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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.21 no.2 São Paulo jul./dez. 2019

 

ARTIGOS

 

Psicologia Racional e Antropologia Empírica em Kant1

 

Rational Psychology and Empirical Anthropology in Kant

 

 

Alexandre Hahn2

Professor Adjunto da Universidade de Brasília / E-mail: hahn.alexandre@gmail.com

 

 


RESUMO

O presente artigo busca destacar a importância dos "Paralogismos da razão pura" para o projeto kantiano de uma antropologia empírica sistematicamente constituída, isto é, uma ciência do homem. Mais precisamente, defenderá que o principal resultado da crítica à psicologia racional (enquanto doutrina da alma) foi garantir a possibilidade lógica do "eu numênico". Isso permitiu que o homem fosse pensado como agente livre, capaz de fazer algo de si mesmo, superando sua condição de mero produto da natureza. Essa ideia de homem é fundamental para a antropologia kantiana, uma vez que ordena e dirige os conhecimentos empiricamente adquiridos, dando a eles unidade sistemática.

Palavras-chave: psicologia racional; eu numênico; ideia de homem; antropologia empírica.


ABSTRACT

This paper aims to highlight the relevance of the "Paralogisms of pure reason" for the Kantian project of an empirical systematically designed anthropology, that is, a science of man. Particularly, I will argue that the main result of Kant's criticism of rational psychology (as a doctrine of soul) was to ensure the logical possibility of the "noumenal self". That has turned possible to conceive the man as a free acting being, capable of making something of himself, and not just as a product of nature. This idea of man is fundamental to the Kantian anthropology since it orders and directs the empirically acquired knowledge, giving it systematic unity.

Keywords: rational psychology; noumenal self; idea of man; empirical anthropology.


 

 

1. Introdução

A antropologia foi um dos assuntos que mais recebeu atenção de Immanuel Kant ao longo da sua trajetória intelectual. Além das "Preleções sobre antropologia"3, ministradas entre 1772 e 1796 como cursos de inverno na Universidade de Königsberg, e que resultaram na "Antropologia de um ponto de vista pragmático" (de 1798), o tema esteve presente em diversas cartas4, bem como em várias outras obras publicadas5 e nos manuscritos póstumos do filósofo6. Alguns intérpretes chegam a defender, inspirados em célebre passagem da "Lógica"7, que a filosofia kantiana, no seu conjunto, constitui uma antropologia filosófica8. Por isso, é surpreendente que seja tratada por vários outros intérpretes, especialistas no pensamento kantiano, como um tópico periférico e secundário9.

Aparentemente, a explicação para esse cenário reside no suposto tratamento assistemático que o tema recebeu do filósofo. Na única obra exclusivamente dedicada ao assunto, faltaria uma tese acerca da natureza humana, que responderia à questão fundamental "que é o homem?", ou seja, uma ideia da forma de um todo que conectaria sistematicamente todas as observações empiricamente coletadas. Esta é a visão de Reinhard Brandt, um dos editores do volume 25 da Academia, dedicado às "Preleções sobre antropologia". Para ele, a "Antropologia" não é organizada segundo uma ideia da razão, pois "o conceito de ideia não é utilizado no sentido de um conceito a priori da razão, mas sim de forma não terminológica" (Brandt, 1999, p. 9), pouco rigorosa e, por isso, essa obra não constituiria um sistema no sentido estrito. Em outras palavras, ela não passaria de uma "enciclopédia da filosofia kantiana em nível empírico" (Brandt, 1999, p. 8). Friedrich Schleiermacher segue a mesma linha ao afirmar, em sua resenha crítica da "Antropologia", que esta carece de um princípio de organização (Eintheilungsprinzip), uma vez que "as divisões inferiores vão de um lado para o outro, [e] o título e o conteúdo são com frequência completamente estranhos um ao outro" (Schleiermacher, 1984, p. 368). Por esse motivo, o livro não passaria de "uma coletânea de trivialidades" (Schleiermacher, 1984, p. 365), seria insignificante e de pouco valor, e, por não abordar o homem sistematicamente, não constituiria uma obra (Schleiermacher, 1984, p. 367) em sentido rigoroso.

Como, no entanto, Kant considera sua "Antropologia" uma "doutrina sistematicamente composta (systematisch abgefasst) do conhecimento do ser humano" (Anth, AA07, p. 119), uma investigação "sistematicamente projetada (systematisch entworfene)" (Anth, AA07, p. 121), e dado que a sistematicidade (unidade) de um conjunto de conhecimentos diversos supõe uma ideia, isto é, "o conceito racional da forma de um todo" (KrV, A832/B860), parece evidente que deve haver uma ideia de homem na base dessa doutrina. Do contrário, como o público leitor da "Antropologia" poderia, conforme afirma o filósofo, reunir suas próprias observações (conhecimentos locais) acerca do homem "num todo pela unidade do plano" (Anth, AA07, p. 122)?

Ao que parece, para intérpretes como Brandt, não está claro que ideia é essa e muito menos qual a sua origem. Seria esse um conceito a priori da razão ou um conceito adquirido empiricamente? Como o homem é definido por esse conceito? Para o referido intérprete, visto que não julga se tratar de uma ideia da razão, provavelmente se trataria de um conceito empírico. Mas, nesse caso, como explicar que Kant conceba o homem como um "ser que age livremente" (Anth, AA07, p. 119) e que, por isso, mais do que mero produto da natureza, é capaz de fazer algo de si mesmo (estabelecer seu próprio caráter moral)? Além disso, como interpretar a afirmação de que a capacidade de "ter o eu em sua representação", isto é, a "unidade da consciência em todas as modificações que lhe possam suceder", é algo que eleva o ser humano "infinitamente acima de todos os demais seres que vivem na terra" (Anth, AA07, p. 127) senão como uma amostra da espontaneidade humana?

Seguindo a máxima de que "no sistema o todo está antes das partes" (PG, AA09, p. 158), na antropologia kantiana "os conhecimentos gerais sempre precedem os conhecimentos locais" (Anth, AA07, p. 120). Isso equivale, conforme o filósofo, a dizer que a antropologia deve "ser ordenada e dirigida pela filosofia" (Anth, AA07, p. 120). Tendo em vista que essa também é a condição para que todos os conhecimentos empiricamente adquiridos formem uma ciência, é importante compreender como a filosofia cumpre essa tarefa ordenadora e diretora. Parece uma hipótese plausível que isso ocorra por meio da ideia de homem, já que esta permitiria "[determinar] a priori, tanto o âmbito do diverso, como o respectivo lugar das partes [no todo]" (KrV, A832/B860). Mas, para tanto, é necessário que essa ideia seja, de fato, um conceito a priori da razão.

Para que a ideia de homem seja um conceito a priori da razão, obviamente não pode ter sido extraída de conhecimentos locais, empiricamente adquiridos. Em vez disso, tem de ter sido formulada e justificada a priori pela filosofia pura, fora da antropologia empírica. Se levarmos a sério a afirmação kantiana de que metafísica, moral e religião podem ser reduzidas à antropologia, já que as suas questões remetem à questão da última (Log, AA09, p. 25), então a resposta à questão "que é o homem?", isto é, a ideia que define o ser humano, deve poder ser derivada das respostas fornecidas às primeiras questões.

Tendo em vista que o homem é definido como ser livre e que a liberdade só pode ser concebida como causalidade inteligível de uma coisa em si (KrV, A538/B566), além do seu caráter fenomênico como sujeito do mundo dos sentidos, a ele também deve poder ser atribuído um caráter inteligível (KrV, A539/B567). Contudo, para tanto, é necessário que também possa ser afirmado como sujeito numênico. Nos "Paralogismos da razão pura", o filósofo procurou mostrar que embora não se possa conhecer o "eu pensante" tal como é em si mesmo (KrV, A401-402; B406-407; B420), dada a impossibilidade da psicologia racional como doutrina racional da alma (KrV, A342-343/B400-401; A381-382), nada impede que este seja pensado como sujeito numênico (KrV, B423-424).

O presente trabalho visa destacar a importância fundamental do mencionado resultado dos "Paralogismos" para o projeto kantiano de uma antropologia sistematicamente constituída. Nesse sentido, primeiro apresentará a antropologia como uma ciência empírica e destacará a função ordenadora exercida pela filosofia. Em seguida, defenderá que a crítica kantiana à psicologia racional deve ser entendida como uma crítica ao modelo filosófico de conhecimento do homem em vigor no século XVIII. Depois, mostrará em que consiste o raciocínio equivocado da razão especulativa, quando esta ultrapassa os limites da experiência possível para afirmar a realidade do sujeito pensante. Por fim, explorará algumas implicações da possibilidade lógica do "eu pensante" para uma antropologia como ciência empírica do homem.

 

2. Antropologia como ciência empírica e a função ordenadora da filosofia

Ainda que as primeiras teorias acerca do homem remontem à Antiguidade Clássica, é no Renascimento que as questões relativas à natureza humana começam a ser expressas ou subsumidas sob o termo antropologia (Zammito, 2002, p. 435-436). Todavia, apenas na segunda metade do século XVIII a antropologia adquire o sentido específico de disciplina acadêmica autônoma, ao assumir um foco de investigação, isto é, um "programa de pesquisa" ou "paradigma" (Zammito, 2002, p. 4). Para Zammito, o discurso antropológico acadêmico desse período é resultado da convergência de diversos modelos distintos de investigação do homem, a saber, "o modelo médico da psicologia fisiológica, o modelo biológico da alma animal, o modelo pragmático ou conjectural da teoria histórico-cultural, o modelo literário-psicológico do novo romance e o modelo filosófico de uma psicologia racional" (Zammito, 2002, p. 221-222).

Kant exerceu importante papel na gênese da antropologia como disciplina acadêmica, já que a introduziu na Universidade de Königsberg (Br, AA10, p. 145) e a ofertou regularmente por 24 anos, a cada semestre de inverno entre 1772 e 1796. Em suas preleções sobre antropologia, que provavelmente se beneficiaram de insights extraídos dos diversos modelos mencionados, o filósofo se mostrou empenhado em desenvolver um modelo científico de investigação do homem que proporcionasse mais do que um mero tatear fragmentário (Anth, AA07, p. 120). Inicialmente, nas preleções de 1772/7310, por entender se tratar de um conhecimento teórico extraído da observação e da experiência (V-Anth/Collins, AA25, p. 7), identificava a antropologia com a psicologia empírica, concebendo-a como fisiologia ou doutrina natural dos fenômenos do sentido interno (V-Anth/Collins, AA25, p. 7; V-Anth/Parow, AA25, p. 243). Nesse contexto, imputou a situação pré-científica da antropologia ao equívoco em tratar a psicologia empírica como parte da metafísica. A mudança desse cenário passaria, segundo ele, pela emancipação da psicologia empírica em relação à metafísica (V-Anth/Collins, AA25, p. 8; V-Anth/Parow, AA25, p. 243-244).

Nas preleções posteriores, ainda que a organização baseada na psicologia empírica de Alexander Baumgarten11 tenha sido conservada (V-Anth/Mron, AA25, p. 1214), aos poucos a antropologia kantiana foi se afastando da psicologia empírica até culminar na completa negação da identidade entre ambas (Refl, AA15, p. 800-801; Anth, AA07, p. 161). Para os editores do volume 25 da Academia, o filósofo quis com isso salientar que a antropologia deve "se ocupar com o ser humano por inteiro, e não apenas com a sua alma" (Brandt; Stark, 1997, p. 11). Neste sentido, a partir das preleções de 1775/76, Kant começa a designar sua antropologia um conhecimento pragmático do mundo, visando distingui-la de possíveis conhecimentos teóricos acerca do homem (V-Anth/Fried, AA25, p. 469), como aqueles tratados na psicologia e na fisiologia (V-Anth/Mensch, AA25, p. 855). Mas, embora tenha indicado que a sistematicidade desse conhecimento do mundo se assenta na "ideia do todo" (V-Anth/Fried, AA25, p. 470), não deixou claro a que ideia se referia e nem qual seria sua origem.

Como em um sistema a ideia deve preceder o todo das partes e conferir a cada parte um lugar no todo, isso significa que tal ideia não pode ser derivada do todo resultante da mera justaposição das partes (o agregado). Nesse sentido, uma vez que se trata de um conhecimento sistemático do mundo, a antropologia não poderia se basear em uma ideia abstraída do diverso da experiência. Por isso, apesar de ser concebida como uma ciência empírica nas preleções de 1775/76, não era considerada por Kant um conhecimento local, ou seja, uma mera descrição das pessoas de um determinado local12. Em vez disso, foi idealizada como caracterização da natureza humana, isto é, um conhecimento geral que permitiria ajuizar o que subjaz cada pessoa (V-Anth/Fried, AA25, p. 471).

Nas preleções de 1777/78, a antropologia continuou a ser caracterizada como conhecimento geral do mundo, em oposição ao conhecimento local do mundo. Deixou, no entanto, de ser considerada simplesmente empírica e passou a ser designada como conhecimento cosmológico. Não está claro o que exatamente Kant queria dizer com isso, já que reputava diversas fontes empíricas13 como alternativas à extensa experiência adquirida por um viajante distraído (sem reflexão), que não sabe a que evento deve prestar atenção (V-Anth/Pillau, AA25, p. 734). Aparentemente, visava afastar a limitação espacial e temporal, própria do conhecimento empírico particular, bem como acentuar que apenas um conhecimento cosmológico poderia fornecer regras pragmáticas para orientar o agir da vida cotidiana.

Nas preleções de 1781/82, o filósofo voltou a destacar que a aquisição empírica do conhecimento antropológico deve ser orientada por ideias básicas, isto é, por uma reflexão prévia sobre a diversidade e o característico no homem14. Para ele, sem tais ideias, a experiência do convívio com os outros indivíduos pouco ensinaria acerca dos seres humanos como um todo, pois não se saberia a que elemento precisamente se deveria prestar atenção (V-Anth/Mensch, AA25, p. 854). Por isso, enxerga nessa instrução prévia uma condição indispensável para alargar as experiências e fazer progredir o conhecimento antropológico (V-Anth/Mensch, AA25, p. 855). Mas, novamente, não está claro o que entendia por tais ideias e de qual fonte deveriam ser derivadas. Nesse sentido, ainda que o objetivo da sua antropologia fosse extrair regras da experiência da diversidade humana sobre como os homens se comportam (a despeito da sua aparente irregularidade), isso não significa que as ideias que deveriam guiar a investigação antropológica também fossem empíricas.

Nas preleções de 1784/85 e 1788/89, Kant destacava certos obstáculos envolvidos na aquisição do conhecimento antropológico a partir da experiência. Mais precisamente, o fato de o objeto (homem) não se revelar claramente ao observador, mesmo quando este último sabe o que deve observar. Conforme o filósofo, embora possa parecer mais fácil observar a si mesmo do que aos outros, já que o observador sempre tem a si mesmo à mão e pode se comparar a outros, dificilmente esse sujeito observa a si quando realmente importa (V-Anth/Mron, AA25, p. 1214)15. Por outro lado, como as pessoas costumam dissimular seus verdadeiros caracteres tão logo se percebem alvo de observação, observar os outros também não seria um empreendimento mais fácil. Além disso, uma vez que não é possível comparar os seres humanos com outros seres racionais, conhecer a humanidade (a espécie humana) é um empreendimento igualmente difícil. Mas, apesar de reconhecer a imperfeição da sua antropologia pragmática, reiterava a importância e utilidade da mesma para a educação, religião, moral e no trato com os outros (V-Anth/Busolt, AA25, p. 1437).

Em suma, a antropologia kantiana foi concebida nas mencionadas preleções como uma ciência empírica, já que seus dados deveriam ser extraídos da experiência (V-Anth/Busolt, AA25, p. 1436) e reunidos sistematicamente segundo um método (V-Anth/Busolt, AA25, p. 1435). Esse método, embora não tenha sido detalhado pelo filósofo, pode ser descrito como o procedimento segundo o qual os dados empíricos são ordenados em um plano e recebem um lugar no todo, previamente concebido como ideia. Portanto, a execução desse método e, consequentemente, a cientificidade da antropologia kantiana dependem fundamentalmente dessa ideia16 do todo, ou seja, da ideia de homem.

Não obstante a falta de clareza do filósofo quanto ao conteúdo e à origem dessa ideia, as "Preleções" apresentam o homem como um ser livre (V-Anth/Pillau, AA25, p. 733), dotado de diversas faculdades espontâneas (conhecer, sentir prazer e desprazer, e desejar). Como essa ideia de homem deve ser anterior à experiência, e porque esta última não permite afirmar a liberdade humana, a primeira não poderia ter sido derivada da antropologia. Por isso, é plausível supor que tenha sido objeto de discussão da filosofia pura e que seja um produto da razão pura.

O fato de Kant afirmar que todas as questões do campo da filosofia remetem à questão acerca do homem (Log, AA09, p. 25) parece corroborar a hipótese de que, em suas obras sobre metafísica e moral17, particularmente na "Crítica da razão pura" e na "Crítica da razão prática", foi desenvolvida uma antropologia filosófica. Segundo esse raciocínio, ao invés de apresentarem uma resposta direta à questão "que é o homem?", ou seja, um conhecimento objetivo acerca da natureza humana, essas obras teriam contribuído para a concepção de uma ideia de homem, um conceito racional para se pensar e conferir unidade ao conjunto das peculiaridades e características humanas conhecidas pela experiência.

Em uma importante passagem da primeira "Crítica", Kant assevera que, "se [...] todo conhecimento se inicia com a experiência, isso não prova que todo ele derive da experiência" (KrV, B1). Se for possível aplicar essa tese à antropologia, é evidente que, embora não seja possível conhecer o homem sem a experiência, também não se deveria considerá-la a única fonte para o conhecimento antropológico. Nesse espírito, parece claro que a ideia diretora da investigação empírica do homem tem de ser extraída de uma fonte a priori, como a razão pura, e que cabe à filosofia essa tarefa. A filosofia estaria, portanto, incumbida de fornecer o plano racional para a referida investigação, fazendo com que as observações deixem de ser realizadas ao acaso18. Isso explica por que Kant afirmava que sem o direcionamento e ordenamento da filosofia todos os conhecimentos adquiridos pela antropologia "não podem proporcionar senão um tatear fragmentário, e não uma ciência" (Anth, AA07, p. 120). Sendo assim, antes que as observações possam ser realizadas pela antropologia empírica, a filosofia tem de se ocupar da definição do conceito racional de homem, pelo qual a primeira deve orientar suas observações.

 

3. Pressupostos da crítica kantiana à psicologia racional

No século XVIII, ao mesmo tempo em que Kant, segundo nossa perspectiva, atribuía à filosofia a modesta função de definir e fundamentar a ideia de homem, vigorava outro modelo filosófico de investigação do homem que prometia acesso privilegiado à natureza humana, revelando a essência do ser humano. Entre muitos filósofos da época, existia o tácito consenso de que conhecer o homem significava conhecer sua alma ou seu "eu" como coisa em si. Cabia, neste sentido, à psicologia racional a tarefa de abordá-lo exclusivamente a partir de suas propriedades imateriais (não corpóreas), bem como de suas faculdades espirituais (mentais) - ressaltando especialmente a racionalidade. Contudo, por se restringir a uma análise conceitual da alma, sem qualquer auxílio da experiência, tal investigação poderia produzir apenas um questionável saber metafísico. Tudo indica que, concomitantemente à investigação empírica do homem e à discussão filosófica da ideia de homem, Kant buscou avaliar, nos "Paralogismos da razão pura" da primeira "Crítica"19, esse modelo filosófico da psicologia racional, verificando se poderia ser considerada uma ciência.

Tradicionalmente, os "Paralogismos" são vistos como uma crítica direcionada à psicologia racionalista de René Descartes e Gottfried von Leibniz, já que estes advogavam uma ciência da alma fundada exclusivamente sobre o "eu penso", do qual seriam extraídas diversas consequências. Contudo, se os alvos eram tais filósofos, soa enigmático o protesto supostamente dirigido à tentativa de se dar um fundamento empírico à unidade meramente formal da alma (KrV, A353-354, p. 361). Em vista disso, Corey Dick (2014, p. 1-3) defende que o verdadeiro alvo dos "Paralogismos" foi a psicologia racional desenvolvida e debatida na Alemanha do século XVIII por Christian Wolff, Alexander Baumgarten e seus seguidores. Para eles, as inferências da psicologia racional relativas à substancialidade, simplicidade, personalidade e imortalidade fundavam-se em uma experiência empírica da alma. Wolff entendia que havia um casamento entre psicologia racional e psicologia empírica.

Segundo Dick, ainda que Kant adotasse esse ponto de vista wolffiano por volta dos anos 1770, o filósofo insistia que muitas das afirmações feitas por Baumgarten e outros wolffianos, particularmente com respeito à imortalidade, não estavam suficientemente amparadas por evidências da intuição empírica (Dyck, 2014, p. 60-69). O divórcio kantiano entre psicologia racional e empírica teria ocorrido na "Crítica da razão pura" ao expor a ilusão, própria do entendimento wolffiano acerca da alma, de tomar um objeto intelectual (o "eu" do "eu penso") como se fosse empiricamente dado e afirmar que a alma é substância.

Nas "Preleções sobre antropologia" já era possível identificar o esforço kantiano de afastar a psicologia empírica da metafísica (psicologia racional). Naquele contexto, o motivo para separá-las seria o prejuízo que a psicologia empírica sofria ao ser tratada como parte da metafísica, pois não receberia a mesma atenção que recebem as disciplinas maiores da metafísica (ontologia, cosmologia e teologia), o que explicaria o fato de ter sido continuamente negligenciada e não ter se transformado em uma ciência coesa (V-Anth/Collins, AA25, p. 7-8). Indícios mostram, no entanto, que essa cisão é resultado de um processo anterior, ocorrido no interior das "Preleções sobre metafísica", no qual Kant primeiro adere à justificativa didática de Wolff para realocar a psicologia empírica no interior da metafísica e, em seguida, critica as concepções wolffianas de conhecimento sensível e intelectual.

Nas "Preleções sobre metafísica" da década de 1760, conforme consta no "Anúncio do programa das preleções do semestre de inverno de 1765-66" (NEV, AA02, p. 308-309), Kant propôs uma nova ordem de exposição das disciplinas integrantes da metafísica em relação àquela que constava no manual de Metafísica de Baumgarten. Por razões metodológicas, a referida preleção deveria iniciar pela psicologia empírica e não mais pela ontologia. O filósofo estava convencido de que era necessário ajustar o método então empregado para o ensino dos jovens, considerando o estágio de amadurecimento intelectual dos mesmos, a fim de torná-lo mais adequado à natureza cognitiva do ser humano20. A adoção do método zetético21 não apenas seria o mais adequado para esse propósito, mas também eliminaria vários problemas decorrentes do método então em vigor na metafísica22. Essa alteração de método sinalizava uma preocupação didática de inspiração wolffiana. Wolff já havia proposto o reordenamento das disciplinas metafísicas, colocando a psicologia empírica à frente da cosmologia, com a finalidade de proceder didaticamente do mais fácil para o mais difícil (Wolff, 1733, p. 232).

Na década de 1760, Kant aparentemente se manteve fiel à postura wolffiana de continuar tratando a psicologia empírica como uma disciplina metafísica (Wolff, 1733, p. 8; p. 211; p. 231-232). Abandonou essa posição apenas a partir da "Dissertação de 1770", quando pôs em xeque certos pressupostos epistemológicos que fundamentavam a disjunção wolffiana da psicologia em empírica e racional. Wolff acreditava poder explicar as representações claras e obscuras acerca das coisas a partir da divisão da alma em uma parte inferior e outra superior. A primeira seria responsável pelas representações obscuras e indistintas de origem empírica, ao passo que a segunda por aquelas claras e distintas de origem racional (Wolff, 1733, p. 254). Por isso, tendo em vista que a psicologia era definida como a ciência da alma e tinha de se ajustar à divisão da alma, também deveria ser bipartida23.

Kant discordava da concepção wolffiana que atribuía à escala lógica de clareza e distinção a diferença entre conhecimento empírico e racional24. Para ele, essa diferença se devia exclusivamente à heterogeneidade das fontes e dos objetos (MSI, AA02, p. 392-397) e seria um erro apresentar "o sensível como aquilo que é conhecido confusamente e o intelectual como aquilo cujo conhecimento é distinto" (MSI, AA02, p. 394). Estava convicto, em 1770, que fenômenos e númenos eram constituídos de naturezas essencialmente diferentes: enquanto os primeiros seriam objetos apreendidos intuitivamente pela sensibilidade, os segundos seriam objetos concebidos independentemente dos dados intuitivos, por abstração, a partir de leis inatas à mente humana (MSI, AA02, p. 394). Logo, tais objetos teriam de engendrar, inevitavelmente, conhecimentos essencialmente diferentes25.

Na primeira "Crítica", além de manter a separação entre psicologia empírica e racional (KrV, A342/B400), Kant distinguiu a situação epistêmica de ambas. Enquanto admitia a possibilidade da psicologia empírica, como "uma espécie de fisiologia do sentido interno" (KrV, A347/B405)26, negava explicitamente que a psicologia racional constituísse uma ciência, capaz de alargar seus conhecimentos para além dos limites da experiência (KrV, A361; A381-382).

 

4. Crítica à doutrina racional da alma e a psicologia racional como disciplina

Os "Paralogismos da razão pura" constituem uma rigorosa crítica à pretensão metafísica de se obter conhecimento teórico acerca da alma humana ou da natureza do "sujeito pensante". Nesse sentido, ao revelar o raciocínio sofístico que origina essa suposta doutrina racional da alma, visaram denunciar o equívoco sobre o qual foi erigida a psicologia racional. Para Kant, em um paralogismo transcendental da razão pura, o "raciocínio vicioso fundamenta-se na natureza da razão humana e traz consigo uma ilusão inevitável, embora não insolúvel" (KrV, A341/B399). Trata-se de um raciocínio dialético, no qual se infere a unidade absoluta do sujeito pensante, do qual não se tem qualquer conceito, exclusivamente do seu conceito transcendental, que nada contém de diverso (KrV, A340/B398). Essa unidade absoluta do sujeito pensante é, por sua vez, conteúdo de um conceito da razão pura (ideia transcendental).

Conceitos da razão pura servem, conforme Kant, para "[determinar], segundo princípios, o uso do entendimento no conjunto da experiência" (KrV, A321/B377). Nesse sentido, enquanto "conceito da totalidade das condições relativamente a um condicionado dado", isto é, como "conceito do incondicionado, na medida em que contém um fundamento da síntese do condicionado" (KrV, A322/B379), ele cumpre a função de dar unidade ao conhecimento condicionado do entendimento (KrV, A307/B364). Tais conceitos resultariam, portanto, da aplicação da forma lógica dos raciocínios à "unidade sintética das intuições, segundo a norma das categorias" (KrV, A321/B377). Como existem três relações que o entendimento se representa mediante as categorias (KrV, A323/B379), deve haver igualmente três espécies de conceitos puros da razão (ideias transcendentais): "mundo" e "Deus" são respectivamente conceitos do incondicionado da síntese "hipotética dos membros de uma série" e da síntese "disjuntiva das partes num sistema"; já a "alma" seria o conceito do "incondicionado da síntese categórica num sujeito" (KrV, A323/B379). Kant entende que tais conceitos são necessários na medida em que prescrevem a tarefa de fazer progredir, tanto quanto possível, a unidade do entendimento ao incondicionado, e estão fundados na natureza da razão humana, ainda que, de resto, falte a estes conceitos transcendentais um uso adequado in concreto e, assim, não tenham outra utilidade que não seja a de conduzir o entendimento numa direção em que o seu uso, ampliando-se o mais possível, se mantenha, ao mesmo tempo, sempre perfeitamente de acordo consigo mesmo (KrV, A323/B380).

Mas, porque não podem ser dados in concreto de maneira adequada, tais conceitos permanecem sempre meras ideias ou um problema sem solução (KrV, A328/B384). Apesar disso, não se deveria considerá-las supérfluas ou arbitrárias, uma vez que são dadas pela própria natureza da razão e "servem ao entendimento de cânone que lhe permite estender o seu uso e torná-lo homogêneo; por meio deles o conhecimento não conhece [...] qualquer objeto [...], mas será mais bem dirigido e irá mais longe neste conhecimento" (KrV, A329/B385). Além disso, podem "estabelecer uma transição entre os conceitos da natureza e os conceitos práticos e assim proporcionar consistência às ideias morais e um vínculo com os conhecimentos especulativos da razão" (KrV, A329/B386).

Com sua crítica, Kant pretendeu afastar a ilusão de se atribuir realidade objetiva a tais conceitos ou ideias transcendentais (KrV, A339/B397). Para ele, ainda que nunca nos libertemos por completo da sua aparência transcendental, não devemos atribuir realidade objetiva às ideias transcendentais, pois nenhum objeto que lhe corresponda "pode ser dado nos sentidos" (KrV, A327/B384), por serem "transcendentes e [ultrapassarem] os limites de toda a experiência" (KrV, A327/B384). Para tanto, os "Paralogismos da razão pura"27 devem revelar a natureza falaciosa do raciocínio que funda a ideia da alma.

A psicologia racional foi definida por Kant como "uma pretensa ciência, edificada sobre [a] singular proposição eu penso" (KrV, A342/B400). Na primeira "Crítica", essa proposição foi entendida como uma representação espontânea da autoconsciência originária (apercepção pura), cuja função seria conferir unidade lógica às representações do diverso da sensibilidade (KrV, B132). Partindo exclusivamente desse conceito do "eu da apercepção pura" (KrV, B400; B407), a psicologia racional pretendia inferir um conhecimento sintético da alma. Em vista disso, examinamos o paralogismo fundamental da psicologia racional, visando mostrar porque a substancialidade da alma não pode ser derivada do "sujeito lógico constante do pensamento" (KrV, A350). O paralogismo em questão foi exposto na forma do seguinte silogismo:

O que só pode ser pensado como sujeito, só como sujeito existe e é, portanto, substância.

Ora, um ser pensante, considerado unicamente como tal, só pode ser pensado como sujeito.

Portanto, também só existe como tal, isto é, como substância (KrV, B410-411).

Esse silogismo deveria conectar o termo maior "substância" com o termo menor "ser pensante", a fim de poder inferir que um ser pensante só existe como substância.

Ocorre, contudo, que o termo médio "o que só pode ser pensado como sujeito" não significa o mesmo nas premissas maior e menor. Enquanto na primeira premissa ele se refere ao que poderia ser dado na intuição sensível como objeto, na segunda, faz alusão ao sujeito puro como forma do pensamento (KrV, B411). Portanto, a conclusão tem de ser declarada inválida, já que resulta de uma inferência enganosa, ou seja, de uma falácia de ambiguidade.

Dado que não possui realidade objetiva o conceito de algo que existe apenas como sujeito (e não como mero predicado)28, dele não resulta qualquer conhecimento. Para que esse conceito ensejasse conhecimento sobre o sujeito, seria necessário que houvesse "por fundamento uma intuição permanente" (KrV, B412), isto é, algo subsistente por si. No entanto, como o "eu lógico" é tão só a consciência do próprio pensamento, nada há de permanente na intuição interna (KrV, B412-413). Logo, segundo o filósofo, falta "a condição necessária para aplicar a si mesmo, como ser pensante, o conceito de substância" (KrV, B413).

Entendido como unidade da autoconsciência, o sujeito lógico é condição de todo pensamento, bem como de qualquer conhecimento dos objetos. Mas, como "aquilo que devo pressupor para conhecer em geral um objeto, não o posso, por sua vez, conhecer como objeto" (KrV, A402), esse "eu determinante" do pensamento (o eu da apercepção pura) não é "determinável" como objeto (KrV, B407). Nesse sentido, na visão de Kant, o equívoco fundamental da psicologia racional é ter tomado a unidade lógica da consciência (o eu lógico) "como uma intuição do sujeito enquanto objeto, e [...] a ela aplicado a categoria da substância" (KrV, B421-422).

O resultado dos "Paralogismos" demonstra a impossibilidade da psicologia racional como ciência, ou seja, como doutrina racional da alma. Mostra que essa pseudociência é incapaz de aumentar o conhecimento sobre a natureza do sujeito pensante (o homem). Mas o mérito dos "Paralogismos" não se esgota na sua utilidade negativa, de afastar a razão especulativa das aparências que a iludem quando ultrapassa os limites da experiência. Ao conceber a psicologia racional "como disciplina que fixa limites inultrapassáveis à razão especulativa" (KrV, B421), também mostram ter uma utilidade positiva, pois, ao mesmo tempo em que impede que essa razão "se perca nas extravagâncias de um espiritualismo sem fundamento", também evita que "se entregue ao materialismo sem alma" (KrV, B421). Logo, assegura que o "eu" não seja inteiramente reduzido ao fenômeno (KrV, B428) e possa ser ao menos pensado como númeno. Assim, ainda que não seja possível conhecer o "eu numênico", seu conceito é perfeitamente concebível29.

Ora, se o conceito do "eu numênico" é possível, isso significa que o "eu" pode ser pensado independentemente das condições da experiência, isto é, das condições espaço-temporais da sensibilidade e, portanto, como membro de um mundo inteligível, detentor de "uma espontaneidade absoluta pela qual a [sua] realidade seria determinável" (KrV, B430). Assim, se pode ser pensado como um ser livre, então também pode ser considerado um sujeito moral (pessoa)30, capaz de se autodeterminar por intermédio da sua razão moral-prática (MS, AA06, p. 434). Esse resultado de forma alguma amplia o conhecimento acerca da natureza do "sujeito pensante", pois, quando este pensa a si mesmo como livre, se refere apenas ao uso prático que pode fazer da sua razão para guiar suas ações (KrV, B431-432).

 

5. A ideia de homem e a antropologia filosófica

Na "Antropologia", Kant considera o homem um ser livre que faz, pode e deve fazer algo de si mesmo (Anth, AA07, p. 119), ou seja, não um mero produto ou espectador do jogo da natureza. Trata-se, portanto, de um ser que não apenas é capaz de entender "o jogo a que assistiu", mas também de tomar parte dele (Anth, AA07, p. 120), exercendo influência sobre suas próprias ações e as dos outros indivíduos com quem convive. Sob essa perspectiva, a liberdade (faculdade de autodeterminação) apresenta-se como característica fundamental do ser humano, o que o define de forma mais profunda.

Embora o filósofo dê a entender que temos de aprender a - ou desenvolver a habilidade de - fazer um uso objetivo da nossa liberdade, tanto na relação externa com os outros (nos autolimitando31) quanto na relação interna conosco (nos autogovernando32), pressupõe que já nascemos subjetivamente livres33, isto é, capazes de orientar nossas decisões mediante regras autolegisladas. Isso significa que o homem pode fazer de si um cidadão do mundo (Anth, AA07, p. 120) apenas porque nasceu com uma faculdade que não só permite a ele agir por conta própria, sem ser tutelado, obedecendo ou transgredindo à lei conforme a sua própria consciência, mas também possibilita superar os eventuais receios em satisfazer a sua curiosidade desinteressada para viajar e conhecer o mundo por seus próprios olhos ou até para fixar residência em outro lugar (Anth, AA07, p. 317)34.

Mas a liberdade não é uma faculdade cuja realidade objetiva pode ser conhecida pela experiência cognitiva (KrV, A558/B586). Embora o filósofo defenda que a liberdade prática possa ser conhecida "por experiência, [...] como uma causalidade da razão na determinação da vontade" (KrV, A803/B831), trata-se de um conhecimento indireto, por intermédio do efeito produzido pela lei moral35 (KpV, AA05, p. 47). Isso significa que, embora os resultados da "Crítica da razão prática" autorizem afirmar que a liberdade é uma propriedade da vontade humana, que permite ao homem se autodeterminar no agir, não é possível reconhecer, na experiência (epistêmica), uma única ação como livre. Pois, conforme mostrou a primeira "Crítica", no mundo dos fenômenos, a causalidade livre sempre entra em conflito com a lei da causalidade natural. Portanto, antes que pudesse considerar os efeitos do uso prático da razão na legislação das ações, Kant precisou mostrar que tal uso era possível, ou seja, que não ensejava qualquer contradição.

Nesse sentido, na antinomia da razão, defendeu que a única possibilidade de salvar a ideia de liberdade, dado que o princípio do encadeamento universal de todos os acontecimentos do mundo sensível não comporta exceção (KrV, A536/B564), está em negar a realidade dos fenômenos, ou seja, em considerá-los simples representações e, portanto, distintos da coisa em si. Pois, neste caso, os fenômenos "têm eles próprios que possuir fundamentos que não sejam fenômenos" (KrV, A537/B565). Do contrário, se fossem reais, não poderíamos esperar encontrar neles nada além daquilo que observamos empiricamente e o encadeamento causal natural seria a única forma possível de causalidade36. Desta forma, mediante o emprego do idealismo transcendental, o filósofo considera ser possível tomar, ao mesmo tempo, natureza e liberdade como causas de um mesmo acontecimento.

Contudo, para que o homem possa ser concebido como um ser livre, deve ser possível atribuir a ele, além de um caráter empírico, "mediante o qual os seus atos, enquanto fenômenos, [estão] absolutamente encadeados com outros fenômenos e segundo leis constantes da natureza", também um caráter inteligível, "pelo qual [...] ele próprio não se encontra subordinado a quaisquer condições da sensibilidade e não é, mesmo, fenômeno" (KrV, A539/B567). Mas, como a atribuição desse último caráter (da coisa em si mesma) só é possível porque o "eu pensante" pode ser concebido como "sujeito numênico", a solução do problema da ideia transcendental da liberdade depende do mencionado resultado positivo dos "Paralogismos".

Além de idealizar o homem como um ser livre no âmbito das ações, conferindo a ele uma vontade autônoma, a filosofia transcendental de Kant também atribuiu espontaneidade às faculdades do conhecimento e do gosto (ao sentimento de prazer e desprazer). Assim, a razão (prática) foi concebida como legisladora das ações morais e o entendimento como faculdade de regras para os objetos de conhecimento. Nesse sentido, enquanto a primeira "Crítica" sustentou que apenas poderia ser conhecido aquilo que pudesse ser dado na intuição e pensado em conformidade com a legislação teórica da natureza, a segunda "Crítica" defendeu que o dever moral consiste em agir conforme a legislação prática da liberdade. O gosto, por sua vez, foi entendido como uma "faculdade de ajuizar a priori a comunicabilidade dos sentimentos [de prazer e desprazer] que são ligados a uma representação dada (sem mediação de um conceito)" (KU, AA05, p. 161). De acordo com a terceira "Crítica", para executar essa tarefa, a faculdade do juízo legisla para si o princípio subjetivo de "conformidade a fins da natureza" (KU, AA05, XXV-XXVIII).

Isso significa que o homem, tal como concebido pela filosofia transcendental, não se deixa passivamente guiar pela natureza, seja para obter conhecimento acerca dos objetos, decidir sobre como deve agir ou para experimentar prazer na relação com esses mesmos objetos. Em vez disso, ele autonomamente estabelece as regras pelas quais orienta seu juízo em cada uma dessas esferas (epistêmica, moral e estética). Para Kant, essa ideia de que o homem é dotado de faculdades espontâneas só pode ser concebida filosoficamente e de forma alguma extraída diretamente da antropologia.

Não contradiz essa afirmação o fato de Kant também afirmar que todas as questões do campo da filosofia remetem à questão "que é o homem?" e que suas respostas poderiam ser incluídas na antropologia (Log, AA09, p. 25). Isso porque, provavelmente, não se referia a uma antropologia empírica, e sim a uma antropologia filosófica. Esta última não poderia de forma alguma substituir a antropologia empírica, já que não fornece um conhecimento propriamente dito da natureza humana.

A antropologia filosófica pode tão somente guiar a investigação realizada pela antropologia empírica, definindo e justificando a ideia de homem como um ser capaz de legislar regras para o uso das suas próprias faculdades. Entretanto, apenas a antropologia empírica pode ensinar sobre como os seres humanos efetivamente empregam suas faculdades na realização dos mais diversos fins. Assim, como não é possível conhecer o homem sem a experiência, a ideia de homem não deve ser considerada uma ampliação do conhecimento antropológico. Em vez disso, cumpre a função sistêmica de ordenar o conjunto dos dados empíricos acerca do homem.

 

6. Considerações finais

Pretendemos aqui destacar a importância dos "Paralogismos da razão pura" para o projeto kantiano de uma antropologia sistematicamente constituída. Mais precisamente, buscamos defender a hipótese de que seu principal resultado foi garantir a possibilidade lógica do sujeito numênico. Pois, sem isso a antropologia não poderia considerar o homem como um ser livre que faz, pode e deve fazer algo de si mesmo. Como a compreensão do alcance desse resultado dos "Paralogismos" requer a explicação da função sistêmica que a ideia de homem desempenha na antropologia, iniciamos pela exposição da concepção kantiana de ciência do homem ao longo das suas "Preleções sobre antropologia".

Nas "Preleções", observamos que a antropologia foi, a princípio, identificada com a psicologia empírica e concebida como um saber teórico acerca dos fenômenos do sentido interno. Em seguida, passou a ser distinguida da psicologia empírica e considerada um conhecimento pragmático do mundo ou ainda um conhecimento geral da natureza humana. Compreendida nessa acepção, como conhecimento cosmológico, ela deveria não apenas reunir informações (conhecimentos locais) sobre o homem, mas também guiar suas observações por meio de um plano (método) previamente concebido. Do contrário, o antropólogo não saberia avaliar o significado (importância) de cada elemento observado e, por consequência, não seria capaz de estabelecer relações sistemáticas entre os mesmos.

Tendo em vista que o plano de uma ciência depende da sua "ideia do todo" (homem), e que esta última não pode ser derivada da experiência, assumimos que a definição da ideia de homem ficou a cargo da filosofia transcendental. Corrobora essa hipótese o fato de Kant afirmar que todas as questões do campo da filosofia podem ser incluídas na antropologia. Assim, como a "Antropologia" considera o homem um ser livre (dotado de várias faculdades espontâneas), e dado que a liberdade não é cognoscível pela experiência, consideramos as condições segundo as quais o filósofo entende ser possível atribuir essa faculdade ao ser humano. A condição fundamental é que o homem não seja redutível ao seu fenômeno, pois, dessa forma, não poderia ser atribuído a ele outro caráter exceto o sensível e, consequentemente, a sua liberdade não poderia ser compatibilizada com a causalidade natural.

Mas, como a admissão da irredutibilidade fenomênica do homem não pressupõe a cognição do mesmo como coisa em si, Kant direcionou uma profunda crítica à psicologia racional nos "Paralogismos" da primeira "Crítica". O exame dessa pretensa doutrina racional da alma visou mostrar que o modelo filosófico de investigação da natureza humana, em vigor durante o século XVIII, baseava-se em um raciocínio falacioso que inferia da representação do sujeito lógico constante do pensamento (o "eu" da apercepção pura) conhecimentos sintéticos sobre a alma do ser humano. Apesar disso, defendemos que o principal resultado dos "Paralogismos" não foi revelar o caráter ilusório da ideia de alma (quando aplicada ao mundo fenomênico), mas demonstrar que é possível conceber o homem como um sujeito numênico.

Esse resultado é fundamental para a ideia de homem, pois o ser humano só pode ser considerado livre se for possível atribuí-lo um caráter inteligível. Quer dizer, como a liberdade apenas pode ser compatibilizada com a causalidade natural se for concebida como causalidade numênica, esta somente poderia ser conferida ao homem se ele também possuísse um caráter inteligível. Para tanto, deve ao menos poder ser pensado como sujeito numênico. Ainda que Kant forneça uma prova da realidade da liberdade, mostrando com isso que o caráter inteligível (numênico) do homem é mais do que uma simples ideia, não há aqui uma ampliação do conhecimento antropológico para além dos limites da experiência, pois, embora conheçamos a lei da liberdade, de resto ela permanece incognoscível.

Levando em consideração que, para Kant, todas as questões da filosofia remetem ao homem, entendemos que as argumentações apresentadas ao longo das três "Críticas", nas quais foi defendida a espontaneidade legislativa das faculdades de entendimento, razão e juízo, poderiam ser interpretadas como contribuições para a fundamentação da ideia de homem como um ser livre, capaz de fazer de si mesmo um cidadão do mundo. Se isso for correto, seria possível explicar a sistematicidade que o filósofo insiste em atribuir à sua antropologia empírica (pragmática) e, portanto, contestar vários críticos que afirmam o contrário.

 

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1 Este trabalho foi elaborado durante visita de pós-doutorado na Brown University, financiada com recursos da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAPDF).
2 Professor Adjunto da Universidade de Brasília - UnB. Atua nas áreas de História da Filosofia Moderna, Ética, Epistemologia e Metafísica, e se interessa por temas relacionados à filosofia kantiana. Doutor e Mestre em Filosofia pela UNICAMP, e Bacharel em Filosofia pela UNIOESTE. Foi professor da Universidade Federal do Pará - UFPA (2009-2017), e pesquisador visitante na Humboldt Universität zu Berlin (2007-2008). Atualmente é Visiting Scholar na Brown University (2019-2020). Publicou diversas traduções de ensaios de Kant e artigos sobre a filosofia kantiana. E-mail: hahn.alexandre@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7566-6419
3 Veja o volume 25 dos "Kant's gesammelte Schriften", editados pela Academia (V-Anth, AA25). Salvo indicação contrária e com exceção da "Crítica da razão pura", citada pela paginação das edições originais A (1781) e B (1787), as referências às obras de Kant indicam volume e paginação na edição da Academia (Akademie-Ausgabe). As siglas dos títulos originais das obras referidas seguem os padrões da Kant-Studien, revista oficial da Kant-Gesellschaft.
4 Veja especialmente as cartas enviadas a Marcus Herz, em 1773 e 1778 (Br, AA10, p. 143-146; e p. 242-243), e a Carl Friedrich Stäudlin, em 1793 (Br, AA11, p. 429-430).
5 Observe que a antropologia foi, em alguma medida, objeto de discussão tanto em obras do período crítico quanto do pré-crítico. No primeiro caso, não apenas a "Antropologia", mas também as três críticas, e principalmente as obras sobre filosofia prática, contêm trechos relevantes sobre a questão. No segundo caso, podemos identificar importantes questões antropológicas sendo tratadas em "História geral da natureza e Teoria do céu" (1755), "História e descrição natural do terremoto de 1755" (1756), "Projeto de um curso sobre geografia física" (1757), "Observações acerca do belo e do sublime" (1764) e "Das diferentes raças dos homens" (1775), apenas para citar alguns exemplos.
6 Há várias passagens nas "Reflexões" sobre antropologia, filosofia moral, filosofia do direito, filosofia da religião, lógica e metafísica (Refl, AA15-19), bem como no "Opus Postumum" (OP, AA21-22).
7 Na "Lógica", editada e publicada por G. B. Jäsche em 1800, e que reúne as preleções sobre lógica geral de Kant, consta a seguinte afirmação: "[...] o campo da filosofia [...] pode reduzir-se às seguintes questões: 1) que posso saber? 2) que devo fazer? 3) que me é permitido esperar? 4) que é o homem? A metafísica responde à primeira questão; a Moral, à segunda; a Religião, à terceira; e a Antropologia, à quarta. Mas, fundamentalmente, tudo poderia reduzir-se à antropologia, pois as três primeiras questões remetem à última" (Log, AA09, p. 25). Algo semelhante também foi dito na carta de 1793, enviada à C. F. Stäudlin (Cf. Br, AA11, p. 429).
8 Essa visão é sustentada, por exemplo, por Martin Heidegger (1996 [1929], p. 176-184), Frederick van de Pitte (1971, p. 6) e, em certa medida, por Michel Foucault (2011, p. 64-111). Há também outros, como Monika Firla (1981, p. 39-80) e Patrick Frierson (2013, 13-19), que, amparados na anotação 903 das "Reflexões sobre antropologia" (Refl, AA15, p. 393-395), advogam uma antropologia transcendental.
9 É sintomático que obras de referência entre os estudiosos de Kant, como os "Cambridge Companion to Kant e Cambridge Companion to Kant and Modern Philosophy" (Guyer, 1992; 2006), não tenham um único capítulo dedicado ao tema da antropologia. Ernst Cassirer (2003) e Otfried Höffe (2005), em obras que oferecem um panorama da filosofia kantiana, mencionam o tema apenas en passand. No que se refere propriamente à "Antropologia de um ponto de vista pragmático", é curioso que a obra, desde a sua publicação, tenha sido objeto de poucos estudos e provocado praticamente nenhum posicionamento (a favor ou contra). Ainda que possamos observar um crescimento do interesse pelo tema após a publicação do volume 25 da Academia, os trabalhos ainda são comparativamente escassos.
10 Como o acesso a essas preleções se dá por meio das anotações feitas pelos alunos de Kant, é recorrente o questionamento sobre a confiabilidade desses manuscritos e a sua hierarquia em relação às obras publicadas pelo filósofo. Em vista disso, Stark oferece alguns argumentos em defesa dessas anotações: a) havia, nas universidades prussianas, durante o século XVIII, uma estabelecida tradição ou cultura de anotar discursos orais; b) as anotações feitas pelos alunos são corroboradas pelas "Reflexões sobre antropologia" (Refl, AA15), que apresentam os esboços e notas feitas por Kant para seu próprio uso na preleção; e c) "[...] os mesmos pensamentos e reflexões que Kant desenvolveu e apresentou em suas preleções apareceram um pouco mais tarde em artigos que ele publicou nos anos de 1780" (Stark, 2003, p. 18).
11 Normalmente, o curso de Kant sobre antropologia era anunciado no catálogo oficial de preleções da Universidade de Königsberg com o título latino "Anthropologiam secundum Baumgartenii Psychologia empirica" (Stark, 2003, p. 16).
12 Motivo pelo qual o filósofo considerava desnecessário viajar para conhecer o homem e adquirir conhecimento do mundo. Quando muito, viajar poderia nos proporcionar um conhecimento sobre o estado passageiro das pessoas e das modas de diferentes lugares (V-Anth/Fried, AA 25, p. 471). Mas, para ele, aquele que não conhece o ser humano a partir do convívio com os seus conterrâneos pouco aprenderá pelo contato com os que vivem em outros lugares.
13 Dentre as fontes do conhecimento do mundo, Kant elenca "[...] a observação das pessoas que nos cercam [somada a] uma forte reflexão", "[...] o contato/trato com outros indivíduos", "[...] peças de teatro, romances, livros de história e especialmente as biografias" (V-Anth/Pillau, AA25, p. 734).
14 Trata-se aqui de ter um plano para percorrer as informações coletadas durante a observação. Essa condição foi reafirmada pelo filósofo em diversas ocasiões, referindo-se ao cientista como um viajante que "[...] tem de projetar antecipadamente um plano para a sua viagem, caso queira tirar proveito da sua viagem" (PG, AA09, p. 157). Para o filósofo, sem um plano que ordena os conhecimentos, não seria possível retê-los na memória e recordá-los quando necessário (PG, AA09, p. 156). Neste sentido, o plano de uma ciência seria semelhante ao plano de construção de uma casa: "[...] quem quer construir uma casa, faz primeiro uma ideia do todo, do qual todas as outras partes são depois derivadas" (PG, AA09, p. 158).
15 O problema é que, quando o sujeito se observa, as suas inclinações, impulsos e paixões estão em repouso. Mas, quando estas estão em movimento, o sujeito normalmente não pensa em se observar (V-Anth/Mron, AA25, p. 1214). Logo, sempre perde a oportunidade de conhecer aquilo que é mais relevante sobre si mesmo. A apresentação desse obstáculo parece indicar que Kant recusa a introspecção como método de aquisição de conhecimento sobre si.
16 Plano e ideia não são termos sinônimos para Kant, ainda que estreitamente conectados. Isso fica claro quando observamos a distinção que o filósofo estabelece entre filosofia transcendental e crítica da razão pura: "[...] a filosofia transcendental é a ideia de uma ciência para a qual a crítica da razão pura deverá esboçar arquitetonicamente o plano total, isto é, a partir de princípios, com plena garantia de perfeição e solidez de todas as partes que constituem esse edifício" (KrV, B27).
17 Embora Kant também inclua a questão da religião entre as três que remetem àquela da antropologia, esta primeira não foi objeto de qualquer uma das três "Críticas" e nem foi contemplada nas subdivisões da "didática antropológica" da "Antropologia". Tendo em vista que os objetos das três "Críticas" são idênticos aos das três divisões da "Antropologia", a saber, as faculdades de conhecer, desejar e sentir prazer e desprazer, mais adequado seria substituir a questão da religião por uma relativa ao gosto.
18 O filósofo parece defender que a antropologia empreenda o mesmo tipo de revolução responsável pelo ingresso da física no caminho seguro da ciência, qual seja, adotar uma postura em que a razão deixa de se guiar pelo que encontra na observação da natureza para começar a interrogar a natureza. Segundo ele, "[os físicos] compreenderam que a razão só entende aquilo que produz segundo seus próprios planos; que ela tem que tomar a dianteira com princípios, que determinam os seus juízos segundo leis constantes e deve forçar a natureza a responder às suas interrogações em vez de se deixar guiar por esta; de outro modo, as observações feitas ao acaso, realizadas sem plano prévio, não se ordenam segundo a lei necessária, que a razão procura e que necessita" (KrV, B XIII).
19 Em "Sonhos de um visionário" e na "Dissertação de 1770", Kant também já se ocupava de questões relativas à psicologia racional.
20 Para tornar o método de ensino "mais adequado à natureza" cognitiva do ser humano, o novo método deveria se pautar naquilo que o filósofo acredita ser o progresso natural do conhecimento, a saber, "primeiro o entendimento se desenvolve a partir do uso da experiência até atingir juízos intuitivos e por meio desses obter conceitos, em seguida esses conceitos são discernidos pela razão na relação com seus fundamentos e consequências e, por último, os mesmos são reconhecidos pela ciência como parte de um todo bem organizado" (NEV, AA02, p. 305). Ao se orientar pelo modelo exposto, o novo método faria com que o educando desenvolvesse primeiro o seu entendimento, depois a razão e apenas então estaria pronto para aprender. A vantagem desse procedimento é que, mesmo que o educando não atinja a fase final, já teria tido proveito da sua instrução, uma vez que teria se tornado mais experiente no uso do entendimento e mais inteligente (kluger), senão para a escola, ao menos para a vida.
21 Para Kant, o método zetético (analítico) é "um método que ensina pesquisando, e que se torna dogmático, isto é, decidido, somente quando a razão já está bem exercitada [...]. O que o discípulo busca em primeiro lugar é a aptidão de usar o método de refletir e de tirar conclusões ele mesmo, que também é a única coisa que lhe possa ser útil" (NEV, AA02, p. 307).
22 O filósofo defende que o método da metafísica "não é sintético, como aquele da matemática, mas analítico" (NEV, AA02, p. 308). Isto porque, enquanto na matemática os raciocínios iniciam por definições (ou axiomas), na metafísica os mesmos terminam com definições. A fonte dos erros cometidos pela metafísica reside, portanto, justamente no uso equivocado do método sintético (NEV, AA02, p. 308).
23 A psicologia empírica trata, segundo Wolff, "daquilo que se conhece da alma dos homens a partir da experiência", enquanto a psicologia racional "explica tudo a partir da natureza e do ser da alma e revela nela o fundamento daquilo que se observa" (Wolff, 1733, p. 231). A decomposição da psicologia em duas partes, uma empírica e outra racional, baseava-se na situação (de autonomia ou dependência) das mesmas com relação às outras disciplinas metafísicas. Assim, a psicologia empírica, que "é propriamente uma história [Historie] da alma", é autônoma, pois "pode ser conhecida sem as restantes disciplinas". A psicologia racional, por outro lado, é dependente, uma vez que "pressupõe a cosmologia" (Wolff, 1733, p. 231).
24 Para Wolff, ao passo que a intuição sensível era destituída de clareza e distinção, o conceito intelectual seria totalmente claro e distinto (Wolff, 1733, p. 272-276; 291-294).
25 De acordo com o filósofo, a física (enquanto ciência do sentido externo) e a psicologia empírica (enquanto ciência do sentido interno) se ocupariam dos fenômenos, ao passo que a metafísica se ocuparia dos númenos (MSI, AA02, p. 397-398). No entanto, na primeira Crítica, é abandonada a posição de que a metafísica seria capaz de conhecer o númeno. Este último passa então a ser considerado apenas negativamente, como um conceito-limite para a sensibilidade (KrV, A 255/B 310-311).
26 Contudo, nos Princípios metafísicos da ciência da natureza (1786), Kant colocou em dúvida a cientificidade da psicologia empírica, visto que afirmou que "em toda teoria particular da natureza pode ser encontrada apenas tanta ciência genuína quanto de matemática nela se encontre" (MAN, AA04, p. 470). Por isso, uma vez que "a matemática não é aplicável aos fenômenos do sentido interno e às suas leis" (MAN, AA04, p. 471), entendeu que a psicologia empírica (doutrina empírica da alma) estava muito afastada da posição de uma ciência natural (teórica) propriamente dita.
27 Na segunda edição da Crítica da razão pura, o capítulo dos paralogismos foi significativamente alterado, visando combater críticas e interpretações que o filósofo julgou equivocadas (KrV, BXXXVIII). Segundo Udo Thiel, há duas diferenças importantes em relação à primeira versão: a) "as quatro falácias da psicologia racional são brevemente apresentadas em termos da distinção entre juízos analíticos e sintéticos"; e b) "apenas a primeira afirmação da psicologia racional, que diz respeito à substancialidade da alma, é examinada em termos de um paralogismo" (Thiel, 2006, p. 209). A razão para essa mudança seria, primeiro, mostrar que a psicologia racional equivocadamente trata proposições analíticas acerca do eu pensante como proposições sintéticas a priori (KrV, B416-17), bem como destacar que o primeiro paralogismo é fundamental. Quer dizer, se a crítica ao primeiro paralogismo for bem-sucedida, toda a psicologia racional seria demolida (Thiel, 2006, 209). Além disso, essa segunda versão parece ter se concentrado no paralogismo da substância com o objetivo de repelir a suspeita de que a noção de "eu" da apercepção pura constituisse conhecimento acerca de um numêno ou coisa em si, simplesmente porque o âmbito da experiência é abandonado quando nos pensamos como sujeitos puros. Kant confirma essa interpretação ao reconhecer que, caso isso fosse verdadeiro, seria o "fim de toda a crítica e [nos] intimaria a regressar à antiga maneira de pensar" (KrV, B410). Por isso, busca mostrar que a representação do "sujeito lógico" da apercepção pura não estabelece um conhecimento sintético a priori sobre a alma (o eu), como substância suprassensível.
28 Para o filósofo, "visto que não se compreende a possibilidade de tal modo de existir" (KrV, B412), não é possível saber se a esse conceito corresponde algum objeto e, consequentemente, afirmar a sua realidade objetiva.
29 Que a ideia de alma ou o conceito de "eu numênico" seja concebível (pensável), segue-se da impossibilidade de a razão "decidir dogmaticamente, acerca de um objeto da experiência, para além dos limites desta" (KrV, B423). Pois, uma vez que não é possível decidir se existe ou não alma, como algo separado do corpo, ambas as alternativas são igualmente possíveis. O conceito de um númeno também é possível, ainda que sua realidade objetiva seja incognoscível, porque não encerra qualquer contradição (KrV, B310). Nesse sentido, embora não se possa conhecer nada além do "eu fenomênico", é logicamente possível conceber o "eu numênico".
30 Para Thiel, o conceito do "eu como númeno" foi fundamental, não apenas para que Kant pudesse desenvolver a noção de liberdade prática da sua filosofia moral, mas também para que conferisse personalidade moral ao sujeito pensante (Thiel, 2006, p. 218).
31 A autolimitação significa deixar de praticar qualquer ação que possa constituir um obstáculo injusto ao livre uso do arbítrio de outro agente, quer dizer, uma obstrução ao direito do outro. Tendo em vista que "ao direito [...] está ligada [...] uma competência para coagir quem o viole" (MS-RL, AA06, p. 231), todo transgressor do direito pode ser externamente obrigado (forçado) a limitar suas ações. Assim, caso o sujeito queira evitar esse tipo de constrangimento, deve agir de tal forma que suas ações possam coexistir com a liberdade do outro.
32 Autogoverno (autocracia da razão prática) é entendido pelo filósofo como faculdade de gerenciar as "inclinações rebeldes à lei" (MS-TL, AA06, p. 383). Como estas inclinações (impulsos da natureza) são obstáculos que opõem resistência à realização do dever moral, é necessário que exista uma força de opor resistência a esse "adversário da intenção moral em nós" (MS-TL, AA06, p. 380). Para Kant, essa força (a virtude) não é inata, e precisa ser adquirida "por meio da tentativa de combater o inimigo interior do homem (asceticamente), [isto é, precisa] ser exercitada" (MS-TL, AA06, p. 477). Trata-se, portanto, de um produto da razão prática, da liberdade subjetiva da vontade.
33 Na Metafísica dos costumes, Kant fala da liberdade como o único direito inato, "originário, que cabe a todo homem em virtude da sua humanidade" (MS-RL, AA06, p. 237), e a define como a qualidade pela qual o homem, não apenas é independente em relação ao arbítrio dos outros, mas também pode "ser seu próprio senhor" (MS-RL, AA06, p. 238). Se pode haver um direito inato ao uso da liberdade, parece lícito inferir que esta também é uma propriedade inata, e inseparável do ser humano. Logo, sua eventual restrição poderia ser interpretada como uma espécie de diminuição da humanidade do homem.
34 Tendo em vista que Kant também definiu sua Antropologia como "um conhecimento do ser humano como cidadão do mundo" (Anth, AA07, p. 120), é importante entender o que significa dizer que "o homem é um cidadão do mundo". Daniel Omar Perez interpreta que se trata de uma proposição sintética a priori (2009, p. 393), fundamental para a referida antropologia pragmática, pois sistematiza a investigação empírica acerca do homem (Perez, 2010, p. 86), mas que requer justificação.
35 Na segunda Crítica, o filósofo explica que a realidade do conceito de liberdade pode ser "provada por uma lei apodítica da razão prática" (KpV, AA05, p. 3). Quer dizer, dada a relação recíproca entre ambas (KpV, AA05, 4), se for possível provar a realidade da lei moral, sua condição fundamental também será provada. Mas, diferente do que fez na primeira Crítica, não forneceu uma dedução da possibilidade dessa proposição sintética a priori. Em vez disso, defendeu que sua prova consistia em um fato da razão, isto é, na consciência dessa lei fundamental (KpV, AA05, p. 31). Zeljko Loparic interpreta que o fato (ou feito) da razão não se reduz à mera consciência da lei, mas também inclui o sentimento moral de respeito que inevitavelmente decorre daquela consciência (1999, p. 36-40). Como esse último sentimento resulta da ação de uma representação discursiva sobre a sensibilidade, parece se tratar de um novo tipo de experiência (prática).
36 Kant também acredita ser possível apreender, na própria observação dos acontecimentos do mundo, razões para se rejeitar a causalidade natural como a única possível no mundo dos fenômenos. Segundo ele, "se toda a causalidade no mundo dos sentidos fosse simplesmente natureza, cada acontecimento seria determinado por um outro, no tempo, segundo leis necessárias" (KrV, A 534/B 562). Por conseguinte, os fenômenos, "na medida em que determinam o arbítrio, deviam tornar necessárias todas as ações como suas consequências naturais" (KrV, A 534/B 562). Logo, se algo que deveria ter acontecido (segundo essa necessidade causal natural) não aconteceu, então isto seria um indício de que a causa desse algo (fenomênico), que deveria ter acontecido, não era tão necessária (determinante) como se pensava. Neste caso, nada impediria afirmar que a razão também possui "uma causalidade capaz de produzir, independentemente dessas causas naturais e mesmo contra o seu poder e influência, algo determinado na ordem do tempo por leis empíricas e, por conseguinte, capaz de iniciar completamente por si mesmo uma série de acontecimentos" (KrV, A 534/B 562).

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