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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.21 no.2 São Paulo jul./dez. 2019

 

ARTIGOS

 

Para além do inconsciente verbalizável e da memória lacunar: a psicanálise sob o olhar de Loparic

 

 

Caroline Vasconcelos Ribeiro1

Professora Titular da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) Departamento de Filosofia e Ciências Humanas (DFCH) / e-mail: carolinevasconcelos@hotmail.com

 

 


RESUMO

O professor Zeljko Loparic aprofundou a discussão filosófica - anunciada por Heidegger nos Seminários de Zollikon - em torno do conceito freudiano de inconsciente e, além disso, nos apresentou uma leitura original das formulações winnicottianas relativas a um tipo de conteúdo inconsciente que não pode ser verbalizado através da regra fundamental da psicanálise freudiana, não pode ser recordado com base em um resgate de representações psíquicas carregadas de afeto e, por conseguinte, elaborado à luz do clássico modelo de interpretação analítica. Com este texto, pretendemos indicar que, ao sistematizar a formulação winnicottiana acerca de um inconsciente não-acontecido, Loparic nos faz pensar numa relação do inconsciente com a memória que não se reduz ao preenchimento de lacunas e elos faltantes. Além disso, faz-nos ver uma outra forma de meditar sobre o passado, o resgate da "história de vida" e a clínica psicanalítica.

Palavras-chave: inconsciente; memória; psicanálise.


ABSTRACT

Prof. Zeljko Loparic has deepened the philosophical discussion - announced by Heidegger in the Zollikon Seminars - around the Freudian concept of the unconscious and, beyond this, has presented to us an original version of the Winnicottian formulations addressing a type of unconscious content, which cannot be verbalized through the fundamental Freudian psychoanalysis nor remembered by a rescue of psychic representations carried by affect and, following this, nor be elaborated in the light of the classical model of analytic interpretation. With this text, we intend to indicate that Loparic, by systematizing the Winnicottian formulation regarding a non-occurred unconscious, makes us think in a relation of the unconscious with the memory, which is not restricted to the filling of gaps and missing links. Additionally, he makes us see another type of reflection about the past, the rescue of the "life history" and the psychoanalytic clinics.

Key-words: unconscious; memory; psychoanalysis


 

 

O professor Zeljko Loparic aprofundou a discussão filosófica - anunciada por Heidegger nos Seminários de Zollikon - em torno do conceito freudiano de inconsciente e, além disso, apresentou-nos uma leitura original das formulações winnicottianas relativas a um tipo de conteúdo inconsciente que não pode ser verbalizado mediante a regra fundamental da psicanálise freudiana, não pode ser recordado enquanto resgate de representações psíquicas carregadas de afeto e, por conseguinte, elaborado à luz do clássico modelo de interpretação analítica. Com este texto, pretendemos indicar que, ao sistematizar a formulação winnicottiana acerca de um inconsciente não acontecido, Loparic nos faz pensar numa relação do inconsciente com a memória que não se reduz ao preenchimento de lacunas e elos faltantes. Faz-nos ver uma outra forma de meditar sobre o passado, o resgate da "história de vida" e a clínica. Em outros termos, faz-nos repensar a trilha de fenômenos que, segundo Freud, ocorrem na condução do tratamento analítico, qual seja: "recordar, repetir e elaborar". Visamos indicar que, ao sistematizar e nos apresentar um conceito winnicottiano de inconsciente que não equivale ao inconsciente reprimido e verbalizável de Freud, Loparic nos faz ver que Winnicott redimensiona o sentido clínico do verbo "lembrar", indicando-nos que, nos casos de pacientes psicóticos, não está em questão o resgate de reminiscências, mas um reviver de "algo" que os habita, mas que não foi experienciado no passado porque não havia em Eu capaz de experienciar. Veremos que, nesses casos, talvez seja melhor formular a trilha do tratamento da seguinte maneira: "reviver, descongelar a situação de falha e começar a amadurecer". Apresentaremos nosso argumento neste texto em homenagem à fecundidade do pensamento do professor Zeljko Loparic, analisando inicialmente a maneira como este pensador aprofunda a crítica de Heidegger ao conceito freudiano de inconsciente; em seguida, examinaremos a relação entre o inconsciente verbalizável e o preenchimento das lacunas na memória; por fim, apresentaremos a formulação lopariciana sobre um inconsciente agônico e não-verbalizável em Winnicott, bem como uma meditação sobre um conceito mais primitivo de memória.

A obra Seminários de Zollikon traz um registro das preleções realizadas por Heidegger a psiquiatras suíços entre os anos de 1959 e 1969. Tais registros são em forma de atas e, por isso mesmo, não apresentam uma discussão aprofundada dos conceitos tratados e dos argumentos apresentados durante as aulas. A obra configura-se, então, como um roteiro de temas que requisitam esclarecimento e aprofundamento. Entendemos que as pesquisas efetuadas por Loparic lançam luz sobre as posições heideggerianas em relação à psicanálise de Freud, posições muitas vezes categóricas e sumárias. Uma delas diz respeito ao conceito metapsicológico de inconsciente. Para o filósofo alemão, Freud postula:

[...] para os fenômenos humanos conscientes a ausência de lacuna na explicabilidade, isto é, a continuidade das conexões causais. Por não haver isto "na consciência" ele precisa inventar "o inconsciente", no qual tem de haver a ausência da lacuna de conexões causais. O postulado é a explicabilidade corrente do anímico, onde explicar e compreender são identificados. Este postulado não é tirado das próprias manifestações anímicas, mas ele é o postulado da ciência natural moderna. (Heidegger, 2007, p. 222; itálico nosso)

No trecho acima, Heidegger assegura que a pressuposição freudiana de um psiquismo inconsciente se deve ao fato de a consciência ser lacunar e de tal conceito restituir as lacunas e, consequentemente, as conexões causais entre os fenômenos psíquicos. Loparic (2001, p. 92) nos alerta que a distinção entre consciente e inconsciente é um pressuposto fundamental - um shiboleth2 - da psicanálise freudiana, cuja técnica de tratamento consiste em preencher as lacunas na memória e superar as resistências erigidas pela repressão em relação ao resgate do material reprimido (Freud, 1914/1996, p. 163). Nesse sentido, a Freud (1915a/2006, p. 19) parece lícito supor "(...) a existência de um psiquismo inconsciente e de trabalhar cientificamente com essa suposição", mesmo que a mesma seja contestada por muitos. Para o pai da psicanálise, a suposição do inconsciente é necessária e legítima justamente porque tanto pessoas sadias quanto doentes vivenciam processos psíquicos para os quais a consciência não fornece evidências (Freud, 1915a/2006, p. 19). Tais processos, destaca Loparic (2001, p. 97), são atos representacionais carregados afetivamente e são submetidos a leis gerais que governam o funcionamento psíquico.3

Na passagem citada acima, Heidegger também afirma, sem maiores aprofundamentos, que a noção de inconsciente atua a favor da explicabilidade do psíquico. Mais que isso, diz que Freud identifica o explicar com o compreender. O filósofo faz tais afirmações, mas não aprofunda o argumento, o que traz certo desconforto para nosso entendimento, uma vez que compreender (verstehen) e explicar (erklären) são verbos antípodas quando tratamos dos campos de conhecimento. Como afirma Assoun (1983), com Dilthey aprendemos que, do ponto de vista epistemológico, a explicação está a serviço das ciências da natureza e a compreensão é o modo como as ciências do espírito apreendem os fenômenos que investigam. O que nos faz perguntar com que fundamento Heidegger sonega a Freud a percepção desse dualismo e nos fala de uma identificação entre compreender (verstehen) e explicar (erklären)? Dessa decorre outra indagação: como um campo de saber que trata de sonhos, desejos, atos falhos, fantasias e sintomas psíquicos pode ser acusado não só de identificar o compreender e o explicar, mas de instituir o conceito de inconsciente com base no horizonte epistemológico das ciências da natureza? Tentaremos responder tais questões percorrendo as sendas argumentativas abertas por Loparic em suas incansáveis investigações sobre a maneira como Heidegger analisou o saber freudiano.

 

1. O aprofundamento lopariciano da crítica de Heidegger à psicanálise de Freud

O conceito de inconsciente compõe o rol de conceitos freudianos pertencentes à teoria metapsicológica, ou seja, se trata de um conceito especulativo que tem a função de ser uma construção auxiliar no processo de apreensão e explicação dos fenômenos observáveis. No texto "Além do inconsciente - sobre a desconstrução heideggeriana da psicanálise", Loparic (2001, p. 102) se propõe justamente a apresentar e examinar "as ainda pouco conhecidas" críticas heideggerianas à metapsicologia, "[...] com o objetivo de mostrar que a psicanálise freudiana pode ser caracterizada como um caso particular de teorização objetificante". Ao executar o que se propõe no texto em comento, o autor nos apresenta uma resposta aprofundada às questões levantadas anteriormente. Tendo como guia as sumárias colocações heideggerianas em relação à metapsicologia, Loparic nos indica que o inconsciente freudiano tem uma função dinâmica e que isso coaduna com a opção metodológica de Freud de alocar seu campo de saber na seara das ciências da natureza. Para tal perspectiva metodológica, "[...] as causas de processos naturais têm de ser pensadas, não como 'matérias', mas como 'forças'". Essa seria a razão da insistência "[...] de Freud na busca de explicações para lacunas patológicas a partir de forças quantificáveis, que agem num sistema fechado de acordo com leis deterministas" (Loparic, 2001, p. 99). Ao atuar dinamicamente na máquina psíquica, o inconsciente torna-se capaz de produzir causalmente os fenômenos que citamos acima, a saber: sonhos, desejos, atos falhos, fantasias e sintomas psíquicos.4

Em "Resistências à psicanálise", Loparic (1985, p. 32) argumenta que, desde a perspectiva adotada por Freud, "toda explicação causal na psicologia deve ser dinâmica".5 Buscar explicações dinâmicas para fenômenos psíquicos significa entendê-los como jogo de forças que geram distúrbios e demais atos do psiquismo. O inconsciente dinâmico cumpre a função causal de tais fenômenos. Por isso, Freud (1940a/1996) nos assegura que a psicologia que equivale o psíquico ao consciente falha ao tentar imputar à nossa consciência o poder de causar e gerir todas as nossas ações, o que implica dizer que tal psicologia carece de mecanismos para explicar as rupturas e lacunas que temos na memória. A suposição de uma instância psíquica inconsciente, defendida pelo tipo de Psicologia profunda inaugurada por Freud, favorece o reconhecimento de que nada na vida anímica é por acaso ou arbitrário.

Enquanto a psicologia da consciência nunca foi além "das sequências rompidas" que eram obviamente dependentes de algo mais, a outra visão, que sustenta que o psíquico é inconsciente em si mesmo, capacitou a Psicologia a assumir seu lugar entre as ciências naturais, como ciência. Os processos em que está interessada são, em si próprios, tão incognoscíveis quanto aqueles que tratam as outras ciências, a Química ou a Física, por exemplo; mas é possível estabelecer as leis a que obedecem [...]. (Freud, 1940a/1996, p. 172)

As forças inconscientes, que atuam na formação de sintomas e demais fenômenos psíquicos - tal como as que atuam nos fenômenos investigados pela física e pela química -, não são tangíveis, nem disponíveis empiricamente, mas é possível investigar as leis às quais obedecem. O conceito de inconsciente, apesar de incognoscível como os conceitos de força e de átomo, é frutífero para a explicação de fenômenos psicológicos observáveis e passíveis de conhecimento. O pressuposto aqui é que os "estados inconscientes" poderiam ser traduzidos para categorias da representação consciente. Loparic (1999b) nos mostra que tal pressuposição tem uma dívida para com a teoria kantiana dos limites da razão pura, afinal, Freud aceita a não identidade entre o fenômeno, dado na experiência empírica, e o noûmeno que, apesar de incognoscível, pode ser pensado como problema que a razão impõe a si mesma. Assim, o inconsciente opõe-se ao fenômeno percebido desde a intuição sensível a priori, e pode ser comparando à coisa em si: que podemos pensar, mas não conhecer pelas categorias do entendimento (Freud, 1915a/2006).6 Desse modo, como não se pode acessar diretamente o inconsciente, torna-se preciso traduzir (umsetzen) os estados inconscientes em termos de descrições aplicáveis ao consciente, assumindo que o psíquico em si não é tal como aparece. Ao pensar o inconsciente desta maneira, Freud o situa no interior da teoria kantiana da objetividade e, consequentemente, do seu modo de conceber a ciência natural.7 Loparic afirma que, embora não se possa "[...] decidir qual é a verdadeira natureza dos estados psíquicos inconscientes nem conhecer qualquer um de suas eventuais propriedades", se pode tratar os "[...] estados inconscientes como se fossem causas, ânsias, isto é, como se fossem entidades dinâmicas" (Loparic, 1999b, p. 118).

Em sua obra Princípios metafísicos da ciência da natureza, Kant (1990) afirma que o uso de causas não-fenomenais, sem referência no mundo sensível, pode ter grande valor metodológico.8 A falsidade ou veracidade dessa causa não é decidível, visto que não se tem a pedra de toque da experiência. O uso da perspectiva dinâmica está a serviço desse tipo de causa não-fenomenal, que pode ser frutífera por fornecer explicações sistêmicas que permitem descobrir leis num encadeamento racional.9 Loparic (1999b, p. 116) nos lembra que o recurso de utilizar uma causa primeira não-fenomenal foi exemplificado por Kant, justamente com a força de gravitação e a impenetrabilidade de Newton. O "inconsciente dinâmico" freudiano teria essa função de causa não-fenomenal, que é incognoscível, mas tem grande valia na explicabilidade dos fenômenos psíquicos. Esse inconsciente não é anatomicamente localizável, nem constatável de modo imediato na empiria, porém, assume o caráter de uma convenção aplicável ao material empírico e tem alto poder explicativo. É por isso que, na citação acima, Freud argumenta que foi a concepção de um psiquismo inconsciente que possibilitou a sua psicologia profunda "a assumir seu lugar entre as ciências naturais, como ciência" (Freud, 1940a/1996, p. 172).

Vimos anteriormente que Heidegger (2007) entende que Freud identifica o compreender (verstehen) e explicar (erklären), e que seu conceito de "inconsciente" está a favor de um tipo de explicabilidade que não é cativo às manifestações anímicas, mas à ciência natural moderna. Diante desta assertiva, nos sentimo-nos impelidos a indagar como um campo de saber que trata dos sentidos subjacentes aos sonhos, atos falhos e sintomas psíquicos pode ser acusado de identificar o compreender e o explicar. Ora, se a ciência natural ancora-se na explicação dos fenômenos naturais pelo esclarecimento das conexões causais e as ciências do espírito, por sua vez, se fundam na compreensão dos fenômenos humanos enquanto apreensão de sentido, como Freud poderia identificar estas duas formas distintas de abordagem e de acesso aos fenômenos?10 Mais que isso, como Freud poderia tratar fenômenos humanos sem considerar esta diferença? Loparic nos esclarece:

Mesmo quando trabalha com o sentido, Freud o entende de maneira naturalista, como um fato objetivo de natureza, mais precisamente, como uma questão de direção de atos mentais, não levando em conta a distinção, característica de muitas teorias nas ciências humanas, entre a explicação causal dos desvios dos cursos normais dos atos psíquicos e a compreensão ou interpretação das relações entre seus conteúdos. Em Freud, toda compreensão é, ao mesmo tempo, explicação: o que se compreende e interpreta é a causa de um sintoma. As interpretações psicanalíticas são explicações causais do sentido dos sintomas. (Loparic, 2001, pp. 97-98)

Em função do exposto, Loparic (2001) nos alerta que a psicanálise freudiana deve ser alocada entre as ciências da natureza, como science, e não como uma ciência do homem ou ciência do espírito. Freud não se oporia a essa afirmação, pois, além de assegurar que o conceito de inconsciente capacitou ao seu campo de saber assumir seu lugar entre as ciências naturais, fez a seguinte afirmação na obra Um estudo autobiográfico: "também a psicologia é uma ciência natural. O que mais pode ser?" (Freud, 1925/1996, p. 298). Ora, ainda que saibamos que as ciências da natureza operam com conexões causais e as do espírito com conexões de sentido, ou seja, que as primeiras trabalham com categorias de causalidade e as segundas com categorias de significação, não podemos negar a assumida afinidade de Freud com o perfil epistemológico das ciências da natureza.11 Por isso, Loparic diz acima que a interpretação freudiana está a serviço da explicação causal. É como se Freud negasse, como indica Mezan (2007, p. 328), a diferença ontológica entre o humano e o natural.

Em relação à contenda metodológica nomeada de "querela dos métodos" (Methodenstreit), em outros termos, em relação à oposição entre as ciências da natureza (Naturwissenschaften) e as ciências do espírito (Geisteswissenschaften), Assoun (1983, p. 48) nos assegura que Freud não escolhe a identidade de Naturwissenschaft em oposição à Geisteswissenschaft, pois, para o comentador, o pai da psicanálise sequer considera esse dualismo. É como se a alternativa da escolha não existisse visto que, para Freud, o científico refere-se, necessariamente, à ciência natural. Em função desta identidade epistemológica de sua ciência, Freud teria coisificado e naturalizado o psiquismo, e o conceito de inconsciente foi fundamental para essa empreitada (Loparic, 2001, p. 266). Ainda que esse conceito tivesse sido abordado anteriormente por filósofos como Theodor Lipps, isso foi feito de forma "[...] tão indefinida e obscura que não poderia ter exercido influência alguma sobre a ciência" (Freud, 1940a/1996, p. 172). Para Freud, apesar de o conceito de inconsciente já ter aparecido na literatura e na filosofia, ele teria sido tratado de modo distraído, portanto, somente a sua ciência teria se apossado do conceito, levando-o à sério, conhecendo suas características até então insuspeitadas e descobrindo as leis que governam seu funcionamento (Freud, 1940b/1996, p. 306).

Ao aprofundar a categórica crítica heideggeriana dirigida a Freud, Loparic não só lançou luz sobre a identidade epistemológica da psicanálise, como nos apresentou um exame minucioso sobre a presença de uma herança kantiana e neokantiana no arcabouço conceitual da metapsicologia.12 Além disso, alertou-nos que a desconstrução que Heidegger fez em relação à psicanálise impôs a necessidade de "[...] reconhecer como datados os pressupostos ontológicos centrais do paradigma freudiano ou, pelo menos, a encarar, com seriedade, as consequências coisificantes desses pressupostos" (Loparic, 2001, p. 132). Entendemos que um dos aspectos relativos a esse reconhecimento concerne ao entendimento da função epistemológica do conceito de inconsciente no horizonte da teoria metapsicológica de Freud. Como nos esclarece Loparic:

Quando Freud introduz o inconsciente, o princípio que guia pertenceria, portanto, à lógica produtiva que comanda a teorização nas ciências naturais e que foi elaborada, de maneira paradigmática para a modernidade, por Kant. Um dos princípios fundamentais desse modo de teorização é o de causalidade, responsável, segundo Heidegger, pela invenção freudiana do "inconsciente dinâmico", isto é, do inconsciente como fator causal. Esse princípio, aceito não somente por Freud, mas, de modo geral, pela ciência da natureza no seu todo, repousa sobre uma determinada concepção de realidade, segundo a qual "só é efetivamente real e verdadeiro" aquilo que obedece ao princípio do fundamento, isto é, da razão suficiente. (Loparic, 2001, p. 122)

Ao erguer sua metapsicologia no solo seguro do programa kantiano para a ciência da natureza, Freud destinou um princípio explicativo que vale para entes naturais - o princípio de causalidade - para os fenômenos psíquicos. O que, para Loparic (2001), implica num erro categorial, já que tais fenômenos não podem ser naturalizados ou objetificado dessa maneira. Por isso o autor nos convida a reconhecer como datados os pressupostos subjacentes à psicanalise freudiana. O reconhecimento da presença de uma herança metafísica e de uma identidade científico-natural na psicanálise de Freud nos impõe a tarefa de buscar uma ciência dos fenômenos psíquicos que não seja servil a esse espólio e que nos permita pensar tais fenômenos com uma semântica não afinada com a linguagem fisicalista, a qual gira em torno de máquinas, forças e energias.

À luz das teses loparicianas apresentadas até aqui, podemos pensar que esta ciência, ao invés de se dedicar apenas ao resgate de um inconsciente reprimido e à recomposição da história das indecências proibidas, deveria considerar que existem seres humanos que sofreram traumas tão primitivos que não se relacionam a uma experiência censurável, mas a cisões em seu existir. Nesses casos, não poderíamos falar de um inconsciente reprimido, traduzível e resgatável via comunicação verbal, mas de um inconsciente agônico, não comunicável, e cujo acesso não é via interpretação.

Loparic nos mostrou, por um infatigável exame das obras de Winnicott, que a psicanálise deste pediatra inglês nos proporciona a possibilidade de pensar o ser humano sem pagar tributo à semântica fisicalista freudiana e sem fazer coro à hegemonia do conceito metapsicológico de inconsciente reprimido. O que implicou num redimensionamento do lugar da interpretação e da verbalização no tratamento psicanalítico. Para apresentarmos a sistematização lopariciana sobre a forma inaugural que Winnicott pensa o conceito de inconsciente e as suas consequências clínicas, reputamos que seja pertinente examinar, inicialmente, a maneira como Freud pensou a relação entre a verbalização, o resgate dos conteúdos reprimidos e o preenchimento de lacunas da memória. Só depois de executarmos essa tarefa, apresentaremos a possibilidade de se pensar o conceito winnicottiano de inconsciente, o qual nos faz atentar para algo que vai além de sua "verbalizabilidade".13

 

2. Sobre a verbalização do inconsciente e o preenchimento de lacunas na memória em Freud

Vimos, no tópico acima, que o conceito freudiano de inconsciente ancora sua necessidade e legitimidade no argumento de que a consciência é lacunar. Em função de seu alto poder de explicação e de preenchimento de lacunas na memória, tal conceito teria capacitado a psicanálise a assumir seu lugar entre as ciências naturais (Freud, 1940a/1996). A hipótese do inconsciente, para Freud, tornaria o psiquismo explicável e lhe garantia que sua psicanálise recebesse a insígnia da cientificidade natural. Segundo Loparic,

A teoria psicanalítica foi desenvolvida por Freud como um meio de resolver um problema do estudo empírico e do tratamento das neuroses. Nos casos de histeria, por exemplo, observa-se a existência de lacunas nas correntes de atos conscientes. Freud introduziu o inconsciente para dar conta de tais lacunas. (Loparic, 2001, p. 259)

Qual seria então o plano de cura nos casos da neurose? Na conferência "A fixação no trauma, o inconsciente", Freud nos fala que a tarefa do tratamento psicanalítico consiste em converter os conteúdos inconscientes patológicos em conscientes e "preencher todas as lacunas na memória do doente, eliminar suas amnésias" (Freud, 1917/2014, p. 377). No texto "Recordar, repetir e elaborar" - que compõe um rol de trabalhos sobre a técnica analítica -, o pai da psicanálise indica que o objetivo do tratamento consiste em "preencher lacunas na memória; dinamicamente, é superar resistências devidas à repressão" (Freud, 1914/1996, p. 163).

No final do texto "O inconsciente", Freud (1915a/2006, p. 44) reconhece que tudo o que ele pôde dizer acerca da caracterização do conceito foi extraído de seus conhecimentos sobre a vida onírica e sobre as neuroses. Tendo essa patologia como seu foco principal de estudo e de atuação, o pai da psicanálise nos apresentou um rol de técnicas que deveriam ser usadas para investigar os "anos esquecidos do paciente" e recuperar lembranças perdidas. Para isso, informou-nos que o paciente, se se entrega às associações livres, fornece ao analista tanto fragmentos de lembranças que muitas vezes estão deformados, quanto ideias que podem aludir "[...] às experiências reprimidas e derivados de impulsos afetivos recalcados, bem como reações contra eles" (Freud, 1937/1996, p. 276). Além disso, o analista poderá se deparar com ações desempenhadas pelo paciente, dentro e fora da situação analítica, que sugerem repetições do material reprimido (Freud, 1917/2014). Nessa perspectiva, em "Construções em análise", Freud nos diz que a pessoa que está em tratamento deve ser "induzida a recordar algo que foi por ela experimentado e reprimido", cabendo ao analista a tarefa de:

[...] completar aquilo que foi esquecido a partir dos traços que deixou para trás de si ou, mais corretamente, construí-lo. A ocasião e o modo como transmite suas construções à pessoa que está sendo analisada, bem como as explicações com que as faz acompanhar, constituem o vínculo entre duas partes do trabalho de análise, entre o seu próprio papel e o do paciente. (Freud, 1937/1996, p. 276)

Ao definir o trabalho analítico como uma espécie de construção ou reconstrução do material apresentado pelo paciente, Freud o compara com a tarefa do arqueólogo. Num exercício de analogia entre as duas formas de trabalhar, fala-nos sobre as dificuldades de acesso ao objeto arqueológico e ao objeto psíquico. Diante de um material soterrado, a tarefa do arqueólogo consiste em resgatá-lo para recompor e projetar, por exemplo, as paredes de um prédio do qual ficaram de pé restos de colunas encontrados entre escombros. Lidando com objetos destruídos pela violência mecânica, pelo fogo ou saque, o arqueólogo visa a determinar a idade de seus achados por meio de suplementação e combinação do que sobreviveu ao desgaste e ao ataque. A tarefa do analista não seria diferente desta, exceto pelo fato de que ele trabalharia em melhores condições, já que lida com algo que ainda está vivo e não foi destruído. O analista lida com fragmentos de lembranças, de associações e com o comportamento do paciente e, por isso, tem de lidar com a tarefa de recomposição ou reconstrução do que se acha esquecido e soterrado no inconsciente. Em situação de transferência, durante o tratamento, elementos soterrados aparecem em forma de sonhos, sintomas ou de "[...] repetições de reações que datam da tenra infância" (Freud, 1937/1996, p. 277). Mas, enquanto a reconstrução do objeto arqueológico só pode atingir um certo grau de probabilidade quando lida com algo muito destruído, a lida com "[...] o objeto psíquico, cuja história primitiva o analista está buscando recuperar, é diferente" (Freud, 1937/1996, p. 277). E em que consistiria essa diferença? No fato de que todo material estaria preservado, mesmo aquele que parece estar completamente esquecido, enterrado e inacessível ao paciente. Já que nenhuma estrutura psíquica pode ser vítima de absoluta destruição, caberia ao analista trazer à luz o que está oculto. Contudo, adverte Freud, em que pese essa vantagem, é importante destacar que os objetos psíquicos são mais complicados do que os objetos materiais recolhidos pelo arqueólogo em suas escavações. Além disso, para esse escavador, a reconstrução seria o objetivo final de seu labor, enquanto, para o analista, ela seria apenas uma tarefa preliminar.

A abertura do caminho para a construção ou reconstrução das reminiscências, que se encontram inconscientes, é feita através da assunção, por parte do paciente, da regra fundamental da psicanálise freudiana, qual seja: a de comunicar, sem crítica ou seleção, tudo o que lhe ocorrer. Para o médico, ou seja, para o analista, a regra consiste em "[...] escutar e não se preocupar se está lembrando de alguma coisa" (Freud, 1912a/1996, p.126). Ao transformar o conteúdo inconsciente em dados verbais, dizíveis, o paciente muitas vezes oferece ao analista um material desconexo, caótico e enigmático, afinal, por conta da repressão, é importante que este saiba que "[...] os impulsos inconscientes não desejam ser recordados da mesma maneira pela qual o tratamento quer que o sejam [...]" (Freud, 1912b/1996, p. 119). O acesso ao conteúdo inconsciente sofre ação da força de resistência por parte do paciente, o qual apresenta dificuldades em trazer à tona as lembranças dolorosas.14 Cabe ao analista empregar a arte de interpretação do material dito em análise, de modo a identificar as resistências e torná-las acessíveis ao paciente. Ao vencer as resistências, "[...] o paciente amiúde relaciona as situações e vinculações esquecidas sem qualquer dificuldade" (Freud, 1914/1996, p. 163).15 Apesar da dificuldade em remontar o passado com base no material que é verbalizado por vezes de forma desconexa e enigmática, Freud (1913/1996, p. 151) alerta que não caberia ao analista incentivar ao paciente que prepare o que irá comunicar, que organize previamente as suas narrativas, afinal, esse ordenamento poderá estar a serviço da resistência para impedir que, na seção, "pensamentos desagradáveis venham à superfície". Sobre o início do tratamento, Freud explica:

O material com que se inicia o tratamento é, em geral, indiferente - a história de vida do paciente, ou a história de sua doença, ou as suas lembranças de infância. Mas em todos os casos, deve-se deixar que o paciente fale e ele deve ser livre para escolher em que ponto começará. (Freud, 1913/1996, p. 149)

Caberá ao analista decifrar os enigmas instituídos pela narrativa do paciente entrelaçadas aos seus sintomas, sonhos, atos falhos e demais formações inconscientes. Como afirma Loparic (1999a, p. 348), está pressuposto que, durante a análise, os estados inconscientes - até então imperceptíveis ao paciente - poderão ser traduzidos através de verbalizações e vistos "de fora" pelo analista. Ainda que o conteúdo narrado possa ser diversificado - lembranças da infância, sonhos, desejos ou fantasias -, o assunto remete sempre a algo que aconteceu, seja na realidade empírica ou na realidade psíquica, mas não deveria ter acontecido. Claro que pode ocorrer, como adverte Freud (1913/1996, p. 152) de, em determinados momentos, o pacientes nos assegurar que não consegue pensar em nada para dizer, ou seja, pode ocorrer que, ao invés de apresentar o material primordial do tratamento - a fala mediante associação livre -, o paciente apresente o silêncio. O pai da psicanálise afirma que, "embora todo o campo da história de vida e da história de sua doença se lhe achem abertos para escolher", esse tipo de paciente sofre a ação de uma forte resistência que "[...] adiantou-se a fim de defender a neurose". Diante disso, nos encoraja-nos Freud, "temos de aceitar o desafio, então, e aí enfrentá-la" (Freud, 1913/1996, p. 152).

Ora, se a regra fundamental da clínica freudiana é uma regra de comunicação, o que se deve pensar de um paciente que não compartilha verbalmente sua história de vida e seus desejos? Se o pressuposto desta clínica é a cura pela fala, o silêncio deve ser visto como algo a favor da resistência. O pai da psicanálise nos ensinou que a força motivadora para a busca de tratamento é o sofrimento do paciente e seu desejo de ser curado; tal força, entretanto, é diminuída pela ação da resistência no tratamento. A resistência atuaria dificultando a recuperação das lembranças e o preenchimento das lacunas na memória. Quanto maior for a resistência, menor será o processo de recordação das lembranças e maior será a chance de o paciente reproduzir como ação aspectos de seu inconsciente.16 Ao invés de recordar e elaborar o material tornado acessível via verbalização, o atua (acts it out), repetindo atitudes do passado. Quando o recordar cede caminho para a atuação (acting out), "o paciente retira do passado as armas com que se defende contra o progresso do tratamento - armas que lhe temos que arrancar, uma por uma" (Freud, 1914/1996, p. 167).

Segundo Freud (1914/1996), é preciso que o paciente crie coragem para dirigir sua atenção aos fenômenos de sua moléstia, e esta deve se tornar um inimigo desprezível digno de sua têmpora. Com isso, ele estaria criando o caminho para uma "reconciliação com o material reprimido que está expresso em seus sintomas" (Freud, 1914/1996, p. 168). As táticas a serem utilizadas pelo analista na condução do tratamento devem fomentar a recordação e lutar para que o paciente mantenha na esfera psíquica todos os impulsos que gostaria de dirigir para a esfera motora, para que ele recorde o que desejaria descarregar em ações. A transferência é algo pode auxiliar o médico em relação à manutenção do campo da recordação, do preenchimento das lacunas na memória, evitando ao máximo que se instale o campo da atuação, da repetição de ações perpassadas por conteúdos inconscientes que são oriundos de um tempo remoto. Claro que os "instintos indomados" podem se afirmar antes que haja tempo de "colocar-lhes as rédeas da transferência", mas a via para reprimir a repetição e transformá-la numa recordação será sempre o manejo da transferência. Se o paciente apresenta as condições para cumprir a regra fundamental da análise e pactua com o analista, confiando a ele o poder de conduzir seu plano de cura, os sintomas de sua moléstia ganharão um novo significado transferencial e será possível "[...] substituir a neurose comum pela neurose de transferência, da qual pode ser curado pelo tratamento" (Freud, 1914/1996, pp. 169-170). Nesse sentido, Freud esclarece a natureza de seu tratamento no texto tardio, denominado "Esboço de Psicanálise":

Nosso plano de cura baseia-se nessas descobertas: O ego acha-se enfraquecido pelo conflito interno e temos de ir em seu auxílio. A posição é semelhante à de uma guerra civil que tem de ser decidida pela assistência de um aliado vindo de fora. O médico analista e o ego enfraquecido do paciente, baseando-se no mundo externo real, têm de reunir-se num partido contra os inimigos, as exigências instintivas do id e as exigências conscienciosas do superego. Fazemos um pacto um com o outro. O ego enfermo nos promete a mais completa sinceridade - isto é, promete colocar à nossa disposição todo o material que a sua autopercepção lhe fornece; garantimos ao paciente a mais estrita discrição e colocamos a seu serviço a nossa experiência em interpretar material influenciado pelo inconsciente. Nosso conhecimento destina-se a compensar a ignorância do paciente e a devolver a seu ego o domínio sobre regiões perdidas de sua vida mental. Esse pacto constitui a situação analítica. (Freud, 1940a/1996, p. 188)

Diante do material inconsciente que foi traduzido para a linguagem e verbalizado na clínica, caberá ao analista interpretá-lo. Deverá também manejar a transferência a ponto de evitar a atuação em prol da recordação. A base do trabalho analítico é a interpretação dos conteúdos inconscientes com vistas à busca do elo faltante na cadeia da memória, o qual existe em função de um desejo censurado ou da repressão de experiências traumatizantes. O neurótico sofre de reminiscências que precisam ser significadas e elaboradas mediante as construções feitas em análise. Ao entender que o material que o paciente deve colocar à disposição do analista é o que sua autopercepção lhe fornece, é como se Freud não conseguisse supor que existe um tipo de material que não pode ser transformado em dado, verbalizável e autopercebível. Nesse modelo freudiano de clínica, o silêncio, como nos adverte Loparic (1999a, p. 349), anuncia apenas que há fatos ainda não acessíveis, ainda não verbalizados. Contudo, o diligente trabalho do analista deverá arrancar, uma por uma, as armas da resistência e substituir a neurose comum pela neurose de transferência.

Ao pensar o inconsciente à luz da neurose e da repressão, ao entender que a sua legitimidade se dá em função do fato de a memória ser lacunar, Freud estabeleceu esse conceito como fator causal dos atos psíquicos, sejam eles sintomas, sonhos, atos falhos ou fantasias. É importante destacar que o pai da psicanálise assume que seu conceito de inconsciente foi estabelecido com base na teoria da repressão; por isso, afirma: "o reprimido é, para nós, o protótipo do que é inconsciente" (Freud, 1923/2011, p. 17). Esse inconsciente reprimido estaria repleto de indecências proibidas, de desejos censurados e de experiências dolorosas com alto poder patogênico. Ainda assim, poderia se tornar um objeto psíquico acessível mediante tradução e interpretação. A acessibilidade do material, lembra-nos Loparic (1999a, p. 358), é sempre pressuposta, visto que o inconsciente "pode ser, em princípio, representado, objetivado e, por isso, verbalizado". Nada escaparia à dimensão dos pronunciamentos, pois, como vimos, até mesmo o silêncio estaria submetido ao imperativo da acessibilidade, reduzido à condição de "resistência" que obstaculiza a condução da regra fundamental que convida o paciente a verbalizar sem crítica. O silêncio não é visto como "algo", mas como um fato que esconde "algo". Em seu texto "É dizível o inconsciente?", Loparic questiona o imperativo da verbalização dos conteúdos inconscientes presente na psicanalise freudiana:

Vê-se onde pretendo chegar: quero colocar em questão o pressuposto de Freud de que aquilo que está em análise seja algo que possa, no essencial, ser dito no sentido de ser verbalizado. Problematizar a ideia de que o inconsciente consiste num conjunto de dados que podem ser transpostos em dados sonoros, fonetizados e comunicados. [...] Isso implica que a regra de verbalização do inconsciente deve ser rediscutida. O inconsciente é mesmo verbalizável? Ou, antecipando os desenvolvimentos que se seguem: será que não é o caso de reconhecer que a psicanálise se depara com mais de um tipo de inconsciente, a saber, o verbalizável e o não verbalizável? (Loparic, 1999a, p. 338)

Ao levantar tais questionamentos, Loparic nos faz pensar sobre a possibilidade de um inconsciente que não se formata em representações verbalizáveis e, por conseguinte, não é capturável mediante a regra fundamental da psicanálise. O que implica pensar o estatuto da interpretação da narrativa como a via única do acesso aos conteúdos inconscientes, mais que isso, pensar na possibilidade de um inconsciente não-verbal, não representável "na fonação glóssica".17 O autor nos alerta que, ao levantar esse tipo de questionamento, não toma o "não-verbalizável" como o sinônimo de "não-dizível" e aconselha-nos a "[...] admitir dois tipos de dizeres, o verbal, isto é, oral - que poderíamos ainda denominar de 'glóssico' ou 'lingual' -, e o não-verbal, não-oral, mas assim mesmo um dizer reconhecível" ( Loparic, 1999a, p. 338). Esse outro modo de dizer passaria por outras vias, pelo corpo, por exemplo, e nos colocaria em contato com um tipo de inconsciente que não é como o inconsciente reprimido acessível na clínica dos pronunciamentos de Freud, mas um inconsciente agônico, que pode se tornar comunicável, mas não necessariamente verbalizável. A tese lopariciana é a de que Winnicott nos fornece a possibilidade prática e teórica de pensarmos esse outro tipo de inconsciente.

 

3. Sobre um inconsciente não-verbalizável e uma memória primitiva em Winnicott

No texto "A experiência mãe-bebê de mutualidade", Winnicott refere-se a dois tipos de bebês, quais sejam: aqueles que não foram significativamente desapontados em seus primeiros meses e aqueles que foram. Os bebês que se encaixam no primeiro tipo, ressalta o autor, "têm uma linha de vida e mantêm a capacidade de se deslocarem para frente e para trás (desenvolvimentalmente) e se tornarem capazes de correr todos os riscos, por se acharem bem garantidos" (Winnicott, 1969/1994, p. 201). A tais bebês, estaria assegurado o alcance de conquistas fundamentais do amadurecimento. Sendo assim, poderiam correr os riscos inerentes à vida. Num outro extremo, Winnicott aponta os bebês que foram expostos a um padrão de fracassos ambientais. Veremos a seguir que os riscos aqui são de outra natureza.

Antes de examinarmos a diferença apontada acima, é preciso destacar que, ao tentar compreender o amadurecimento do bebê humano, Winnicott não dirigiu seu foco para o desenvolvimento psicossexual, ou seja, para os caminhos erráticos da pulsão sexual autoerótica; ao contrário, ateve-se à maneira como a provisão ambiental se consolidava nos primeiros meses de vida. Nesse sentido, ao invés de perguntar-se sobre a satisfação da pulsão oral no ato de amamentar, Winnicott se perguntou pela comunicação e pela confiabilidade implicadas e implicáveis nesse ato. Ao invés de pensar que os problemas de um neonato dizem respeito às vicissitudes da pulsão, pensou sobre os aspectos ambientais que são capazes de promover o amadurecimento e a conquista de uma condição integrada. O ponto de partida deste psicanalista não foi a ideia de um aparelho psíquico capaz de investir eroticamente em objetos da realidade, mas a ideia de que partimos de um estado de não integração que só pode ser revertido mediante cuidados humanos. No início, tais cuidados devem ser regulares, empáticos e previsíveis. Se o ambiente oferece essa previsibilidade empática, torna-se confiável e capaz de fomentar o incipiente continuar a ser do bebê.

Falamos anteriormente de conquistas fundamentais do amadurecimento; para Winnicott, elas seriam: a integração no tempo e espaço, a localização da psique no corpo e o relacionamento com objetos. Explicaremos, ainda que de modo breve, cada conquista e a função ambiental relacionada a ela, respectivamente: holding, handling e apresentação de objetos. Faremos isso nos próximos parágrafos.

O aconchego do colo materno é visto por Winnicott como o primeiro lugar para ser, como primeiro "mundo" que o bebê - em processo contínuo de conquista do sentimento de ser - poderá habitar. Os braços envolventes da mãe, o ato de segurar o bebê, adaptando-se ao seu corpo, a adequação às suas necessidades, a proteção quanto às agressões fisiológicas são elementos que referem-se ao que Winnicott nomeia de holding. Como afirma Dias (2003, p. 209), no holding "[...] devem estar incluídas todas as experiências sensórias necessárias: ser envolvido, por todos os lados, num abraço vivo, que tem temperatura e ritmo e que faz o bebê sentir tanto o corpo da mãe como o seu próprio corpo". O primeiro tipo de bebê a que nos referimos acima, por ter tido um holding satisfatório, pôde ser desencarregado de levar em conta o ambiente e "seguiu sendo", sem ter de ficar em estado de alerta em relação a ameaças de invasões ambientais. Em suma: um ambiente que propicia um holding satisfatório tem como resultado a integração do neonato no tempo e no espaço, tem como "resultado uma continuidade da existência, que se transforma num senso de existir, num senso de self e finalmente, resulta em autonomia" (Winnicott, 1967a/2005, p. 11).18

Se a mãe é suficientemente boa, ela permite ao bebê viver espontaneamente a alternância entre suas tensões instintuais - referentes ao seu estado excitado marcado pela motilidade de "encontrar algo" numa vivência de comunicação e mutualidade - e seu estado tranquilo, onde impera um relaxamento, uma quietude contornada por um colo que dá segurança. Ao manipular o corpo de seu filho de forma empática, essa mãe oferece contorno às dispersas sensações sensório-motoras do bebê, possibilitando a primeira morada ao lactente; uma morada onde os braços da mãe e o corpo do bebê são sentidos como uma única coisa. Para Winnicott (1988), o lactente não dispõe de um sofisticado sentimento de coesão psicossomática; sendo assim, ao oscilar entre estados de quietude e de excitação, não tem consciência de que o mesmo bebê que há pouco era possuído por uma urgente fome é o que se encontra quieto no berço. Do mesmo modo, não sabe que a mãe dos momentos de quietude é a que atende a sua fome, quando excitado. Daí a importância do manejo (handling), para reunir esse bebê numa só pessoa e para congregá-lo de forma a fomentar o alojamento da psique no corpo (Winnicott, 1948/1997, p. 48). O favorecimento desse alojamento, em outros termos, o favorecimento da parceria psique-soma, depende de uma postura materna caracterizada por toques e manejos corporais que continuamente congregam seu filho em uma unidade, que "estimulam uma vida saudável dentro do corpo" (Winnicott, 1988, p. 143).19

Já explicamos, ainda que em traços largos, as funções ambientais de holding e handling; cabe agora explanar sobre a apresentação de objetos. A primeira coisa a se destacar é que Winnicott não entende que a relação do bebê com a realidade objetiva seja algo garantido. Se o ambiente inicial atende ao ritmo do bebê e é previsível, a base das relações objetais pode ser gradativamente estabelecida através do que o autor nomeia de "apresentação de objetos"; ou seja, a apresentação do mundo em pequenas doses (Winnicott, 1962a/1983, p. 60). Isso implica em tornar real, em corresponder, ao impulso criativo do neonato. Em sua comunicação silenciosa com seu filho, a mãe suficientemente boa atende ao gesto deste, de modo a permiti-lo experienciar o que encontra como algo que foi criado por ele. Para o pediatra inglês, "cada ser humano cria o mundo novamente e inaugura esse trabalho tão cedo quanto o momento do seu nascimento" e das primeiras mamadas (Winnicott, 1988, p. 129). Essa criação vai depender do modo como o mundo que lhe é apresentado no momento de seu gesto em direção à mãe suficientemente boa, o que implica dizer: "o início das relações objetais é complexo. Não pode ocorrer se o meio não propiciar a apresentação de um objeto, feito de um modo que seja o bebê quem crie o objeto" (Winnicott, 1962a/1983 p. 60). Cumpre ressaltar que uma longa jornada deve ser percorrida pelo bebê até o estabelecimento da capacidade de se relacionar com objetos que têm uma existência exterior ao seu controle onipotente.20 A apresentação gradativa dos objetos fornece ao neonato a chance de conquistar a capacidade de sentir-se real, combinada com a ideia de sentir que o mundo é real (Winnicott, 1963a/1983, p. 202).

Se tudo vai bem, ou seja, se o ambiente fornece provisão suficientemente boa, o bebê conquista a integração, aloja a psique no soma (personaliza) e torna-se capaz de alcançar futuramente um relacionamento com a realidade externa. A essas conquistas, somam-se a diferença entre "eu" e não-eu, o sentir-se real, a capacidade de ter fé e confiança na realidade, e a capacidade de ter experiências.21 Contudo, se o ambiente não é suficientemente bom, o bebê será exposto a um padrão de fracassos e, certamente, se encaixará naquela segunda categoria que falamos acima: aquela dos bebês que foram significativamente desapontados. Caso o ser humano incipiente seja "deixado a sós com seus próprios recursos", a conquista do sentimento de ser, ou a sua continuidade, podem estar ameaçadas (Winnicott, 1970/2006, p. 76). Considerando o grau de falhas e rupturas na provisão do ambiente, o risco que incide sobre o bebê é o de sofrer um tipo de angústia nomeada por Winnicott de impensável; tais angústias podem surgir como como padrão de defesa contra a aniquilação, contra a quebra da continuidade de ser.22 De acordo com Winnicott, o conteúdo dessas angústias pode ser assim expresso: 1) ser feito em pedaços; 2) cair para sempre; 3) completo isolamento, devido à inexistência de qualquer forma de comunicação; 4) disjunção entre psique e soma (Winnicott, 1968/2006, p. 88).

Loparic (1997, p. 382) nos explica que tais angústias são consideradas impensáveis "porque não são definíveis em termos de relações pulsionais de objeto, baseadas em relações representacionais de objeto (percepção, fantasia, simbolização)". Uma vez que se referem a momentos muito precoces do amadurecimento humano, tais angústias se dão "[...] antes que exista um indivíduo capaz de experienciá-las". Essas angústias não habitam o inconsciente reprimido característico dos neuróticos, antes atingem um bebê extremamente imaturo, impedindo a chance de integração e até mesmo a chance de ter experiências.23 Winnicott nos apresenta a relação entre a provisão ambiental e as conquistas do neonato, bem como as decorrências dessas falhas. Para o autor:

A sustentação (holding) tem muita relação com a capacidade da mãe de identificar-se com seu bebê [...]. A falha na sustentação produz extrema aflição na criança, sendo fonte: da sensação de despedaçamento, da sensação de estar caindo num poço sem fundo, de um sentimento de que a realidade exterior não pode ser usada para o reconforto interno, e de outras ansiedades que são geralmente classificadas como "psicóticas".

A manipulação (handling) facilita a formação de uma parceria psicossomática na criança. Isso contribui para a formação do sentido do "real", por oposição a "irreal". A manipulação deficiente trabalha contra o desenvolvimento do tônus muscular e da chamada "coordenação", e também contra a capacidade de a criança sentir prazer com a experiência do funcionamento corporal, e de SER.

A apresentação de objetos ou realizações (ou seja, tornando real o impulso criativo do bebê) dá início à capacidade desse último de relacionar-se com objetos. A falha na apresentação destes bloqueia ainda o caminho da capacidade do bebê para sentir-se real, ao relacionar-se com o mundo real com seus objetos e fenômenos (Winnicott, 1960b/1980, pp. 18-19)

A citação acima é valiosa, porque resume as conquistas que podem ser fomentadas por um ambiente suficientemente bom e as consequências caso esse ambiente seja intrusivo e falho. Os bebês submetidos a falhas ambientais são aqueles que não tiveram um bom começo, que não conquistaram a integração, a coesão psicossomática e a capacidade de criar e se relacionar com objetos. Trazem consigo, diz Winnicott (1969/1994), a experiência da angústia arcaica, impensável, por isso, "sabem" o que é estar em um estado de confusão aguda; trazem consigo a desintegração, a sensação de ser deixado cair ou de cindir-se em desunião psicossomática.24 Assolados pelas angústias impensáveis, suas personalidades tiveram que de ser construídas em torno da reorganização de defesas que se seguem aos traumas, as quais retêm aspectos primitivos, como a cisão. As reações à imprevisibilidade ambiental, às intrusões, não equivalem às reações a traumas relativos a uma experiência ou um desejo que não deveria ter acontecido, mas aconteceu e foi censurado, reprimido. A reação, no caso dos bebês que foram significativamente desapontados, é a cisão típica das patologias psicóticas.25

Enquanto os problemas que envolvem a psiconeurose dizem respeito ao campo do desejo, das fantasias e dos destinos das pulsões, na psicose, há um transtorno que envolve a cisão da personalidade. Segundo Winnicott, nesses casos "[...] o paciente se acha desintegrado, ou irreal, ou fora de contato com o seu próprio corpo ou com aquilo que nós, como observadores, chamamos de realidade externa. Os problemas do psicótico são desta ordem" (Winnicott, 1961/1994, p. 53). O paciente neurótico, na perspectiva winnicottiana, existe como pessoa total, com capacidade para relacionamentos objetais e bem alojado no seu corpo. Seus problemas fazem parte da vida, dos relacionamentos objetais, dos conflitos entre amor e ódio, da luta entre o desejo de preservar e o de destruir, da relação com a autoridade ou tirania dos pais, entre outros conflitos que dizem respeito às pessoas integradas. Suas defesas são erguidas contra ansiedades provenientes desses tipos de conflito e nos remetem ao passado referente ao conflito edipiano. Para Winnicott, enquanto a psiconeurose leva o analista à meninice do paciente, à fase dos 3 a 5 anos, a psicose leva ao início da vida, a um estágio em que a dependência é absoluta. As falhas do ambiente, nesses casos, ocorrem um estágio anterior à aquisição, por parte do ego26 imaturo, das conquistas do amadurecimento (Winnicott, 1964/2006, p. 34).

Visando a apresentar uma contribuição de sua psicanálise às classificações psiquiátricas, Winnicott (1959/1983, p. 119) nos faz atentar que, ao se o usar o termo psiconeurose, o analista deve considerar que o paciente atingiu um certo grau de amadurecimento emocional, passou pelo Complexo de Édipo e padeceu ou continua a padecer de angústias ligadas à castração. As defesas erigidas contra a castração certificam a identidade da doença neurótica e a rigidez delas refletem o grau do adoecimento. Em suma: a forma que a doença neurótica assume tem uma correlação com as experiências pulsionais pré-genitais de cada indivíduo e a angústia que lhe assola diz respeito aos modos como o paciente lidou com a castração. Quando ocorre angústia de aniquilamento e não a de castração, o diagnóstico a ser considerado, diz Winnicott (1961/1994), é o da psicose. Sendo assim, convém perguntar: enquanto a neurose leva o analista ao inconsciente reprimido e às vicissitudes das pulsões, a que tipo de inconsciente leva a psicose?

Um de nossos objetivos neste texto, em homenagem às contribuições do professor Loparic em relação à psicanálise, consiste em mostrar que uma dessas contribuições relaciona-se à indicação de que a teoria winnicottiana opera com um tipo de inconsciente diferente do inconsciente reprimido de Freud. Loparic (1999a) nos faz ver na teoria winnicottiana um inconsciente "não-acontecido", fruto do não acontecimento de cuidados ambientais que, por serem integradores, deveriam ter acontecido. Quando o inesperado se apresenta, quando o ambiente não é previsível e confiável no primitivo começo do vir a ser do bebê, este é submetido a uma ruptura em seu processo de amadurecimento. Diante das angústias impensáveis, o bebê é obrigado a reagir ao invés de seguir sendo. E essa parada, esse não-acontecido do amadurecimento devido à falha do ambiente, diz Loparic, é também algo não-experienciado, porque ocorre em um momento muito primitivo, quando não há ainda um eu integrado para experienciar. Sendo assim, "o inesperado precoce não invade apenas por surpreender, o seu efeito traumatizante resulta sobretudo do fato de não existir ainda, nas fases muito precoces, alguém que possa integrá-lo na forma de uma experiência" (Loparic, 1999a, p. 360). Esse tipo de efeito traumático fomenta uma defesa de natureza psicótica e em situações como essa "[...] o analista, ou quem quer que esteja tratando o paciente ou administrando o caso, encontra-se envolvido na elucidação de uma cisão na pessoa do paciente, o extremo de uma dissociação. A cisão toma o lugar do inconsciente reprimido do psiconeurótico" (Winnicott, 1967b/1994, p. 152).

No caso da psicose, no lugar de se deparar com conteúdos inconscientes que aconteceram mas foram reprimidos, o analista se depara com uma cisão que se deu porque cuidados ambientais, que deveriam acontecer, não aconteceram. A cisão não é fruto de uma censura e não incide entre a consciência e o inconsciente, mas no próprio existir. O não-acontecimento de provisões ambientais integradoras forçam o bebê a reagir, ao invés de seguir sendo. Como nos esclarece Loparic (1999a, p. 360), o ambiente falha porque impõe "[...] algo que ainda não pode ser experienciado em primeira pessoa e que, por isso, só pode ser enfrentado por uma 'reação' patógena. Nem a intrusão nem a reação são experienciadas".

Essa formulação magistral de Loparic nos faz pensar em temas que levantamos ao longo deste texto e nos inquieta a ponto de não conseguirmos contornar alguns questionamentos, tais como: ora, se não havia um eu integrado para experienciar as intrusões ambientais, como é possível ter acesso a elas? No caso dos neuróticos podemos pensar, com Freud, num inconsciente verbalizável, traduzível para uma linguagem consciente e passível de interpretação; e no caso desse inconsciente agônico, não-acontecido, como acessá-lo? Na clínica freudiana, podemos pensar num resgate de conteúdos esquecidos e em um preenchimento das lacunas na memória; mas como pensar esse processo de reconstrução da história do paciente no caso da clínica winnicottiana das psicoses? Vimos que a descrição freudiana dos fenômenos da clínica das psiconeuroses nos assegura que lidamos com a tarefa de resgatar conteúdos inconscientes reprimidos através da recordação, evitando a atuação e a descarga motora. Recordar uma lembrança de algo que aconteceu, mas foi reprimido devido seu caráter patogênico, nos parece factível, entretanto, como o paciente psicótico poderia recordar-se de algo se, para Winnicott, seu trauma aconteceu num momento tão precoce que sequer pôde ser experienciado? Se a clínica freudiana da neurose lida com reminiscências verbalizáveis, a clínica winnicottiana da psicose lidaria com que material? Que tipo de memória estaria em jogo no caso das psicoses?

À luz das discussões de Loparic, podemos dizer, inicialmente, que a cisão que aniquila a possibilidade de amadurecimento é anterior à capacidade de ter experiência e reprimi-la, caso esta seja desagradável. Anterior também à capacidade de sofrer censuras em função de desejos incestuosos ou transgressões. Mais ainda: anterior à possibilidade de soterrar lembranças no inconsciente e causar lacunas na memória resgatável verbalmente.

Na clínica de neuróticos, podemos pressupor a capacidade de simbolização, de ter experiências e de elaborar lembranças inconscientes resgatáveis por interpretações construídas e compartilhadas pelo analista ao paciente. Claro que, como vimos acima, Freud nos alertou que a recuperação das lembranças e o preenchimento das lacunas na memória enfrenta a resistência do paciente e a possível emergência da atuação (acting out) no lugar da recordação, no entanto, mesmo assim, é possível criar um caminho na clínica para uma "reconciliação com o material reprimido que está expresso em seus sintomas" (Freud,1914/1996, p. 168). Nesse caso, podemos falar de um passado resgatável e de um inconsciente que pode ser traduzido em linguagem comunicável mediante associação livre. Esse tipo de paciente apresenta as condições para cumprir a regra fundamental da análise e substituir sua neurose comum pela neurose de transferência. (Freud, 1914/1996, pp. 169-170). Aqui é possível pensar em conteúdos inconscientes que podem seguir a trilha do "recordar, repetir e elaborar". Aqui é possível pensar em resgate de lembranças e recomposição das lacunas na memória.

Mas Loparic nos faz ver, à luz de Winnicott, outro tipo de inconsciente, um "inconsciente agônico", que não é comunicável mediante a verbalização operável pelo cumprimento da regra fundamental da psicanálise de Freud. Quando é esse tipo de inconsciente que habita um ser humano, a questão vai muito além do resgate de reminiscências e de dar voz ao desejo reprimido. Winnicott (1963b/1994, p. 71) nos fala que, nesse tipo de paciente, habita um colapso; tal palavra é utilizada por ele para descrever o "impensável estado de coisas subjacente à organização defensiva" (1963b/1994, p. 71). O autor nos fala que, nas psiconeuroses, o que subjaz às defesas desta patologia são angústias de castração, mas, nos fenômenos psicóticos, o que se vê é um colapso no estabelecimento de um si-mesmo (Self) unitário. O que subjaz à enfermidade de natureza psicótica é a angústia impensável. Contudo, adverte-nos Winnicott, é errado pensar tal enfermidade como um colapso, ela deve ser vista como uma organização defensiva relacionada a essa angústia primitiva. A defesa é erguida contra um colapso ambiental, posto que o paciente psicótico foi exposto a uma cisão em função de cuidados que deveriam acontecer e não aconteceram. Na clínica de pacientes assim, diz Winnicott:

O paciente precisa "lembrar" isto [o colapso], mas não é possível lembrar algo que ainda não aconteceu, e esta coisa do passado não aconteceu ainda, porque o paciente não estava lá para que ela lhe acontecesse. A única maneira de "lembrar", neste caso, é o paciente experienciar esta coisa passada pela primeira vez no presente, ou seja, na transferência. Esta coisa passada e futura torna-se então uma questão do aqui e do agora, e é experienciada pelo paciente pela primeira vez. (Winnicott, 1963b/1994, p. 74)

Winnicott nos fala que a angústia que subjaz ao colapso que habita a psicose é impensável. Vimos, com Loparic (1997), que tais angústias ocorrem num momento muito precoce, antes que exista um self capaz de experienciá-las. Por isso, Winnicott (1959/1983) afirma que não podemos entender o lembrar como um resgate do que aconteceu, afinal, as deficiências ambientais que produzem a psicose ocorrem num momento anterior àquele em que o indivíduo tem a capacidade de estar perceptivo à provisão ambiental e até mesmo à sua falha. Ao ser atormentado pelas intrusões ambientais, o bebê humano é exposto a sensações do tipo ser feito em pedaços, cair para sempre, disjunção psique-soma, completo isolamento e ausência do sentimento de real. Como vimos, esse tipo de bebê porta consigo a angústia arcaica, "sabe" o que é estar em estado de confusão aguda e é habitado por uma agonia de desintegração. Mas, como ainda não é um eu-integrado, a única saída que lhe resta para evitar o aniquilamento é a defesa primária mais básica: a cisão (Winnicott, 1969/1994, p. 201). O texto acima menciona um colapso que aconteceu mas não foi experienciado por ter ocorrido em um momento muito primitivo do início da vida; nesse caso, a única maneira de "lembrar" é experienciar pela primeira vez sob cuidados terapêuticos, sob assistência. Diante desse tipo desconcertante de "lembrança", podemos perguntar se seria o caso de pensar num preenchimento de lacunas na memória ou se estamos a tratar de uma outra modalidade de memória.

Vimos, pela análise de textos de Freud, que seu conceito de inconsciente tem legitimidade porque a consciência é lacunar e que suas técnicas analíticas devem convergir para a recuperação do material inconsciente reprimido. Os objetivos dessas técnica seriam: "descritivamente falando, trata-se de preencher lacunas na memória. Dinamicamente, é superar resistências devidas à repressão" (Freud, 1914/1996, p. 163). Acreditamos que esse tipo de olhar sobre o objetivo do tratamento cabe para os pacientes psiconeuróticos. Contudo, Winnicott nos adverte que os acontecimentos dos estágios iniciais de um bebê "[...] não podem ser vistos como perdidos através do que denominamos mecanismo de repressão, não podendo, portanto os analistas esperar encontrá-los como resultado que reduz as forças de repressão" (Winnicott, 1960a/1983, p. 39). O paciente psicótico carrega consigo o colapso primitivo e, claro, este não é consciente, o que nos faculta dizer que ele é inconsciente. Mas, no texto "O medo do colapso", Winnicott (1963b/1994, p. 73,) esclarece que, neste caso, não se trata do inconsciente reprimido da psiconeurose e que, no contexto das psicoses, "[...] inconsciente quer dizer que a integração do ego não é capaz de abranger algo. O ego é imaturo demais para reunir todos os fenômenos dentro da área de onipotência pessoal". Nesse sentido, o inconsciente nomeia algo não-acontecido, já que não foi abrangido na área da experiência, o que implica dizer que o paciente não lida com um passado reprimido, já que a agonia impensável não pode ser alvo de uma repressão que a empurraria para os porões do inconsciente de molde freudiano. A repressão é um mecanismo muito sofisticado, do qual um bebê não dispõe. Para entender isso, esclarece Winnicott, é necessário pensar "[...] em nada acontecendo quando algo poderia proveitosamente ter acontecido" (Winnicott, 1963b/1994, p. 75).

Na psicose, existe um medo do colapso que habita a pessoa, apesar de não ter sido experienciado por ela. Por isso, há a necessidade de que o paciente "recorde" o colapso ou a loucura original contra a qual ele se defendeu. Contudo, como vimos, essa loucura pertence a um estágio tão primitivo que é "[...] anterior a uma organização de ego que permitisse abranger e catalogar a experiência em um processo intelectual, apresentando-a, assim, como uma lembrança consciente" (Winnicott, 1965/1994, p. 98). Sendo assim, Winnicott conclui que o colapso primitivo, que tem de ser lembrado, só poderá ser lembrado em seu reviver (Winnicott, 1965/1994, p. 98). Esse passado, ao invés de estar soterrado como as relíquias de uma antiga civilização, é algo que ainda não-aconteceu porque não foi vivenciado. Em casos desta natureza, cabe ao terapeuta auxiliar o paciente "[...] a continuar procurando o detalhe passado que ainda não foi experienciado e, esta busca assume a forma de uma procura deste detalhe no futuro" (Winnicott, 1963b/1994, p. 73; itálicos do autor).

A discussão apresentada acima nos faz pensar não só num tipo distinto de conteúdo inconsciente, mas também num tipo distinto de funcionamento da memória. Uma espécie de memória primitiva do descuido ambiental, a qual habita o paciente, mas não em forma de representações reprimidas. Essa memória nos remete a um passado que não pôde ser experienciado, porque é muito primitivo. Tal memória refere-se a algo que não pode ser catalogado. Refere-se a um passado impensado, marcado por angústias impensáveis, que, mesmo sem terem sido catalogadas, habitam o ser dos pacientes psicóticos. Winnicott nos faz pensar que, nesse caso, o passado não é algo que se perfez e foi soterrado, mas algo vigente que habita e adoece e, por isso, precisa ser experienciado e ganhar um sentido, já que outrora isso não foi possível.27

[...] Se o paciente estiver preparado para algum tipo de aceitação deste tipo esquisito de verdade, de que o que ainda não foi experienciado apesar disso aconteceu no passado, irá se abrir o caminho para que a angústia seja experienciada na transferência, na relação com as falhas e equívocos do analista. Em doses que não sejam excessivas, o paciente pode lidar com estas últimas [...]. Tudo isto é muito difícil, consome tempo e é penoso, mas, pelo menos, não é fútil. (Winnicott, 1963b/1994, p. 74)

Esse "tipo esquisito de verdade" traz para nós a possibilidade de pensar uma memória não catalogável, uma memória que não lida com um passado que aconteceu, foi traumatizante e precisou ser enterrado. Esse tipo diferente de passado não se reconstitui com técnicas de interpretação, nem é buscado para preencher lacunas que geram hiatos na cadeia da memória. Winnicott (1963a/1983, p. 196) nos diz que a neurose envolve a repressão e o inconsciente reprimido, entendido como um cofre que guarda experiências pessoais que foram intoleráveis. Se a repressão e o soterramento de lembranças faz parte da neurose, é o splitting da personalidade que faz parte da psicose. A psicanálise clássica, diz o autor (Winnicott, (1963c/1983, p. 208), "pode ser realizada em casos neuróticos bem escolhidos simplesmente pela interpretação da ambivalência, à medida que vem à tona a neurose de transferência". Mas, em pacientes cujo o medo é o da desintegração, a interpretação - com base em pronunciamentos veiculados pela associação livre - perde o seu estatuto hegemônico. Nesse sentido, Winnicott chama a atenção de seu leitor ao fazer a seguinte ponderação: "é possível observar que estou levando vocês para um lugar onde a verbalização perde todo e qualquer significado. Que ligação pode haver entre tudo isso e a psicanálise, que se fundamentou num processo de interpretações verbais de pensamentos e ideias verbalizados?" (Winnicott 1968/2006, p. 80).

Winnicott nos convida a pensarmos em manifestações psíquicas e emocionais que vão além da verbalização. Mais que isso: a pensarmos em uma psicanálise que opera com um conceito de inconsciente não verbalizável. Freud partiu de uma base de verbalização, do pressuposto de um inconsciente verbalizável e construiu uma técnica de análise ancorada na crença de que tal inconsciente pode ser traduzido na clínica, acessado e interpretado. Para Winnicott, "[...] tal método é perfeitamente adequado para o tratamento de um paciente que não seja esquizoide ou psicótico, ou seja, um indivíduo cujas experiências iniciais não tenhamos qualquer dúvida" (Winnicott 1968/2006, p. 80).

Em seu texto "É dizível o inconsciente?", Loparic (1999a, p. 364) nos faz compreender que, na análise winnicottiana dos psicóticos, deixa de ser válido o ponto de partida freudiano: a equivalência da comunicação com a verbalização. Como vimos acima, Winnicott nos alerta que está nos levando a um "lugar onde a verbalização perde todo e qualquer significado", mas o autor não nos diz que está nos levando a um lugar onde a comunicação perde qualquer sentido. Verbalização é só uma forma de comunicação. E, no caso dos psicóticos, a comunicação não é efetivada primordialmente por meio da significância proveniente da fonetização de palavras. Muda a maneira como se dá a comunicação e também muda o trabalho do analista, de modo a tornar infrutífera a comparação freudiana deste com o trabalho do arqueólogo. Nessa perspectiva, não caberá ao psicanalista fazer uma construção que verbalize a "[...] cisão do paciente em termos de categorias da consciência nem em quaisquer outros termos interpretados no domínio de dados objetivos" (Loparic, 1999a, p. 364). O que nos impõe a pergunta: e como lidar com o tipo de comunicação dos psicóticos, que difere da narrativa enigmática da clínica das neuroses? Loparic nos aponta resposta a esta questão:

O problema de comunicação com os psicóticos não se deve ao fato de eles formarem as palavras sem conexão com os seus significados e de tratarem as palavras de acordo com as regras dos processos primários, mas ao fato de eles se comunicarem tão somente para dizer que querem continuar a existir e vir a ter uma biografia. Compreender esse tipo de dizer não é o mesmo que decifrar dados relativos à sua história - preenchendo lacunas na cadeia de informações fornecidas -, pois trata-se de ajudar o indivíduo a criar, pela primeira vez, a capacidade de se integrar e de se tornar um si-mesmo independente. Mais precisamente, a tarefa é a de facilitar para que o paciente, ele mesmo, estabeleça o contato com o não-consciente que permaneceu não-integrado e que, por isso, nem ao menos era seu. É somente depois de ter-se integrado, nesse sentido originário, que um indivíduo poderá eventualmente ser "analisado" e "historiado", no sentido da psicanálise tradicional. (Loparic, 1999a, p. 365)

Loparic nos chama a atenção para o fato de que compreender não equivale a interpretar, decifrar dados e preencher lacunas na memória. Esse tipo de ação, passível de ser executada na clínica de neuróticos, baseia-se na pressuposição de que estamos diante de uma pessoa integrada e que não é atormentada pelo sentimento de irrealidade, de ser feito em pedaços e de não habitação do próprio corpo. Nesse sentido, podemos pensar na possibilidade de recompor uma história com enredos que narram a atuação de forças pulsionais no inconsciente reprimido. Sem essa integração típica das pessoas saudáveis e dos neuróticos, diz Winnicott (1988, p. 101), os problemas "[...] não fazem parte da vida e sim da luta pra alcançar a vida" Por isso, Loparic (1999a, p. 362) nos alerta que "os pacientes winnicottianos típicos não se comunicam para informar os dados da charada em que se meteram, mas para poder continuar a existir e poder ter, um dia, uma biografia". Claro que, para um observador externo, não seria possível negar o fato de que todos nós temos uma biografia, já que temos uma história catalogável em registros - documentos, fotos, vídeos, etc. -, que podem ser dispostos cronologicamente. Mais que isso, já que podemos resgatar da nossa memória e da memória dos nossos familiares os dados de nossa história de vida. Mas não é disso que se trata. Winnicott está nos falando da capacidade de se ter o sentimento de real, de experienciar o que acontece consigo de forma espontânea e pessoal. O sentimento de irrealidade e de nulidade é tão premente na psicose que é como se não estivesse alguém inteiro ali para vivenciar os eventos e compor uma história de vida pessoal.28 Por isso, seus problemas não fazem parte daqueles que concernem às pessoas integradas - ambivalências, desejos e frustrações -, mas se referem à luta para alcançar o sentimento de real capaz de proporcionar a chance de ter uma história de vida.

Ao falarmos dos distúrbios de natureza psicótica, estamos nos referindo a um tipo de pessoa que, apesar de parecer estar no mundo e de poder compor censos estatísticos sobre os que existem em determinado lugar, sente-se irreal. Para poder dispor da competência para ter experiências e do sentimento de real, é preciso que a pessoa, quando bebê, tenha tido um bom começo e alcançado a integração, que é capaz de lhe fornecer o sentimento de ser, de Eu-Sou. Daí Winnicott (1954a/1994, p. 332) afirmar que "[...] o estado de Sou, o estado de Ser e o sentimento de realidade em existir não constituem um fim em si, mas uma posição a partir da qual uma vida pode ser vivida". Só depois da conquista dessa posição, podemos falar em uma história de vida. Desse modo, indica-nos Loparic na citação acima, cabe ao terapeuta criar a facilitação ambiental no setting para que o paciente, ele mesmo, estabeleça o contato com o que permaneceu não-integrado e que, por isso, nem ao menos era seu. A alternativa clínica à regra fundamental freudiana, seria: "[...] esperar, esperar, esperar, até que o paciente tente se comunicar, não importa de que maneira, e então responder correspondendo" (Loparic, 1999a, p. 362). Aqui não caberia entender o silêncio como resistência e a comunicação com o paciente deveria acontecer como correspondência, isto é, como uma disponibilidade para o tipo de contato requisitado. No tratamento de pacientes deste tipo,

[...] o analista precisa saber tudo o que se refere a interpretações que possam ser feitas relativas ao material apresentado, mas deve ser capaz de se conter para não ser desviado a fazer este trabalho, que seria inapropriado, porque a necessidade principal é a de apoio simples ao ego, ou de holding. Esse holding, como a tarefa da mãe no cuidado do lactente, reconhece tacitamente a tendência do paciente a se desintegrar, cessar de existir e cair para sempre. (Winnicott, 1963c/1983, p. 217)

Ao comparar o trabalho terapêutico ao holding relativo à tarefa da mãe no cuidado do lactente, Winnicott (1967b/1995, p. 154) nos alerta que, na clínica dos fenômenos psicóticos, é factível utilizar a palavra regressão para significar regressão à dependência e não como retroação em termos de zonas erógenas.29 Nesse sentido, apresenta-nos a ideia de que habita, nesse tipo de paciente, um congelamento da situação de falha. A proposta é que essa memória primitiva do descuido, que atormenta o psicótico, ou seja, que essa situação de falha congelada, que reside em seu ser, pudesse ser "[...] descongelada e revivida, com o indivíduo num estado de regressão dentro de um ambiente capaz de prover a adaptação adequada. A teoria aqui proposta é a da regressão como parte do processo de cura [...]" (Winnicott, 1954b/2000, p. 378). Aqui se trata de uma regressão à dependência inicial, momento em que ocorreu a falha e o amadurecimento foi congelado. Para isso, diz Galvan (2012, p. 47), é preciso que o indivíduo encontre, no novo ambiente, a adaptação e a confiabilidade essenciais que lhe garantam a possibilidade de encontrar uma nova oportunidade de corrigir a falha original.

Desde a perspectiva winnicottiana, "a doença psicótica pode ser tratada apenas pelo fornecimento do ambiente especializado acoplado à regressão do paciente" (Winnicott, 1954b/2000, p. 384). Nessa regressão, é com o inconsciente não-acontecido que lida o terapeuta. E, diante da impossibilidade de ser formatar o não-acontecido nos moldes dos registros capturáveis, restará a ele manter-se ao lado do paciente de modo que o seu começo não-experimentado comece de novo. Como afirma Dias, o paciente "precisa reviver o colapso, visto que este não chegou a ser experimentado no momento original, pelo fato de que o paciente era um bebê e ainda não estava lá, como um 'eu', para experimentá-lo" (Dias, 2002, p. 356). Nesse sentido, Winnicott nos alerta que, como a regressão à dependência é parte integrante dos fenômenos da primeira infância, é preciso saber que, se o paciente molhar o divã, se sujar ou babar, não estaremos diante de uma complicação, mas de algo inerente ao processo. Em casos assim, "não é de interpretações que se necessita aqui, e na verdade, qualquer fala ou movimento pode arruinar todo o processo e causar profunda dor ao paciente" (Winnicott, 1954b/2000, p. 386). Como nos indicou Loparic, ao destituir a hegemonia da interpretação e da ideia de que o inconsciente se mostra exclusivamente pela verbalização, Winnicott nos fez pensar num inconsciente não-acontecido, cujo acesso se dá na regressão à dependência e no fomento de condições adaptativas capazes de proporcionar ao paciente retomar, em primeira pessoa, o processo de amadurecimento bloqueado e não acontecido. Por isso, nesses casos, os fenômenos clínicos não seguem o caminho que Freud estabeleceu como pertencente ao tratamento da neurose, qual seja: "recordar, repetir e elaborar". Desde a perspectiva winnicottiana, podemos pensar no seguinte caminho a trilhar: "reviver, descongelar a situação de falha e começar a amadurecer".

Acreditamos que Loparic nos desvelou caminhos conceituais na obra de Winnicott capazes de nos fazer entender a sua proposição acerca de um tipo de inconsciente muito diferente daquele que faz parte da neurose. As formulações loparicianas nos fizeram vislumbrar o quão autêntica é a concepção winnicottiana sobre um tipo de "lembrar", que aparece no tratamento da psicose, diferente da reminiscência freudiana, posto que se trata de um lembrar de algo que não aconteceu porque não foi experienciado, mas, mesmo assim, habita a pessoa. O que nos fez pensar um tipo de memória muito diferente daquela que se recompõe linearmente pelo resgate dos conteúdos reprimidos. Uma memória não representacional que, apesar de trazer consigo angústias impensáveis, pode ser comunicada, caso o imperativo da interpretação ceda lugar para o manejo da transferência na regressão à dependência. Loparic nos fez atentar que o setting apropriado para esse tipo de atendimento não visa a recolocar na ordem temporal e causal os conteúdos vividos no passado que foram reprimidos no inconsciente, devendo tão somente permitir que o que não foi experienciado no passado possa ser experienciado pela primeira vez no presente, sob assistência terapêutica. Todo esse horizonte que Loparic nos revelou traz a densidade da desconstrução, que abala modos hegemônicos de se pensar conceitos cativos ao campo da psicanálise. Retomando uma passagem de Winnicott (1963b/1994, p.74) que citamos acima, podemos dizer: "tudo isto é muito difícil, consome tempo e é penoso, mas pelo menos, não é fútil". Termino esse texto, que é fruto de uma longa experiência de aprendizado com o professor Zeljko Loparic, com a certeza de que, diante de sua postura investigativa e de sua inquietude epistemológica, podemos testemunhar um modo de pensar que é denso, consome tempo, mas nunca é fútil, porque é sempre muito profundo. Profunda também é minha gratidão.

 

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1 Professora Titular da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Colabora no Programa de Pós-Graduação em Memória, Linguagem e Sociedade (PPGMLS/UESB). Psicóloga (UFSJ), Mestre em Filosofia (UFPB), doutora e pós-doutora em Filosofia pela UNICAMP, sob orientação de Zeljko Loparic.
2 Na tradução de "O eu e o id", Paulo César de Souza recorre ao Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa e nos explica que Xibolete refere-se a um sinal convencionado de identificação, a uma senha. Em hebraico shiboleth, "espiga", palavra através de cuja pronúncia os soldados de Jefté identificavam os efraimitas, que a articulavam como shiboleth (cf. Freud,1923/ 2011)
3 Também em "É dizível o inconsciente?", Loparic (1999a) nos chama a atenção de que essa instância do aparelho psíquico é habitada por representações carregadas afetivamente. Em "O instinto (Trieb) e seus destinos", Freud (1915b/2010) nos esclarece que uma pulsão - força que impulsiona o aparelho psíquico a trabalhar - se faz presente no psiquismo por dois representantes: o quantum de afeto e a representação (Vorstellung) psíquica. Loparic nos esclarece a herança desse modo de pensar freudiano na seguinte citação: "Quando fala de representante representacional da pulsão e de suas cargas, Freud, no essencial, não faz outra coisa do que retomar o conceito leibniziano de apetite representante, desenvolvido na tradição do subjetivismo cartesiano. A sua teoria das pulsões pertence, portanto, à tradição metafísica ocidental que se iniciou com a teoria cartesiana da substancialidade como representatividade por um sujeito e se firmou com a tese de Leibniz de que a essência de cada ente é determinada pela força motora e pela representação controladora" (Loparic, 1999b, p. 115). Tratamos esta temática em Ribeiro, 2005.
4 Loparic (2005), no texto "A máquina no homem", dá sequência à investigação sobre a tese heideggeriana acerca da presença de uma herança neokantiana na metapsicologia, e nos indica a influência do neokantiano Hans Vaihinger e de sua teoria do como se - a qual autoriza o pesquisador a fazer comparações e analogias para descrever um objeto que não é passível de observação direta - na teorização freudiana. Um exemplo da utilização dessa perspectiva de análise se refere à teorização do psiquismo humano como um aparelho, afinal, Freud não advoga pela existência de uma máquina no homem, mas presume que seu psiquismo funcione como se fosse um aparato.
5 A predileção freudiana pela perspectiva dinâmica não se reduz a um capricho explicativo, mas representa uma orientação metodológica oriunda de sua formação de pesquisador no interior da tradição da Escola de Helmholtz, cuja tutela filosófica é assumidamente kantiana. Essa perspectiva pressupõe forças como responsáveis pela matéria e seus movimentos, inspirando-se, por analogia, a sistemas elétricos de transmissão de forças motrizes. A adoção pela ótica dinâmica está sempre a serviço de explicações causais dos fenômenos, tendo em mira o estabelecimento das leis que os governam. Heidegger (2007) percebeu a franca presença kantiana na ciência de Freud, especificamente de sua teoria crítica e de seu programa para pesquisa em ciências naturais. Em outro texto, trabalhamos a presença de uma herança kantiana na metapsicologia. Cf. Ribeiro, 2008.
6 É importante salientar que Kant inaugura uma mudança radical no modo de conceber o objeto. Para ele, nossa razão pode, pelas ideias, pensar objetos além da experiência, porém, para conhecer algo é preciso provar sua realidade objetiva, isto é, atribuir ao conceito, por meio de uma intuição a ele correspondente, um objeto da experiência. Por isso, Kant (1994) nos alerta que, apesar da ideia ser uma representação, uma representação ainda não é conhecimento. O filósofo nos assegura que só conhecemos a priori as coisas o que nós mesmos nelas colocamos. Entenda-se "o que colocamos nas coisas" como as configurações que a faculdade de conhecimento impõe às coisas para percebê-las como objetos da experiência, como fenômenos. Esta, por sua vez, fornece a matéria, o diverso do fenômeno, para que possa ser ordenado no espírito segundo princípios e conceitos a priori. Com respeito às intuições, a configuração dos objetos é realizada pelas formas puras da sensibilidade: o espaço (a forma do sentido exterior) e o tempo (a forma do sentido interior). O que implica dizer que só temos acesso a fenômenos espaçotemporais. Com respeito ao entendimento, tais configurações são feitas pelos conceitos puros. Cf. Kant, 1994, B 34-37.
7 Para Kant (1990), em toda ciência da natureza subjaz uma metafísica. O caráter metafísico subjacente a uma ciência da natureza está no estabelecimento de princípios, isto é, de leis que não são empíricas, que não se dão na intuição a priori, mas regulam o uso do entendimento, determinando sua extensão. Por carecer da pedra de toque da experiência, esses princípios e leis fornecidos pela razão são conceitos puros, são ideias que, apesar de não serem verificáveis, funcionam como ficções heurísticas capazes de organizar o uso sistemático do entendimento no campo da experiência. Essas ficções são convenções, sem correspondência empírica, que organizam especulativamente a compreensão dos fenômenos. Por serem inverificáveis na empiria, são considerados por Kant como princípios metafísicos que guiam a pesquisa empírica. Cf. Kant, 1994, A 771/B 799.
8 De acordo com as novas regras de ortografia não se usa mais hífen nesse caso. Manterei aqui porque a tradução da obra de Kant que disponho e o texto de Loparic sobre Kant que estou utilizando apresentam esse e outros termos com hífen.
9 Sobre a escolha kantiana pelo ponto de vista dinâmico como guia para pesquisa empírica, cf Loparic, 2003 e Kant, 1990.
10 Sobre a diferença entre explicar e compreender, cf. Sá, 2009, p. 40, Assoun, 1983 e Bleicher, 1980.
11 Sobre esse tema, cf. Garcia-Roza, 1991, p. 72. Tratamos esse assunto em Ribeiro, 2014.
12 Sobre essa temática, cf. Loparic 1999a, 1999b, 2001, 2003 e 2005.
13 Este termo é utilizado por Loparic (1999a) em É dizível o inconsciente?.
14 Sobre esse tema, cf. Freud, 1926/1996.
15 Sobre a resistência, Freud afirma: "A resistência acompanha o tratamento passo a passo. Cada associação isolada, cada ato da pessoa em tratamento, tem de levar em conta a resistência e representa uma conciliação entre as forças que estão lutando no sentido do restabelecimento e as que se lhe opõem, já descritas por mim" (1912b/1996, p. 114).
16 Há também um tipo de ação da resistência quando esta produz lembranças encobridoras. Trata-se de lembranças que retêm elementos irrelevantes e encobrem os relevantes. Atuam a favor da força de resistência. Cf. Freud, 1889/1996.
17 Apesar das novas regras de ortografia excluírem o hífen de expressões como não-verbal, não-acontecido, não-dizível, não-verbalizável, dentre outras, as manterei assim porque estão assim no texto original de Loparic, que me serve de inspiração para o argumento e é fonte de muitas citações.
18 Segundo Abram, "o Self tem sua origem como potencial do recém-nascido; a partir de um ambiente suficientemente bom, desdobra-se em um self total, isto é, uma pessoa capaz de estabelecer a distinção entre eu e não-eu" (Abram, 2000, p. 220). Como nos lembra Winnicott (1988, p. 153): "no estágio inicial não é lógico pensarmos em termos de indivíduo, e não apenas devido ao grau de dependência ou apenas porque o indivíduo ainda não está em condições de perceber o ambiente, mas também porque ainda não existe ali um self individual capaz de discriminar entre o EU e o não-EU".
19 Tratamos do conceito de corpo na psicanálise de Winnicott em Ribeiro, 2018. Lá destacamos que Winnicott fala de psique e soma, e não de corpo e mente. Ao falar de soma, o autor não se refere a uma máquina física, a uma substância que tem extensão e que existe independentemente da mente ou da alma. Esta, por sua vez, está longe de nomear o sentido que a palavra psique recebe na teoria winnicottiana. "O soma é o corpo vivo, que respira, tem fome e necessidades, e se expressa. Não deve ser confundido com o organismo que responde mecanicamente a estímulos internos ou externos. As manifestações somáticas devem ser entendidas como o lugar da experiência pessoal, o lugar a ser habitado pela psique. Ao conceber o animal humano, Winnicott se serve da diferença entre soma e psique, e não paga tributo à dicotomia corpo físico/mente representante." (Ribeiro, 2018, p. 100). Para Loparic (2005) , a animalidade desse animal não se refere ao seu lado físico, mas à anatomia viva. A humanidade, por sua vez, concerne à psique, que elabora imaginativamente as funções somáticas. A inter-relação entre os dois "aspectos" decorre do traço de união. Loparic nos diz que é por isso Winnicott usa o termo psique-soma.
20 Para Winnicott, o objeto que encontramos, e achamos que criamos, pode ser denominado subjetivo. O objeto da realidade compartilhada é chamado de objeto objetivamente percebido. Como abordamos em outro texto (cf. Ribeiro, 2005), o autor pressupõe uma longa jornada a ser percorrida pelo lactente, que vai do mundo subjetivo, passa pela integração no tempo e no espaço, pelo alojamento no corpo, para, finalmente, chegar ao universo representacional da realidade objetivamente percebida. Neste ínterim, faz a experiência de acessar um espaço próprio, um espaço potencial, que não é exclusivamente subjetivo nem totalmente subjugado aos ditames da realidade externa. Trata-se da transicionalidade, situada no intermédio entre a onipotência da ilusão criadora e a imposição objetiva da realidade.
21 Na fase de extrema dependência, o bebê se beneficia de um holding que, ao permitir uma "continuidade da existência", atua profilaticamente quanto a distúrbios psicóticos (Winnicott, 1962b/1983, p. 65). Nas fases que se seguem, ou seja, nas fases da dependência relativa e de conquista da independência relativa, o indivíduo já não necessita que se dispense cuidados tão intensos; contudo, a ideia de um ambiente de holding satisfatório será expandida para a análise de todos os momentos da vida, servindo de guia para avaliar as relações com grupos sociais e instituições, inclusive para o entendimento dos diferentes tipos de psicoterapia.
22 A expressão em inglês é unthinkable anxiety. Como temos distintas traduções da obra de Winnicott, podemos encontrar, também, em versões para o português, as expressões: agonias/angústias impensáveis, ansiedades inimagináveis. Em que pese as distintas traduções, o conceito nomeia as agonias que assolam o bebê, que é significativamente desapontado pelo ambiente, isto é, que é exposto a um ambiente intrusivo.
23 Winnicott nos indica que ter experiência implica em dar sentido a ela e vivê-la enquanto algo pessoal. Isso implica num sentir-se real e num sentir que o mundo é real. Dias (2003) nos informa que o que Winnicott designa com a expressão sentimento de real (feeling of real) nada tem a ver com uma realidade externa, representável, visualizável e dizível. Nesse sentido, acentua que - por estar se referindo a estágios iniciais do amadurecer - o termo não pode ser confundido com a noção freudiana de "princípio de realidade" que, por sua vez, é visto por Winnicott como o arqui-inimigo da espontaneidade. Segundo Dias, para Winnicott, "experiência e sentimento de real (feeling of real) estão mutuamente imbricados", de modo que "só aquilo que é dado na experiência é real para o indivíduo" (Dias, 2003, pp. 122-123).
24 Ancorados em Loparic, podemos dizer que Winnicott nos apresenta três grandes grupos de patologias: as psicoses, as psiconeuroses e as depressões reativas, e a tendência antissocial. Segundo o autor, "a etiologia de cada uma dessas formações está relacionada às falhas ambientais ocorridas no processo de amadurecimento, revelando que as psicoses decorrem da privação da facilitação ambiental na fase de dependência absoluta do bebê com relação à mãe-ambiente facilitador, que as psiconeuroses e as depressões reativas se devem ao não atendimento ou mesmo à repressão dos instintos nas fases do concernimento ou do Édipo e que a tendência antissocial é antes uma reação à deprivação, isto é, à perda da facilitação ambiental já experienciada como boa e avaliada como uma falha do ambiente" (Loparic, 2007, p. 33).
25 Por isso Winnicott afirma: "Quando estamos vendo bebês em uma clínica infantil pública, alguns dos bebês que vemos já estão doentes no sentido de que, quando crescerem, não serão aceitos para tratamento por uma psicanálise clássica" (Winnicott, 1962c/1994, p. 59).
26 Jam Abram, em A linguagem de Winnicott, salienta que o pediatra inglês usa o termo ego de modo diverso de Freud. Enquanto na teoria deste último o ego se origina do Id, sendo submetido ao princípio de realidade, na teoria de Winnicott, o ego não tem filiação com esta instância do aparelho psíquico. Ao invés de ser uma instância de um aparelho constituído, nomeia o aspecto da personalidade que tende a integrar-se em uma unidade. Desse modo, para Winnicott, não há Id antes do ego. Fenômenos que tradicionalmente são delegados ao Id, passam a ser entendidos como concernentes ao funcionamento do ego. Contudo, este câmbio não está a serviço de uma troca semântica para falar das mesmas atribuições. O papel preponderante do ego é a tendência à integração, não a mediação da satisfação pulsional. Apenas quando pode contar com o ego auxiliar da mãe-ambiente é que o ego desenvolve seu potencial para a integração. O objetivo da integração é o alcance do status de unidade, o alcance do si-mesmo (self). Nesse sentido, Abram seleciona passagens nas quais Winnicott acentua que o termo self representa essa unidade enquanto corolário do processo integrativo e enquanto o que diferencia o Eu do Não-Eu. Cf. Abram, 2000.
27 Convém acentuar que podemos, no que tange aos momentos primitivos do desenvolvimento, falar de um "acontecimento" na perspectiva da saúde. Para Winnicott, é impossível pensar o bebê sem considerar o ambiente. Mesmo que este não seja inicialmente percebido, nem sequer investido pelo bebê. O ambiente provedor não é percebido, apesar de ser condição necessária para o amadurecimento. Esta não percepção aponta para a adaptação ativa da mãe às necessidades de seu bebê, de modo a permitir que ele seja sem ter que se dar conta do ambiente. Quer dizer: desencarregado da tarefa de reagir a um ambiente intrusivo, o bebê "segue sendo" sem ter que lidar com as ocorrências. Assim, podemos considerar que se os cuidados ambientais acontecem, e o bebê pode seguir sendo sem ter de saber o que acontece. Trata-se de acontecimentos proveitosos em termos de integração. A consequência disto será o favorecimento da capacidade de ter experiência e a saúde. De acordo com essa perspectiva, podemos apontar, na saúde, a existência de um inconsciente acontecido. Aqui se pode falar de um inconsciente favorecido por um ambiente facilitador, saudável. Diferentemente do inconsciente freudiano, que é a câmara secreta dos conteúdos intoleráveis. O inconsciente acontecido não concerne ao âmbito das representações psíquicas, mas a cuidados facilitadores que, por serem integradores, fomentarão a posterior capacidade de representar. Aqui sugerimos que seja possível falar, nos casos de saúde, de uma memória primitiva de cuidados.
28 Para a psicanálise winnicottiana, o sentimento de real, a relação com a realidade externa, a inteireza, o estabelecimento do limite entre o "meu interior" e o mundo exterior são conquistas a serem atingidas e não algo, desde sempre, afiançado ao bebê. Trabalhamos o entendimento winnicottiano sobre a conquista de uma história de vida em Ribeiro, 2011. Sobre a diferença entre a maneira como esse tema aparece na psicanálise de Freud e de Winnicott, julgamos esclarecedora a seguinte passagem de Elsa Dias (2003, p. 82): "Tendo fundado seu campo de reflexão na dinâmica interna do psiquismo e dando por suposto o sentimento de real e a capacidade para o estabelecimento de relações com a realidade externa, restava apenas analisar a qualidade pulsional das relações e não a sua existência e a realidade, assim como a existência e a realidade do bebê e do mundo externo. [...] A história, para a psicanálise tradicional, é a do desenvolvimento das funções sexuais, tendo como enredo básico o complexo de Édipo. Para Winnicott, contudo, há uma pré-história na qual o pequeno indivíduo, que já é um ser humano passível de ser afetado pelo ambiente, ainda não chegou a si".
29 O termo regressão refere-se, nos textos freudianos, a um retorno a formas antigas de gratificação pulsional. Refere-se às zonas de gratificação erótica pré-genitais. Não é esse o sentido winnicottiano. A regressão que falamos aqui refere-se a um retorno ao estado de dependência no qual se deu a falha, aonde não aconteceu o que deveria ter acontecido. Sobre essa diferença, cf. Galvan, 2012.

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