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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.21 no.2 São Paulo jul./dez. 2019

 

ARTIGOS

 

Desdobramentos filosóficos a partir de Winnicott

 

Philosophical developments from Winnicott

 

 

Eder Soares Santos1

Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Londrina / E-mail: edersan@uel.br

 

 


RESUMO

O objetivo é desenvolver os desdobramentos filosóficos que a teoria do amadurecimento pessoal de Winnicott tem a oferecer para iluminar reflexões pertinentes à filosofia. Os conceitos eleitos para a discussão são natureza humana, continuidade-de-ser, eu e si-mesmo. Após percorrer esses conceitos que se intercambiam, far-se-á uso da noção de cooriginação dependente, mostrando que relacionalidade, cuidado e confiabilidade proporcionam uma sustentação para a compreensão de ser no mundo; para a existência de um si-mesmo que não surge como algo ou uma propriedade que se assenta sobre outro algo.

Palavras-chave: Winnicott, Natureza Humana, Cooriginação Dependente, Relacionalidade.


ABSTRACT

The objective is to develop the philosophical developments that Winnicott's theory of personal maturation has to offer to illuminate reflections pertinent to philosophy. The elected concepts for the discussion are human nature, continuity of being, and self. After going through these interchangeable concepts, the notion of codependent arising will be used, showing that relationality, care and reliability provide a support for the understanding of being in the world; for the existence of a self that does not arise as something or a property that rests on something else.

Keywords: Winnicott, Human Nature, Codependent Arising, Relationality.


 

 

A descoberta da psicanálise por Freud deu muito que pensar à Filosofia. De igual modo, a psicanálise de Winnicott, por meio de sua teoria do amadurecimento pessoal, também tem provocado e contribuído para o desenvolvimento de muitos questionamentos filosóficos.

Devemos, em especial, aos escritos e às intuições filosóficas de Zeljko Loparic os muitos dos grandes avanços da relação entre Winnicott e a Filosofia. Suas pesquisas2 propiciaram o desenvolvimento de vários tipos de disseminação em forma de teses, livros, grupos de pesquisa e instituições de ensino e pesquisa3. Entretanto, há muito ainda a ser explorado nesse campo, pois a teoria do amadurecimento pessoal permite que tenhamos pontos de partida filosóficos riquíssimos para se pensar a natureza humana.

Gostaria de fazer minha contribuição discutindo alguns conceitos em Winnicott que estão vinculados entre si e que são de grande interesse filosófico, a saber: natureza humana, continuidade-de-ser, eu e si-mesmo. Não tenho a pretensão de esgotar a investigação filosófica de tais conceitos, mas apenas de mostrar aqui quão profícua é a discussão que levantam.

 

1. Natureza humana: quase tudo que temos

É bem conhecida a frase de Winnicott que diz "a natureza humana é quase tudo o que temos" (Winnicott, 1988, p. 1). E a isso ele ainda acrescenta que somos "[...] uma amostra-temporal da natureza humana" (Winnicott, 1988, p. 11). Certamente, não são frases fáceis de assimilar. Primeiro, porque parecem remeter a algo que possuímos, como se fosse uma coisa ou uma propriedade; segundo, por indicar que essa coisa ou propriedade não passa de um modelo, um exemplar, no tempo.

Todavia, olhando a teoria do amadurecimento pessoal como um todo4, percebe-se que não é disso que se trata. Quase tudo o que somos é a reunião de todos os acontecimentos os quais implicam em fenômenos que vão da dependência absoluta à independência relativa. Em outros termos winnicottianos, pode-se dizer que vão da solidão essencial e da completa falta de autonomia até à possibilidade e capacidade de integrar a própria morte. Estão implicadas aí tarefas a serem realizadas, devoção a ser oferecida, conquistas a serem feitas, cuidados a serem providos, confiabilidade a ser mantida, desilusão a ser permitida, ataques a serem suportados, responsabilidades a serem assumidas, enfim, poder continuar-sendo.

Porém, o que faz com que sejamos o que somos nos oferece um fundamento o qual constitua nossa natureza última, a natureza humana?

O fato de todos esses fenômenos do existir humano apontarem sempre para a morte como um fim ou possibilidade última revela - como já bem mostrou Heidegger (2001) - nossa finitude. Esta nos faz ver o caráter de impermanência de tudo o que há. Consequentemente, isso significa dizer que só poderíamos ter uma natureza própria, com um fundamento último, caso a natureza humana não tivesse esse caráter transitório.

Pelas menções à questão da temporalidade em Winnicott5, sabe-se que não só somos finitos, temporais, como ainda nos resta como tarefa ter de primeiramente nos temporalizar no mundo. Ser uma amostra-temporal significa que nos estendemos e acontecemos entre dois momentos: nascimento e morte. Como pontua Winnicott (1988, p. 132), "a vida de uma pessoa consiste num intervalo entre dois estados de não-estar-vivo". Sendo nós mesmos essa amostra-temporal, e não uma coisa ou propriedade, a questão é como ter uma natureza (a humana), a qual tenha uma permanência que lhe dá algum índice de unificação, unidade, em uma situação onde tudo é impermanência? E, além disso, o que há para além do "quase" tudo o que somos?

A partir disso, pretendo esboçar alguma resposta ao final deste escrito. No momento, gostaria ainda de avançar em outras dimensões filosóficas pendentes correlacionadas à ideia de natureza humana.

 

2. Continuar-a-ser para poder-ser

Winnicott (1988, p. 143) explica que

O ponto de vista que estou adiantando aqui é o de que no momento do nascimento a termo já existe um ser humano no útero capaz de ter experiências e acumular memórias corporais e até mesmo organizar defesas contra possíveis traumas (como a interrupção da continuidade-de-ser pela reação contra intrusões do ambiente, na medida em que este falha na sua missão de se adaptar).

A questão do ser é assunto privilegiado das filosofias ocidental e oriental desde muito tempo, podendo, com facilidade, ser assunto destacado dos pré-socráticos a Heidegger, de Nagarjuna a Nishitani. Na psicanálise, no entanto, sua introdução é uma novidade, pois a psicanálise tradicional trata de um ser que já é - um sujeito - capaz de produzir um discurso. Ao introduzir a ideia de continuidade-de-ser, Winnicott, querendo ou não, altera os componentes ontológicos de sua matriz disciplinar6. Seu questionamento é o mais incisivo possível: "Qual é o estado do indivíduo humano quando o ser [being] emerge do não-ser [not being]" (Winnicott, 1988, p. 131). Apesar do autor introduzir o conceito de continuidade-de-ser, não o explora filosoficamente. Isso porque não estava focado em fazer de sua teoria um sustentáculo para uma filosofia. Mesmo assim, o desenvolvimento teórico que faz desse conceito para os propósitos clínicos permite que pensemos seus desdobramentos filosóficos.

A discussão desse tópico está intrinsicamente ligada ao anterior. Assim perguntamos: se não é lícito pressupor uma natureza humana como propriedade última, então, como pensar que há ser? Se sim, há desde sempre? Se não, em que sentido falar de uma continuidade?

Há uma belíssima problemática aqui que poderei tocar apenas superficialmente neste momento7. Com base na citação com a qual iniciamos este tópico, ser é um acontecimento da originação física. Esse surgimento não se dá por si, ou seja, ele é dependente. Assim, poder-se-ia dizer que ser é um fenômeno da coorginação dependente. Com isso, não definimos ser8, mas apenas esclarecemos o fenômeno e ressaltamos o seguinte: a originação da existência humana em seu início depende de outro ser. Isso parece bastante óbvio, mas o que se diz aí é que ser-bebê e ser-mãe não são entidades separadas e não se dão sozinhas. Só se chega-a-ser-bebê e se chega-a-ser-mãe (ou pai) quando um está em relação de ser-um-com-o-outro9, o um (bebê) da relação me faz ser aquilo que sou, assim como eu faço com que o outro (mãe/pai) da relação seja aquilo que ela (ou ele) é. Essa noção é bastante antiga e basilar na história do pensamento oriental e encontra seu expoente na filosofia de Nagarjuna10, influenciado também o pensamento budista. Giacoia (2014, p. 102) esclarece o conceito de cooriginação dependente (ou originação interdependente):

Em face da teoria budista da originação interdependente, de acordo com a qual todas as coisas individuais devem sua existência reciprocamente umas as outras, sendo, portanto, umas tanto condição como condicionadas pelas outras, toda identidade ou permanência torna-se insubsistente, de modo que qualquer individuação não passa de aparência, sendo o vazio, a nadidade (sunyata), o unicamente verdadeiro.

Assumindo essa perspectiva, para que se possa falar em ser de um bebê é preciso falar no ser da mãe (ou daquele devotado aos cuidados do bebê). Mais do que isso, é preciso pensar esse bebê se constituindo fisicamente em relação a um ambiente intrauterino. Winnicott afirma ainda que a qualidade dessa relação tem de ser do tipo contínuo. Para se ir-sendo é preciso haver continuidade. Quando ocorre a mudança do ambiente intrauterino para o estado de recém-nascido, Winnicott (1988, p. 144) pensa que

Com certeza seria normal a existência de um grau considerável de reação a estas novas e variadas sensações intrusivas, de modo que devem ocorrer inevitavelmente repetidas interrupções da continuidade de ser, exigindo o máximo da capacidade do bebê de tolerar essas interrupções.

Ao que tudo indica, a certo ponto do nascimento, já estamos capazes de lidar com a quebra dessa continuidade. No entanto, não rompemos com a necessidade de existirmos a partir de uma cooriginação dependente. Ao nascer, a dependência é absoluta e cabe àquele que cuida prover as necessidades iniciais do lactente.

Isso aponta para outro aspecto importante: se, por um lado, já mesmo antes do nascimento é possível pensar em continuidade-de-ser, por outro, isso não garante que também já haja sentido de ser desde o início. Sentido-de-ser diz respeito a uma conquista a ser feita de acordo com a realização das várias tarefas iniciais que o par cuidador-lactente precisa dar conta. Isso porque não nascemos já constituídos como uma unidade integrada.

Dessa forma, ao se perguntar qual seria o sentido de ser para Winnicott, percebe-se que a resposta não pode se restringir apenas à ideia de que esse sentido seria a continuidade de ser sem interrupções. O sentido de ser diz respeito ao estar-vivo emocional e fisicamente por meio da criatividade originária de cada ser humano e implica (a) a existência de um corpo em que esse estar-vivo ganhe sentido; (b) o conquistar das noções de tempo, espaço e realidade, mesmo que nos estágios iniciais essas conquistas sejam pessoais e graduais; (c) poder lançar mão, desde o início, da ilusão de onipotência proporcionada pelo cuidado materno; (d) poder transitar do seu mundo pessoal para o mundo da realidade objetiva e compartilhada; (e) conquistar gradualmente um sentido de unidade. É preciso, ainda, Para que esse sentido de ser se estabeleça, ainda é preciso (a) um ambiente facilitador, (b) a presença de um outro que provê cuidado suficientemente bom e (c) a manutenção de uma sensação de confiabilidade no ambiente durante todo o tempo em que a dependência for absoluta, momento em que as falhas no cuidado devem ser evitadas (Santos, 2010).

O sentido de ser parece encontrar morada no que Winnicott definiu como si-mesmo verdadeiro. Esses vários momentos iniciais experienciados, conquistados e integrados pelo lactente constituem os inúmeros acontecimentos de sua vida nos estágios mais iniciais do seu existir. Assim, poder-se-ia dizer que o sentimento de ser tem a ver com esses acontecimentos. O sentido de ser, em Winnicott, está ligado a esse poder acontecer do ser humano, sendo que acontecer, aqui, significa poder conquistar e construir gradualmente a sua própria história pessoal (Santos, 2010).

A condição de possibilidade para que um sentido de ser possa se estabelecer - o que é necessário para que os acontecimentos dos estágios iniciais da dependência absoluta do bebê possam se realizar e constituir sua história pessoal - é a de que uma continuidade de ser possa existir e se manter desde antes do nascimento até depois dele, sendo desejável que essa continuidade seja sustentada por toda a vida.

Um sentido de ser é possível ser considerado para alguém já capaz de um mínimo de compreensão de si, alguém que é um "Eu sou" (Winnicott, [1968]1986, p. 55-64). Winnicott indica que há muitas conquistas básicas a serem realizadas antes de se chegar ao ponto do amadurecimento em que se poderia dizer "Eu sou". Veremos no próximo tópico como se desenrola essa questão.

Propositalmente, tal como no tópico anterior, estou deixando a questão principal em aberto, a saber: seja enquanto continuidade, seja enquanto sentido de ser, como pensar ser desdobrado a partir da teoria do amadurecimento pessoal?

 

3. Eu e si-mesmo: sendo a-fundo

Ao se utilizar de conceitos como "consciência", "inconsciente", "inconsciente reprimido", Winnicott diz fazer uso de "[...] conceitos intelectuais na mente do observador" (Winnicott, 1988, p. 67), como se quisesse dar conta de usar uma linguagem comum para tratar de certas questões da psicanálise, como o complexo de Édipo. No entanto, ao tratar de relacionamentos que envolvem apenas um que cuida e outro cujo continuar-a-ser e poder-ser dependem deste cuidador, essa linguagem comum à psicanálise tradicional lhe parece inapropriada. Em vez disso, ele diz: "agora seria mais proveitoso utilizar um diagrama, que bem pode ser um desenho infantil" (Winnicott, 1988, p. 68).

Ao se referir ao si-mesmo (self), o diagrama que Winnicott escolhe para representá-lo é um círculo que tem um lado de dentro e um de fora e, por consequência, uma borda (Winnicott, 1988). Dias (2003) ressalta que Winnicott faz um uso não muito rigoroso dos termos ego e self antes da década de 1960. Contudo, posteriormente, Winnicott esclarece que o uso que faz do termo ego é em sentido descritivo: "Pode-se usar a palavra ego para descrever a parte da personalidade que tende, sob condições favoráveis, a se integrar numa unidade" (Winnicott, [1962] 1996, p. 56, grifo nosso).

Ainda que o sentido seja descritivo, Winnicott continua a fazer uma distinção entre ego e self11. Ele diz que, inicialmente, o recém-nascido ainda não tem algo como um ego e que precisa do suporte do ego da mãe (ou daquele que cuida) (ego-coverage) para poder começar a constituir o seu próprio. O que se tem, então, é um ego-suporte (mantido pela mãe) que dá apoio a um ego-operativo (ego-functioning) do bebê capaz de experienciar os acontecimentos das relações iniciais (ego-experience) (Winnicott, [1962] 1996, p. 56 ss.). Entretanto, nenhum desses egos se referem ao ego enquanto instância ou topos. Não se trata de uma entidade nem de alguma coisa com natureza própria; trata-se, antes, de um modo de descrever como em "um cérebro normal haveria uma organização e funções, e a esta organização poderia ser dado o rótulo de ego" (Winnicott, [1962] 1996, p. 56 ss.).

Tal organização e funções possibilitam e capacitam o bebê a dar sentido12, gradativamente, a si-mesmo por meio da sustentação ambiental permitida pelo outro que provê os cuidados necessitados.

Uma vez que há um ego-operativo ou, pura e simplesmente, um bebê capaz de experienciar os fenômenos do ambiente, também torna-se possível pensar em uma constituição de si-mesmo por meio da elaboração imaginativa das funções corpóreas. Winnicott trata do si-mesmo de dois modos: (a) um si-mesmo no sentido de uma conquista a partir das experiências integrativas em direção à conquista de uma unidade e (b) do si-mesmo já constituído, uma identidade, um si-mesmo unitário (Dias, 2003, p. 144-5).

Entretanto, o que é um si-mesmo, ou melhor, o que é ser si-mesmo?

O si-mesmo parece ser o ponto de sustentação entre tudo o que é e não-é ao mesmo tempo. Trata-se de uma conquista e também de uma constituição que ocorre gradativamente no início da fase da dependência absoluta, a partir dos vários momentos de integração e não-integração. Surge de fenômenos ambientais que, embora já estejam dados, precisam, mais uma vez, ser criados pelo lactente para dar início a algo que lhe pareça fazer sentido. Por isso, paradoxalmente, é como se surgisse do nada.

As várias tarefas do amadurecimento nas fases iniciais levariam a um momento em que seria possível pensar que a criança já conseguiria chegar a alguma concepção de "Eu sou" em distinção àquilo que seria um "não-eu". E, assim, poder-se-ia pensar na constituição de um si-mesmo unitário. Porém, seria constituída aí uma coisa que representa a si mesma por oposição às coisas do mundo? Poder-ser si-mesmo é poder representar o mundo por distinção a si?

Winnicott, como já mencionamos mais acima, não pensa o ser humano como coisa e, sim, como uma continuidade-de-ser ou, dito de outra forma, amostra-temporal da natureza humana. Isso quer dizer que o si-mesmo não tem um caráter substancial, uma essência última, uma natureza substancial a partir da qual outros atributos se originam.

Si-mesmo é a reunião de todos os acontecimentos integrados e conquistados gradualmente no início do existir; constitui o nosso centro, está na raiz do que somos.

Por meio dele vamos afundo de ser quem somos, mas ele mesmo é a-fundo13. Diz de quem somos e como somos enquanto uma continuidade relacional que se mostra enquanto possibilidades abertas. De pronto, pode-se adiantar que o si-mesmo também não é uma coisa ou propriedade que garanta nossa natureza última, a qual constitua por si só, a natureza humana.

Com efeito, ainda assim, resta o problema da distinção de si-mesmo com relação àquilo que não é ele mesmo. Se para Winnicott não é a representação que está em jogo, o que está em questão? O próprio jogo, ou melhor dizendo, o brincar será o primeiro modo de acesso e lida com o mundo.

A capacidade de lidar com o mundo, as coisas do mundo - e até mesmo para criar conceitos filosóficos como o de representação -, está ligada ao desenvolvimento da capacidade de brincar (Winnicott, 1999). Brincar é a atividade essencial e originária para se poder-ser. Poder-ser quer dizer ter alcançado amadurecimento suficientemente bom para poder brincar, o que implica ter saúde emocional, que, por sua vez, significa continuar-a-ser de forma contínua sem ter que reagir a intrusões. A criatividade justamente com o brincar para poder-ser revela um sentido de ser enquanto um si-mesmo unitário, estendido na precariedade do próprio existir (Santos, 2010).

Está implicada aqui a tarefa inicial básica de apresentação de objetos por parte daquele que cuida do bebê para permitir que crie, a seu modo e de forma onipotente, um mundo pessoal de objetos percebidos inicialmente como criações próprias. Posteriormente, com as necessárias falhas do ambiente, essa ilusão de onipotência criativa sofrerá abalos e, então, já tendo maior capacidade integrativa, o bebê será capaz de começar a lidar com o fato de que existe uma realidade de objetos objetivamente percebidos. Não se trata, porém, da transição imediata de um modo de percepção para outro; a transição é brincante. Ela se dá por meio de um espaço intermediário, com a ajuda de objetos transicionais. Dito em outros termos, a transicionalidade está caracterizada pela presença de objetos e fenômenos transicionais. Winnicott define como "objetos transicionais" aqueles usados no controle da realidade externa e "fenômeno transicional" a técnica empregada para esse controle (Winnicott, 1988, p. 106).

Os objetos que percebemos objetivamente são, na perspectiva de Winnicott, percebidos de forma pessoal pelo bebê, pois são criados por ele como se fossem uma espécie de alucinação. Trata-se de apresentar esses objetos a fim de que o lactente, alucinando-os (punho, dedos, pulso etc.), crie a ilusão de que estes foram criados e de que o que é criado é o mundo (Winnicott [1959] 1989, p. 53). Ele vai, então, do controle onipotente dos objetos ao abandono desse controle e do reconhecimento de que outras coisas acontecem fora do seu controle pessoal; nas palavras de Winnicott ([1959] 1989, p. 55), "A transição vai do controle onipotente dos objetos externos até o abandono dos fenômenos que existem fora do controle pessoal".

Dessa perspectiva, os objetos14 não são simplesmente dados na natureza, mas estão lá na natureza porque foram criados pelo bebê, ou por qualquer outro, dentro de um mundo subjetivo, pessoal, igualmente criado. Em um primeiro momento, é possível pensar que a passagem do mundo dos objetos de criação pessoal para o mundo dos objetos objetivos parece ser impossível, já que cada um se sustenta em "realidades" diferentes. Tal impossibilidade é, realmente, apenas aparente. Essa passagem, na verdade uma transição, é feita por meio de um espaço intermediário, uma "ponte", um espaço potencial ou, o que Winnicott também chama, uma terceira área do que existe (third area of exisiting), pois "[...] o bebê ainda não tem o sentido do que é externo ou do que é interno, o lugar da relação é um 'entre'" (Dias, 1998, p. 157). Assim, três áreas se nos apresentam.

A primeira, em que o fundamental é o indivíduo psíquico ou a realidade interna, é a realidade psíquica pessoal a partir da qual o indivíduo alucina (no sentido winnicottiano) e pode criar; é a área do mundo pessoal. A segunda área, a do mundo objetivo, é a da realidade externa, organizada gradualmente no sentido de distinguir o "eu" do não-eu" e a fim de se estabelecer um si-mesmo. Por fim, a terceira área é a do fenômeno transicional, que servirá de base para a simbolização, sendo nela que se encontra o germe para a riqueza de uma vida cultural em sociedade (Santos, 2010). Essas diferentes áreas da experiência não se sucedem uma à outra. O bebê, aponta Dias (1998), não transita de um objeto ao outro, nem de um espaço ao outro, mas transita nele mesmo de um a outro sentido de realidade.

 

4. Para além de nós mesmos: quase tudo

Considerando que tudo corra bem desde antes do nascimento e para além deste, nós nos constituímos como um si-mesmo resultado da integração dos vários acontecimentos que, ao longo de nossas pequenas conquistas iniciais, elaboramos e corporificamos. Chegamos a ser uma unidade, a ser um, a ter uma borda, uma membrana limitadora a qual permite separar "eu" do "não-eu", oferecendo um senso de individualidade. Consentaneamente, isso só se torna possível porque, antes de tudo, a condição primeira para poder se colocar como um indivíduo é ser dependente absolutamente e ser uma espécie de dois-em-um da existência15.

Sabemos, então, que por haver a possibilidade do que é não-eu que o outro (consequentemente, o mundo) pode se presentar. O alcance do outro/mundo não se dá primeiramente por meio da representação, mas por meio do brincar. Há uma dimensão do "entre" o "eu sou" e o "mundo" que é explorada por meio dos fenômenos da transitoriedade.

Diante dessa rápida síntese, retornemos agora às questões levantadas anteriormente: o que há para além do quase? O que significa ser como uma permanência impermanente? O que é ser um si-mesmo a-fundo?

Winnicott utilizou como base para estruturar sua clínica e sua teoria o modelo das relações entre mãe-bebê. Nessa estruturação, o autor se deu conta de que o estudo do ambiente e tudo o que aí está envolvido é de suma importância: as necessidades iniciais, os movimentos de idas e vindas em busca da criação de algo, a devoção, as tarefas a serem realizadas, as conquistas, as ilusões, as desilusões, a monotonia, as falhas, as elaborações imaginativas, as transições, o incompadecimento etc. Estes são todos fenômenos relacionados ao ambiente formado pelo modelo de relação mãe-bebê, o qual também poderia, na situação especializada da clínica, ser o modelo, a depender da fase de análise, da relação analista-paciente16.

Gostaria de chamar atenção para o fato de que, embora esses sejam fenômenos específicos de determinadas fases do amadurecimento humano, existe um deles que se constitui nessa relação e que se mantém vida a fora. Trata-se da dependência ou, sendo mais específico, da cooriginação dependente. Mesmo quando seguimos rumo à independência e conseguimos nos ver como uma unidade que tem uma identidade capaz de se pensar como um "Eu sou" maduro (um adulto, por exemplo), mantemo-nos sempre ainda ligados às relações com os outros. Em maior ou menor grau, somos sempre dependentes. Seja por contraposição ou consonância, fazemo-nos ser por relação de dependência. Somos cooriginariamente dependentes e, por isso, nosso modo fundamental de ser é o da relacionalidade.

A relacionalidade é uma das características do que está para além de nossa natureza. De certa forma, ela dá preenchimento ao "quase tudo" que faltaria no que somos. A relacionalidade não é uma propriedade, algo que possa ser encontrado no ser humano como um gene ou algo do tipo. Ela se encontra entre a natureza humana de um ser humano e outro.

O fato de nos cooriginarmos dependentemente enquanto seres humanos uns dos outros permite pensar como é possível que não podendo nós mesmos termos uma natureza última, já que sempre dependemos uns dos outros, podemos chegar a ser o que somos, uma unidade com identidade. Esse paradoxo parece se esclarecer por meio de outro fenômeno o qual se desdobra a partir da relacionalidade: o cuidado. Só chegamos a ser o que somos porque inicialmente somos cuidados em todos os aspectos necessitados - psicossomáticos e mentais. Esses cuidados providos por um ambiente facilitador que atende às necessidades iniciais do existente permitem elaborar uma noção de borda/membrana limitadora a qual, por sua vez, possibilita dar sentido às várias partes do corpo, reuni-las em um todo, um psicossoma. Este pode elaborar uma noção de existência corporificada, de um "Eu sou" e, portanto, de uma permanência no mundo por oposição a outro não-eu. Com o tempo e o amadurecimento, esse "Eu sou" se dará conta de que sua permanência é impermanente porque finita e passageira.

Nem por isso a vida deixa de valer ser vivida; nem por isso o mundo se torna caos desesperador. Isso porque há um terceiro desdobrar-se da relacionalidade o qual garante a um si-mesmo que se constitua a-fundo, ou seja, sem ter um fundo metafísico no qual se apoiar: trata-se da confiabilidade. A confiabilidade, que inicialmente diz respeito à tarefa de sustentação (holding), tem um sentido físico. Porém, também é responsável pelo surgimento da noção de temporalidade, de sustentação das ações no tempo e do quão e quanto um ambiente pode ser confiável. Chegar-a-ser-si-mesmo e poder manter-se sendo si-mesmo é uma conquista proporcionada por vários fatores, entre eles o mais importante é o de que o ambiente não se desfaça em pedaços e que se mantenha tal como é, confiável. Isso significa dizer que o ambiente não causará interrupções traumáticas na continuidade-de-ser do lactente. Desde esse ponto até o resto da vida, todas as nossas relações com os outros e o mundo estão pautadas pela confiabilidade das relações estabelecidas (e, consequentemente, também pela capacidade de tolerar ser decepcionado).

Assim, poder-ser uma natureza humana está relacionado à dependência, que, em termos ambientais, tem como palavra-chave a confiabilidade. Poder-ser tem algo a ver com o poder confiar. Pode-se confiar em coisas - como em "confio que essa casa é segura" - ou pode-se confiar em pessoas - como em "confio em você quando me diz tal coisa". Em ambos os casos, confiar tem um sentido de acreditar. Ainda em uma terceira acepção, confiar guarda o sentido de expectativa, na medida em que se espera que alguma coisa ou alguém seja confiável (Santos, 2010, p. 199-200).

O sentido de confiabilidade que interessa aqui é o humano, que protege as pessoas em relação conosco do imprevisível, pois "por detrás da imprevisibilidade encontra-se confusão psíquica, e por traz disso pode ser encontrado caos em termos de funcionamento somático, isto é, uma angústia impensável que é física" (Winnicott, [1970] 1986, p. 116). Assim, confiar é um "crer em". Por sua vez, "crer em" é possibilitado pelas tarefas de sustentação (holding) e manejo (handling) realizadas pela mãe ou por aquele que cuida do bebê: "esta questão da sustentação e manejo introduz o tema todo da confiabilidade humana" (Winnicott, [1970] 1986, p. 146). Assim, poder-ser depende de uma sustentação física e pré-verbal. Poder-ser no início, na fase de dependência absoluta, só pode se dar por meio da presença de um outro em sua comunicação silenciosa (Santos, 2010, p. 200).

Em resumo, a cooriginação dependente desdobrada enquanto relacionalidade, cuidado e confiabilidade nos proporciona uma sustentação para um mundo sem fundo; para a existência de um si-mesmo que não surge como algo ou uma propriedade que se assenta sobre outro algo. Nosso si-mesmo como a integração de todos os fenômenos experienciados torna-se possível como permanência impermanente no mundo, porque seu sustento encontra-se nessas três dimensões cooriginantes. Não se trata aí nem de uma coisa ou propriedade nem de uma representação; trata-se, simplesmente, de um fenômeno cooriginário da relação de dependência entre dois seres humanos que constituem seus sentidos de si mesmo mutuamente.

 

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1 Possui graduação em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (1997), mestrado em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (2001), doutorado sanduíche em Filosofia - Universitat Freiburg (Albert- Ludwigs) (2005), doutorado em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas/SP (2006) e pós-doutorado na Bergische Universität Wuppertal (2015). Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Filosofia da Psicanálise, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia da psicanálise, fenomenologia existencial, teoria dos paradigmas em Kuhn, teoria do amadurecimento pessoal. Publicou o livro "Winnicott e Heidegger: aproximações e distanciamentos". São Paulo: DWW Editorial/FAPESP, 2010. Atual coordenador do Programa de Pós-graduação em Filosofia. Professor Associado no Departamento de Filosofia na Universidade Estadual de Londrina - Paraná. (Fonte: Currículo Lattes)
2 A começar por seu artigo seminal "Winnicott e o pensamento pós-metafísico", de 1995.
3 Poder-se-ia mencionar o Grupo de Pesquisa em Filosofia e Práticas Psicoterápicas, a Sociedade Winnicott Brasileira e a International Winnicott Association. Quanto às teses, indica-se algumas: Pondé (2018), Da Silva (2011), Nottturni (2011), Gomes (2010), Coelho (2009), Garcia (2009), Ribeiro (2008), Araújo (2007), Rosa (2007) e Santos (2006).
4 Para uma visão geral e completa da teoria do amadurecimento pessoal veja Dias (2003).
5 Sobre o tema da temporalização em Winnicott, ver Dias (2003, p. 196-208). O tema também é discutido em Santos (2010).
6 Loparic desenvolveu com precisão os elementos que compõem a matriz disciplinar da psicanálise de Winnicott em seu artigo "Esboço do paradigma winnicottiano" (2001).
7 Desenvolvi algo sobre esta temática em Santos (2018).
8 Heidegger já deixou claro em "Ser e tempo" que não se trata de definir o que é "ser" e sim de dizer como é "ser". Ver, Heidegger (2001, p. 37-8).
9 Heidegger trabalha essa noção em escritos como Heidegger (1996, p. 84 ss).
10 Leia-se, por exemplo, o verso XIV dos "Versos fundamentais do caminho do meio" (Nagarjuna, 2016, p. 51-2).
11 Por exemplo, como na citação destacada por Dias (2003), "[...] o si-mesmo, que não é o ego, é a pessoa que eu sou, que é somente eu [me], que possui uma totalidade baseada na operação do processo maturativo. Ao mesmo tempo, o si-mesmo tem partes e é, na verdade, constituído dessas partes. [...]" (Winnicott, 1971d, p. 210 apud Dias, 2003, p. 145).
12 O conceito de "dação de sentido" foi explorado por Loparic (2000).
13 Para uma análise clínica sobre o problema do "nada no centro" em Winnicott, ver Winnicott ([1959a] 1989, p. 49-52).
14 Um interessante trabalho que mostra mais sobre essas mudanças nas relações de objeto nas psicanálises de Freud e Winnicott pode ser encontrado em Ribeiro (2008).
15 Loparic trabalha esse conceito de "dois-em-um" em Winnicott em Loparic (1999).
16 Sobre a clínica em Winnicott, ver Dias (1999).

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