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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.22 no.1 São Paulo jan./jun. 2020

http://dx.doi.org/10.17648/2175-2834-v22n1-435 

ARTIGOS

 

A fenomenologia de Heidegger na crítica de Dreyfus à IA simbólica1

 

Heidegger’s Phenomenology in Dreyfus’s Critique of Symbolic AI

 

 

Paulo Mendes Taddei2, Arthur Barbosa da Costa3, Robson Roberto de Oliveira Furtado Junior4

2 Universidade Federal do Rio de Janeiro.

3 Universidade Federal do Rio de Janeiro.

4 Universidade Federal do Rio de Janeiro.

 

 


Resumo: Embora influente na recepção de Heidegger nos Estados Unidos da América, o trabalho de Dreyfus foi repetidas vezes criticado por desenvolver uma leitura distorcida e seletiva da fenomenologia de Heidegger. Nesse artigo, mostramos que, independentemente de seus desenvolvimentos posteriores em ciência cognitiva, sua crítica inicial à IA simbólica se apoia em duas teses que podem ser localizadas em Ser e Tempo, a saber, de que nosso senso de situação é (i) pragmático-holístico, e (ii) intrinsecamente relevante (i.e. definido por nossas interesses). Após uma introdução geral, reconstruímos, numa primeira seção, em linhas gerais o projeto da IA simbólica e o tom geral da crítica de Dreyfus; numa segunda seção, reconstruímos a crítica de Dreyfus a SAM, de R. Schank; na terceira seção, indicamos como as duas teses podem ser localizadas em Ser e Tempo; concluímos apontando questões pendentes.

Palavras-chave:Dreyfus, Heidegger, fenomenologia, GOFAI, holismo, relevância.


Abstract: While influential in Heidegger’s reception in the United States of America, Dreyfus’s work has been repeatedly criticized for developing a distorted and selective reading of Heidegger’s phenomenology. In this paper, we show that, regardless of Dreyfus’s later developments in cognitive science, his early critique of symbolic AI is supported by theses that can be located in Heidegger’s Being and Time, namely, that our sense of situation is both (i) pragmatic-holistic and (ii) intrinsically relevant (i.e. defined by our interests). After a general introduction, we present in the first section the project of symbolic AI and the general tone of Dreyfus’s criticism thereof; we then reconstruct Dreyfus’s criticism of R. Schank’s SAM; after that, we indicate how these theses are to be found in Heidegger’s Being and Time; we finally conclude by pointing out pending issues.

Keywords: Dreyfus, Heidegger, phenomenology, GOFAI, holism, relevance.


 

 

“Dreyfus toma Ser e Tempo como se o livro tivesse acabado de emergir como destroços em alguma praia californiana”
Habermas5

 

1. Introdução

Se é verdade que Martin Heidegger (1889-1976) exerceu influência sobre as mais diversas correntes filosóficas do século XX (do pós-estruturalismo francês à filosofia analítica da mente, passando pela segunda geração da Escola de Frankfurt), é verdade também que seu pensamento impactou áreas acadêmicas externas à filosofia, como a teoria da arquitetura, a teologia, a teoria literária, a psicoterapia e a ciência cognitiva (Wheeler, 2011). Em meio a essa imensa Wirkungsgeschichte, não se pode negar que Hubert Dreyfus (1929-2017) mereça destaque como um dos mais originais e peculiares herdeiros do pensamento heideggeriano. Dreyfus foi um dos primeiros responsáveis por difundir o pensamento de Heidegger academicamente nos Estados Unidos da América, em um ambiente previamente dominado pela filosofia analítica e pelo positivismo lógico. Antes mesmo da primeira tradução de Ser e Tempo para o inglês, de Macquarie e Robinson, em 1962, Dreyfus traduziu e fez circular suas traduções não oficiais da obra de Heidegger (Woessner, 2011); porém, mais do que meramente cuidar da reprodução do pensamento do filósofo, Dreyfus se tornou mais conhecido e influente pela aplicação da fenomenologia de Ser e Tempo ao campo então nascente da inteligência artificial (doravante IA). Foram as polêmicas de Dreyfus com H. Simon, A. Newell, M. Minsky e outros pioneiros do campo da computação e da cognição que introduziram nomes como os de Heidegger e Merleau-Ponty6 em debates de filosofia da mente, de IA e de ciência cognitiva em geral. Se hoje é possível falar até mesmo de uma “ciência cognitiva heideggeriana” (Kiverstein & Wheeler, 2012), isso certamente se deve, como é em geral reconhecido (como em Preston, 1993, p. 43), aos esforços de Dreyfus.

Apesar dos efeitos duradouros de seu trabalho, não foram raras as críticas que Dreyfus recebeu por sua apropriação de Heidegger. Críticos entenderam que Dreyfus não fez jus, por exemplo, ao caráter ontológico e existencial de Ser e Tempo (Olafson, 1994), ao caráter antinaturalista do pensamento de Heidegger (Christensen, 1997, 1998, 2008), à concepção heideggeriana de ciência (Ratcliffe, 2012), ao caráter de primeira pessoa da experiência e à sua dimensão de autoconsciência (Zahavi, 2013) e ao caráter ubíquo da estrutura como (Doyon, 2016)7. De modo geral, foi apontado o fato de que Dreyfus desenvolve uma interpretação distorcida e seletiva de Heidegger, a qual mapeia seu pensamento em discussões que lhe são estranhas (Christensen, 2008). O termo consolidado “Dreydegger”, cunhado para designar a interpretação de Heidegger proposta por Dreyfus, marcaria, antes de tudo, a assimilação de partes do pensamento de Heidegger a uma posição behaviorista ou, no mínimo, wittgensteiniana, esposada por Dreyfus e uma parcela significativa de seus alunos, como Haugeland, Carman, Okrent, entre outros

Se, por um lado, a interpretação de Dreyfus não é consensual entre intérpretes de Heidegger, por outro, como aponta Ratcliffe (2012, p. 139), as críticas de Dreyfus à inteligência artificial não devem ser necessariamente consideradas não heideggerianas. Dito de outro modo: o fato de Dreyfus não fazer jus a todo o pensamento de Heidegger não implica que as acusações de Dreyfus à IA simbólica não estejam em consonância com o pensamento de Heidegger. Assim, o objetivo deste artigo não é discutir a correção do comentário de Dreyfus a Heidegger (Dreyfus, 1994), tarefa já feita muitas vezes (como, por exemplo, em Olafson, 1994; Christensen, 1998), mas sim o de averiguar se e em que medida duas das acusações de Dreyfus à inteligência artificial simbólica podem ser consideradas críticas genuinamente heideggerianas. Essas acusações são as de que a IA simbólica seria incapaz de (a) formalizar nosso conhecimento de senso comum e (b) reconstruir critérios de relevância8. Nossa hipótese é a de que tais acusações devem, sim, ser consideradas heideggerianas e que, portanto, no que se refere a elas, não se pode falar em distorção, por parte de Dreyfus, do pensamento de Heidegger. Para argumentar em favor disso, o artigo é dividido em três seções: a primeira apresenta o projeto da inteligência artificial e caracteriza o tom geral da crítica de Dreyfus à IA simbólica; a segunda reconstrói as duas críticas de Dreyfus tomando como exemplo o programa de Roger Shank, Script Applier Mechanism (SAM); e a terceira reconstrói as teses de Heidegger em Ser e Tempo que dizem respeito ao estatuto de nosso conhecimento de senso comum e de critérios de relevância.

 

2. Computadores, Inteligência Artificial Simbólica e a Crítica de Dreyfus

Um modo intuitivo de compreender o campo da Inteligência Artificial é a partir da pergunta: é possível construir e configurar dispositivos puramente físicos que possuam inteligência genuína? Segundo Churchland (1998, p. 161), a convicção de projetos de pesquisa do campo da inteligência artificial é de que isso é possível, e a meta de tais projetos  é construir tais dispositivos. Esse movimento, como Pedro (2010) aponta, surge no início da década de 1950 e tem como proposta ser “[...] a ciência de produzir máquinas que fazem coisas que exigiriam inteligência, se feitas pelos homens” (Minsky apud Warwick, 2012, p. 31-32). Como notado frequentemente, salta aos olhos que a concepção de inteligência não seja definida na formulação dessa proposta, sugerindo o claro cunho técnico do campo da Inteligência Artificial: o que importa é a produção de máquinas que sejam inteligentes no sentido geral em que se fala de inteligência, segundo nossa compreensão média desse conceito.

Não é, contudo, como mero projeto técnico que o campo da inteligência artificial interessa a Dreyfus (Dreyfus, 1972/1979/1992, p. 87), mas sim como parte pioneira do projeto mais amplo da ciência cognitiva. Segundo uma representação já clássica de Gardner (1978, p. 37), a inteligência artificial se insere no hexágono da ciência cognitiva: trata-se de uma das seis disciplinas, ao lado da filosofia, psicologia, neurociência, linguística e antropologia, que pretendem explicar a mente e a inteligência humanas (Thagard, 1996, p. 21). Enquanto parte pioneira desse campo, a inteligência artificial se desenvolve com o surgimento dos computadores digitais. A aparente capacidade dos computadores de realizar tarefas consideradas inteligentes (como provar teoremas, resolver problemas lógicos, travar diálogos em linguagem natural, jogar jogos etc.) falaria em favor da tese de que eles são literalmente inteligentes, bem como da tese de que a inteligência humana funcionaria tal como um computador. A ideia subjacente aqui é, como formulou Haugeland (1997, p. 1), a “da psicologia como engenharia reversa”: o êxito de computadores em tarefas inteligentes sugeriria que algo semelhante ao que foi programado no computador ocorreria em nós quando realizamos as mesmas tarefas.

Enquanto o célebre argumento de Searle, baseado no Gedankenexperiment do quarto chinês, independe do êxito ou não de computadores em simular atividades inteligentes, a crítica de Dreyfus consiste fundamentalmente em apontar fracassos e limitações nos programas desenvolvidos pelos pioneiros da IA. Note-se que não se trata evidentemente de apontar impossibilidades de aplicação ou de utilização desses programas na vida prática; antes, trata-se de indicar que esses fracassos e limitações são escamoteados por uma tendência retórica dos próprios pioneiros da IA. É a denúncia dessa diferença entre os resultados reais e a autointerpretação otimista desses resultados que perfaz o cerne do argumento de Dreyfus. Em suma: o trabalho dos pioneiros da IA seria marcado por um otimismo  mistificador (Käufer & Chemero, 2015, p. 177). Essa mistificação se daria pela assunção de pressupostos de natureza, sobretudo, filosófica. Dreyfus desenvolve esses pressupostos em detalhes em seu livro What Computers (Still) Can’t Do (Dreyfus, 1972/1979/1992)9, indicando que se trata de pressupostos de natureza biológica, psicológica, epistemológica e ontológica10.Para efeitos de contextualização das duas acusações de Dreyfus aqui em tela, reconstruiremos não diretamente cada um desses pressupostos, mas a hipótese, que se consolidou na ciência cognitiva posterior, do “processamento de informações”(Bermúdez, 2014, p. 3), também caracterizada como a “compreensão representacional-computacional da mente” (Thagard, 1996, p. 21). Neste artigo, entenderemos por “compreensão representacional-computacional da mente” aquela compreensão vigente no âmbito do cognitivismo estrito, isto é, daquilo que Haugeland denominou “GOFAI” (“Good Old-Fashioned Artificial Intelligence”), uma vez que esse modelo é o alvo prioritário das críticas de Dreyfus11.

Ao esclarecer a compreensão computacional-representacional da mente, Thagard nos diz que ela funciona com “[...] estruturas representacionais e procedimentos computacionais que operam sobre essas estruturas.” (Thagard, 1996, p. 21). O que significa essa caracterização? Para esclarecê-la, seguimos a sugestão de Haugeland para quem computadores são “sistemas formais automáticos interpretados” (1996, p. 19), ao passo que a abordagem da GOFAI envolve uma determinada decisão a respeito do que deve ser interpretado. Ao fim desta seção, pretendemos ter mostrado que o modelo representacional- computacional da mente envolve um compromisso com uma análise atomista de operações mentais.

O que são sistemas formais e de que modo eles auxiliam a compreensão do funcionamento de computadores? Como aponta Haugeland (1996, p. 8), embora nem todo sistema formal seja um jogo e nem todo jogo seja um sistema formal, é útil a aproximação destes com aqueles: jogos familiares, como xadrez, damas, jogo da velha etc., são exemplos de sistemas formais, diferentemente de jogos como bilhar e futebol. O que caracteriza aqueles como sistemas formais? Ainda de acordo com Haugeland (1996, p. 8-9), sistemas formais se caracterizam por três propriedades: são sistemas de manipulação de tokens; são digitais;e são independentes de meio.

Enquanto sistemas de manipulação de tokens, sistemas formais podem ser especificados integralmente a partir de:

(1) um conjunto de tipos de tokens formais ou peças; (2) uma ou mais posições iniciais permitidas – isto é, arranjos iniciais permitidos dos tokens desses tipos; e (3) um conjunto de regras formais especificando como tais arranjos formais podem ou têm que ser transformados em outros.

Com essa definição, quer-se sugerir que sistemas de manipulação de tokens são integralmente autocontidos. Em particular, a formalidade das regras é dupla: (i) elas especificam apenas os próximos arranjos formais de tokens permitidos e (ii) elas os especificam em termos apenas do arranjo formal atual – nada mais é de nenhum modo formalmente relevante (Haugeland, 1996, p. 9, grifo no original).

Haugeland ilustra o caráter de manipulação de tokens de sistemas formais explorando como o xadrez funciona, se considerado formalmente. Podemos aqui, juntamente com Carter (2007), usar o jogo da velha, que é consideravelmente mais simples, para o mesmo fim. O jogo da velha tem uma posição inicial – nove casas vazias dispostas da maneira como conhecemos, caso estejamos familiarizados com o jogo da velha. Essa posição nada mais é do que um arranjo inicial de tokens. Posso gerar outros arranjos, um de cada vez, obedecendo às regras do jogo da velha, as quais me dizem, por exemplo, que devo colocar um “O” ou um “X” em uma das casas a cada rodada. A cada movimento, gero um novo arranjo de tokens até o fim do jogo. A regra diz apenas o que se pode fazer a cada vez, colocar um “O” ou um “X” em uma das casas vazias, nada diz, porém, sobre o que fazer depois, nem se baseando em alguma informação anterior ao estado atual – exemplificando aquilo que Haugeland chama de caráter autocontido dos sistemas de manipulação de tokens.

Uma segunda característica de sistemas formais, que também pode ser reconhecida no jogo da velha, envolve o fato de que sistemas formais são digitais. O caráter digital diz respeito ao fato de que os estados do jogo são bem definidos – um não se confunde com o outro. A mudança de um estado para o outro não é contínua, mas se dá como em um salto: trata-se de uma mudança sem estados intermediários. Isso é possível porque, a exemplo do que acontece no jogo da velha, os estados não são mais do que arranjos de tokens; para estabelecer um novo arranjo de tokens, é preciso colocar um “O” ou um “X” em uma casa, não podendo, por exemplo, colocar um sinal entre duas casas. Basta que se coloque a marcação na casa, e isso valerá suficientemente para o jogo da velha. Nesse sentido, Haugeland esclarece que o caráter digital implica a possibilidade de identificar algo de maneira “absolutamente perfeita”: cada estado é identificado e discriminado dos outros de modo absolutamente perfeito porque basta, para isso, que condições gerais sejam cumpridas. Digamos que um círculo seja colocado em algum lugar dentro da casa que antes estava vazia. Os tokens são claramente determinados, o que permite que os estados não tenham nenhuma ambiguidade12 (Haugeland, 1996, p. 10).

Por fim, podemos considerar a terceira característica de sistemas formais, a de que são independentes do meio. Sistemas formais devem ser implementados em algum meio, e desde que este torne possível essa implementação, nada mais do meio é relevante. O jogo da velha pode ser jogado no papel, em um quadro negro, na areia etc. Nenhuma característica específica desses meios importa, desde que sejam estáveis o suficiente para manter as marcações do jogo (Haugeland, 1996, p. 11). Compare o jogo da velha com o jogo de bilhar; se se joga bilhar sobre uma superfície diferente, pode-se mesmo dizer que se trata de um outro jogo.

Com essas três características (um sistema de manipulação de tokens digital e independente do meio), elucidamos o que são os sistemas formais. Passemos, agora, à elucidação do que significa o aspecto automático na definição de Haugeland de computadores como “sistemas formais automáticos interpretados”; posteriormente, elucidaremos o caráter de interpretação.

De um ponto de vista intuitivo, um sistema formal automático é como “um conjunto de peças de xadrez que saltam pelo tabuleiro, obedecendo às regras, por si só, ou um lápis que escreve derivações lógicas formalmente corretas, sem ser guiado por qualquer lógico” (Haugeland, 1996, p. 11). Rigorosamente, trata-se de um aparelho físico ou uma máquina cuja configuração de partes ou estados pode ser considerada como o estado de algum sistema formal e que, em seu funcionamento normal, é capaz de manipular esses tokens de modo a formar novos estados de acordo com as regras desse sistema formal. Um computador é, assim, um tal aparelho físico ou máquina13.

Até aqui, caracterizamos os computadores apenas pelo seu aspecto sintático – máquinas que são capazes de manipular peças de acordo com regras que dizem respeito meramente ao arranjo dessas peças. É pelo caráter de interpretação que tais peças se tornam símbolos e que se pode falar, p.ex., da “hipótese do sistema de símbolos físicos” (Newell & Simon, 1976/1997, p. 87). Assim como uma determinada distribuição de peças no xadrez produzida por movimentos válidos a partir do estado inicial do tabuleiro não tem nenhum significado, os tokens e arranjos de um sistema formal por si só não querem dizer nada. A ideia aqui é que tokens de um computador precisam ser interpretados para que funcionem como símbolos (Haugeland, 1997, p. 16). Como veremos adiante, a abordagem computacionalista clássica (GOFAI) consiste ulteriormente numa versão específica a respeito do que deve ser interpretado – a saber, de que os passos intermediários de computação devem corresponder aproximadamente aos passos dados por humanos ao raciocinar ou pensar (Haugeland, 1997, p. 19). Antes de adentrarmos esse ponto, é importante clarificar o aspecto universal de computadores – isto é, seu caráter de máquinas de propósito geral com programa armazenado.

Turing caracteriza esse aspecto como a capacidade de computadores de “imitarem quaisquer máquinas de estado discreto” (Turing, 1950/1997, p. 38). A explicação de Haugeland é, mais uma vez, iluminadora: a ideia central é a de que você pode “usar um sistema formal automático para implementar outro sistema” (1997, p. 12). É isso que permite que não se tenha que construir novos computadores para cada tarefa nova, mas que seja possível simplesmente escrever novos programas – isto é, novas tabelas de instruções para que o computador leve a cabo uma operação de acordo com regras. Assim, um computador A implementa um computador B se alguma configuração de tokens e posições de A pode ser considerada como tokens ou posições de B e se, conforme A segue suas próprias regras, ele automaticamente manipula tokens de B de acordo com as regras de B. (cf. Haugeland, 1997, p. 12).

Para elucidar de modo mais próximo o que está envolvido na ideia de universalidade do computador, vale acompanhar a caracterização de Copeland a respeito de computadores e do que significa programar. “Um computador é um manipulador de símbolos: tudo o que faz é combinar símbolos de acordo com as instruções contidas em seu programa” (Copeland, 1993, p. 59). Ulteriormente, esses símbolos manipulados são realizados eletricamente e são universalmente referidos como bits – os famosos símbolos binários “0” e “1”. Isso significa dizer que toda informação contida num computador é, na sua forma mais básica, um enorme conjunto de 0s e 1s (Copeland, 2015, p. 60).

O computador organiza os bits em linhas e essas linhas são conhecidas como registros; desta forma, podemos falar que cada registro possui ou é uma linha de bits. Junto com Copeland (1993, p. 61), pensemos na representação feita no computador de letras do nosso alfabeto. “Quando eu digito a letra A maiúscula no teclado do meu computador, o circuito interno produz a linha de bits 1000001. Este é o código interno do meu computador para um A” (Copeland, 2015, p. 61). Isso acontece para cada letra do alfabeto; logo cada letra possui um registro próprio; e o que define qual linha de bits cada letra possui é apenas uma convenção. No exemplo acima, o sistema de convenção utilizado é conhecido como ASCII (American Standard Code for Information Interchange) – um dos mais utilizados na indústria dos computadores. Copeland (2015, p. 61) esclarece que “para armazenar uma representação ASCII da frase ‘O gato está no tapete.’, um computador precisaria de vinte e dois registros de sete bits”. Isto é, cada dígito, incluindo “espaço” e “ponto final”, possui uma linha de sete bits, como a letra A do nosso exemplo.

De acordo com Copeland, dois aspectos são necessários à linguagem binária para que ela permita que uma quantidade potencialmente infinita de representações seja gerada a partir do que são, fundamentalmente, dois tipos de tokens (0 e 1): a composicionalidade e a recursividade. Por ‘composicionalidade’, entende-se que representações são formadas unicamente do arranjo de tokens – isto é, que o significado de expressões complexas se reduz à contribuição dos significados de suas partes dotadas de significados e do modo como essas partes são arranjadas. Por ‘recursividade’, entende-se o caráter de certas regras conterem o mesmo símbolo dos dois lados – de tal modo que se formam representações cada vez mais complexas conforme se aplique de novo a mesma regra (v. Copeland, 1993, pp. 63-4).

Até aqui, acompanhamos a ideia geral do caráter binário dos computadores, o que está em consonância com a ideia, desenvolvida antes, de que computadores são sistemas formais. Para que se compreenda, contudo, o caráter universal dos computadores, é preciso ter em vista que uma linguagem de programação deve não apenas representar informações sobre o mundo, mas também exprimir o conjunto de instruções que serão utilizadas pelo computador para alterar seus estados. Essa é a ideia de que o programa, enquanto conjunto de instruções para alteração de estados discretos do computador, deve estar também armazenado. E assim como representações mais complexas serão formadas por operações mais simples, as operações mais complexas de um programa também o serão. Essas operações mais simples envolvem meramente fazer com que cada unidade binária esteja ligada ou desligada; em linguagens de programação, trabalha-se com algumas operações primitivas, cuja composição gerará operações mais complexas. Quais serão as operações primitivas depende tanto da linguagem de programação quanto do modo como o computador é construído para fazer operações binárias do ponto de vista do hardware. Essas diferenças, entretanto, não alteram o fato de que esses computadores são equivalentes se, no fim das contas, realizam as mesmas tarefas. Assim, escreve Copeland:

Colocando a ideia de equivalência de modo mais formal, duas listas de operações fundamentais são equivalentes quando toda computação que pode ser realizada usando operações apenas da primeira lista pode também ser realizada usando operações apenas da segunda lista e vice-e-versa (Copeland, 1993, p. 79).

Ao realizar alguma lista de operações fundamentais para manipular símbolos discretos, o computador é dito uma máquina universal. Essa ideia está em consonância com o que desenvolvemos a partir de Haugeland, para quem computadores são sistemas formais automáticos interpretados e seu caráter de universalidade se exprime pelo fato de que sistemas formais podem implementar outros sistemas formais. Para efeitos de contextualização das críticas de Dreyfus ao computacionalismo clássico, cumpre agora caracterizar a GOFAI.

A abordagem de GOFAI é, como aludimos acima, fruto de uma decisão sobre o que deve ser interpretado – a caracterização de computadores como “sistemas formais interpretados” faz menção apenas ao fato de que seus inputs e outputs são interpretados. O diferencial da GOFAI como primeiro paradigma da ciência cognitiva está no fato de que se interpretam os passos explícitos de pensamento e raciocínio desenvolvidos por pessoas para alcançar resultados em tarefas inteligentes como passos a serem codificados nos programas (Haugeland, 1997). Assim, os primeiros desenvolvedores da GOFAI extraíam regras heurísticas de protocolos em que sujeitos descreviam como concretamente resolviam problemas lógicos, como, por exemplo, como jogavam xadrez, e essas regras eram inseridas como regras de programas. A ideia subjacente era de que as regras heurísticas poderiam guiar o computador na navegação de um espaço de busca que, de outro modo, não seria gerenciável pela sua própria dimensão e complexidade14.

GOFAI surge assim como uma abordagem que enfatiza a “[...] construção de heurísticas eficientes e procedimentos de busca” (Haugeland, 1997, p.20). A dificuldade que sistemas assim desenhados enfrentavam era a inflexibilidade para lidar com variações nos problemas. Essa inflexibilidade foi interpretada pelos proponentes da GOFAI como um sinal de que esses sistemas eram ignorantes e que o que deveria ser feito era disponibilizar o conhecimento de senso comum – ou alguma parte de conhecimento especializado – ao computador. A esse momento do desenvolvimento da GOFAI pertence SAM, que analisaremos na seção seguinte, juntamente à crítica de Dreyfus.

Assim, vimos nessa primeira seção que computadores funcionam de modo atomístico, especialmente pelo fato de que funcionam a partir de símbolos discretos, cuja complexidade é meramente composicional, manipulados ulteriormente segundo operações primitivas. GOFAI, a abordagem da IA simbólica, estava baseada no sucesso de programas que incorporavam em suas instruções passos de raciocínios que fazemos explicitamente.

 

3. Dreyfus sobre SAM: critérios de relevância e conhecimento de senso comum

Embora, desde a primeira edição de seu livro, Dreyfus declare fazer uma crítica à IA a partir de Heidegger (Dreyfus, 1972/1979/1992, p. 272-4), a fenomenologia de Ser e Tempo comparece de modo mais implícito nas análises de programas das fases I e II da IA15.

Somente com a introdução revisada, de 1979, a fenomenologia de Ser e Tempo passa a cumprir um papel mais explícito: a rejeição dos diversos projetos de micromundos, fase III16 da cronologia de Dreyfus da IA, é, em parte, baseada na tese de que nosso senso de situação é holístico. Nesta seção, em vez de analisarmos o aspecto heideggeriano em cada uma das várias críticas de Dreyfus à IA, focaremos na crítica ao dispositivo script empregado pelo programa SAM.

SAM foi desenvolvido por Roger Schank com o objetivo de “[...] possibilitar que um computador ‘compreenda’ histórias simples” (Dreyfus, 1972/1979/1992, p. 40). Para tanto, SAM se valeria de um script, que “[...] codificaria os passos essenciais envolvidos em uma atividade social estereotípica” (Dreyfus, 1972/1979/1992, p. 40) ou, na formulação do próprio Schank, o script seria “[...] uma sequência predeterminada e estereotipada de ações que definem uma situação familiar” (Shank & Abelson, 1975, p. 151). O script é, portanto, a peça de conhecimento de que o programa lança mão para compreender uma narrativa simples que lhe é fornecida. Para averiguar se o programa entende a história, uma série de perguntas sobre a narrativa lhe é feita.

Em jogo, está a capacidade de entender dados implícitos em uma narrativa. Assim, se narro para alguém a estória de João, que entrou no restaurante, fez seu pedido e, ao sair, deixou uma boa gorjeta para a garçonete, e pergunto a essa pessoa se João comeu, ela dirá, em condições normais, que provavelmente sim, João comeu. A dificuldade para um computador à época residia no fato de essa informação não estar explícita na narrativa. Para que um computador fosse capaz de responder “sim” a essa pergunta e a perguntas similares, Schank desenvolveu os scripts; como o script de ir ao restaurante (Schank & Abelson, 1975, p. 152), o qual se trata de uma representação estereotipada dessa atividade social, formada pelas seguintes informações: funções (cliente, garçonete, caixa), ações (entrar no restaurante, receber o cardápio, fazer o pedido à garçonete, comer, sair do restaurante) e motivo (obter comida para diminuir a fome e aumentar o prazer). Esse roteiro estereotipado de uma situação cotidiana, sendo disponibilizado ao SAM, permite que o computador responda “sim” à pergunta anterior; dado que o motivo de ir ao restaurante é obter comida e uma das ações é comer, o computador pode, por assim dizer, inferir, a partir da informação estereotipada da nossa situação social de ir ao restaurante, a informação implícita apropriada e, assim, simular o entendimento da narrativa. Com scripts que codificam as mais variadas situações sociais, um computador poderia entender diferentes narrativas e aproximar-se da inteligência humana. Como explica Dreyfus: “Schank inventou uma linguagem de descrição de evento consistindo de onze atos primitivos [...] e a partir desses atos ele constrói cenários semelhantes a jogos [gamelike scenarios] que permitem que seu programa preencha lacunas e referências de pronomes em estórias” (Dreyfus, 1972/1979/1992, p. 40).

O problema que Dreyfus aponta no script não reside na mera possibilidade de jogar um jogo, digamos, de ir ao restaurante, segundo regras fixas e atos primitivos, de criar um sistema formal interpretado desse modo; o problema está, antes, na suposição de que nosso senso real de situação, seja agindo, seja entendendo narrativas sobre ações, possa se reduzir a essa capacidade de jogar um jogo formal (Dreyfus, 1972/1979/1992, p. 42). A criação de um jogo a partir de situações reais envolve, de acordo com Dreyfus, uma limitação das possibilidades reais de situar-se no mundo, possibilidades diversas daquelas que são representadas explicitamente no script. O veredicto fundamental de Dreyfus sobre SAM é de que o programa é sempre rígido e frágil em seus outputs brittle, na expressão precisa em inglês: seus acertos são rígidos e qualquer desvio nas perguntas o conduz a erros. Isso se contrastaria com a riqueza de possibilidades de ação embutida em nosso senso humano de situação. Vejamos como Dreyfus argumenta em favor disso.

Dado que SAM depende dessas representações estereotipadas de situações, o  programa não seria capaz de entender uma situação que se desviasse das representações dadas, que privilegiariam certas regras de conduta social. Dreyfus insiste que, ainda que se incluíssem essas alternativas anormais no script – que é a principio a estratégia de Schank –, sempre podem ser pensadas situações mais e mais anormais – exceções para as regras estereotipadas – que, por serem exceções, não podem ser entendidas pelo computador sem que sejam subsumidas a representações estereotipadas de situações. Ademais, mesmo se enriquecêssemos o programa com possíveis caminhos de ação que uma situação como “ir ao restaurante” pode seguir, poderíamos perguntar ao programa detalhes simples da situação, como, por exemplo, se o garçom veio à mesa andando de frente ou de costas. Nesse caso, se o programa respondesse “não sei”, o que invariavelmente faria se esses dados não estivessem presentes no script, seríamos levados a concluir, de acordo com Dreyfus, que não há propriamente compreensão da situação em questão. O ponto, como diz Dreyfus, não é que:

[...] haja coisas sutis que seres humanos podem fazer e reconhecer que estão além do nível baixo de compreensão dos programas atuais, mas que existem respostas centrais para o entendimento humano, que são supostas como certas, na falta das quais o computador não pode ser considerado como tendo qualquer entendimento (Dreyfus, 1972/1979/1992, p. 43).

Pode-se questionar aqui, contudo, o que leva Dreyfus a concluir que isso não é possível em geral. O que impediria que, com representações digitais, se pudesse dar conta de toda a riqueza de possibilidades humanas em uma situação? Colocado de outro modo: por que o proponente cognitivista não pode simplesmente objetar que as limitações apontadas por Dreyfus dizem respeito meramente à limitação de armazenamento de computadores da época? Por que essas limitações não poderiam ser transpostas mesmo se codificássemos um número suficientemente alto de exceções de modo a tornar a riqueza de ação de um computador semelhante à humana? Por que, enfim, para Dreyfus o senso humano de estar em uma situação não pode ser formalizado?

Essas questões nos remetem diretamente aos pontos centrais das acusações de Dreyfus contra a IA simbólica e, assim mostraremos na seção 3, à sua herança heideggeriana. Nessa seção, reconstruo as duas acusações. Em primeiro lugar, nosso senso de estar em  uma situação envolve um conhecimento de tipo pragmático – um know-how, um saber-fazer – que, envolvendo um senso holístico da situação, não se deixa reduzir a um conhecimento de tipo proposicional; para Dreyfus, a IA simbólica, ao operar com um modelo atomístico de representações discretas e regras sintáticas, como mostramos na seção 1, supõe exatamente esse tipo de acesso teórico que Heidegger mostrou não ser o mais básico. O ponto aqui reside no fato de que, enquanto no modelo computacional qualquer representação é exaurida pelo arranjo de suas partes, nosso senso de situação envolve um senso de totalidade que não se reduz às articulações entre suas partes e que prevalece propriamente nas possibilidades práticas. Assim, escreve Dreyfus: “Quando compreendemos ir a um restaurante, entendemos como lidar com [...] possibilidades anormais porque ir a um restaurante é parte de nossas atividades diárias de entrar em edifícios, conseguir coisas que queremos, interagir com pessoas, etc.” (Dreyfus, 1972/1979/1992, p. 42).

Associado ao fato de nosso conhecimento de senso comum ser de natureza prática está, em segundo lugar, o fato, ainda mais decisivo para o veredicto em relação à GOFAI, de que ele é sempre interessado17. Isso significa que critérios de relevância já estão sempre embutidos no modo como as coisas aparecem para nós, de maneira que uma abordagem como GOFAI que buscasse reconstruir nossos critérios de relevância a partir de representações meramente teóricas estaria fadada a fracassar de dois modos: (i) programas podem ser desenvolvidos com a projeção de critérios de seleção de programadores, isto é, no caso do SAM, a situação é simplificada segundo os critérios de relevância dos programadores. Isso permite que o programa funcione nesses limites. Como um jogo formal inspirado em nossa situação rica e complexa, ele carece justamente da flexibilidade que a riqueza e a complexidade de nosso senso de situação possuiriam; (ii) pode-se, em vez disso, buscar incluir toda a riqueza do conhecimento de senso comum para tentar dar conta dessa flexibilidade perdida e recai-se no problema da organização de incontáveis fatos que nosso conhecimento de senso comum é capaz de fazer representar.

Assim, Dreyfus aponta que SAM, ao tentar entender estórias reais, incorre na primeira possibilidade do dilema. Escreve Dreyfus:

Em um script, o que as ações primitivas e os fatos são é determinado de antemão, mas em uma narrativa o que conta como fato relevante depende da estória ela própria. Por exemplo, uma estória que descreve uma viagem de ônibus contém em seu script que o passageiro agradece ao motorista (um exemplo de Schank). Mas o fato de o passageiro agradecer ao motorista não seria importante numa estória em que o passageiro simplesmente tomou o ônibus como uma parte de uma jornada maior, enquanto esse fato poderia ser crucial se a história dissesse respeito a um misantropo que jamais agradecera ninguém antes [...] (Dreyfus, 1972/1979/1992, p. 43, grifo no original).

Programas como SAM deveriam seu relativo êxito, então, ao fato de os programadores predeterminarem o que é relevante em uma situação – daí seu caráter inflexível. Assim, Dreyfus pode, ao mesmo tempo, reconhecer e delimitar o sucesso desses programas, marcando sua diferença com relação ao senso de contexto humano, o que nos faculta imediatamente familiaridade com uma riqueza de situações possíveis.

Dado o contraste entre a cognição humana e o funcionamento computacional, a questão reconstrutiva que se pode colocar é: como é possível que nós tenhamos um senso de situação? Por que, enfim, nós não caímos no problema da organização de incontáveis fatos? A resposta de Dreyfus é a de que sempre estamos inseridos em uma situação de modo interessado, interesse este que é, ele próprio, dado de maneira não representacional. São elementos como “[...] desejos, emoções, a interpretação de uma pessoa do que significa ser humano” (Dreyfus, 1972/1979/1992, p. 45), bem como “[...] nossos humores cambiantes, nossas preocupações e projetos atuais, [...] e provavelmente também [...] nossas habilidades corporais de lida com objetos e pessoas” (Dreyfus, 1972/1979/1992, p. 53) que modulam nosso senso de situação e selecionam o modo como as coisas aparecem a nós.

Assim, para Dreyfus, a inteligência humana envolve uma profundidade (depth), uma espessura (thickness) que a impedem de ser reconstruída no modelo GOFAI. Nosso senso de situação, em sendo pragmático-holístico e interessado, é radicalmente distinto do modo como esse modelo propõe que nossa inteligência funcione, isto é, por representações atômicas e de modo desinteressado18. O fracasso em dar conta da flexibilidade da inteligência humana evidenciaria essa diferença. Passamos, na seção seguinte, à reconstrução das passagens da fenomenologia de Ser e Tempo que mostram como essas teses a respeito da inteligência humana são defendidas por Heidegger.

 

4. Mundanidade em Heidegger: holismo pragmático e relevância

Na seção anterior, expusemos como as acusações de Dreyfus de que a GOFAI não é capaz nem de formalizar nosso conhecimento de senso comum nem de reconstruir critérios de relevância são baseadas na tese de que nossa inteligência envolve um senso de situação, que é pragmático-holístico e interessado. Cumpre agora determinar: é possível encontrar na fenomenologia de Ser e Tempo essas teses sobre inteligência? Nossa resposta é sim19. Antes de reconstruirmos as passagens-chave de Ser e Tempo, é mister discutir essas duas teses a respeito de nosso senso de situação.

De início, é preciso reconhecer que a tese do holismo pragmático poderia ser defendida parcialmente. Poder-se-ia, por um lado, sustentar que nosso senso de situação é holístico, mas não pragmático, isto é, que nosso senso de situação assume a forma de algo como um sistema de crenças; por outro lado, poder-se-ia defender a tese de que o primado pragmático é não holístico, interpretando, por exemplo, a relação meio-fim como causal linear e, assim, ignorando a dimensão fenomenológica do mundo circundante. Ademais, a tese do caráter interessado de nosso acesso às coisas é suficientemente ampla para, como mostrou Christensen (2008, p. 3)20, poder ser considerada uma tese corrente no contexto de Ser e Tempo – o que impõe que seja delimitada de modo mais preciso para se falar de herança propriamente heideggeriana em Dreyfus. A seguir, pretendemos mostrar que a fenomenologia de Ser e Tempo endossa tanto a tese de um holismo pragmático quanto a tese do caráter interessado do senso de situação em sentido suficientemente específico.

Como é notório, é na caracterização do Dasein como ser no mundo que Heidegger propõe a primazia de contextos pragmáticos frente ao modo de ser do conhecer. Com efeito, enquanto a tradição privilegia o conhecer como possibilidade mais básica de acesso aos entes em geral, Ser e Tempo desenvolve uma descrição daqueles contextos pragmáticos sobre os quais a tradição sempre saltou por cima (Heidegger, 1953/2001, p. 65). Assim, escreve Heidegger: “[...]o conhecer mesmo se funda de antemão em um ser-já-junto-ao-mundo, enquanto o quê o ser do Dasein se constitui essencialmente.” (Heidegger, 1953/2001, p. 61). Esse mundo se revela na ocupação não enquanto um modo de ser especial e raro desse ente que nós somos, mas enquanto modo de ser com relação ao qual nenhuma transposição é necessária – “O Dasein cotidiano é sempre já nesse modo [...]” (Heidegger, 1953/2001, p.  67). caráter especificamente pragmático do mundo se confirma na descrição do modo mais básico de acesso às coisas enquanto “mundo circundante” (Umwelt). Não cabe aqui uma reconstrução exaustiva da descrição da lida ocupada; retomamos os pontos principais para a caracterização do holismo pragmático de Heidegger.

O passo fundamental de Heidegger é mostrar que os entes que não são dotados de caráter de Dasein, aqueles chamados em Ser e Tempo de entes intramundanos, não são  objetos nem entes simplesmente dados (Vorhandene) de qualquer tipo. Ao contrário, são o que chamamos rotineiramente de instrumentos. O caráter instrumental do instrumento, contudo, não se resume a uma mera vinculação isolada de um meio a um fim, mas envolve a tese de que o instrumento está inserido em uma multiplicidade de remissões (Verweisungen). Ao afirmar que “Um instrumento rigorosamente nunca ‘é’” (Heidegger, 1953/2001, p. 68, grifo do autor), Heidegger propõe que uma descrição do uso, se quer fazer jus a essa experiência, deve levar em conta a totalidade de remissões na qual o instrumento está inserido. Esse holismo se manifesta, assim, duplamente. Por um lado, o instrumento é apenas o seu lugar dentro desse todo instrumental, como escreve Heidegger: “O instrumento é, de acordo com sua instrumentalidade, sempre a partir do tomar parte [Zugehörigkeit] em relação a outro instrumento” (Heidegger, 1953/2001, p. 68, grifo no original). É essa determinação do instrumento como um lugar na rede de remissões que constitui mundo que permite que se fale nos casos de fracasso da lida ocupada, caracterizados no § 16 tanto pela ausência do instrumento quanto por seu não funcionamento (Heidegger, 1953/2001, p. 73-73). Por outro lado, esse todo instrumental é aquilo que vem ao encontro, isto é, é aquilo que é descoberto, antes da descoberta de qualquer ente particular – “Antes desse [instrumento singular] já está a cada vez descoberta uma totalidade instrumental” (Heidegger, 1953/2001, p.69, grifo no original).

Essa anterioridade do todo com relação às partes no que se refere à mundanidade do mundo ganha, por sua vez,no § 18 de Ser e Tempo, um duplo sentido, de acordo com os dois sentidos de “mundo” ali caracterizados: mundo como totalidade conjuntural (Bewandtnisganzheit) e como significância (Bedeutsamkeit). Enquanto totalidade conjuntural, o mundo é interpretado como uma totalidade instrumental que sempre já deve ter sido descoberta para que entes com o caráter de manual venham ao encontro do Dasein – trata-se aqui, fundamentalmente, da mesma tese exposta no § 15 (Heidegger, 1953/2001, p. 69). Quando introduz a noção de significância, Heidegger leva em consideração a dimensão propriamente existencial do mundo, isto é, o fato de o mundo não consistir apenas de totalidades instrumentais, mas depender fundamentalmente do modo como o Dasein sempre compreendeu a sua própria existência. É apenas a partir desse “graças-a-quê” (Worumwillen), que entes intramundanos podem aparecer ao Dasein em qualquer modalidade de ser desse ente. Dito de outro modo: se a noção de conjuntura aponta para o fato de que uma totalidade conjuntural deve ter sido descoberta para que um ente em particular apareça como manual, a noção de significância aponta para uma dimensão ainda mais ampla da totalidade que é mundo; é somente a partir da compreensão da minha existência que os entes intramundanos se revelam segundo sua significância, ou seja, segundo sua relevância. Abaixo, abordaremos esse aspecto ulterior de mundo como significância, quando trabalharmos com a noção de relevância. Por ora, cumpre reconstruir o aspecto pragmático do holismo pragmático de Ser e Tempo.

Até aqui temos claro o caráter holístico da descrição que Ser e Tempo fornece do mundo circundante. Mas o que torna essa posição um holismo pragmático? Como dissemos acima, o modo de conhecer é um modo fundado de ser no mundo. Isso significa não apenas que cumpre descrever, como acima indicamos, um modo de ser sempre negligenciado pela tradição, mas também que o modo de ser do conhecer emerge de uma ruptura e modalização específica do modo mais básico em que existimos. Em suma: é parte de Ser e Tempo o projeto de uma “gênese ontológica” do teórico (Reis, 1999, p. 268-269). Assim, não se trata somente de descrever o modo pragmático primário de ser no mundo como a lida ocupada absorvida no mundo, mas de mostrar como o conhecer, o modo de ser teórico, emerge de uma ruptura gradual dessa lida absorvida no mundo. Em última instância, o próprio conhecer é tratado como uma modalidade existencial da ocupação, ainda que dotada de relativa autonomia (Heidegger, 1953/2001, p. 361). Não é outro o sentido da “concepção existencial de ciência” proposta por Heidegger (Heidegger, 1953/2001, p. 357).

O aspecto pragmático do holismo de Ser e Tempo, todavia, não se resume à concepção existencial de ciência. Antes, é decisivo, sobretudo para a leitura de Dreyfus, que Heidegger mostre que há, no âmbito da lida absorvida no mundo, um acesso próprio aos entes que se perde nas rupturas que fazem engendrar, em última instância, a postura meramente teórica. Em outras palavras, a lida ocupada e absorvida no mundo, a lida com os entes que não sofreu ainda nenhuma ruptura em seu fluxo de afazeres, é completamente dominada pelo sentido de ser da manualidade (Zuhandenheit). É somente assim que um instrumento pode vir ao encontro do Dasein. Escreve Heidegger: “O martelar mesmo descobre o manuseio específico do martelo. O modo de ser do instrumento, no qual ele se revela nele mesmo, chamamos de manualidade” (Heidegger, 1953/2001, p. 69, grifo do autor). A noção de “manualidade” (Zuhandenheit) responde por um sentido de ser que preside nossos modos de ser da lida ocupada e absorvida no mundo. O contraste aí é com o sentido de ser como ser simplesmente dado (Vorhandenheit), aquele sentido de ser que torna possível o aparecimento dos entes no modo de ser teórico. Como é notório, a passagem da lida absorvida no mundo para o meramente teórico não se dá em um salto único, mas perpassa modos de ser intermediários21, onde os entes aparecem como manuais que possuem certo caráter simplesmente dado (Heidegger, 1953/2001, p. 74). É a perturbação das remissões da lida absorvida que torna possível a tematização e apreensão dos entes e, em última instância, o modo de ser meramente teórico. O importante aqui é atentar para o fato de que o contraste entre sentidos de ser, longe de ser meramente conceitual, se reflete em uma relação fática entre velamento e desvelamento claramente caracterizada em Ser e Tempo: “Quanto menos a coisa instrumento é meramente vista, tanto mais apropriadamente ela é utilizada, tanto mais originária se torna a relação com ela, tanto mais de modo desentranhado vem ao encontro como aquilo que é como instrumento” (Heidegger, 1953/2001, p. 69). Cada passo dado na direção da tematização do ente que na lida ocupada e absorvida aparecera de modo implícito implica o velamento progressivo do ente manual enquanto tal e do mundo circundante originário. A postura meramente teórica enquanto modo de ser do Dasein encobre o aparecimento de entes dotados do caráter de manual.

Assim, temos claro que o holismo pragmático, tese necessária para Dreyfus avançar sua crítica ao SAM, é não apenas compatível com Ser e Tempo, mas encontra-se ali defendido através de uma descrição fenomenológica da lida ocupada cotidiana e em versões especificamente fortes. Cumpre agora passar à segunda tese, qual seja, a de que nosso acesso às coisas seja fundamentalmente interessado. É possível encontrar em Ser e Tempo uma versão suficientemente específica dessa tese?

De início, é necessário reconhecer que o primeiro desafio exegético nesse ponto está no próprio conceito de “interesse”. Se Dreyfus denuncia a IA simbólica pela adesão implícita à tese de que nosso acesso básico ao mundo é na qualidade de sujeitos desinteressados de conhecimento (quanto a isso, ver a discussão do preconceito ontológico em Dreyfus, 1972/1979/1992, p. 206-224), uma primeira dificuldade está no fato textual de que Heidegger não emprega o conceito de interesse senão casualmente – como, por exemplo, ao reconhecer ao mesmo tempo o mérito e o caráter ontologicamente obscuro da tematização de Scheler das relações de fundação entre atos representacionais e atos de interesse (interessenehmende Akte) (Heidegger, 1953/2001, p. 139). Assim, se a noção de interesse deve poder cumprir algum papel em uma interpretação de Ser e Tempo, isso não pode ocorrer sem antes haver uma discussão do que essa noção sugere. Uma noção de interesse que envolva algo como uma vinculação intencional a um objeto representado ou a condições de satisfação (como a noção de desejo em Searle) invariavelmente terá de ser alvo da mesma confrontação que Heidegger realiza com noções como querer (Wollen), desejo (Wunsch), inclinação (Hang) e ímpeto (Drang), no célebre § 41 de Ser e Tempo. Heidegger nos mostra aí o caráter fundado de cada um desses fenômenos respectivamente ao cuidado (Sorge): embora sejam possibilidades existenciárias possíveis do Dasein no mundo, cada fenômeno desses é uma modificação existencial da estrutura ontológica fundamental do cuidado. A lição é que cada fenômeno desses, embora se circunscreva, a princípio, a uma possibilidade de ser e se vincule a regiões ônticas particulares, supõe uma abertura prévia do mundo, ela própria irredutível a qualquer desses fenômenos. Essa abertura prévia do mundo é o próprio cuidado. Assim, se não é possível atribuir um caráter interessado ao Dasein, caso entendamos por “interesse” qualquer fenômeno próximo dos acima citados, como se deve interpretar então o caráter interessado de nosso acesso às coisas em Ser e Tempo?

Acreditamos que a chave aqui é a própria noção de cuidado. Na definição do próprio Heidegger, o sentido do cuidado, como totalidade formalmente existencial do Dasein, é já-sempre-a-frente-de-si-no-mundo-enquanto-ser-junto (aos entes intramundanos). Três aspectos devem ser salientados no que se refere a essa estrutura total do Dasein: em primeiro lugar, o cuidado (Sorge) está “já sempre” em jogo em qualquer possibilidade de ser, o que é indicado pela própria escolha dos termos alemães por Heidegger para ocupação (Besorgen) e preocupação (Fürsorge); em segundo lugar, nunca estamos meramente lançados em uma possibilidade de ser, mas já sempre somos possibilidade de ser para possibilidade de ser; em outras palavras, estamos sempre projetando uma possibilidade de ser graças à qual a possibilidade de ser em que estamos lançados ganha sentido; e, em terceiro lugar e mais relevantemente, a relação de cuidado não envolve um voltar-se para um si mesmo separado do mundo, mas, antes, o adiantar-se de si mesmo já envolve o mundo no qual se está lançado.

Dessa sumarização da estrutura formal do cuidado, depreende-se que no centro da Analítica do Dasein está a tese de que somos entes que se caracterizam pelo interesse no próprio ser – somos afinal o ente para quem o ser está em jogo –, interesse este que, ademais, modula o próprio modo de aparecimento dos entes intramundanos nos mundos em que estamos lançados. Para Ser e Tempo e também para Dreyfus, o mais importante é esse segundo aspecto, o caráter ontológico dessa tese. O conceito chave para entender essa modulação de interesse no modo como as coisas aparecem a nós é “relevância” – o termo é empregado fartamente por Dreyfus (Dreyfus, 1972/1979/1992, p. 257-265) e encontra duas contrapartes inequívocas em Ser e Tempo. Nas duas, encontra-se a lição principal de Ser e Tempo com relação à noção de relevância: a de que não se pode, do ponto de vista de uma fenomenologia, separar relevância dos entes eles próprios relevantes.

A primeira contraparte da noção de relevância em Ser e Tempo é o conceito de significância (Bedeutsamkeit), que perfaz o segundo conceito de mundo. Note-se que o termo é derivado de significativo (bedeutsam). A tese não diz respeito a significados (Bedeutungen), que poderiam ser pensados como restritos à linguagem, mas ao caráter significativo dos entes eles próprios. Como afirmamos acima, o que torna os entes significativos é a própria ancoragem da conjuntura em um graças-a-quê. Isso não significa uma projeção subjetiva de relevância sobre entes já revelados, mas, ao contrário, que os entes enquanto tais já sempre se mostraram segundo a relevância de um graças-a-quê. Não é outra a razão para Heidegger caracterizar o mundo como significância – a relevância é o próprio mundo, os próprios entes intramundanos já se revelam segundo uma significância que é o próprio mundo.

A segunda contraparte do conceito de relevância está na caracterização da disposição de humor. Como é notório, a disposição de humor é um modo básico de descerramento dos entes em Ser e Tempo. Escreve Heidegger: “Na disposição reside de modo existencial uma dependência descerradora com relação ao mundo, a partir da qual o que lhe diz respeito [Angehendes] pode vir ao encontro” (Heidegger, 1953/2001, p. 137-8). O ponto é claro: o que vem ao encontro do Dasein é o que diz respeito (das Angehende) a cada possibilidade do Dasein. Assim, diferentemente de autores que sempre distinguiram a assim chamada esfera de sentimentos da esfera de representações, Heidegger propõe que os entes intramundanos já vêm ao encontro no descerramento como entes que nos dizem respeito, como entes significativos, relevantes. O ponto da não possibilidade de separação entre relevância e aquilo que é relevante é, assim, defendido também aqui.

Esse ponto pode ser mais bem apreciado quando se considera a família de teses contra a qual ele se volta. Separar relevância dos entes relevantes significou, no mais das vezes, a adesão a alguma versão da dicotomia fato e valor22. De modo geral, aceita-se uma descrição de acordo com a qual as coisas aparecem de modo neutro ou desinteressado e, sobre essa camada de dados (ou “fatos”), projetam-se valores, graças aos quais as coisas se tornam entidades relevantes a nós. Contra isso que, por exemplo, em Husserl pode ser denominado de ontologia de camadas, Heidegger propõe que essa separação já traz consigo o compromisso com o sentido de ser como ser simplesmente dado e com modos teóricos de acesso ao real. Assim, escreve Heidegger: “O acréscimo de predicados de valor não consegue fornecer informação sobre o ser dos bens, mas sim pressupõe para esses entes apenas de novo o modo de ser do puro caráter de ser simplesmente dado. Valores são determinações simplesmente dadas de uma coisa” (Heidegger, 1953/2001, p. 99).

Em outras palavras, o emprego do conceito de valor para captar o específico da relevância abre espaço para uma ontologia de entes dotados de propriedades tanto naturais, factuais, quanto culturais e valorativas. O conceito de valor, assim, tenta captar aquilo que, no estrito ponto de vista do ente simplesmente dado natural e factual, é inacessível, através da ideia de uma projeção subjetiva de valores. Um exemplo adicional é o próprio fenômeno do sinal – ele também pode ser entendido como um ente simplesmente dado dotado da função ou de um valor de assinalamento (Heidegger, 1953/2001, p. 80). A descrição fenomenológica do ente intramundano, contudo, nos mostra que o ente que nos aparece de início não é o ente simplesmente dado, substrato de propriedades naturais e culturais, factuais e valorativas, e, enfim, isolado do mundo, mas sim o ente manual, inseparável do mundo circundante. O conceito de valor – e, ademais, semelhantes, como os conceitos de função e de critérios de relevância23 – já traz consigo invariavelmente o problema que ele pretende resolver.

Em passagens como essas, torna-se patente que a tese de Dreyfus de que nosso acesso às coisas é sempre interessado comparece em Heidegger em versão ontológica suficientemente específica. É inevitável concluir, assim, que Heidegger concordaria com a tese de Dreyfus, formulada, como Dreyfus amiúde o faz, em termos prosaicos, de que “Falar de valores é já entregar o jogo” (Dreyfus, 1972/1979/1992, p. 274)

 

5. Considerações Finais

Propusemo-nos, neste artigo, mostrar que a crítica de Dreyfus à IA simbólica se fundamenta em teses que podem ser encontradas na fenomenologia de Heidegger. Para tanto, contextualizamos, na primeira seção, o trabalho crítico de Dreyfus no âmbito da IA simbólica: mostramos que a crítica de Dreyfus consistiu em apontar limitações e fracassos nos  programas desenvolvidos no âmbito da IA simbólica, na medida em que esta é entendida i.a. como uma abordagem atomística. Na segunda seção, mostramos como a crítica de Dreyfus ao programa SAM, de Schank, consistiu em apontar sua inflexibilidade, que exemplifica, para Dreyfus, a diferença entre nosso senso de situação pragmático-holístico e interessado e a abordagem computacional simbólica, a qual simula uma inteligência teórico-atomística e desinteressada; por fim, mostramos de que modo as teses decisivas para a crítica de Dreyfus comparecem na fenomenologia de Heidegger.

Nosso resultado é de que não há, no que se refere a essas duas teses, uma distorção da fenomenologia de Heidegger. Evidentemente, tal resultado não exclui a possibilidade de a leitura de Dreyfus ser considerada seletiva. Tampouco foi nossa pretensão sugerir que trabalhos mais recentes de Dreyfus, nos quais continua alegando um alinhamento a Heidegger ao mesmo tempo em que faz propostas positivas para a ciência cognitiva, possam ser considerados genuinamente heideggerianos. Se, por exemplo, Dreyfus afirma que: “Eu concordo que é hora de uma explicação positiva de como a IA heideggeriana e uma neurociência heideggeriana subjacente poderiam resolver o frame problem” (Dreyfus, 2007/2014, p. 258), entendemos que é justamente uma questão para pesquisa futura determinar como tais projetos plausivelmente não heideggerianos se relacionam com a herança genuinamente heideggeriana de Dreyfus. Tal questão, contudo, está para além dos limites deste trabalho.

 

 

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1 O presente trabalho foi realizado no âmbito do projeto de pesquisa PIBIC "Heidegger e a Inteligência Artificial: uma revisão do trabalho de H.Dreyfus", do qual o autor principal foi o orientador e os dois co-autores foram, em diferentes momentos, tanto bolsista, quanto voluntário. Os autores agradecem o fomento da CAPES-PIBIC-UFRJ.
2 Doutor em Filosofia pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor de Filosofia Adjunto do Departamento de Psicologia Geral e Experimental do Instituto de Psicologia da UFRJ. Professor Permanente no Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFRJ. E-mail: paulo.taddei@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5895-7604
3 Bacharel e Licenciado em Psicologia,IP-UFRJ.
4 Bacharel em Psicologia, IP-UFRJ.
5 Citado da tradução, aqui levemente modificada, de Drucker (2001, p. 74) do depoimento original em inglês de Christensen (1998, p. 84),que afirma que Habermas teria proferido essa sentença em 1989 em um seminário sobre Heidegger em Frankfurt, oferecido em conjunto com Apel e o próprio Dreyfus (Christensen, 1998, p. 86, n. 36).
6 Além de Heidegger e Merleau-Ponty, Dreyfus também aplica o trabalho do segundo Wittgenstein em suas críticas à IA simbólica.
7 A essas duas críticas últimas, pode-se acrescentaro trabalho de Heinämaa(1999) que, ao criticar a leitura que Dreyfus faz de Merleau-Ponty, aponta erros similares aos encontrados por Doyon e Zahavi na interpretação que Dreyfus faz de Heidegger.
8 Vale destacar que está fora do escopo desse trabalho determinar avalidade das acusações de Dreyfus à IA simbólica – ocupamo-nos apenas de estabelecer que essas acusações específicas podem ser consideradas heideggerianas. Tampouco nos comprometemos aqui com a tese, diga-se depassagem, dificilmente defensável, de um caráter heideggeriano de contribuições positivas de Dreyfus às fases posteriores da ciência cognitiva. Cf. abaixo n. 11 e Considerações finais.
9 Jáem "Alchemyand Artificial Intelligence", Dreyfus apresenta a crítica aos programas de primeira geração da inteligência artificial tal como o fará no primeiro capítulo de seu livro; nesse artigo, contudo, Dreyfus atribui a interpretação otimista ao “suposto associacionista” (Dreyfus, 1965, p. 48ss.), o que não faz no livro, onde apresenta a listagem acima mencionada. O abandono da formulação do artigo pode ser explicado pelo reconhecimento de que mais do que uma perspectiva associacionista, a posição computacionalista envolve, antes, uma perspectiva intelectualista. Para este trabalho,pode-se ignorar essa diferença de análise, uma vez que o relevante é a oposição entre uma posição atomista (computacional), seja ela associacionista, seja intelectualista, e uma posição holista a respeitoda inteligência humana (extraída de insightsde autores como Merleau-Ponty, o segundo Wittgenstein e, como mostraremos aqui, Heidegger).
10 Para uma reconstrução e avaliação contemporânea dos pressupostos criticados por Dreyfus em seu livro, ver Käufer e Chemero (2015, p.168-192).
11 Não estará em tela, portanto, o posicionamento de Dreyfus frente a modelos mais recentes de ciência cognitiva: enquanto aposição de Dreyfus com relação a propostas conexionistas é ambivalente, envolvendo tanto retomadas das críticas à GOFAI, quanto engajamento em propostas positivas (ver Dreyfus, 2004/2014, p. 231-248), éinegável sua influência – ou de autores que ele privilegia, como Merleau-Ponty, o segundo Wittgenstein e Heidegger – em parte de modelos da terceira faseda ciência cognitiva – 4E, sistemas dinâmicos etc. Dado nosso foco no aspecto crítico do trabalho de Dreyfus, entendemos que é suficiente uma apresentação de GOFAI para efeitos de clarificação da noção da compreensão representacional-computacional da mente.
12 Ao colocar o aspecto digital dos computadores em termos de perfectibilidade de identificação, Haugeland exprime a mesma tese de Turing, de acordo com a qual, embora “[...] tudo [nomundo] se mova de forma contínua [...]” Turing (1950, p.439), existem algumas máquinas que podem fazer com que movimentos contínuos pareçam saltos entre estados discretos. O exemplo apresentado por Turing para ilustrar essa transformação é o do interruptor: utilizamos o interruptor paraligar e desligar a luz, como se fossem estados totalmente isolados(discretos), embora se trate de um movimento contínuo.
13 Copeland(2017) chama atenção para o fato de que o uso dotermo “computador” fora inicialmente aplicado a pessoas que realizam cálculos de tipo computacional, a saber, que empregam “métodosefetivos” (v. Copeland, 2017, seção 1.3). Esse é um uso que aparece ainda em Turing (1950). Claro está que na definição proposta por Haugeland não se pretende incluir computadores humanos, mas apenas dispositivos eletrônicos que usualmente chamamos de “computadores”.
14 Mais audaciosamente, os desenvolvedores da GOFAI conjecturaram que os seres humanos obedeceriam a regras heurísticas não apenas conscientemente, mas também inconscientemente. Contra essa versão específica inicial da hipótese computacional-representacional da mente, Dreyfus fornece argumentos, já no artigo Alchemy and ArtificialIntelligence e no primeiro capítulo de seu livro, no sentido de favorecer a hipótesede um processamento global de informação (Dreyfus, 1972/1978/1992, p.101-29).
15 Na fase I, objeto do primeiro capítulo de seu livro, suas críticas se apoiam, antes, em teses como o caráter contextual do uso etradução da linguagem ordinária, bem como do caráter sub ou indeterminado designificados dessa linguagem – teses explicitamente esposadaspelosegundo Wittgenstein – e em teses como a da auto-organização epercepção e do papel do insight na resolução de problemas –teses gestaltistas, presumidamente assimiladas através de Merleau-Ponty. Com efeito, em Dreyfus (1965), cuja análise de sucesso/fracasso dos programas corresponde àquela feita no primeiro capítulo do livro, Heidegger nem mesmo consta nabibliografia; na primeira edição do livro, a presençado Heidegger tardio, responsávelpelas análises sobre a técnica e seu destino vinculado à metafísica ocidental, é comparável àpresença da fenomenologia de Ser e Tempo,no emprego específico que Dreyfus faz dela, a saber, o demostrar que adicotomia fato/valor não faz jus à nossa experiência. Apesar da presença explícita modesta da fenomenologia hermenêutica na primeira edição da obra, endossamos a tese de que indiretamente a questão da relevância – e, portanto, a principal lição extraída da fenomenologiade Ser e Tempo – está presente em todas as críticas supracitadas. Uma argumentação em favor dessa tese, contudo, extrapola os limites deste trabalho, no qual nos restringiremos à reconstrução decríticas direcionadas por Dreyfus ao programa posterior SAM.
16 As quatro fases discriminadas por Dreyfus recaem no momento GOFAI da Inteligência Artificial tal como Haugeland o conceituou. Adivisão cronológica de Dreyfus é peculiar ao seu trabalhoe não implica, no que concerne a este artigo, nenhum compromisso relevante. Em particular, afase IV (de 1972 a 1978), em que se insere o desenvolvimento doprograma SAM, é caracterizada pela estratégia de disponibilizar conhecimento humano – ou alguma parte dele – para o programa, projeto conhecido como “engenharia de conhecimento” (knowledgeengineering) (Dreyfus, 1972/1979/1992, p. 27). Datam desse momento a Linguagem de Representação do Conhecimeto (KRL) e odesenvolvimento de sistemas especialistas, como DENDRAL e MYCIN.
17 Concordamos aqui com a análise que Andler faz de Dreyfus, para quem a impossibilidade de se formalizar nosso senso de situação se deve ao fato de ela ser holística e interessada (Andler, 2000, p. 143). Não adotamos, contudo, a distinção elaborada por Andler entre contexto, situação e background–como o próprio Andler reconhece, Dreyfus utiliza osdois primeiros termos de maneira mais ou menos convergente, enquanto o último diz respeito à dimensão de práticas compartilhadas e é desenvolvido em momento posterior à primeira edição de What Computers(Still) Can’t Do.
18 Um terceiro elemento poderia ser acrescentado, a saber, o aspecto socialde nosso senso de situação, abreviado notoriamente no termo background. Embora haurido, principalmente, de certa interpretação da questão de seguir regras de Investigações Filosóficas de Wittgenstein (ver Dreyfus 1972/1979/1992, p. 56-7), essa dimensão de nosso senso de contexto pode ser também correlacionada à fenomenologia hermenêutica, mais exatamente à descrição do fenômeno do impessoal (“Das Man”). Questões relativas àcorrelação entre Wittgenstein, Dreyfus eHeidegger, no que se refere a essa dimensão social, estão, no entanto, fora do âmbito deste artigo.
19 Pode-se questionar em que medida podem ser atribuídas a Ser e Tempo teses sobre inteligência humana ou inteligência em geral. Em outras palavras, mesmo que aceitemos que as duas teses sobre nosso senso de situação fazem parte da fenomenologia de Ser e Tempo, é justificado caracterizá-las como teses sobre inteligência humana ou inteligência em geral? É certo que Ser e Tempo, enquanto tratado de ontologia fundamental, não defende nenhuma tese de inteligência ao modo como, por exemplo, os psicólogos da Gestalt-theorie defenderam quanto à resolução de problemas, para mencionar um exemplo relevante para o trabalho de Dreyfus (Köhler, 1926/1978). Certamente, a tese de que todo comportamento depende de uma compreensão de ser, decisiva para o projeto ontológico, não está no centro dessa discussão. Sendo assim, não depõe, afinal, essa diferença entre tratado de ontologia e psicologia da inteligência em favor da avaliação de que Dreyfus faz uma leitura distorcida de Heidegger? Entendemos que isso não é o caso pelas seguintes razões: embora não se trate de um tratado de inteligência, decorrem das determinações fundamentais do Dasein estabelecidas por Heidegger teses implícitas sobre inteligência humana, mais especificamente sobre nosso senso de situação. Se Heidegger não trabalha com conceitos como o de inteligência ou de entendimento, que facilmente podem ser contrapostos ao de intuição ou de sensibilidade, isso parece falar muito mais em favor de que tais conceitos são facilmente assimiláveis a uma ontologia dualista cartesiana. Ora, um dos pontos centrais e mais influentes de Dreyfus (Wheeler, 2005) foi o de reconhecer, no modelo da IA simbólica, não um erro fortuito e casual, mas justamente a repetição de um modelo cartesiano de racionalidade e inteligência. Uma vez que considera o compreender um dos existenciais que estabelece a abertura, e uma vez que esse compreender está modulado com um saber-fazer pragmático já sempre atravessado por critérios de relevância, não há dúvida aqui de que (i) o fenômeno apontado por Heidegger é manifestação do que se entende,grosso modo, por inteligência; (ii) uma descrição como a que faz Ser e Tempo coloca em xeque determinações tradicionais específicas de como a inteligência funciona. Não se pode deixar de registrar que, curiosamente, o caso é semelhante àquele do início da IA simbólica: enquanto naquele momento trabalhou-se com um conceito implícito de inteligência, um conceito que fora criticado por Dreyfus, dentre outros, por apresentar a inteligência como sendo formal, não-corpóreo e desinteressado, Dreyfus ele próprio encontra implicitamente em Ser e Tempo, embora não apenas aí, um trabalho que permite pensar a racionalidade da qual o Dasein participa como sendo contextual, corpórea e interessada. Não por outra razão, o subtítulo da obra de Dreyfus que critica à IA simbólica é “Crítica da Razão Artificial”.
20 Christensen escreve: “Ademais, Nietzsche, muitos Lebensphilosophen [filósofos da vida], e neokantianos teriam concordado com o pragmatismo americano de que o conteúdo de uma crença é dado pela diferença que ele faz numa vida essencialmente prática e intersubjetiva, que muito da vida cotidiana é hábito, rotina e saber- fazer [...]” (2008, p. 3). Com efeito, o autor mostra em sua introdução como diversas teses atribuídas a Heidegger pela chamada leitura analítica eram, de fato, comuns ao contexto de Heidegger (Christensen, 2008, p. 1-12). No que nos concerne, mostraremos abaixo como em sua rejeição da dicotomia fato-valor Heidegger esposa uma tese específica a respeito do caráter interessado da compreensão que se mantém em Dreyfus.
21 Para além do binômio teoria e práxis, Dreyfus, em seu comentário a Ser e Tempo, encontra quatro possibilidades de ser claramente caracterizadas em Ser e Tempo: (i) a lida ocupada plenamente absorvida pelo mundo; (ii) a lida ocupada que se confronta com a perturbação das remissões utensiliares e busca retomar à plena absorção no mundo; (iii) a confrontação científica que tematiza e objetifica os entes, reconduzindo-os a contextos teóricos especificamente científicos; (iv) a mera contemplação ou teoria, que considera os entes fora de contexto como meros suportes de propriedades isolados, a possibilidade que sustentou a ontologia tradicional. (Dreyfus, 1991, p. 84). Embora se possa dizer que as possibilidades (i) e (ii) são pragmáticas e (iii) e (iv) são teóricas, há uma importante complexidade aí, não apenas porque a possibilidade (ii) envolve já o aparecimento de um ente com caráter simplesmente dado, mas também porque a concepção existencial de ciência implica que a possibilidade (iii) não é a possibilidade meramente teórica, mas envolve uma lida com os entes intramundanos. É nesse sentido que Heidegger aponta para a dificuldade de estabelecer por onde corre a fronteira ontológica entre comportamento teórico e ateórico (Heidegger, 1953/2001, p. 358). Para uma argumentação contrária à leitura de que, na concepção existencial de ciência de Ser e Tempo, haja uma absorção do teórico no prático, ver Taddei (2019).
22 A posição de Heidegger com relação ao tema do valor pode ser lida a partir do contraponto à filosofia da Escola neokantiana de Baden (conforme, por exemplo, Wu, 2010). Sem pretender negar qualquer consequência que a discussão levada aqui a cabo possa ter para a leitura da confrontação Heidegger-Escola de Baden, entendemos que a referência fundamental para compreender a posição de Heidegger aqui não é de modo algum a filosofia neokantiana, mas sim a fenomenologia de Husserl, sobretudo, no seu desenvolvimento explícito de uma ontologia de camadas em Ideias II (Husserl, 1952/1969, p. 214). O ponto aqui é o papel que o conceito de valor cumpre no plano de uma descrição fenomenológica: em Husserl, vemos determinações axiológicas estarem sustentadas por uma camada “mera natureza”, mesmo num texto como Ideais II, que representa uma ruptura com diversos pressupostos questionáveis da tradição, como o próprio primado do teórico. Com relação a essa discussão em torno da descrição fenomenológica mais adequada, a adução de posições epistemológicas neokantianas a respeito do lugar das ciências do espírito frente a ciências da natureza, conquanto digam respeito ulteriormente à questão do conceito de valor, perigaria complexificar excessivamente o problema em tela, dados os múltiplos sentidos e usos do termo valor nessa tradição.
23 A expressão “critérios de relevância” sofre do mesmo problema que a expressão valor: sugere a possibilidade de se pensar relevância em critérios independentes dos entes que nos aparecem como relevantes. O ponto central aqui é que a relevância, ou os critérios de relevância, são os próprios entes no mundo tal como nos aparecem. Qualquer separação já supõe a transformação do ente que já sempre nos apareceu em ente simplesmente dado.

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