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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.21 no.spe São Paulo dez. 2019

 

DOSSIÊ

 

Hegel avec Sade1

 

Hegel with Sade

 

 

Guilherme Grané DinizI; Alex de Campos MouraII

IMestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito e Doutorando em Filosofia pela Universidade de São Paulo / E-mail: guilherme.diniz@usp.br
IIProfessor de Filosofia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo / E-mail: alexmoura@usp.br

 

 


RESUMO

O presente trabalho pretende investigar tópicos da leitura que Georges Bataille faz da obra de Sade. Trata-se de uma leitura na qual se busca conjugar temas de Hegel com a literatura sadeana. Mais especificamente, Bataille busca entender uma dinâmica de reconhecimento, conforme lida por Kojève, no modo como Sade propõe para nós o desejo, a partir de sua literatura erótica marcadamente peculiar. Para tanto, após uma breve introdução, veremos como Bataille entende o processo antropogênico, o que desse pensamento pode ser retraçado à leitura kojéviana de Hegel e, enfim, como Bataille observa esses elementos na obra do Marquês de Sade.

Palavras-chave: Georges Bataille; Marquês de Sade; Hegel; Teoria do Reconhecimento.


ABSTRACT

The following paper intends to investigate topics of George Bataille's reading of Sade's works. In such reading, Bataille aims to conjugate themes found in Hegel with sadean literature. More specifically, Bataille tries to comprehend recognition dynamics, such as understood by Kojève, in the way Sade presents desire through his highly peculiar erotic literature. To achieve this, after a brief introduction, we shall see how Bataille understands the process of anthropogenesis, what from his thought on the subject can be traced back to a reading of Kojève and, lastly, how Bataille observes these elements in De Sade's works.

Keywords: Georges Bataille, Marquis de Sade, Hegel, Theory of Recognition


 

 

Foi em 1957 que Bataille publicou duas de suas principais obras: "O Erotismo" e "A Literatura e o Mal". Mesmo ano no qual Jean-Jacques Pauvert passava pelo processo judicial movido contra ele pela publicação das obras completas de Sade, que se iniciou por volta de uma década antes. Até essa edição, trabalhos de Sade eram de circulação restrita, apenas através de edições privadas. Certamente, esse fator material era um complicador significativo na difusão de seu pensamento entre os intelectuais, sendo seu nome, até essa época, consideravelmente restrito a certos grupos. Pelo que consta, dentre seus poucos leitores do começo do século, Sade era entendido em boa medida apenas como um catálogo ou compilação de perversões diversas - o autor que "tudo disse, tudo analisou" sobre as possibilidades do sexo (Sade, 1990, p. 69) -, possivelmente herança de sua introdução no mundo intelectual como interesse de estudo da psiquiatria. Dentre os primeiros pensadores que começaram a reivindicar de Sade uma dimensão propriamente literária, para além da literalidade do enunciado sexual, certamente estão os surrealistas.

Apollinaire, autor que cunhou o próprio termo "surrealismo", esteve envolvido na editoração e divulgação de algumas das primeiras edições de Sade. Em prefácios que escreveu, chegou a afirmar ser Sade "o espírito mais livre que já existiu" e Juliette "a mulher cujo advento ele antecipou, uma figura da qual não se tem ainda ideia, que está se erguendo da humanidade, que terá asas, e que renovará o mundo" (Apollinaire, 1993, p. 800). Já Breton, autor do "Manifesto Surrealista", criou a ideia de "humor negro" no contexto de uma coletânea de contos e trechos de obras na qual inclui um longo excerto da "Justine". Mesmo considerando que, posteriormente, Bataille tenha rompido bruscamente em relação a esse tema, escrevendo um texto polêmico contra os surrealistas e o modo como eles se utilizariam da obra sadeana, seu contato com Sade foi e é fortemente devedor dessa libertação de Sade das alas psiquiátricas às quais ele fora confinado ainda em vida. Mas a questão é que nem Sade nem os surrealistas esgotaram a constelação de referências da qual a obra de Bataille pretende dar conta. Antes o contrário: dado seu próprio conceito de filosofia, Bataille busca coadunar leituras as mais diversas, desde misticismo antigo e medieval e teologia até psicanálise, antropologia e economia.

Um dos eixos que ordenam essas leituras é o hegelianismo que Bataille recebe de Kojève. Foi entre 1933 e 1939 - portanto, alguns anos antes da publicação das obras completas de Sade, mas posteriormente ao contato de Bataille com as mesmas - que Alexandre Kojève ministrou seus famosos seminários sobre a "Fenomenologia do Espírito" de Hegel. Já é conhecimento comum o papel que esses seminários tiveram na formação do pensamento filosófico francês da época. Eles não apenas fizeram colocar a obra de Hegel novamente em pauta, mas direcionaram essa retomada a partir das inflexões peculiares de leitura que Kojève propôs. Isso significa, em linhas gerais, que Kojève, significativamente, começou seu comentário a Hegel a partir do "meio" da história do espírito: o surgimento da consciência-de-si. Uma leitura "ortodoxa", mais afeita à letra de Hegel, entende nesse processo a descrição do estranhamento e embate da consciência consigo mesma, na medida em que ela se alienou nos objetos exteriores que conheceu e passou a ser, para si, outra. Processo que, ao fim, resulta na fundação da possibilidade da verdade através da redescoberta da parte da consciência de que aquela sua parte alienada nos objetos não era um outro, mas ela mesma (Hegel, 2002, p. 135). A inflexão que Kojève deu a esse trecho foi de, justamente, notar nesse conflito da consciência uma dinâmica social. Não mais apenas um processo interno ao sujeito com suas cisões, mas um no qual a cisão é posta de um sujeito a outro (Plana, 1994, p. 404).

A temática da gênese histórica e social das estruturas da consciência foi um dos pontos de maior interesse para autores da época, das mais diversas orientações teóricas. No modo como Hegel pensou e Kojève leu a questão, encontram-se articulados diversos conceitos que vieram a ser incorporados pelo debate como algumas das questões centrais para a reflexão filosófica francesa do século XX: como desejo, trabalho e linguagem. A profundidade da marca que esses conceitos deixaram leva a considerar que podem estar no fundamento da divisão que comumente se propõe hoje entre filosofia analítica e continental, o que poria mesmo a especificidade da filosofia contemporânea (Porta, 2002, p. 30).

Bataille foi um dos alunos mais assíduos de Kojève. Já frequentava os seminários de Koyré antes de Kojève assumir esse posto, acompanhando-os ao longo dos seis anos em que ocorreram. Com Kojève, manteve uma relação semelhante à que mantinha com o pensamento hegeliano: admiração e ressalva. Mas com ele teve a oportunidade de manter também amizade e uma troca intelectual muito rica e ativa, tendo Kojève participado de muitos dos projetos intelectuais de Bataille (Surya, 2012, p. 620). Se podemos dizer que os dois trabalhos publicados em 1957, que acima mencionamos, são duas das principais obras de Bataille, é porque parece que neles vemos um momento importante desse trabalho de confluência - senão de todas aquelas leituras múltiplas -, ao menos da conjugação entre Sade e Hegel. O que há de bastante interessante nessa conjugação é que ela, em um primeiro momento, é certamente bastante contraintuitiva, especialmente pela via que Bataille a faz: a teoria do reconhecimento.

Um escritor que tanto insistiu em defender a matança, o estupro, o esquartejamento, a destruição e todas as variações e combinações possíveis desses e outros atos bastante semelhantes - que insistiu em explorar as mais variadas formas de negar os outros ao ponto de negar a si e mesmo fez disso um dos pontos mais importantes de sua ética -, o que tem ele a dizer sobre a função do outro na formação de nossa consciência ou sobre como nossas relações com os outros antecedem e possibilitam a nossa individualidade?

Sade afirma:

Para que sua existência pudesse adquirir a meus olhos o mesmo valor que a minha, seria necessário que eu encontrasse, nessa existência a mim estranha, algo que me reconduzisse de tal modo a minhas inclinações e às minhas paixões... É assim? Digo mais, poderia de qualquer modo ser assim? (Sade, 1995, p. 577, grifo nosso).

Frente a colocações como essa, parece mesmo incompreensível como se pode ver em Sade essa primazia da intersubjetividade. Antes, existe entre si e o outro um abismo intransponível e são muitas passagens dos discursos dos libertinos que o comprovam. É o que Jean Deprun entenderá como sendo um dos pontos centrais de toda moral libertina e chamará de "isolismo" "[...] toda a gama de sentimentos indo do egocentrismo espontâneo ao egoísmo refletido e culminando na atitude predatória da fauna humana" (Sade, 1990, p. LXIV). No discurso mais acima, dito pelo personagem Bandole, ainda se vai mais longe:

Sua existência me parece absolutamente estranha, ou, se o preferir, me deixa absolutamente indiferente, o valor que essa saberá assumir aos meus olhos não poderá ser senão relativo, ou, para explicar-me melhor, um valor proporcional ao grau de utilidade que de ti terei recebido (Sade, 1995, p. 577, grifo nosso).

A relação entre libertino e vítima - relação de negação do outro - pode ser expressa em "proporções", "relações", "utilidades"; vale dizer, comumente se dá sob a forma da técnica ou do trabalho. Ora, esse libertino cujos discursos lemos mais acima, para satisfazer suas manias, chegou ao ponto de criar uma máquina e toda uma verdadeira terapêutica que lhe facilitava engravidar suas vítimas (Sade, 1995, p. 574). A relação entre vítima e libertino - bem como aquela entre o libertino e seu prazer - por meio da qual, vimos, a vítima ganha mesmo sua existência - é pautada por um tipo específico de racionalidade que é a racionalidade do trabalho, da utilidade e das apuradas técnicas pelas quais se controla o corpo. Essa relação entre trabalho e prazer pode, à primeira vista, parecer inusitada. Mas um olhar mais apurado mostrará que é mesmo problemática. Daí ser ela o ponto pelo qual devemos adentrar a questão.

É perceptível que, ao menos em suas obras principais, Bataille nos dá poucos conceitos, sendo mais afeito às fórmulas, enunciações, descrições etc. No entanto, se não oferece um conceito de "natureza", é por uma razão filosófica específica. Em sua obra "O Erotismo", o autor mostra o modo especial pelo qual o homem se relaciona com ela. Trata-se de entender uma dialética (Bataille mesmo chama a atenção para o fato de que a operação que propõe é de Aufhebung) entre interdito e transgressão. Para uma primeira abordagem esquemática, poderíamos dizer que o processo se passa da seguinte maneira: por meio do interdito o homem se forma como coisa distinta da natureza. No entanto, por manter em si um corpo natural e necessidades naturais, precisa transgredir essa distinção e retornar à natureza negada, mas agora de modo mediado por esse interdito superado dialeticamente. Ou seja, essa experiência da naturalidade, para o homem, se por um lado é um desejo universalmente verificável, por outro é sempre culturalmente condicionado. Mais especificamente, nas diversas culturas, cabe â religião estabelecer esse "canal de acesso" do homem com a natureza. Na verdade, um dos pontos que Bataille quer estabelecer com essa reflexão é justamente que não existe uma natureza humana ou um ser natural para o homem enquanto homem, apenas existe uma experiência propriamente humana da natureza, mas que é sempre mediada pela cultura ou pela negação da cultura. Essa forma especial de retomada da natureza pelo homem é justamente o que ele chama de erotismo.

"A morte de um é correlata ao nascimento do outro" (Bataille, 1957, p. 62). Essa é a tônica do argumento de Bataille. Mas essa, ele afirma, foi a descoberta sadeana: a unidade entre crime e sexualidade na violência (Bataille, 1957, p. 218). O ponto, na verdade, é justamente que existe uma afinidade em nível estrutural entre a morte e a atividade sexual - as duas interdições fundamentais - especialmente quando esta se liga à genitalidade, afinidade que se dá no fato de que ambos são um tipo de violência. Ao morrer, uma pessoa disponibiliza a matéria da qual é feita seu corpo à decomposição ou corrupção, que é o retorno das matérias da qual é composto à natureza. Isso é condição para que surja uma nova pessoa ou um novo ser, humano ou não. A natureza usa como matéria-prima para a criação de novos seres justamente esse elemento informe que se origina da morte daquilo que vive. Esse argumento recorre de tal modo que Deprun lhe singulariza enquanto um dos topoi libertinos: o argumento pela "função sincrônica" do crime e sua consequência moral - o "antifisismo": "a ideia de que a natureza é malvada, amante do crime e que a única maneira de servi-la (se esse for nosso desejo) é seguir seu exemplo" (Sade, 1990, p. LXV). Como diz um dos menos escrupulosos libertinos sadeanos:

[...] todos os homens tendem ao despotismo; é o primeiro desejo que nos inspira a natureza, bem distante daquela lei ridícula que lhe atribuem [...] a criança que morde o seio de quem a amamenta, que o tempo todo quebra seu chocalho, nos faz ver que a destruição, o mal e a opressão são as primeiras inclinações que a natureza gravou em nossos corações (Sade, 1998, p. 459).

Todo desejo sexual tem por origem um ato de excesso, de negatividade, que funda a dicotomia vida-morte: a morte como condição da vida. Bataille pode, assim, pensar toda criação como relativa ao dispêndio e ao desequilíbrio. A cadeia alimentar é fundada também nesse dispêndio: herbívoros comem montanhas de plantas para se manterem vivos; um animal carnívoro deve comer vários herbívoros (Bataille, 1957). Isso remete a um dispêndio de energia inevitável interior à própria vida e à economia do mundo. Tudo indica o procedimento próprio da natureza: o gasto dispendioso, o contrário de uma lei de economia dos meios.

O que é notável, então, é que se o objeto central de toda interdição é a violência, na verdade esse objeto é indireto. Ele só se atinge na medida em que se interdita, antes, a natureza. Esta é que opera em um regime de desmesura, gasto incontrolável, que subtrai o homem de seu trabalho e o obriga a, enquanto parte da natureza, participar desse dispêndio de algum modo, mesmo que contra sua vontade imediata e apenas durante certos lapsos temporais. A natureza atua desse mesmo modo tanto nos indivíduos quanto em suas relações. Isso justamente na medida em que o sentido fundamental da natureza, para o homem, é a violência2. A razão é a atividade realizada pelo homem com a finalidade de furtar-se à natureza, de manter-se na existência sem estar sujeito ao fluxo de destruição e instabilidade.

Ainda, nesse contexto, devemos entender razão de um modo peculiar. Segundo Bataille (1957, p. 51), Levi-Bruhl afirmou que o homem primitivo diferia de nós em sua consciência. Ele sequer pensava e estruturava o mundo da mesma forma que o homem ocidental; um exemplo típico disso seria que, para esse tipo de homem, não haveria problema algum de que algo fosse e não-fosse ao mesmo tempo. No entanto, ele discorda dessa ideia. Segundo ele, na medida em que trabalha, o homem primitivo tem acesso ao mesmo tipo de racionalidade e consciência que nós. Ele também sabe organizar seu mundo a partir de relações entre sujeitos e objetos, meios e fins, a partir do cálculo da utilidade e da produtividade; a diferença seria que, para o homem primitivo, existem momentos na vida social nos quais ele pode atuar de outra forma, o que é um funcionamento bem mais positivo. É desse modo que devemos colocar a oposição entre interdito e transgressão, como a oposição entre uma atividade racional produtiva e a natureza dispendiosa que clama por nós incessantemente. O interdito, a princípio, não é simplesmente superado pela transgressão, mas complementado por ela. Nunca o romper-se de uma regra tornou-a inválida, pelo contrário, é rompê-la que dá sentido à sua existência enquanto regra, de modo que é no momento do rompimento que a regra se torna mais importante; um segredo do prazer que todo libertino sadeano conhece bastante bem (Sade, 1990).

A teoria do reconhecimento surge no contexto da questão sobre como o ser humano se distinguiu de seu entorno natural e fundou uma dimensão que lhe é própria (Hegel, 2002). De certo modo, essa questão foi típica do século XVIII, tendo aparecido então como pergunta pela passagem do estado de natureza para um estado de civilização no qual se pudesse ser humano em um sentido mais próprio do termo, a partir da consecução da vida política. Hegel não tem preocupação em compreender a natureza do homem ou a humanidade em seu estado natural. Antes, ele percebe que o homem se põe primeiramente como relação social. Será desta, abstraídos dela, que surgem os indivíduos. De fato, parece que a questão central que mobiliza todo o livro "O Erotismo" é essa. Bataille (1957) está interessado em entender o que faz com que possamos ver um santo, um homem casado, um libertino, em suma, todas as vastas possibilidades de existência humana, e ainda assim dizer de todos eles serem homens. A percepção de que é pelo trabalho que se constitui a humanidade ou de que existe uma oposição entre trabalho e natureza, sendo o primeiro o âmbito do que é propriamente humano, parece ser tematizada a partir do pensamento de Hegel - como insistimos antes, da leitura proposta por Kojève.

Se, como dizíamos no começo, é contraintuitivo e inusitado associar Hegel com Sade por via de uma teoria do reconhecimento, o termo que permite a Bataille começar a operacionalizar essa articulação é o Desejo. E é precisamente na ênfase na relevância do Desejo nos processos formativos do homem que está uma das marcas próprias da leitura de Hegel que Kojève lega para Bataille.

Kojève dá a primeira definição do Eu a partir de sua forma de desejar:

De uma maneira geral, o Eu do Desejo é um vazio que não recebe um conteúdo positivo real a não ser pela ação negadora que satisfaz o Desejo ao destruir, transformar e 'assimilar' o não-Eu desejado. E o conteúdo positivo do Eu, constituído pela negação, é uma função do conteúdo do não-Eu negado (Kojève, 1947, p. 12).

Homens e animais são iguais no mero fato de terem desejos. Desejo é sempre desejo de um outro (seja outra pessoa ou outra coisa exterior a si), de um "não-Eu". Pode-se ter fome e desejar comer algo ou pode-se ter desejos de ordem sexual e querer satisfazê-los no corpo de outrem. A satisfação do Desejo envolve a negação do desejado; esse Eu, primeiramente, pode ser entendido como a negatividade de seu Desejo. Ele apenas passa a ser algo positivamente quando satisfaz seu desejo, ou seja, quando nega o outro e o incorpora em sua realidade subjetiva. Por consequência, o que sobre ele se pode positivamente dizer ou afirmar é "função" daquilo que foi incorporado; será da mesma natureza que o desejo satisfeito. Se o desejo é da ordem da sobrevivência, da manutenção do corpo e da saúde, da reprodução da vida etc. esse Eu será tão natural quanto seus desejos. Até então, seres humanos no sentido próprio do termo não existem, o homem ainda é um animal entre outros, submerso em seu entorno natural. Só surgirá um Eu humano quando se satisfizer um desejo cujo objeto é humano (é importante que o desejo seja satisfeito, pois assim se o faz adentrar a realidade subjetiva de quem deseja). O único objeto (ao menos nesse primeiro momento) que não é natural a ser desejado é o próprio desejo. A humanidade começa a se configurar, então, primeiramente, quando o desejo recai sobre o desejo de outrem:

Assim, no relacionamento entre o homem e a mulher, por exemplo, o Desejo não é humano senão quando um deseja não o corpo, mas o Desejo do outro, se ele quer 'possuir' ou 'assimilar' o Desejo tomado enquanto Desejo; quer dizer, se ele quer ser 'desejado' ou 'amado' ou, melhor ainda: 'reconhecido' em seu valor humano, em sua realidade de ser humano (Kojève, 1947, p. 13, grifo nosso).

Conseguir satisfazer esse desejo pelo Desejo de outro significa fazer com que o outro perceba aquele que deseja como uma pessoa autônoma e provida de valor, como alguém desejável. Envolve impor ao conjunto de "outros" que o mundo representa aquela percepção subjetiva que alguém tem de si; objetivar essa percepção subjetiva (Kojève, 1947). Por isso pode-se dizer dessa luta por reconhecimento, ao menos em suas primeiras manifestações, ser uma luta de morte por puro prestígio. É uma luta pela qual alguém deseja fazer com que outra pessoa modifique seu horizonte de valores para incluir neles os valores que aquela primeira pessoa percebe em si. Ainda, trata-se de uma luta de morte pois o Desejo que as partes em conflito buscam alienar uma da outra é aquele Desejo natural por conservação e sobrevivência; e o Desejo de reconhecimento só se realizará quando aquele que sucumbe nega seu Desejo de autoconservação em nome daquele do vencedor. A negação pode ser absoluta: quando se come algo, esse algo deixa de existir objetivamente. Pode, no entanto, ser parcial, ser a transformação do objeto do Desejo. O Desejo antropogênico, enquanto um Desejo por reconhecimento, deverá privilegiar essa forma, na medida em que

[...] para ser realmente, verdadeiramente, 'homem', e se saber tal, deve então impor a ideia que ele faz de si mesmo a outros que não ele: ele deve se fazer reconhecer pelos outros [...] Ou ainda, ele deve transformar o mundo (natural e humano) em um mundo que está de acordo com esse projeto (Kojève, 1947, p. 18).

Não adiantaria que, na luta por reconhecimento, uma parte simplesmente destruísse o Desejo da outra; nesse caso não há reconhecimento possível. A primeira figura do reconhecimento é a relação entre Mestre e Escravo. Uma vez que na luta antropogênica pela conquista do Desejo o Mestre saiu vencedor, ele faria com que o Escravo desviasse seus esforços pela satisfação dos próprios Desejos para satisfazer aqueles do Mestre, que passaram a adentrar seu horizonte de valores (Kojève, 1947). O Mestre, então, se apropria dos objetos que o Escravo produz e os consome; é na destruição do objeto que este satisfaz o Desejo. Por oposição, só o Escravo conhece o trabalho; consequentemente, só ele conhece também essa forma de desejar que não se esgota na negatividade da consumação. Como diz Kojève (1947), a situação do Mestre é a de um impasse existencial: o Mestre lutou por reconhecimento, mas só foi reconhecido por um Escravo que para ele é uma coisa. Seu reconhecimento é falso e insatisfatório e sua relação com os objetos de seu Desejo precisa ser mediada pelo Escravo. Seu Desejo não pode realmente deixar de ser um Desejo de coisas no mundo e se tornar um Desejo com potencial antropogênico. O Escravo, no entanto, ao trabalhar e poder se reconhecer no objeto que modifica, se liberta dele e se torna o verdadeiro Mestre: Mestre da natureza. Seu Desejo recai sobre algo que não é mais simples coisa natural no mundo, mas um produto eminentemente humano. É pelo trabalho do Escravo que a humanidade enfim supera a natureza e forma para si todo um âmbito de humanidade (Kojève, 1947). O trabalho, ao criar um produto estável e permanente, revela um aspecto objetivo da satisfação que o Mestre desconhece.

O saldo desse processo é que o homem é homem, em primeiro lugar, pois deseja de uma forma diferente. Ele deseja não apenas o que importa para a manutenção de seu corpo natural. Deseja também, e principalmente, coisas humanas. Isso quer dizer, dentre outras coisas, que ele muda o mundo - seja a natureza, seja outros homens - à sua imagem, na tentativa de fazer com que esse mundo reflita o que ele percebe em si como valor. Essa forma específica de Desejo o leva a trabalhar. O trabalho, por sua vez, significa mais do que a simples modificação do mundo. Se a forma específica do Desejo humano é o Desejo pelo que não é natural, trabalhando, o homem cria um universo de objetos para seu Desejo; desejar esses novos objetos, que não dizem respeito a sua mera sobrevivência (uma bandeira inimiga, dinheiro, símbolos religiosos, livros etc.) é o que lhe fará humano. Quando trabalha e deseja coisas que seu trabalho cria, o homem se afasta daqueles objetos naturais que mobilizavam seu Desejo inicialmente. O trabalho, então, ensina o homem a refrear seu Desejo, submeter seus instintos e diferir e subordinar seu prazer presente através do cálculo de um prazer futuro (Kojève, 1947). Ao alterar os objetos e modos de seu Desejo, o trabalho transforma o próprio homem.

Porém, ainda falta um elemento para que essa emergência do homem esteja completa. É preciso que o homem adquira consciência do Desejo e seus objetos. O mundo humano se forma quando o homem entende que foi seu Desejo natural que o colocou em posição de servidão: que o "[...] mundo dado onde ele vive pertence ao Mestre (humano ou divino) e que nesse mundo ele é necessariamente Escravo" (Kojève, 1947, p. 33). Pode-se dizer, enfim, que o reconhecimento do Desejo é o elemento que completa o processo antropogênico. No reconhecimento, portanto, há uma dupla face ontológica e epistemológica: reconhecer o Desejo é ter consciência dele e reconhecer o Desejo é fazer com que o homem exista.

Bataille entendeu que se trata de uma descrição adequada não só da formação do mundo humano, mas de como nessa formação já estavam contidas diretivas que, desenvolvidas às últimas consequências, levam ao momento moderno (Habermas, 2000). No entanto, percebeu que esse processo todo é gravemente aporético. Se no limite é pelo trabalho a antropogênese, uma vez constituído o homem pelo trabalho, os modos de desejo que este ensina e os objetos de desejo que este fornece, aquele Desejo natural, ligado a necessidades e vontades do corpo, fica precluso. Ora, é justamente a formação da interdição: a exclusão da violência natural para a manutenção das formas de percepção e de vida social necessárias ao trabalho. O Desejo sexual, por exemplo, ou se dá pelas formas socialmente sancionadas ou é perversão, da qual, quando participa, o homem se torna intocável, proscrito, como um cadáver ou um símbolo religioso (Bataille, 1957). Agora, no entanto, temos um dado precioso: se a interdição busca excluir do mundo humano a violência, ela o faz escondendo sua verdade, ou seja, a violência por meio da qual esse mundo humano fora fundado em primeiro lugar. A dialética do erotismo é de fato uma dialética da violência; nisso, uma "dialética sadeana"3:

Todos esses indivíduos... geralmente todos, degolaram homens sobre os altares de seus deuses: em todos os tempos, o homem encontrou prazer em derramar o sangue de seus semelhantes, e, para se contentar, ele disfarçou essa paixão tanto sob o véu da justiça quanto sob aquele da religião; mas o fundo, mas o fim era, não cabe dúvida, o assombroso prazer que ele encontrava (Sade, 1998, p. 900-1, grifos nossos).

Mas, se é assim, é importante atentar que "dialética sadeana" e dialética hegeliana não são termos redutíveis um ao outro. A interdição nunca pode se completar na medida em que existe no homem algo irredutível à simples humanidade, o substrato natural que nos compõe e não pode ser definitivamente alienado: o corpo. Não é só adesão e admiração que Bataille mostra frente a Kojève e Hegel; antes, também percebe limitações em seu pensamento (Borges, 2012). A dialética hegeliana seria dotada de uma face dúplice, pela qual necessariamente restaria insuficiente perante sua tarefa: por um lado, teria chegado o mais próximo possível de tornar o homem consciente dos processos que descreve e, nisso, desse resto de "naturalidade" que lhe ficou perdido e alienado; por outro, descreve o processo pelo qual a forma da racionalidade criada no trabalho histórica e paulatinamente retira do homem a possibilidade de conhecer e experimentar outras formas de desejo. Desse ponto de vista, o trabalho é a subordinação da temporalidade ao futuro.

A polêmica entre Bataille e Sartre (Sartre, 1947) acontece justamente na medida em que Bataille dirá se tratar da perda da liberdade na subordinação do presente a um projeto; no que Sartre, em oposição, via a possibilidade de toda liberdade. Superar essa condição envolve proceder ao reconhecimento de uma outra forma de Desejo que não esse Desejo antropogênico. A partir disso, o homem poderá conhecer uma nova forma de atividade cujos sentidos não estejam ligados à utilidade e que realiza a liberdade através de um momento ou ato que não esteja subordinado a qualquer outro no tempo, mas carregue todo em si seu valor e seu sentido: a ação soberana. O que a consciência, formada no trabalho, precisa fazer então é encontrar-se dialeticamente com seu outro, com o que a nega. A dialética hegeliana teria ido, nessa direção, o mais longe que sua forma filosófica lhe possibilita. No entanto, tendo sido forjada na racionalidade do trabalho servil, ela apenas seria capaz de nos mostrar a soberania como um aspecto subordinado. Ela não é capaz de dar o passo final e reintegrar à consciência aquele resto que ficara excluído porque fora ela, em primeiro lugar, que deu causa à exclusão. O Sábio (aquele que enfim se dá conta do processo formativo do Espírito e, assim, se forma) busca a soberania, mas essa é justamente sua limitação: buscar a soberania significa subordinar a soberania ao projeto de ser soberano (Bataille, 1988).

O enfoque na sexualidade humana como uma forma de lidar com esses impasses não é arbitrário. O sexo é a instância da existência humana na qual se pode articular o problema em seus vários aspectos. De início, o Desejo sexual é natural e, estando inscrito em nosso corpo, não pode ser propriamente eliminado, mas pela via da dialética também não pode aceder à consciência. Com o surgimento de uma forma de desejar propriamente humana, o sexo é proscrito em nome da utilidade. Isso porque, em sua forma mais natural ou espontânea, o sexo é eminentemente incompatível com o trabalho; este exige domínio do corpo, clareza de consciência, percepção distinta dos meios, processos e fins etc., enquanto que a atividade sexual lança o sujeito em um mundo vertiginoso de reflexos, órgãos pulsantes, consciência turbada pelo desejo e pela excitação. Se levarmos a sério a ideia de que o trabalho é antropogênico, ele se torna mais que simplesmente uma categoria econômica, mas sim a relação central que determina todas as posições no campo da cultura. Religião, moralidade, arte; todas as manifestações culturais, mesmo que tenham sentidos diversos, só podem ser realmente compreendidas a partir de sua posição frente ao trabalho. Com a atividade sexual, se dá o mesmo. Especificamente, ela só é legítima e sancionada na medida em que é útil; leiase, em que se insere dentro da estrutura de uma moral do trabalho e da produtividade. O casamento é um exemplo disso: o sexo precisa estar inscrito na ordem social e servir aos fins de sua reprodução. O relacionamento sexual, para ser entendido como legítimo, puro, permitido, precisa vir acompanhado de formas jurídicas e econômicas que o enformem (Bataille, 1957). Ele não poderá, portanto, ter livre curso, sem restrições, regramentos e interdições.

Zamé, líder da ilha tropical de Tamoé, um dos mais sábios entre os legisladores sadeanos, dá ao europeu Sainville uma lição sobre políticas de Estado:

Estabelecendo o divórcio, eu destruí quase todos os vícios da intemperança; não restaria nenhum dessa espécie se eu tivesse querido tolerar o incesto como entre os Bramas e a pederastia como no Japão; mas eu acreditei ver nisso inconvenientes; não que essas ações o tenham realmente por elas mesmas [...] se eu achei que esses vícios são danosos, não foi senão em relação a meu plano de administração (Sade, 1990, p. 628).

Por elas mesmas, em sua natureza, essas ações são indiferentes. Esse, na verdade, é o dilema libertino, ao qual praticamente todos os seus diversos sistemas tentarão dar uma resposta (Le Brun, 1986): os libertinos sabem que nada do que façam realmente mudaria a ordem do mundo, pois todas suas ações são ligadas a uma estrita cadeia causal ditada pelas leis da natureza. O verdadeiro crime que seria infringir uma lei da natureza está absolutamente fora do alcance. Mas, para a vida social e humana, existem distinções que são estritamente arbitrárias, dentro das quais o libertino pode cometer o crime como infração de uma ordem simbólica. No limite, nem há crime além daquilo que a lei proíbe, não há proibição além da interdição social: daí que Zamé diga poder "destruir" os crimes simplesmente legalizando as condutas, mas ao mesmo tempo não possa abrir mão de alguma definição de conduta como criminosa para ordenar e "administrar" sua sociedade. Se â época começou-se a perceber e anotar as diferenças nos costumes sexuais dos povos, demoraram séculos para que fosse compreendido de fato esse caráter dúplice do incesto e, na verdade, de todo sistema criminal: universal - posto que todos os povos o conhecem -, mas arbitrário - uma vez que cada um tem seu sistema e suas regras (Bataille, 1957).

A descrição kojèviana será crucial para a visão de homem que se forma na obra de Bataille: a antropogênese é mais que um processo social conflituoso: é a agressão imotivada, desproporcional, Desejo tão violento de poder e prestígio que leva os homens a arriscarem a própria vida na busca da conquista e subjugação do outro. O que a obra de Sade faz, nesse sentido, é nos fazer encarar em nós a existência de um Desejo que não é humano, que chega mesmo a negar o que entendemos comumente por isso. Pode-se dizer que ela obriga a consciência a reconhecer o Desejo que é, em princípio, seu outro (Bataille, 2015), exatamente aquilo que a dialética hegeliana falhou em fazer. Ela nos leva a ver com clareza como nosso mundo humano tem um fundamento natural e violento do qual nunca se livrará. Nunca se livrará, pois, esse mundo da violência, a natureza, subsiste enquanto pressuposto fático, suporte material, para que o mundo humano se constitua. Segundo Bataille (2015), um dos principais méritos de Sade foi proceder a uma análise detalhada dos modos pelos quais os homens desejam. Ora, como vimos, uma relação de reconhecimento é um processo implicativo; vale dizer, uma relação na qual quem se faz reconhecer modifica aquilo que o reconhece e quem reconhece se vê obrigado a modificar seu campo de valores para neles introduzir os do que é reconhecido. Quando se efetiva o reconhecimento, ambas as partes envolvidas veem seus horizontes valorativos modificados e nenhuma delas é a mesma que iniciou essa disputa. De alguma forma, então, o que está em jogo é mesmo a superação da consciência no tornar-se consciente daquilo que ela recusa. Se Sade conseguiu atingir isso na articulação interna de sua obra é porque faz a linguagem retornar sobre si sua própria negação. Bataille (2015, p. 109) diz da obra de Sade que, em relação à literatura, é como um deserto em comparação às belas paisagens que o mundo oferece. Sade teria buscado como efeito estético o feio, o repetitivo, o enfadonho. Esse seria efetivamente o sentido dessa literatura estranha4:

voltemos agora sobre nossos passos e pintemos o melhor que pudermos ao leitor cada um desses quatro personagens em particular, não belamente, não de maneira a seduzir e cativar, mas com os pinceis mesmos da natureza, que, a despeito de toda sua desordem, é com frequência bem sublime, mesmo considerando que ela se deprava mais (Sade, 1990, p. 20, grifos nossos).

Em estrito paralelo com sua estética do feio, teria criado uma teoria das virtudes libertinas para seus heróis: são homens ignorantes, feios, sujos e covardes, que se regozijam e vangloriam de seus crimes (Bataille, 2015). Sade criou um mundo que, à primeira vista, era a imagem invertida do nosso.

À primeira vista, pois, quando detemos sobre ele o olhar, vemos que "a tão grande distância que Sade interpôs entre esse mundo do direito e o dele é atalhada por uma estrada vicinal, que liga a ambos pelos fundos" (Diniz, 2018, p. 62). Se há um ponto de contato e um paralelismo entre a "estética do feio" e a "ética do mal" sadeanas, este está na relação libertina com a beleza:

Não tentarei pintar essas belezas: elas eram todas tão igualmente superiores que meus pincéis se tornariam necessariamente monótonos. Me contentarei em nomeá-las e de afirmar verazmente que é perfeitamente impossível de se representar uma tal reunião de graças, de atrativos e de perfeições, e que se a natureza quisesse dar a um homem a ideia do que ela pode fazer de mais sábio, ela não o apresentaria outros modelos. A primeira se chamava Augustine [...] (Sade, 1990, p. 46).

Esse tipo de descrição genérica e lacônica da beleza é comum em Sade e serve a um princípio bastante relevante em se tratando de sua literatura libertina: deixar ao leitor o papel de completar os detalhes do rosto e do corpo de Augustine segundo melhor interesse ao gosto de sua imaginação (Moraes, 2011). No entanto, com o passar do livro, os personagens libertinos acrescentam a esse corpo seus toques próprios:

Augustine é fustigada por todos os quatro [...] seu belo cu é ensanguentado [...] Curval lhe corta um dedo [...] o duque a queima sobre as coxas, com um ferro em brasa, em seis lugares; ele a corta ainda outro dedo da mão [...] e, a despeito de tudo isso, ela não irá deixar de dormir ainda com o duque (Sade, 1990, p. 368).

Quem haveria de preferir deitar-se com Augustine depois da mutilação? E é importante perceber que o libertino não quer simplesmente mutilar e destruir a garota na orgia para depois livrar-se dela como de tantos outros cadáveres em sua carreira. Antes, ele quer compartilhar com ela seu leito, como o homem casado faz com sua esposa; seu Desejo é o de um mundo invertido, de ponta cabeça. Parece haver, em princípio, mera contradição: o homem comum deseja a beleza, o libertino deseja seu oposto. Mesmo assim, Bataille ressalta como esse é, de fato, o funcionamento de nosso Desejo: uma mulher é bonita na medida em que em seus traços ela difere dos animais (possui uma pele suave, formas arredondadas etc.). Mas essa beleza só adquire seu verdadeiro sentido quando se põe em contraste com o que se esconde: as partes pudendas, peludas (Bataille, 1957). De fato, a beleza deve ser compreendida sob a chave de sua contingência e transitoriedade. Em se opondo ao mundo da permanência instaurado pelo trabalho, a beleza nos interessa e age sobre nós a partir de sua iminente inutilidade. Ela representa a liberdade humana frente à necessidade animal que lhe motivara, em primeiro lugar, a trabalhar (Bataille, 1988). É por isso que Bataille considerou que a verdade sobre a beleza dos corpos, que constitui um dos fundamentos do apetite sexual da pessoa média, apenas se revela em seu oposto (Borges, 2012): corpos decompostos, revirados e envelhecidos, flores apodrecidas etc. Talvez, mais do que em seu oposto, se revela na identidade com seu oposto. Na "Nova Justine", o monge Antonin organiza uma cena de deboche:

Uma outra criatura, de por volta de vinte anos, vem se colocar sobre Justine, na mesma posição; de modo que é uma nova boceta que se oferece ao lascivo, no lugar do rosto de Justine, e que se ele goza desta, ele terá os atrativos da outra à altura de sua boca (Sade, 1995, p. 659, grifo nosso).

A boceta não faz simplesmente apagar o rosto que se esconde por detrás dela, mas evoca sua imagem distorcida. Como resposta ao olhar do libertino oferece a fenda - olho cego que se contorce, convulsiona; como resposta a seu beijo, a baba (Diniz, 2018, p. 173).

A troca da boca pela boceta significa não só perda da individualidade do rosto na troca por um corpo indiferente, mas, principalmente, a recusa da fala em nome do gemido, do balbucio, do grito, do estertor. Se Sade insere a violência na linguagem, apenas pode fazê-lo na violência à linguagem (Bataille, 1957). A poesia, enquanto forma inútil de uso da linguagem, possui afinidades com as outras formas de negação da existência humana constituída pelo trabalho. Significa ela, então, a emergência na linguagem de um princípio desumanizante: o corpo que se "explicita enquanto linguagem soberana na poesia" (Borges, 2012, p. 89). "Apenas a palavra sagrada, poética, limitada ao plano da beleza impotente, guarda o poder de manifestar a plena soberania" (Bataille, 1988, p. 342). Se, por um lado, é necessário remeter a soberania â consciência, isso não pode se dar a partir do discurso significativo. Apenas pode ocorrer através de uma forma de linguagem que é a negação, o sacrifício da linguagem. Ora, daí que Bataille se recuse a conceituar "natureza" de modo positivo: seria mesmo um contrassenso dar um conceito daquilo cujo sentido primeiro dentro de todo horizonte de experiência humana (e de seu pensamento) seja, justamente, apontar o limite de toda reflexão conceitual.

Por outro lado, através desse "sacrifício da linguagem", a natureza não seria um simples impensável, eternamente alienado para o homem a partir da descoberta da razão; e seria justamente esse o papel de Sade. Se voltarmos ao nosso exemplo de antes, na "Nova Justine", o libertino Bandole, podemos entender melhor sua mania. Bandole tinha apenas um gosto em sua vida austera: engravidar moças para ter a oportunidade do infanticídio. De forma a não acrescentar à espera inevitável de nove meses o tempo de várias tentativas, Bandole criou um procedimento terapêutico que facilitasse a concepção; o qual, para além de uma dieta muito saudável tanto para si quanto para as mães que sequestrava, envolvia uma elaborada criação sua:

[...] em um quarto, preparado para esse fim, se encontrava uma máquina sobre a qual a mulher, suavemente deitada e firmemente presa, apresentaria a esse libertino o templo de Vênus ao último grau de arreganhamento possível; ele enfiava, ninguém se movia [...] três ou quatro vezes durante o dia a mulher era recolocada sobre a máquina, em seguida mantida em seu leito nove dias, a cabeça baixa e os pés bem altos (Sade, 1995, p. 574).

O que Bandole faz é obrigar as formas de racionalidade próprias ao trabalho e à técnica funcionarem "de marcha ré": cria uma técnica do filicídio. Analogamente, é isso que Sade faz com a linguagem racional: insere nela seu oposto. Ou, talvez fosse melhor dizer, revela como nela vige e opera de partida seu oposto; que a violência é uma possibilidade nunca realmente excluída pela linguagem, assim como sempre esteve latente sob as promessas da razão.

Normalmente, a oposição entre civilização e barbárie carrega consigo dois sentidos diferentes, mas ligados (Bataille, 1957). Por um lado, significa a separação entre o civilizado que fala e o bárbaro que desconhece a linguagem. Civilidade se entende como um elo que exclui a violência; o bárbaro é o externo da civilização, sempre pronto a invadi-la e atacá-la, enquanto que a civilização é a garantia interna da paz: violência e linguagem se excluem. Na linguagem, podemos falar sobre a violência, buscar negá-la, combatê-la ou mesmo justificá-la, mas nunca realmente falar a violência ou em nome dela, pois ela atua em silêncio. A tarefa paradoxal de Sade foi dar voz à violência. Tão paradoxal quanto escrever um longo livro no qual detalha um sistema de negação egoística dos outros - dos interlocutores aos quais seu livro é - só por ser livro - destinado. Esse paradoxo, segundo Bataille (2015), só pode ser entendido tendo em vista as condições políticas nas quais Sade escreveu. De seus pouco mais de sessenta anos de vida, mais de vinte foram passados entre prisões. Desses, treze anos na Bastilha por conta de uma Lettre de Cachet, documento do rei que ordenava sua prisão até segunda ordem, sem acusação, sem julgamento, sem prazos. A Revolução Francesa, que prometera o fim dos abusos e violências do antigo regime, o encarcerou de novo, dessa vez por ele ter sido muito radical em suas demandas. Se Sade escreve a violência em suas obras, é necessariamente sob a posição de vítima, mas não dos criminosos, da força ou da ilegalidade; vítima da própria lei, dos abusos e da violência que são sua face oculta e que elas exercem como forma de sua própria manutenção (Bataille, 1957). Sua literatura é a forma pela qual ele busca atacar o homem moral - em nome de cujos valores ele fora preso - em seu próprio terreno, a linguagem (Bataille, 1957). A violência de Sade entra à força na consciência, mas como forma de infectá-la, de fazê-la trabalhar contra si mesma. É como se Sade movesse um processo contra o direito ele mesmo; contra Deus, a religião, a moral, todas as forças que o atacaram. A "forma processual" adequada para tanto foi a literatura. Falta, agora, o homem normal, em contato com a obra de Sade, finalmente tomar consciência das verdades por ele reveladas (Bataille, 1957).

O homem médio acredita que seu Desejo está de todo contido dentro da esfera do que é socialmente aceitável e sancionado. O que está para além é o que lhe causa nojo, asco e repugnância. Jules Janin, romancista e crítico literário francês do século XIX, escreve contra Sade uma longa e inflamada diatribe, em que mostra exatamente o que está em jogo para esse homem normal:

Mas o homem em questão, mas o Marquês de Sade, fez desses livros obscenos a ocupação de toda sua vida, mas dessas obscenidades que não eram senão na cabeça dos outros escritores, o Marquês de Sade fez um código inteiro de excrementos e de vícios. Mas enquanto que seus confrades não queriam senão fazer passar uma hora ou duas aos libertinos de todas idades, ele, ele quis colocar o vício como preceito: muito mais, ele quis passar dessa infame teoria à prática (Janin, 1834, p. 17, grifos nossos).

Se a "libertinagem ocasional" é até perdoável na pena dos grandes poetas, Sade, ao fazer a apologia da destruição e da violência, é aquele que põe em risco a ordem social na qual esse homem vive. Como diz Bataille (1957), Sade representa, para Janin, o homem que pode estuprar sua filha. É certo que Janin não reconhece, de modo algum, continuidade ou identidade entre seus Desejos e os de Sade. No entanto, o homem normal participa dos funcionamentos da vida da violência também; no limite, os pressupõe de forma intuitiva para viver de forma saudável e plena.

Em seu "Os 120 Dias de Sodoma", explica da seguinte maneira a necessidade do projeto de sua obra. Segundo ele:

Sem dúvida, muitos de todos os desvios que você vai ver pintados te desagradarão, já se sabe, mas se encontrarão alguns que te esquentarão ao ponto de te custar porra, e eis tudo o que precisamos. Se nós não tivéssemos tudo dito, tudo analisado, como você quereria que nós tivéssemos podido adivinhar aquilo que te convém? (Sade, 1990, p. 69).

A proposta do autor é dirigida pessoalmente e de forma íntima5 a cada um dos leitores para que no contato com o livro descubra qual a violência e a crueldade que mais lhe agrada: a sodomia, a flagelação ativa ou passiva, a pedofilia etc. Bataille (2015, p. 114) afirma com muita propriedade: "Ninguém a menos que permaneça surdo, termina os Cento e vinte dias sem ficar doente: o mais doente é evidentemente aquele que se excita sensualmente". Atinge-se a crise da febre sádica quando o que excitou a imaginação doentia do autor excita a nossa, que, de partida, supõe-se saudável e não libertina. Na excitação com as irregularidades que Sade descreve - e em um "cardápio" de 600 pratos é certo que a mulher e o homem médios acabem em algum momento por se excitar - se evidência o quanto ainda opera, singularmente, no corpo de cada um de nós, a associação entre morte e prazer.

O ápice e momento de verdade de toda dialética é quando ela toma consciência de seu próprio processo, fazendo com que cada um dos momentos e o processo em si sejam partes do todo. Assim, é hegelianamente que Bataille conclui: a consciência só estará completa quando o homem tiver consciência de seu Desejo. Quando perguntado pelo juiz do caso de Jean-Jacques Pauvert sobre se achava Sade um autor perigoso, Bataille, sabendo ser uma resposta estrategicamente infeliz, não mente (Moraes, 2011): é preciso Sade para nos lembrar de que o sexo é perigoso, de que ele significa violência, destruição e negatividade, e que o homem é antes de tudo um ser sexuado. Mas, se Sade é perigoso, é, ao mesmo tempo, necessário. Sade, ao nos excitar nos faz perceber que nosso Desejo, dito normal, é igual ao Desejo dele, perverso. No limite, nos mostra que, em um sentido muito importante, Desejo é perversão.

Existe em nós uma forma de desejar que, por sua própria estrutura, o trabalho - nosso modo humano de ser - não é realmente capaz de satisfazer. Dentre outros nomes ou figuras sob as quais esse Desejo pode se apresentar, está a da soberania. Desejar ser soberano é desejar um momento, uma atividade, um ato que não se subordine à necessidade de produção que conforma e confirma o mundo do trabalho; é desejar ser sujeito em um mundo no qual apenas existem objetos. É importante que Sade nos torne, enfim, conscientes do fato de que existe no homem algo que nega e ultrapassa sua mera humanidade. Ignorar ou buscar suprimir esse aspecto divino do homem levaria a sua transformação, enquanto espécie, em uma velharia (Bataille, 1957). Algo mais ou menos semelhante ao que Nietzsche (2011) entenderia pelo "último homem": um homem que, reduzido a suas faculdades racionais, não mais lança sua flecha acima de si mesmo, não mais dá luz a estrelas.

 

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1 Este texto retoma a discussão encetada na dissertação de Mestrado por nós defendida em 2018 (Grané Diniz, 2018) acerca da possibilidade de pensar o conceito de "reconhecimento" como ponto de entrada no pensamento sadeano.
2 Para uma análise mais detalhada sobre a derivação sadeana do conceito de natureza batailleana, ler Diniz, 2017.
3 Considerando, é certo, que a noção é controversa, e muitos dos principais leitores de Sade consideram fortemente inadequado pensar Sade como um autor dialético. De qualquer forma, Bataille parece fazê-lo, junto com outros leitores hegelianos de Sade que frequentaram os seminários de Kojève (Klossowski, Blanchot).
4 É oportuno ressaltar que este é outro dos pontos mais polêmicos e delicados da leitura batailleana da obra de Sade. Barthes (2016, p. 39) dirá que essa visão de um Sade enfadonho é justamente a manutenção de Sade como autor menor, fora de circulação, proscrito. De fato, a ideia de que há repetitividade e enfado em Sade parece ser - talvez - mais defensável quando pensada a respeito apenas de algumas de suas obras ("Os 120 Dias de Sodoma", "Justine") e alguns aspectos dessas, como, principalmente, sua estrutura.
5 "Segue-se portanto um efeito de colocação em cumplicidade efetiva do leitor - mesmo que não refletida por ele - por meio de sua implicação, de direito inevitável, no processo de gozo. O narrador se encontra, pelas propriedades da narração, situa-se em uma posição de escuta absolutamente homóloga àquela dos quatro libertinos, quanto ao sentido e à determinação ética de sua vontade. O título de 'amigo' é portanto, já, em si e para nós, suficientemente garantido" (Mengue, 1996, p. 130, grifos nossos).

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