Daseinsanálise: Fenomenologia e Psicanálise. Trad. Alexandre de Carvalho. Rio de Janeiro: Via Verita.         [ Links ]

Freud, S. (2014) Teoria geral das neuroses. Em: Freud, Sigmund. 1917/2014 Conferências introdutórias à psicanálise (1916-1917). (Obras Completas Vol. 13). Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras. (1917/2014)         [ Links ]

Heidegger, M. (2012) Ser e Tempo. Trad. Fausto Castilho. Campinas, SP; Editora da Unicamp; Petrópolis, RJ: Editora Vozes. (1927/2012)        [ Links ]

Holzhey-Kunz, A. (2018) Daseinsanálise: O olhar filosófico-existencial sobre o sofrimento psíquico e sua terapia. Trad. Marco Casanova. Rio de Janeiro: Via Verita.         [ Links ]

Holzhey-Kunz, A.; Fazekas, T. (2012) Daseinsanalysis: a dialogue. In: Barnett, Laura; Madison, Greg. 2012. Existential Therapy - Legacy, Vibrancy, and Dialogue. London and New York: Routledge. p. 35-52.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista
E-mail: pauloeevangelista@gmail.com

 

 

1 Fausto Castilho utiliza "pressuposições" em sua tradução de "Ser e Tempo". Na tradução de Márcia Schuback aparece como "implicação". A versão brasileira do livro de Holzhey-Kunz traduz por "inclusão" e a inglesa por "inclusion". Por isso, mantenho neste artigo o termo "inclusão pré-ontológica".
2 Em outra passagem de "Ser e Tempo", Heidegger escreve: "Se o ser-no-mundo é uma constituição-fundamental do Dasein, na qual ele se move não só em geral, mas principalmente no modus da cotidianidade, então o ser-no-mundo já deve ser sempre onticamente experimentado. Seria incompreensível que permanecesse totalmente encoberto, uma vez que o Dasein dispõe de um entendimento-de-ser de si mesmo, embora sua função esteja indeterminada".
3 Marcia Schuback traduziu interpretativamente "Das Man" por "O Impessoal".
4 Isso o torna aquele que sofre com seu ser um "filósofo contra sua vontade" (2018, p. 167).

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