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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.22 no.2 São Paulo jul./dez. 2020

 

DOSSIÊ

 

O corpo como ensaio para o amor e para a morte: narcisismo e desamparo em tempos de pandemia

 

The body as an essay for love and death: narcissism and helplessness in pandemic times

 

 

Josiane C. Bocchi

Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Ciências de Bauru. Contato: josiane.bocchi@unesp.br

 

 


RESUMO

Este trabalho realiza aproximações entre os conceitos freudianos de narcisismo e de desamparo (Hilflosigkeit). O objetivo é refletir sobre o modo como o isolamento social e a pandemia de 2020 afetam nossas relações com o corpo, com as experiências de perda e de angústia diante do risco de adoecimento e morte. Discute-se que evitar o encontro com o desamparo fomenta modalidades de subjetivação por sujeição e por fixação melancólica, bem como atitudes de negação em relação à experiência da realidade. O excesso de demandas de amor e amparo reduz o sofrimento ao anseio por reasseguramento narcísico, o que limita a busca de transformação da experiência do desamparo e do próprio ato de sofrer. A partir do aporte teórico e clínico psicanalíticos, discutimos modalidades de reação social e subjetiva na atual configuração sociopolítica da pandemia. Concluímos que existe um egoísmo a ser abandonado, sob a pena de adoecermos muito mais. Este parece ser o caso da fixação aos sistemas fechados e totais.

Palavras-chave: Pandemia; Narcisismo; Psicanálise; Desamparo; Freud.


ABSTRACT

This paper approaches the Freudian concepts of narcissism and psychoanalysis (Hilflosigkeit). The objective is to reflect on how social isolation and the 2020 pandemic affect our relationship with the body, as well as experiences of loss and anguish related to the risk of illness and death. It is argued that avoiding encounters with helplessness promotes subjectivity modalities throughout subjection and melancholic fixation, as well as attitudes of denial related to the experience of reality. The excessive demand for love and support reduces suffering to the desire for narcissistic reassurance, which limits the search for transformation over the experience of helplessness and the very act of suffering itself. Based on theoretical and clinical psychoanalytic contribution, we discuss ways of social and subjective reaction in the socio-political configuration of the current pandemic context. We conclude that there is a selfishness to be abandoned, under the penalty of us becoming sicker. This seems to be the case of fixation to closed and total systems.

Keywords: Pandemic; Narcissism; Psychoanalysis; Helplessness; Freud.


 

 

1. Introdução

O presente trabalho realiza um breve resgate da noção freudiana de narcisismo e a utiliza como operador conceitual para integrar as discussões sobre o desamparo sociopolíticoque se apresenta em decorrência da pandemia de coronavírus de 2020.O atual contexto médico-sanitário, a crise global de saúde e a crise política e econômica rompem com nosso formato de vida e trazem uma realidade que nos atinge de forma

íntima e pungente: não podemos mais nos tocar - não sem recorrer a medidas protetivas. Como fica o corpo na pandemia e suas restrições? Como ficam os encontros amorosos nesse momento e, por outro lado, como passar mais tempo juntos em espaços fechados? Ao mesmo tempo, o corpo social está se esfacelando, em uma perspectiva de degradação e calamidade. Não sabemos se tal ruptura social fará surgir uma nova realidade ou, caso isso aconteça, como ela será, porém certamente estamos tocados pela morte, seja de forma iminente, pelo risco de contrair a doença viral, ou tocados na acepção filosófica e política do termo. Para Freud, é exatamente a imortalidade do Eu o elo mais vulnerável do sistema narcísico, esta que, na experiência contemporânea, encontra-se "tão duramente encurralada pela realidade" (Freud, 1914/2004, p. 110).

Desta maneira, o objetivo deste ensaio é realizar aproximações entre o problema do narcisismo e a condição de desamparo (Hilflosigkeit) como auxílio para pensar o modo como o isolamento social e a pandemia afetam nossa relação com o corpo, com a experiência da perda e da angústia diante do risco de adoecimento e morte. Há um desamparo psíquico e social a olhos vistos - risco de falência, perigo de doença e morte real - um abalo concreto nos sistemas de produção e de regulação socioeconômica, a trágica transparência do vírus, como apontado por Boaventura de Sousa Santos (2020). Vivemos experiências de ruptura, de separação e de abandono no âmbito da vida pessoal e privada, mas também em uma perspectiva ética e social. É notório o papel deficitário das instituições, do Estado brasileiro e a perda da própria ideia de Estado-Nação, que se expressa pela ausência de projetos ou ações políticas coordenadas para a contenção da pandemia e suas repercussões na saúde e na economia. Esse último aspecto não será desenvolvido neste trabalho, mas apenas a interpolação entre narcisismo, corpo e vida amorosa.

 

2. Corpo e narcisismo

A proposição do corpo como ensaio decorre da observação da teoria do narcisismo, em que o corpo é pensado por Freud como um ensaio para chegar ao amor de objeto:

Tal estágio foi designado com o nome de narcisismo e consiste em que o indivíduo em evolução, que vai sintetizando em uma unidade suas pulsões sexuais entregues à atividade auto-erótica, para chegar a um objeto amoroso, toma em princípio a si mesmo, isto é, toma a seu próprio corpo, como objeto amoroso, antes de passar à eleição de uma terceira pessoa como tal. Essa fase de transição entre o auto-erotismo e a eleição de objeto, é talvez normalmente indispensável (Freud, 1911/1953, p. 122).

A ideia do narcisismo como um agente intermediário do desenvolvimento psicossexual é uma representação que Freud utiliza mais de uma vez no período de apresentação da teoria do narcisismo, referindo-se à possibilidade de encontrar um objeto no corpo. Em O Caso Schreber (1911/1953) e Totem e Tabu (1913/1953), o narcisismo também é uma etapa situada entre autoerotismo e o amor de objeto, bem como na discussão sobre a forma homossexual em Leonardo da Vinci, em que se chega "[...] aos objetos de amor pela via do narcisismo"(Freud, 1910/1989, p. 93).

O corpo como ensaio também configura uma categoria para pensar a gênese ou os destinos do desamparo e da perda narcísica no próprio corpo, tais como adoecer, morrer, amar, odiar, dentre outros. De acordo com as definições de Freud (1915/2004) sobre a pulsão, as regiões corporais e as zonas erógenas constituem a fonte da pulsão. O corpo revela não apenas sua natureza de superfície pulsional, mas também um lugar em que as inscrições dos representantes pulsionais tomam forma. Não obstante a relação imbrincada entre corpo e narcisismo, a noção de corpo não alude apenas ao fato deste se constituir como um objeto narcísico ou um objeto das pulsões parciais, eróticas e agressivas. O corpo é sujeito, posto que é também um espaço de acontecimento, de afirmação ou de negação do desejo inconsciente, de recusa ou de assunção da castração ou como na histeria conversiva, na qual o corpo é um lugar pelo qual o sintoma remete a um complexo associativo inconsciente. Ora, "o corpo faz-se objeto (para a visão, para o tato, etc), mas originariamente é sujeito" (Bairrão, 2003, p. 44).

Maria Helena Fernandes (2011) discute como alguns processos da dor física abrem um caminho para a aquisição de representações corporais no Eu, de modo "[...] a estender essa reflexão à maneira como esse corpo se torna um corpo próprio, possibilitando o acesso à primeira pessoa" (Fernandes, 2011, p. 116). Nesse sentido, gostaríamos de sublinhar a plasticidade instituinte do registro corporal nos processos psíquicos, como na participação de sensações corporais próprias no reconhecimento do objeto externo semelhante, como Freud descreve nos processos do pensar em O projeto para uma psicologia científica (1895/1950)1. O corpo é um objeto polimórfico para as tendências perversas infantis e também é uma fonte de percepção para a própria constituição do Eu: "o Eu é sobretudo um Eu corporal, mas ele não é somente um ente de superfície: é, também, ele mesmo, a projeção de uma superfície" (Freud, 1923/2007, p. 38).

Nosso objetivo não é desenvolver uma noção psicanalítica de corpo vinculada a alguma categoria propositiva de sentido, como poderia insinuar a expressão corpo como ensaio. A intenção é indicar a potencialidade da concepção de corpo, o que também se aplica às discussões sobre o momento atual, já que a persistência que nos cerceia não é apenas o vírus e a calamidade, mas o agravamento de tendências regressivas no tecido social e do desejo de morte, de uns e de outros. Assim, propomos ensaiar algumas reflexões e indicações sobre as relações entre corpo, desamparo e tendências narcísicas regressivas.

O narcisismo confere uma forma ao autoerotismo - o estado mais originário de fragmentação da pulsão, característico da sexualidade infantil - ao concentrar as pulsões autoeróticas em uma unidade psíquica; ao mesmo tempo, confere uma unidade ao Eu, como na "nova ação psíquica": "algo tem que se agregar ao autoerotismo, uma nova ação psíquica, para que o narcisismo se constitua" (Freud, 1914/2004, p. 74). Essa ação é originalmente a montagem da libido no Eu, o que permite a criação e a repetição de uma imagem de si que será amada primeiro pelos pais e, ao mesmo tempo e subsequentemente, pelo próprio sujeito. O Eu é o primeiro objeto de amor exclusivo da sexualidade humana, uma vez que o seio é o objeto de satisfação fornecido pelas pulsões de auto conservação (Bocchi, 2004).

A propósito do ensaio Introdução ao narcisismo (1914), a vida amorosa é apresentada como uma via de acesso ao narcisismo, assim como as parafrenias, o sono, a hipocondria e a doença orgânica. O seguinte trecho da escrita freudiana soa intrigante: "um forte egoísmo protege contra o adoecimento, mas, no final, precisamos começar a amar para não adoecer, e iremos adoecer se, em consequência de impedimentos, não pudermos amar" (Freud, 1914/2004, p. 106). Como se poderia compreender a asserção freudiana da passagem acima?

Nesse texto de 1914, Freud não apresenta indicações claras sobre a articulação entre egocentrismo, doença e amor, salvo a aposta quantitativa de que "a vida psíquica se vê forçada a ultrapassar as fronteiras do narcisismo e a depositar a libido nos objetos" (Freud, 1914/2004, p. 105) quando o investimento de libido no Eu ultrapassar determinada magnitude. Parecer haver uma medida acima da qual a estase libidinal torna-se desprazerosa, mas, para pensar as vicissitudes do campo objetal, a hipótese quantitativa não basta.

Será que podemos entender que sujeitos mais narcísicos (egoístas, egocêntricos) adoecem menos? Todavia, Freud diz que o indivíduo terá que amar, senão também adoecerá. Mas Freud não diz de qual maneira se adoece sem amor e talvez estivesse dizendo vagamente que "estamos condenados a amar" e, especificamente, que "o amor comporta um empobrecimento narcisista" (Green, 1988, p. 53). Porém, o adoecimento físico e o adoecer significam dimensões distintas no contexto do ensaio de 1914. Essa é uma primeira distinção a ser feita na discussão sobre narcisismo-doença-amor. De qualquer modo, o trecho sugere alguma forma de proteção psíquica contra o adoecimento orgânico. Seria a onipotência infantil, a ilusão de ser amado incondicionalmente (o narcisismo primário, narcisismo do Eu) ou o narcisismo patológico (das afecções narcísicas como estados de megalomania, mania) que estão em jogo nessa discussão?

Se houver uma forma de narcisismo que proteja contra o adoecimento físico, podemos pensar na circunstância do desenvolvimento infantil em que o sujeito é objeto do narcisismo parental e, ao mesmo tempo, torna-se o objeto de amor dos pais, o que chancela à criança a ilusão de onipotência e caracteriza o estado de narcisismo primário, sinônimo de narcisismo do Eu, como formulado por Freud em Introdução ao narcisismo (1914). Esse narcisismo está na gênese da crença infantil de ser amado e perfeito - "His Majesty the Baby", expressão usada por Freud nesse texto para se referir ao egocentrismo normal da criança, que acredita ocupar o centro do mundo, sendo, por determinado tempo, tratada como tal pelos pais. Todavia, "o comovente amor parental, no fundo tão infantil, não é outra coisa senão o narcisismo renascido dos pais" (Freud, 1914/2004, p. 110).

Freud, além disso, afirma que o amor parental, ao se transformar em amor objetal, não esconde sua antiga origem narcisista. Tal colocação é importante do ponto de vista das distinções conceituais necessárias para a compreensão das articulações entre narcisismo, adoecimento e capacidade de amar. A densidade do texto freudiano, presente no ensaio de 1914, quase deixa passar despercebido que existe uma diferença entre narcisismo dos pais e amor dos pais. O narcisismo parental é o reflexo do primitivo Eu ideal dos pais e de sua tradição. Toda criança teria que satisfazer desejos não realizados dos pais como forma de indenização tardia, dirá Freud. Contudo, o narcisismo (primário) dos pais, que alimenta o projeto do filho ideal, é idêntico a si mesmo e regressivo. Ele terá que se dirigir ao campo objetal, transformando-se em investimento amoroso. Assim, a experiência mostra que o fascínio narcisista dos pais não garante que a criança seja amada e considerada como singular. Tais considerações incorrem na diferenciação entre Eu ideal (narcisismo primário) e ideal do Eu (narcisismo secundário), e remonta às origens narcísicas ou pré-edípicas do Supereu (Mayer, 1989). Tais distinções só serão mais prontamente realizadas posteriormente, no freudismo, já que Freud predominantemente concebeu estas instâncias em conjunto, como parte do Supereu.

Nas situações em que há falhas graves no processo de investimento amoroso da criança, isto é, em que ela não é o objeto passional daquele adulto que se encarrega dos seus primeiros cuidados, constitui-se uma via de deslizamento narcísico para a enfermidade. Dados da experiência clínica revelam que pessoas mais expostas às regressões psicossomáticas e eclosões de adoecimento físico apresentam também uma história de vida em que é comum ter havido agressões precoces ao narcisismo infantil - traumas subjetivos, desautorizações, vivências de indiferença parental, negligência ou violência -, com um significativo papel na construção do adoecer físico como sintoma. O abandono parental - caracterizado, sobretudo, pelo abandono psíquico e a não constituição da criança como um objeto amoroso - é uma via de adoecimento do ser humano.

Tal hipótese diz respeito a uma explicação metapsicológica para o adoecer, que pode ser inferida e desenvolvida a partir da concepção do narcisismo em Freud. Ela está assentada na falta de amor por parte das figuras que dispenderam cuidados à criança pequena - as Pflegenpersonen - por impedimentos para amar, recalque de desejos filicidas dos pais, lutos patológicos, dentre outras razões. O fato é que essa via incorre em danos à ilusão de onipotência infantil. Uma segunda via regressiva até a enfermidade orgânica é uma via pulsional, associada ao masoquismo erógeno (e moral), ao sentimento de culpa inconsciente e ao retorno de formações narcísicas sobre o Eu. Freud, em trabalhos do início da década de 1920, a exemplo de O problema econômico do masoquismo (1924) e o Ego e o id (1923), também vai discutir os ganhos inconscientes da reação terapêutica negativa e sua relação com o fator moral no gesto recorrente de cair doente: "está em jogo é um fator 'moral', isto é, um sentimento de culpa que só se apazigua [Befriedigung] no estar doente e que não quer, de modo algum, renunciar ao castigo do sofrimento" (Freud, 1923/2007, p. 57-8).

Ressaltamos que essas hipóteses metapsicológicas sobre duas vias ou possibilidades de deslizamento para o adoecer físico não serão desenvolvidas neste trabalho, embora venham a ser referenciadas como um dado clínico. O adoecimento físico também recebeu outras explicações no campo da teorização psicanalítica, no contexto pós-Freud, como na Escola Psicossomática de Paris com Pierre Marty (1993) e a tese da "má mentalização", que relaciona lacunas de representações psíquicas pré-conscientes ao acionamento da via somática diante do excesso de tensões. Joyce McDougall (1996) formulou os conceitos de matriz do psicossoma e de Um corpo para dois, em que teria havido falhas no processo de dessomatização progressiva da dupla primária.

 

3. Narcisismo, sofrimento e demanda de amparo

Ao retornar à relação entre desamparo e adoecimento, o que pode ser demonstrado através do campo psicanalítico? Chamo a atenção para as tensões entre narcisismo e desamparo, perguntando, em primeiro lugar, o que a experiência de desamparo faz com o narcisismo. Como determinadas vivências de perdas ou de falta de garantias impactam a economia narcísica dos sujeitos? Alguns aportes oriundos da experiência clínica são particularmente interessantes para pensar as relações entre narcisismo, desamparo, doença ou hipocondria e vida amorosa.

O primeiro caso clínico reflete uma história de adoecimentos graves e abreviação do narcisismo infantil devido a estados de abandono psíquico-parental. Teriam ocorrido àquela paciente vivências concretas de desamparo, como experiências repetidas de abandono, afastamentos periódicos abruptos da presença materna, processos de adoção interrompidos. Observou-se, então, uma relação conturbada entre narcisismo e desamparo. O resultado teria sido a doença orgânica e um apagamento da dimensão amorosa. Dizia ter sido "escolhida para carregar problemas de saúde" e de fato detinha uma ficha médica extensa. Um sentimento de culpa inconsciente parece ter se voltado sobre ela sob a forma do adoecer crônico. Essa forma representa, por assim dizer, aquela via hipotética, referida anteriormente, que forneceria uma explicação para o adoecimento físico (e psíquico) na qual doenças recorrentes e a morte retornam ao Eu como formações narcísicas. Nesse caso, talvez se aplique mais especificamente a expressão "o corpo como ensaio para morte", para além da experiência orgânica imediata. Tal senhora esboçava um sentimento de perda irremediável. Casou-se mais de uma vez, embora dissesse: "Sinto que nunca casei". Parece que não conhecia a dimensão amorosa ao mesmo tempo em que lhe faltava uma projeção de futuro, tendo sido este interrompido pelos vários episódios de adoecimento e por sua morte real.

Por outro lado, o inverso da pergunta inicial seria o que os narcisistas fazem com o desamparo, ou melhor, como o narcisismo modula ou regula essa condição de ausência de garantias. Agora, não se trata mais do narcisismo da ilusão infantil de autossuficiência. A questão se dirige às fixações narcísicas e identificações primárias que têm como referência a imagem de si e a espectralidade das instâncias ideias. No segundo caso clínico, a tensão entre narcisismo e desamparo teve como consequência uma supervalorização da vida amorosa e um esvaziamento de libido do Eu. Havia sintomas corporais, como a dor, e uma busca de restituição sexual através do corpo erogeneizado. Não é a doença física que comparece no segundo caso, mas o adoecer na forma de uma dor que perdura no tempo: ora se tinha uma apresentação mais hipocondríaca, ora mais caracterizada por elementos de dominação e passividade (masoquismo do Eu). O corpo tornou-se dolorido (um objeto de domínio) e portava-se de modo a sinalizar a necessidade de reposição de uma demanda de amor e de reconhecimento externa ao Eu.

Nesse caso, o desamparo teve a dor corporal como destino e o amor não configurou um vínculo satisfatório. Ela se apresentou como aquela que queria fazer parte do grupo das mulheres que amam demais. A única coisa que dizia guardar dentro dela era o amor pelo ex-companheiro, que havia lhe deixado há anos com uma filha deficiente: "Não sei descrever, apenas sinto", "coisa que vai para outra vida". O objeto amado parece ter ocupado o lugar do ideal do Eu, conformando uma dependência do Eu.

Eis uma situação em que a sobrevalorização do amor não estaria assentada na força da atividade pulsional, pelo menos não na sua fruição, como autêntica experiência de satisfação e como tendo um cunho mais criativo. Esse foi um apontamento que Freud fez em O Recalque (1915/2004). Além disso, é interessante que, em Mal-estar na cultura, ele diz que "uma tão formidável inflação do amor só pode lhe diminuir o valor, e não elimina a necessidade" (Freud, 1930/2011, p. 91). Está em jogo a ideia de que a idealização amorosa não traz satisfação, tanto que essa história clínica é acompanhada de relatos de sentimento de vazio e de frustração. É provável que a escolha de objeto, nesse caso, tenha se realizado sobre o modo narcísico e não objetal; aquele que se faz com referência a uma imagem do sujeito: aquilo que se é, que gostaria de ser, o que se foi ou segundo a imagem daquele que foi parte do nosso próprio ser um dia.

O que poderia se dar na vida desses sujeitos se eles abrissem mão da procura contínua por uma reparação narcísica do seu desamparo, que se expressa como resgate doloroso de um passado perdido no primeiro caso ("fui escolhida para carregar doenças da família") e como vazio e idealização no segundo ("amo demais, como uma droga"). Um encontro com a condição de desamparo parece ter sido evitado em ambas as situações de vida, assim como se bloqueou o questionamento sobre possíveis outros horizontes subjetivos, os quais poderiam impulsionar outras formas de reconhecimento e configurar uma base para transformações pessoais, afetivas e sociais. Vimos modalidades de subjetivação por fixação melancólica em uma situação e de sujeição na outra, ambas condensadas na busca por reasseguramento narcísico. Assim, o estrato afetivo inerente ao desamparo humano (Hilflosigkeit) - no sentido de falta de certezas e de falta de garantias - fica subsumido às experiências concretas de sofrimento.

Com efeito, toda forma de sofrimento revela e esconde, ao mesmo tempo, um desamparo mais originário na medida em que o congela em demandas de segurança e garantias de cuidado, invisibilizando a dimensão plástica, desejante e virtualmente impulsionadora do desamparo. Há uma cooptação da condição ontológica fundamental do desamparo nas estruturas de sofrimento (do neurótico, do melancólico, por exemplo). Nestas, a condição de desamparo reverbera apenas como demanda de ajuda e de proteção e não de contestação da normatividade e do discurso social vigente. Nesse sentido, apenas se confirma a potência daquele que oprime e suas estruturas normativas. Segundo Safatle (2016, p. 18), "o desamparo não é algo contra o qual se luta, mas algo que se afirma". Seria necessário retirá-lo das narrativas de reparação como um primeiro passo para viabilizar gestos de emancipação e para ir ao encontro de experiências de indeterminação, as quais podem ter efeitos reorganizadores do próprio ato de sofrer e seu deslocamento para outras categorias de sentido. Ao se assumir o desamparo, pode-se assim dizer: isso já está aqui e o que é que se pode fazer a partir e além disso?

 

4. Desamparo, sofrimento e pandemia

Os aportes da experiência clínica foram inseridos com a finalidade de iluminar algumas modalidades de reação social e de experiência sócio subjetiva presentes na atual configuração sanitária e sociopolítica da pandemia por coronavírus de 2020. A vivência da realidade e suas consequências assemelha-se às circunstâncias em que se nega a posição de desamparo com a recusa da gravidade do vírus e seus riscos. Identificamos algumas saídas para a ação, que se traduzem em pseudo soluções compulsivas - como hipermedicar-se ou consentir com o uso de medicamentos sem comprovada eficácia no tratamento ou prevenção ao vírus - ou soluções maníacas - como atos irrefletidos de exposição nas ruas em nome do fim do isolamento social. Existem, ainda, outras versões negacionistas,reforçadas pelo trabalho de distorção dos fatos e das notícias falsas: a) esquiva da angústia e otimismo: tudo vai ficar bem, o pior já passou; b) negação da realidade, em que também existe uma anulação do outro (e da alteridade), coincidindo com uma forma paranoica e o suposto direito de odiar aquele que diverge da minha imagem e do meu grupo. A expressão mais evidente desse negacionismo é a indiferença pela morte, luto e sofrimento de muitos outros; e c) indiferença e normalização da realidade, através do descaso anunciado com relação à morte do outro. De início eram mil e agora quantos precisam morrer para gerar sensibilização ou comoção?

Como vimos na experiência clínica, também há saídas neuróticas, presas à demanda de amor e de amparo, que se pautam pela busca de reasseguramento mesmo que às custas de sujeição moral, prejuízo do juízo crítico e presença de passividade. Essa modalidade sociossubjetiva também se assemelha à provável saída melancólica: "nada pode ser feito", as mortes pela pandemia são o produto de uma fatalidade inevitável e imobiliza-se na posição de desamparo.

Freud, em O projeto para uma psicologiacientífica (1895/1950), descreve o deficit psicomotor e performático do bebê e extrai dele um traço central para a constituição dos processos subjetivos conformados ao regime de normas que nos liga ao outro: "o desamparo inicial do ser humano é a fonte originária de todos os motivos morais" (Freud, 1895/1950, p. 196). São a fome, o grito e a imagem do rosto humano, do semelhante nas palavras de Freud que moldam o fundamento primário da moralidade do adulto. Só entramos em relação com outro, porque dele dependemos, e não só para ser alimentado. Dependemos do outro para amar, sermos amados e continuar existindo.

Por fim, os conceitos freudianos de libido, massa e identificação, empregados no seu texto sobre psicologia de grupos, são reavivados pelo respaldo teórico do narcisismo e ajudam a entender a ascensão de novos agrupamentos políticos no Brasil atual, bem como dão inteligibilidade ao apoio incondicional - e acrítico, por uma parcela significativa da população - a líderes autoritários e com tendências excludentes e totalitárias. A atualidade de Psicologia das massas e análise do eu (1921/1989) está não apenas na descrição da economia libidinosa e ilusória dos grupos, mas sobretudo por considerar que a tendência à regressão é uma característica imanente dos processos de formação individual e coletiva. A regressão social e seu escopo narcísico são constitutivos da sociabilidade e não uma exceção - eis o que queremos apontar. Tal fenômeno emerge dos estratos inconscientes para a luz do dia no contexto brasileiro da pandemia na medida em que a crise de sanitária, política e social perduram.

Por outro lado, vale lembrar que o conceito de narcisismo não está ligado apenas às ilusões de certos grupos ou à crise de ideais e de representatividade institucional, fenômenos estes que ficam mais evidentes na experiência sociopolítica dos tempos atuais e da pandemia. É preciso notar que o campo das operações sublimatórias e de soluções propositivas e criativas para o laço social se constitui por processos de erogeneização, de captura da pulsão de morte e sua conversão em libido narcísica por meio de processos de identificação, nos quais os fenômenos do narcisismo cumprem um papel de unificação.

 

5. Considerações finais

Em Mal-estar na cultura (1930/2011), Freud descreve as fontes geradoras de sofrimento: 1) "Do próprio corpo": que adoece e tende à dissolução; 2) "Do mundo externo, que pode se abater sobre nós com forças poderosíssimas, inexoráveis e destruidoras" (Freud, 1930/2011, p. 21); 3) Da relação com o outro, o social: a insuficiência das leis, a violência que advém das instituições sobre as pessoas e comunidades. Não é possível pensar as características da pandemia de 2020 sem considerar que há uma conjugação entre a realidade da natureza e o social, com repercussões diretas sobre o corpo próprio, atestado pela imprevisibilidade do vírus em cada organismo. O espalhamento do vírus - a virulência em sentido strictu - atinge mais fortemente as populações vulneráveis. A força do vírus e os impactos sociais da pandemia correspondem diretamente à brutalidade ou à fragilidade de medidas político-sanitárias e institucionais. Sem dúvida, esse é o caso do cenário brasileiro, com a ausência de uma ação governamental coordenada. A esse respeito, parece legítimo afirmar que a violência dessa epidemia está, antes de tudo, associada à virulência de fenômenos e processos da vida social e sua ordenação: "O sofrimento que se origina desta fonte nós experimentamos talvez mais dolorosamente que qualquer outro" (Freud, 1930/2011, p. XX).

Também nos autorizamos a perguntar - sem a pretensão de obter resposta - como resistir, como continuar e como amar nos tempos atuais? Como estar com o outro sem ficar doente e, principalmente, como permanecer vivo? A recusa da morte é a peça mais vulnerável do sistema narcísico e, na experiência contemporânea, encontra-se "[...] tão duramente encurralada pela realidade" (Freud, 1914/2004, p. 110). Com efeito, existe um severo abalo do nosso narcisismo frente ao abandono real de governantes e instituições e diante da ampliação do sentimento de desamparo frente às novas exigências do presente contexto. E, após esse percurso de exposição, também há de se considerar que excessivas demandas de amor e amparo reduzem o sofrimento ao mero anseio por reasseguramento narcísico, o que limita os horizontes subjetivos de transformação da experiência do desamparo e do próprio ato de sofrer.

Este trabalho recorreu à psicanálise e ao pensamento freudiano em particular para perguntar o que o estado de desamparo faz com o nosso narcisismo das ilusões e certezas e, inversamente, questionou como os narcisistas operam diante do desamparo. Discutimos duas possibilidades de destinos do desamparo no corpo e na vida amorosa. Propusemos algumas distinções conceituais que nos parecem necessárias, tendo em vista o fortalecimento do debate filosófico, ético e político, a partir da perspectiva psicanalítica, sobre a relação entre pandemia, morte e sofrimento. Dentre as principais distinções, estão a desarticulação entre desamparo como afeto político e sofrimento, bem como a diferenciação entre algumas formas de narcisismo e sua relação com os investimentos amorosos.

Mas o que Freud pretendia ao dizer que "precisamos começar a amar para não adoecer"? Apontamos que existe sim um egoísmo a ser abandonado, sob pena de adoecermos. Este parece ser o da fixação aos sistemas fechados e totais, como o do individualismo encerrado na imagem de si (Eu e Eu ideal) e suas versões patológicas, subjacentes a certas modalidades de reação social e de experiência subjetiva diante dos problemas contemporâneos da pandemia e do risco de morte, como identificamos ao final deste trabalho. O desejo irrestrito de ser amado, as fixações narcísico-ideológicas e a recusa de que somos constituídos pela falta, encobrem o desamparo ético que importa, este que nos liga ao outro desde a primeira hora e nos oferece a matéria prima para as formas de vínculo e de inserção na ordem da cultura e da alteridade.

 

Referências:

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Bocchi, J. C. (2004). A noção de narcisismo na obra freudiana: implicações do narcisismo primário para uma concepção de psiquismo. Dissertação (Mestrado em Ciências Psicológicas), Departamento de Psicologia e Educação, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2004.         [ Links ]

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Recebido em 19/08/2020
Aprovado em 18/11/20

 

 

1 Texto escrito em 1895, porém publicado em 1950. A versão consultada é de 2003, tradução de Osmyr Faria Gabbi Jr.

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