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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.22 no.2 São Paulo jul./dez. 2020

 

DOSSIÊ

 

Os caminhos do ódio na civilização propostos por Freud e como eles se apresentam no Brasil atual

 

The paths of hatred in civilization proposed by Freud and how they are currently present in Brazil

 

 

Fernanda Silveira Corrêa

Pesquisadora colaboradora (pós-doutoranda) no departamento de filosofia da Unicamp. Doutora e mestre em filosofia pela Unicamp. É membro do GT Filosofia e Psicanálise da ANPOF. Psicóloga formada pela PUC de São Paulo e especialista em Psicoterapia psicodinâmica em transtornos da personalidade pelo departamento de psiquiatria da Unifesp. Psicanalista com consultório particular e prestadora de serviços ambulatoriais. Professora universitária há 24 anos e, por dois anos e meio, supervisora de estagiário em clínica-escola. Atualmente, leciona na Universidade Paulista e foi supervisora na clínica; já lecionou e foi supervisora na clínica da Universidade Anhembi Morumbi; foi professora temporária (por dois anos) na UFSCar, na Universidade São Judas e em várias outras universidades particulares. É autora do livro Filogênese na metapsicologia freudiana (Corrêa, 2015) e participou com um capítulo no livro Freud, filosofia e psicanálise (Monzani e Soria, 2019). Contato: fernandasilveiracorrea@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo busca analisar o aspecto mais cruel do fenômeno Bolsonaro, legitimado pela população: a indiferença ao genocídio impetrado à população mais pobre do país, por meio ao descaso do governo em tomar medidas que pudessem atenuar a pandemia. Por meio da análise da desilusão que essa indiferença revelou, tenta-se mostrar as três figuras do ressentimento manifestas no apoio e nas ações do governante: a de um severo supereu moralista; a da psicologia das massas, isto é, do ódio ao diferente, acirrado pelo racismo; e, por fim, da submissão incondicional e auto-sacrifício. Três figuras constituintes da psicologia dos filhos da horda primitiva, descritas por Freud em Visão geral das neuroses de transferência. A questão principal abordada no artigo, no entanto, é a relação da indiferença ao genocídio e o racismo brasileiro, compreendido em sua dimensão estrutural, histórica e atual.

Palavras-chave: Superego; Psicologia das massas; Submissão; Racismo; Psicanálise.


ABSTRACT

This article seeks to analyze the most cruel aspect of the Bolsonaro phenomenon, legitimized by the population: indifference to genocide imposed on the poorest population in the country, through the government's neglect to take steps that could mitigate the pandemic. Through the analysis of the disillusion that this indifference revealed, we try to show the three figures of resentment manifested in the government's support and actions: a severe moralist superego; the psychology of the masses, that is, the hatred of different, intensified by racism; and, finally, unconditional submission and self-sacrifice. Three constituent figures of the children's psychology on the primitive horde, described by Freud in Overview of transference neuroses. The main issue addressed in the article, however, is the relationship of indifference to genocide and Brazilian racism, understood in its structural, historical and current dimension.

Keywords: Superego; Mass psychology; Submission; Racism; Psychoanalysis.


 

 

1. Introdução

Para analisar os caminhos do ódio no Brasil atual, começaremos seguindo o método utilizado por Freud para analisar um acontecimento de seu tempo. Em Considerações atuais sobre a guerra e a morte, Freud aplica a psicanálise na leitura dos acontecimentos revelados pela Primeira Guerra Mundial. Qual o método por ele utilizado? Freud parte de uma ilusão, a do ideal civilizatório europeu, mostrando como foi desfeita nos tempos da guerra e, a partir da desilusão, do desfazimento da ilusão, alcança um conteúdo reprimido. Trata-se, de um modo geral, do mesmo método da clínica: a desconstrução das ilusões do próprio eu para o surgimento do reprimido. Em O homem Moisés e a religião monoteísta, o mesmo método é utilizado: a análise das distorções existentes na sagrada escritura, percebidas por meio de lacunas, repetições e contradições, revelaram vivências reprimidas, desmentidas e negadas do povo judeu, as quais insistiam em retornar. Assim, ideias como a de que existiu um único Moisés em um período de tempo muito longo (do êxodo até a união das tribos em Cades) e com características muito distintas (enérgico e implacável e, ao mesmo tempo, um pastor amoroso) ou a suposição de que Moisés era judeu, apesar de toda sua infância ter sido vivida no Egito revelaram a verdade reprimida: o povo judeu assassinou Moisés, um egípcio. Verdade encoberta, distorcida e disfarçada pela valorização da submissão do povo perante Moisés.

A ilusão em Considerações sobre a guerra e a morte remete a uma Europa unificada, pacificada e tolerante, características que se revelaram, com a guerra, absolutamente ilusórias. A ideia da Europa como um lugar civilizado e pacífico servia apenas para distorcer, reprimir, desmentir uma realidade que retornou na guerra: o europeu tem enorme prazer em desafiar a morte (arriscar a vida) e tem grande satisfação com a morte alheia, seja de inimigos seja de entes amados - o que é ainda mais difícil de aceitar. Temos sim uma moral que não aceita nossa hostilidade para com os outros e a disfarça, criando a ilusão contrária de que somos seres pacíficos e civilizados. Desfazer ilusões, tanto na clínica quanto nos acontecimentos sociais, por mais dolorido que seja, é algo bem-vindo na psicanálise.

O método usado no texto Considerações atuais sobre a morte e a guerra, também busca, como nos propomos a fazer agora, analisar o reprimido não a partir da análise das lacunas e repetições da moral civilizada (como no caso da sagrada escritura), mas de um acontecimento: foi a guerra que propiciou a desilusão e mostrou ilusórios os ideais civilizatórios.

Qual ilusão a guerra desfez? A ilusão de que os dominantes, empenhados no cultivo dos progressos técnicos e valores culturais artísticos e científicos, soubessem resolver seus conflitos; de que o Estado jamais se serviria das extraordinárias vantagens proporcionadas pelo uso da mentira e da fraude; de que estrangeiros não seriam mais considerados inimigos; de que o mundo civilizado era uma pátria onde se podia circular insuspeito e desimpedido, desfrutando da ampla diversidade natural assim como da recordação dos vários feitos históricos e das mais diversas produções artísticas; de que, se existissem guerras, elas se limitariam a estabelecer a superioridade de uma das partes, evitando ao máximo sofrimentos maiores e poupando inteiramente os feridos e os médicos e enfermeiros dedicados à sua recuperação.

Depois da guerra, segundo Freud "[...] até mesmo a ciência perdeu sua desapaixonada imparcialidade [...] quer nos parecer que jamais um acontecimento [...] confundiu tantas inteligências das mais lúcidas e degradou tão radicalmente o que era elevado" (Freud, 1915/2010, p. 210). A guerra trouxe à luz o ódio e a repulsa, a injustiça, a violência, a astúcia e a mentira. Pôs a nu também a injustiça do Estado cometida contra os cidadãos, privando-os de sua maioridade e oprimindo-os intelectualmente, deixando-os indefesos. A guerra mostrou ainda que quando o Estado suspende suas relações morais, cessam também nos indivíduos a repressão aos maus apetites e as pessoas passam a cometer atos de crueldade, perfídia e traição incompatíveis com seu grau de civilização.

As ilusões nos poupam de desprazeres e nos permitem gozar satisfações, mas um dia colidem com alguma parte da realidade e se despedaçam. Havia a ilusão do elevado nível de desenvolvimento moral dos cidadãos do mundo e dos Estados civilizados, porém esta colidiu com a seguinte realidade: a pouca moralidade e a brutalidade dos Estados e dos cidadãos do mundo.

 

2. Desilusão causada pela forma como o Brasil enfrentou a pandemia

A semelhança do período da guerra, descrito por Freud, com o que vivemos é bem grande, sendo que a forma como o Brasil reagiu à pandemia mostrou uma enorme brutalidade do Estado, na perpetração de um genocídio, e dos cidadãos, aceitando-o ou, pelo menos, a ele reagindo com indiferença. O desprezo para com as consequências da pandemia mostrou a falta de reação a uma necropolítica instituída, uma guerra interna dirigida contra os "subcidadãos" que se tornou mais eficiente com a Covid-19. Em vez de milícias nas favelas matando em nome da luta contra o tráfico, realizou-se um genocídio muito mais eficiente, que contou com a ação da natureza, tendo o vírus, como aliado. Bastou impedir o combate ao vírus para que fizesse sua parte: um genocídio prescindido de armas - tão laureadas e defendidas pelo governo em exercício.

Tentemos, então, de pensar na indiferença em relação às consequências da pandemia, ao genocídio de determinada parcela da população, efetivamente a da periferia, pensando-o como expressão da brutalidade do governo, mas também dos cidadãos que não só assistem passivamente ao genocídio, naturalizando-o, como continuam apoiando o presidente.

Para isso, seguindo o caminho proposto por Freud em Considerações atuais sobre a guerra e a morte, vamos, primeiramente, compreender qual ilusão foi desfeita com a indiferença ao genocídio. Diria que há uma ilusão que começou a se desfazer antes mesmo da pandemia, com o apoio ao governo atual e, antes disso, com a campanha de Bolsonaro à presidência.

Qual ilusão é essa? A ideia de que a democracia se desenvolvia no Brasil, que a elite convivia bem com a perda de seus privilégios e que, aos poucos, as classes desprivilegiadas estavam adquirindo direitos, ilusão já desfeita no golpe contra a Presidenta eleita, Dilma Rousseff. Também nos iludíamos, principalmente nos meios universitários, com uma pujante afirmação de movimentos sociais e uma forte crítica a um modelo dominante heteronormativo, machista, branco, de pessoas financeiramente abastadas. Os movimentos feministas, os movimentos negros, o fortalecimento das religiões afro-brasileiras, os movimentos em defesa das questões indígenas, os movimentos LGBTQIA+, os movimentos artísticos e culturais da periferia e coletivos dos mais diversos grupos para legalização do aborto, a liberação da maconha, em defesa das gordas, das prostitutas. Todos pareciam ganhar força, tendo suas pautas finalmente reconhecidas. Quando a ilusão definitivamente se desfez? Quando Bolsonaro ganhou a eleição, mostrando a fragilidade da afirmação dos direitos desses grupos. Pelo menos metade da população se colocou contra essas pautas.

Já na campanha de Bolsonaro, guerras se implantavam no interior das famílias, e aqui escrevemos a partir da clínica, de questões trazidas por pacientes atendidos em consultórios particulares ou por estagiários por mim supervisionados em uma clínica-escola com atendimento gratuito. Um moralismo familiar, aparentemente arrefecido nos períodos anteriores, voltava a se fortalecer, mostrando como a aceitação e o respeito às diferenças, que aparentavam ter existido anteriormente, eram frágeis. Parecia que as famílias as quais tiveram que engolir as pautas desses movimentos foram levadas a aceitar um filho gay, uma filha feminista etc. Agora, por trás da escolha de um candidato, se escancaravam suas posições moralistas. Pelo sofrimento dos pacientes, as guerras familiares me chegavam através, por exemplo, do filho gay, que considerava o voto dos pais em Bolsonaro como um repúdio à sua orientação sexual; da menina que, flertando com o feminismo, considerava que o namorado escolhia Bolsonaro como um protesto à sua emancipação; do rapaz, membro de um movimento negro, que acreditava que o padrasto mostrava seu ódio contra ele defendendo Bolsonaro; da filha de uma empregada doméstica que acusava a mãe de aceitar a ajuda dos patrões bolsonaristas, que, pelo Facebook, tentavam controlar suas amizades, apenas para ir contra sua orientação sexual e como negação da negritude de ambas. Em todos esses exemplos, os pacientes pareciam ter razão. A escolha de Bolsonaro como candidato servia para revelar os conflitos que as mudanças de costumes e a afirmação dos direitos das minorias fez aflorar. O ódio contra o PT vinha colorido de reinvindicações moralistas em defesa da família e da religião. Depois da vitória de Bolsonaro, a defesa desses direitos, se não enfraquecida, tornou-se, pelo menos, muito mais amedrontadora. Esse parece ter sido um primeiro grande trauma, uma primeira grande desilusão que revelou um ódio familiar bastante elevado.

 

3. Enfraquecimento da inteligência

Olhemos um pouco mais para essa primeira manifestação de ódio. De que agressividade estamos falando? Freud, em suas considerações sobre a guerra em carta a Albert Einstein, Por que a guerra?, aponta o fortalecimento do intelecto e a internalização da tendência à agressividade como forças que se opõem à guerra e à crueldade. Vejamos se a falta dessas características psicológicas determina o ódio intrafamiliar, descrito acima, representado na escolha do presidente. A primeira característica de fato parece faltar aos eleitores e ao presidente: um enfraquecimento do intelecto explícito, com um ataque dirigido à racionalidade e a todas as instituições que a representam - a ciência, a universidade e a educação em geral, a cultura. Além do ataque direto às universidades públicas, é importante ressaltar um descaso com a qualidade do ensino nas universidades particulares que foram abandonadas à lógica do mercado e do lucro. A rápida reestruturação das universidades privadas apoiadas no ensino online, agora com apenas metade de seus professores, tem produzido um tipo de ensino em que não há lugar para a pesquisa, o debate, a construção do conhecimento, a interlocução, a troca de ideias e a formação humanista. A imagem na tela parece definitivamente tomar o lugar do conhecimento. A universidade particular agoniza.

Se esse ataque institucional é explicito, ele também ocorre nos interstícios das famílias, por exemplo, na insatisfação de muitos pais com a ida de seus filhos para a faculdade: afastou-os da igreja; é um antro onde se fuma maconha, onde há balbúrdia; aprendem a ser comunistas, quer dizer, aprendem a desrespeitar os valores e as hierarquias familiares. Eco da fala do ex-ministro da educação que parece ter tido muito efeito na sociedade. Se a entrada do filho na universidade parecia ter sido um motivo de orgulho, vimos surgir um verdadeiro ódio e desvalorização dessa nova condição.

 

4. Supereu: o ódio contra os impulsos

Mas é a segunda característica psicológica aludida por Freud em Por que a guerra? que me parece ser mais fértil para a reflexão: a internalização da tendência à agressividade. A internalização, como sabemos, caracteriza-se por um retorno da agressividade contra si mesmo, própria do supereu, a consciência moral que se dirige contra as pulsões.

De que meio se vale a cultura para inibir, tornar inofensiva, talvez eliminar a agressividade que a defronta? [...] O que sucede nele [no indivíduo], que torna inofensivo o seu gosto em agredir? [...] A agressividade é introjetada, internalizada, mas é propriamente mandada de volta para o lugar de onde veio, ou seja, é dirigida contra o próprio Eu. Lá é acolhida por uma parte do Eu que se contrapõe ao resto como Super-eu, e que, como "consciência", dispõe-se a exercer contra o Eu a mesma severa agressividade que o Eu gostaria de satisfazer em outros indivíduos. À tensão entre o rigoroso Super-eu e o Eu a ele submetido chamamos consciência de culpa; ela se manifesta como necessidade de punição. A civilização controla então o perigoso prazer em agredir que tem o indivíduo, ao enfraquecê-lo, desarmá-lo e fazer com que seja vigiado por uma instância no seu interior, como por uma guarnição numa cidade conquistada (Freud,1930/2010, p. 92).

Diferente do fortalecimento do intelecto, no entanto, essa característica parece não faltar no fenômeno do bolsonarismo, pelo contrário, parece que, como colocado acima, o moralismo é um componente fundamental da expressão da violência contemporânea. A força dos evangélicos, em sua versão mais moralista e conservadora dos costumes, foi um dos pilares tanto para a vitória de Bolsonaro quanto para a manutenção da sua aprovação. Como é possível que o guardião contra a agressividade se torne seu agente? Vejamos primeiramente sua relação com o enfraquecimento da inteligência.

Em Introdução ao narcisismo, quando Freud introduz a noção de ideal do eu, correspondente à consciência moral, o diferencia da sublimação, que corresponderia ao fortalecimento do intelecto. "É certo que o ideal do Eu requer tal sublimação, mas não pode forçá-la; a sublimação continua sendo um processo particular, cuja iniciação pode ser instigada pelo ideal, mas cuja execução permanece independente de tal instigação" (Freud, 1914/2010, p. 41). Além de não serem processos independentes, já em 1914 Freud mostra que a neurose pode ser fruto do descompasso entre ambos.

Precisamente nos neuróticos encontramos as maiores diferenças de tensão entre o desenvolvimento do ideal do Eu e o grau de sublimação de seus primitivos instintos [impulsos] libidinais, e em geral é bem mais difícil convencer os idealistas do que os homens simples, modestos em suas pretensões, acerca do inadequado paradeiro de sua libido (Freud, 1914/2010, p. 41).

Assim, um excesso de ideal do eu, de supereu, pode inibir a sublimação, o fortalecimento da inteligência e, portanto, a inibição da própria agressividade. Esse parece ser o caminho da análise de Freud em Futuro de uma ilusão, quando supõe que a religião proíbe o pensar:

Pense no penoso contraste entre a radiante inteligência de uma criança saudável e a fraqueza de intelecto de um adulto mediano. Não será possível que justamente a educação religiosa tenha boa parte de culpa por essa relativa atrofia? [...] incutimos nela [na criança] as doutrinas religiosas numa época em que não tem interesse por elas nem capacidade de lhes compreender o alcance. Postergação do desenvolvimento intelectual e antecipação da influência religiosa - não são esses os dois pontos principais na agenda da pedagogia atual? Quando o intelecto da criança desperta, as doutrinas religiosas já se tornaram inatacáveis. Ou você acha que contribui para o fortalecimento da função intelectual que uma área tão relevante lhe seja interditada com a ameaça dos castigos do inferno? Se alguém chegou a aceitar todos os absurdos que as doutrinas religiosas lhe apresentam, sem críticas e sem enxergar inclusive as contradições entre elas, não devemos nos espantar com sua fraqueza de intelecto. Mas não temos outro meio de controlar nossas pulsões senão a inteligência. Como esperar que indivíduos sujeitos a proibições de pensar alcancem o ideal psicológico, o primado da inteligência? (Freud, 1927/2014, p. 289-90).

Se a religião, instituição detentora da culpa, inibe a inteligência do sujeito, também ela não é um recurso confiável para evitar a violência. Aliás, Freud afirma, ela foi motivo de muita crueldade e intolerância:

uma religião, mesmo que se denomine a religião do amor, tem de ser dura e sem amor para com aqueles que não pertencem a ela. No fundo, toda religião é uma religião de amor para aqueles que a abraçam, e tende à crueldade e à intolerância para com os não seguidores (Freud, 1921/2011, p. 53-4).

A intolerância consigo mesmo, com as próprias pulsões, facilmente se transforma em intolerância com o outro, ou seja, com o filho, com a namorada, com o enteado, com a filha da empregada - como nos casos analisados acima. Mais que isso, o ideal do eu é o ideal do grupo, da massa, e a constituição da massa determina um destino particular da agressividade. Assim, "[...] do ideal do eu sai um importante caminho para o entendimento da psicologia da massa. Além do seu lado individual, ele tem o social, é também o ideal comum de uma família, uma classe, uma nação" (Freud, 1921/2011, p. 50). O ideal do eu foi formado pela massa:

a incitação a formar o ideal do Eu, cuja tutela foi confiada à consciência moral, partiu da influência crítica dos pais [...], aos quais se juntaram no curso do tempo os educadores, instrutores e, como uma hoste inumerável e indefinível, todas as demais pessoas do meio (o próximo, a opinião pública). [...] A instituição da consciência moral foi, no fundo, uma corporificação inicialmente da crítica dos pais, depois da crítica da sociedade, processo que é repetido quando nasce uma tendência à repressão a partir de uma proibição ou um obstáculo primeiramente externos (Freud, 1921/2011, p. 42-3).

 

5. A psicologia das massas e o ódio ao diferente

O destino da agressividade na psicologia das massas ilustra um pouco mais os caminhos do ódio na indiferença perante o genocídio. Vou analisar a psicologia das massas, como já fiz anteriormente, aproximando-a da psicologia do ressentimento de Nietzsche. Nas massas, diferente do indivíduo que, ao ser identificado com o nobre e forte de Nietzsche, coloca seu ódio para fora, o que predomina é o ressentimento. A massa se envenena, além de envenenar os outros, com seu próprio ódio.

O que é a psicologia das massas? De acordo com Psicologia das massas e análise do eu, os elementos que a caracterizam são identificações fortes com os iguais e submissão também muito intensa a um líder ou a uma ideia, diante dos quais se tem "sede de obediência". Trata-se de ligações amorosas, libidinosas, em primeiro lugar com o líder, que pode ser substituído por uma ideia, e, depois, com os iguais.

O amor pelos membros do grupo, da massa, por sua vez, tem como contrapartida o que posteriormente Freud vai chamar de narcisismo das pequenas diferenças, quer dizer, o ódio pelos diferentes. A união do grupo e a fortificação de seus laços amorosos se faz por meio da expulsão do ódio para um objeto externo ao grupo. Quanto mais forte o amor para com os membros da massa, menos ambivalente tem de ser seus laços para com eles, por isso todo ódio referente a esses laços tem de ser expelido do grupo.

O amor pelo igual, Freud explica, é uma transformação do ódio em seu oposto: o amor pelos irmãos é uma transformação do ódio que existe anteriormente entre eles. O irmão primeiramente é um objeto de hostilidade, é quem lhe rouba o amor dos pais e, por isso, há sempre o desejo de que desapareça. O que possibilita a mudança da hostilidade em amor é a identificação com o irmão que se faz pelo elemento comum, a insatisfação de seu próprio desejo; quer dizer, ambos tem seus desejos insatisfeitos (o irmão também não tem só pra si o amor dos pais) e ambos tem de permanecer com seus desejos insatisfeitos para a manutenção da insatisfação. Assim, também para aqueles que fazem parte de um fã clube, a condição da identificação é que ninguém tenha acesso ao ídolo. Justiça significa ninguém se satisfazer.

A primeira exigência dessa formação reativa [o sentimento de massa] é aquela por justiça, tratamento igual para todos. [...] Quando não se pode ser o favorito, nenhum dos outros deve ser favorecido [...] (Freud, 1921/2011, p. 81).

O que depois aparece na sociedade, como espírito comunitário, esprit des corps, não desmente sua procedência da inveja original. Ninguém deve querer sobressair, cada qual deve ser e ter o mesmo. Justiça social quer dizer que o indivíduo nega a si mesmo muitas coisas, para que também os outros tenham de renunciar a elas ou, o que é o mesmo, não possam pretende-las. Tal exigência de igualdade é a raiz da consciência social e do sentimento do dever. (Freud, 1921/2011, p. 81-2).

Como os ressentidos, os insatisfeitos se unem, identificando-se na insatisfação. Na massa, devem desaparecer as particularidades dos indivíduos, "[...] o heterogêneo submerge no homogêneo" (Freud, 1921/2011, p. 19-20), "[...] o indivíduo abandona sua peculiaridade na massa e permite que os outros o sugestionem, que ele o faz porque existe nele uma necessidade de estar de acordo e não em oposição a eles, talvez, então, 'por amor a eles'"(Freud, 1921/2011, p. 45). O desejo da massa de permanecer igual coincide com a aversão à diferença, com a aversão à inovação: "[...] o rebanho rejeita tudo o que é novo, inusitado" (Freud, 1921/2011, p. 79).

As relações humanas são originalmente ambivalentes. Nas massas, no entanto, desaparece a hostilidade e os indivíduos se tornam homogêneos. O que acontece com o narcisismo do sujeito, que hostiliza o outro, na massa? Ele se torna um narcisismo das pequenas diferenças. Na massa, os indivíduos se conduzem como se fossem homogêneos, suportam a especificidade do outro, igualam-se a ele e não sentem repulsa por ele. Mas, em vez de hostilizar um membro da massa, hostiliza-se alguém externo a ela. Em Psicologia das massas, Freud aponta a possibilidade de a hostilidade reprimida exprimir-se contra um outro grupo:

Conforme o testemunho da psicanálise, quase toda relação sentimental íntima e prolongada entre duas pessoas - matrimônio, amizade, o vínculo entre pais e filhos - contém um sedimento de afetos de aversão e hostilidades, que apenas devido à repressão não é percebido. Isso é mais transparente nas querelas entre sócios de uma firma, por exemplo, ou nas queixas de um subordinado contra o seu superior. [...] Toda vez que duas famílias se unem por casamento, cada uma delas se acha melhor ou mais nobre que a outra. Havendo duas cidades vizinhas cada uma se torna a maldosa concorrente da outra; cada pequenino cantão olha com desdém para o outro. Etnias bastante aparentadas se repelem, o alemão do sul não tolera o alemão do norte, o inglês diz cobras e lagartos do escocês, o espanhol despreza o português. Já não nos surpreende que diferenças maiores resultem numa aversão difícil de superar, como a do gaulês pelo germano, do ariano pelo semita, do branco pelo homem de cor (Freud, 1921/2011, p. 57).

Em Mal estar na cultura, Freud esclarece a relação entre a eliminação da hostilidade interna ao grupo, cujos membros se unem no amor, e a intensificação da hostilidade dirigida para alguém fora dele: "Sempre é possível ligar um grande número de pessoas pelo amor, desde que restem outras para que se exteriorize a agressividade" (Freud, 1929/2010b, p. 80-1). Freud então repete os exemplos de hostilidade entre etnias, dados em Psicologia das massas e reproduzidos na citação acima, chamando o fenômeno de "narcisismo de pequenas diferenças" e acrescenta outros exemplos: os massacres dos judeus na Idade Média; a intolerância aos não cristãos depois que o apóstolo Paulo fez do amor universal o fundamento do cristianismo; o antissemitismo necessário para o sonho de um domínio mundial germânico; e a perseguição burguesa necessária à cultura comunista na Rússia. Assim, o ódio ao diferente é condição da intensificação, exigida pela massa, do amor pelo igual, igualmente insatisfeito. Coincidem, então, as duas características da massa: homogeneidade e aversão ao inusitado. Seus elementos amam o igual, porque juntos odeiam o diferente. O amor pelo igual é a contrapartida do ódio pelo diferente; é, por assim dizer, uma sexualização do ódio pelo diferente.

Entretanto, mais do que apenas um objeto para extravasar o ódio, o ódio ao diferente é o elemento que une a massa, que une o grupo. Freud afirma em Psicologia das massas e análise do eu que para a massa transformar a hostilidade em laço social é preciso ser amada pelo líder:

O sentimento social repousa, portanto, na inversão de um sentimento hostil em um laço de tom positivo, da natureza de uma identificação. [...] tal inversão parece ocorrer sob a influência de um laço afetuoso comum a uma pessoa que está fora da massa. [...] a exigência de igualdade da massa vale apenas para os indivíduos da mesma, não para o líder. Os indivíduos todos devem ser iguais entre si, mas todos querem ser dominados por um só. Muitos iguais, que podem identificar-se uns com os outros, e um único, superior a todos eles [...]. Ousemos então corrigir o enunciado de Trotter, segundo o qual o homem é um animal de rebanho [Herdentier], dizendo que ele é antes um animal de horda [Hordentier], um membro individual de uma horda conduzida por um chefe (Freud, 1921/2011, p. 83).

Esse amor, no entanto, é uma remodelação de um ódio original:

a ilusão de que o líder ama a todos de modo igual e justo. [...] isto é remodelação idealista do estado de coisas da horda primeva [Urhorde], em que todos os filhos sabiam-se igualmente perseguidos pelo pai e igualmente o temiam (Freud, 1921/2011, p. 87-8).

O pai da horda era, como Freud afirma em Psicologia das massas e análise do eu, o além do homem que Nietzsche esperava no futuro, mas que estava no passado; era, portanto, quem formou as hordas, livre, inteligente e poderoso. O ódio por ele, quer dizer, pelo forte, diferente e livre, foi o que primeiramente possibilitou a identificação com os que também o odiavam, identificação que determinou o amor pelos iguais, pelos igualmente insatisfeitos. Assim, trata-se de um amor que depende da manutenção do ódio (que este não seja descarregado) para existir. O prazer está em sentir o ódio não descarregado e que, por isso, envenena, narcotiza, contagia e dá prazer. Aqui está a base da sugestionabilidade, do contágio: a intensificação do ódio por alguém externo ao grupo. Se esse sentimento for descarregado, termina a identificação e, portanto, os sentimentos amorosos pelos iguais; por isso trata-se de um ódio que deve permanecer como condição da satisfação sexual com os iguais, que Freud chama de homossexual.

Assim, o ódio comum pelo perseguidor, por um lado, possibilita a identificação e, por outro, absorve toda hostilidade que existe entre os iguais. Ao ser intensificado pela identificação e pela absorção do ódio antes dirigido aos iguais, esse sentimento em comum inebria, narcotiza, contagia, determinando então a contrapartida do próprio ódio que é o prazer na associação com os iguais. Quanto mais ódio ao diferente, mais amor para com os iguais. Ser insatisfeito, torna-se algo de valor e a insatisfação torna-se virtude. O não ao exterior se torna sim ao grupo. O ódio ao diferente constitui o narcisismo de grupo, das pequenas diferenças, que proporciona o amor pelos iguais.

A ideia de que o ódio contra o pai, contra o mau, possibilita a identificação e o amor entre os filhos, entre os bons, sem dúvida é muito próxima da ideia de Nietzsche de que a moral do fraco, do ressentido, constitui-se como antítese ao forte. De acordo com a psicologia dos ressentidos, como escreve Scarlett Marton:

[...] o fraco concebe primeiro a ideia de 'mau', com que designa os nobres, os corajosos, os mais fortes do que ele - então a partir dessa ideia, chega, como antítese, à concepção de 'bom' que atribui a si mesmo [...] o fraco só consegue afirmar-se negando aquele a quem não se pode igualar ( Marton, 1990, p. 90).

Como afirma Nietzsche, o não ao fora é, nos fracos, seu ato criador:

Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um "fora", um "outro", um "não-eu" - e este Não é seu ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores - este necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si - é algo próprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto - sua ação é no fundo reação (Nietzsche, 1887/1998, p. 29).

Como a massa em Freud, o ressentido em Nietzsche ama o igual e odeia o diferente. Seu ódio, por sua vez, não pode ser inteiramente descarregado, por isso conduz mais do que ao reagir ao res-sentir, como nos esclarece Marton:

Ódio e desejo de vingança seriam as palavras-chaves para se compreender o ressentimento. É a diferença que causa ódio, ou melhor, é a recusa da diferença que o engendra. É da própria impotência que nasce e se alimenta o desejo de vingança. É por isso que ressentimento não é sinônimo de reação: justamente por ser impotente para re-agir, ao fraco, só restaria res-sentir (Marton, 1990, p. 90).

Os fracos têm prazer no agrupamento, nele, de certa forma, se livram do sentimento de fraqueza:

a formação do rebanho é avanço e vitória essencial na luta contra a depressão. [...] Todos os doentes, todos os doentios, buscam instintivamente organizar-se em rebanho, na ânsia de livrar-se do surdo desprazer e do sentimento de fraqueza [...] onde há rebanho, é o instinto de fraqueza que o quis, [...] os fortes buscam necessariamente dissociar-se, tanto quanto os fracos buscam associar-se; [...] os fracos [...] se agrupam, tendo prazer nesse agrupamento - seu instinto se satisfaz com isso (Nietzsche, 1887/1998, p. 125)

Nesse agrupamento, faz-se da fraqueza, da insatisfação, uma virtude. A percepção de que todos são insatisfeitos, fracos, valoriza-os, faz de todos virtuosos. O ódio insatisfeito torna-se virtude. Ama-se o outro não porque ele é forte, admirado, pois realiza seus desejos, mas justamente porque ele é fraco e insatisfeito e odeia os fortes e satisfeitos.

Mas se a condição das massas é a insatisfação, a impotência, isso não quer dizer que a vontade da massa não provoque ações, como ocorreu com os filhos na horda primitiva:

O que descrevemos em nossa caracterização geral do ser humano deve valer particularmente para a horda primordial. A vontade do indivíduo era fraca demais, ele não se arriscava a agir. Não se produziam impulsos [Impuls] que não fossem coletivos, havia apenas uma vontade comum, nenhuma singular. A ideia [representação] não ousava converter-se em ato de vontade quando não se sentia fortalecida pela percepção de sua difusão geral. Essa fraqueza de ideia tem sua explicação na força da ligação afetiva comum a todos (Freud, 1921/2011, p. 85).

Apesar de fracos individualmente, se tornam fortes e violentos em relação ao diferente quando na massa. Parece-nos evidente que a violência aos diferentes, violência constituinte do grupo homogêneo de iguais, é uma constante motivação das ações e do

discurso do governo atual: este e seus fiéis se fortalecem com o ódio à esquerda, aos negros, aos índios, às mulheres, aos LGBTQIA+, à ciência, aos direitos humanos, à proteção do meio ambiente.

No entanto, devemos observar que, se o núcleo do governo se fortalece com o ódio aos diferentes, essa não é uma lógica exclusiva desse grupo, é uma lógica constitutiva das sociedades modernas.

 

6. O direito e o estado de exceção

A ideia de que a violência é a contrapartida da formação da homogeneidade da massa aproxima-se bastante da ideia de Agamben de que a figura do estado de exceção faz com que o direito só possa ser compreendido e definido a partir da anomia, do estado de exceção, quer dizer, da sua própria suspensão. Segundo Giacoia, em seu livro sobre Agamben:

O direito só pode ser genealogicamente compreendido a partir de uma zona de anomia, que, no entanto, o define: a decisão soberana sobre o estado de exceção, aquele vácuo, que não é caos, mas que cria um meio homogêneo que assegura a vigência e validade das normas jurídicas. O direito não pode existir senão pela captura da anomia, ou seja, a decisão (infundada por essência) é a verdade última da norma. [...] A relação entre norma e realidade implica a suspensão da norma (Giacoia, 2018, p. 198).

Trata-se de uma "[...] nova compreensão da essência da política a partir da figura da exceção, pois é nela que se decide a relação medular entre violência e direito, entre o ordenamento jurídico e o fato político da dominação" (Giacoia, 2018, p. 151). A produção do estado de exceção e a soberania que o institui estão no cerne do estado de direito, funcionam como uma "exclusão inclusiva" que acaba funcionando como fundamento (Giacoia, 2018, p. 198).

Assim, o estado de direito, a estrutura jurídica que realiza a justiça entre os iguais, como a massa, não só se estabelece a partir da violência e se mantém por meio dela, mas tem seu fundamento nela, no estado de exceção, nos quais a lei é suspensa. Os iguais se constituem e se mantém destituindo os diferentes.

 

7. Racismo

Mas se o campo de concentração de Auschwitz foi "[...] o lugar no qual se realizou a mais absoluta conditio inumana que jamais existiu na terra" (Giacoia, 2018, p. 71) e sua essência "[...] consiste na materialização do estado de exceção - e na subsequente criação de um espaço para a vida nua enquanto tal" (Giacoia, 2018, p. 72), as próprias formulações sobre o estado de exceção como suspensão do direito e como prerrogativa do soberano formuladas por Carl Schmitt remetiam às colônias africanas. Assim, a violência cometida por Hitler já era repetição de outras. Como afirma Aimé Césaire:

[...] no fundo, o que não perdoa a Hitler não é o crime em si, o crime contra o homem, não é a humilhação do homem em si, é o crime contra o homem branco, a humilhação do homem branco e o ter aplicado à Europa processos colonialistas a que até aqui só os árabes da Argélia, os "coolies" da Índia e os negros da África estavam subordinados (Césaire, 1955/1978, p. 14).

Segundo Mbembe, como para Agamben, o projeto de soberania "[...] não é a luta pela autonomia, mas a instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material de corpos humanos e populações" (Mbembe, 2003/2018, p. 10-11). Uma vez que o racismo é uma categoria fundamental para a compreensão desse poder soberano destruidor de corpos e populações, a própria modernidade pode ser pensada como um desenvolvimento do princípio das raças. Nas palavras de Mbembe, o advento da modernidade

[...] coincide com o surgimento do princípio de raça e com a lenta transformação desse princípio em matriz privilegiada para as técnicas de dominação, no passado tanto quanto no presente. Para sua reprodução, o princípio da raça depende de um conjunto de práticas cujo alvo imediato, direto, é o corpo do outro e cujo campo de aplicação é a vida em sua generalidade. [...] Por princípio de raça se deve entender, aliás, uma forma espectral da divisão e da diferença humana, suscetível de ser mobilizada para fins de estigmatização, de exclusão e de segregação, por meio das quais se busca isolar, eliminar e até mesmo destruir fisicamente determinado grupo humano (Mbembe, 2013/2019, p. 106)

O sistema que possibilita o surgimento do princípio de raça é o da escravidão. Assim "[...] as ideias modernas de liberdade, igualdade e democracia são [...] historicamente inseparáveis da escravidão" (Mbembe, 2013/2019, p 148), a qual o Brasil parece não abandonar, impondo-se como uma compulsão à repetição. É importante enfatizar que quando consideramos, em Nietzsche, a psicologia das massas como a psicologia do ressentido, do fraco, do escravo, não a consideramos a psicologia do negro escravizado e sim a do soberano que se constitui negando o diferente, no caso, o negro escravizado. Entendemos que, para o filósofo, a moral ressentida/escrava diz "não" a um "fora", a um "outro", a um "não-eu". E esse "não" é seu ato criador, por isso a moral ressentida coincide com a moral daquele que precisa negar o outro que, na história moderna, disse "não" a tudo que não era o europeu. A moral nobre, em Nietzsche, não diz "não" ao outro, diz apenas "sim" a si mesmo (não precisa negar o outro para se constituir). Ela consiste naquilo que é, portanto, excluído pela moral do ressentido e que diz "sim" a si mesmo (o pacto dos ressentidos é a insatisfação, o dizer "não" à satisfação dos próprios impulsos, a si mesmo). Nesse caso, a moral nobre consiste no próprio negro, que "[...] veio a significar [...] a exigência de segregação" (Mbembe, 2013/2019, p. 93).

A divisão do mundo, entre os europeus superiores e os não europeus inferiores, e o gigantesco saque de terras tiveram sua origem em uma série de acontecimentos que se estendeu do século XV ao XIX e que assumiu quatro formas:

A primeira foi o extermínio de povos inteiros, em especial nas Américas. A segunda foi a deportação, em condições desumanas, de carregamento de muitos milhões de negros para o Novo Mundo, onde um sistema econômico fundado na escravidão contribuiu de maneira decisiva para a acumulação primitiva de um capital já desde então transnacional e para a formação de diásporas negras. A terceira foi a conquista, anexação e ocupação de vastas terras até então desconhecidas da Europa e a submissão de suas gentes à lei do estrangeiro, sendo que anteriormente se governavam a si mesmos segundo modalidades bastante diversas. A quarta se refere à formação de Estados racistas (Mbembe, 2013/2019, p. 108-9)

É certo que todas essas formas de extermínio e segregação dizem respeito a nossa realidade, mas nos detenhamos na segunda forma, na escravidão que acontecia nos latifúndios (plantations) brasileiros, a figura emblemática e paradoxal do estado de exceção:

Em muitos aspectos, a própria estrutura do sistema de plantations e suas consequências manifesta a figura emblemática e paradoxal do estado de exceção [...], a humanidade do escravo aparece como uma sombra personificada. A condição de escravo resulta de uma tripla perda: perda de seu "lar", perda dos direitos sobre seu corpo e perda de estatuto político. Essa tripla perda equivale a uma dominação absoluta, uma alienação de nascença e uma morte social (que é a expulsão fora da humanidade). Enquanto estrutura político-jurídica, a plantations é sem dúvida um espaço em que o escravo pertence ao senhor (Mbembe, 2003/2019, p. 27)

Trata-se de um estado de exceção cuja manutenção ou não da vida depende a todo momento da disposição do capataz, do capitão do mato:

Como instrumento de trabalho o escravo tem um preço. [...] Seu trabalho responde a uma necessidade e é utilizado. O escravo, por conseguinte, é mantido vivo, mas em 'estado de injúria', em um mundo espectral de horrores, crueldade e profanidade intensos. O curso violento da vida de escravo se manifesta pela disposição de seu capataz em se comportar de forma cruel e descontrolada ou no espetáculo de sofrimento imposto ao corpo do escravo. Violência, aqui, torna-se um componente de etiqueta, como dar chicotada ou tirar a vida do escravo: um capricho ou um ato de pura destruição visando incutir terror. A vida do escravo em muitos aspectos, é uma forma de morte-em-vida (Mbembe, 2013/2019, p. 28/9).

Resistindo ao aparato de desumanização, os escravos continuam seres humanos e continuam criando. Por isso, a revolta dos escravos permanece sempre como uma ameaça:

ainda que juridicamente definidos como bens móveis e apesar das práticas de crueldade, degradação e desumanização, os escravos continuam sendo seres humanos. Por meio de seu labor a serviço de um senhor, continuam a criar um mundo. Pela via do gesto e da fala, tecem relações e um universo de significações, inventam línguas, religiões, danças e rituais e criam uma 'comunidade'. A destituição e a abjeção que lhe são impostas não eliminam inteiramente sua capacidade de simbolização (Mbembe, 2013/2019, p. 95).

Se a escravidão contribuiu de maneira decisiva para a acumulação primitiva do capital, a expansão do liberalismo exigiu a anexação e a ocupação do resto do mundo e, com isso, algumas alterações na construção do negro, a terceira forma na história da divisão do mundo, que terá também profundas consequências para a população negra brasileira após a abolição da escravidão:

A expansão do liberalismo como doutrina econômica e arte específica de governar foi financiada pelo comércio de escravos, num momento em que, submetidos a uma acirrada concorrência, os Estados europeus se esforçavam para ampliar seu poder e consideravam o resto do mundo sua propriedade e seu domínio econômico (Mbembe, 2013/2019, p. 145).

Já não bastava apelar para o estado de exceção, mas produzi-lo, intensificando o perigo que representa o inimigo. Quando

[...] o poder (e não necessariamente o poder estatal) continuamente se refere e apela à exceção, à emergência e a uma noção ficcional do inimigo. Ele também trabalha para produzir a mesma exceção, emergência e inimigo ficcional (Mbembe, 2003/2018, p. 17).

A noção de perigo, necessária ao estabelecimento da sociedade disciplinar, será fortemente apoiada no perigo racial:

Segundo Foucault, o paradoxo do liberalismo 'é que é necessário, de um lado, produzir a liberdade, mas esse gesto mesmo implica que, de outro lado, se estabeleçam limitações, controles, coerções, obrigações apoiadas em ameaças etc.' [...] a economia do poder típica do liberalismo e da democracia de mesma extração se assenta no jogo cerrado da liberdade, da segurança e da proteção contra a onipresença da ameaça, do risco e do perigo. [...] 'o liberalismo se insere num mecanismo em que terá, a cada instante, de arbitrar a liberdade e a segurança dos indivíduos em torno da noção de perigo' (Foucault). O escravo negro representa esse perigo. [...] O perigo racial, em particular, constituiu desde as origens um dos pilares dessa cultura do medo intrínseca à democracia liberal (Mbembe, 2013/2019, p. 147).

A produção de um estado de exceção, de suspensão da lei, referia-se a um além mundo europeu, sem lei, sem direito, onde só imperava a lei dos mais fortes e justificava a luta desenfreada como a de animais selvagens:

Admitia-se, portanto, que a ordem do mundo estava delimitada em esferas, separando o interior e o exterior. A esfera interior era regida pelo direito e pela justiça, condições [...] da vida em sociedade [...]. Mas havia também, lá fora, um campo aberto de não direito, sem lei que se pode em boa consciência pilhar e extorquir, onde pode ter livre curso a ação de piratas, flibusteiros, bucaneiros, aventureiros, criminosos e toda a espécie "de elementos alheios à sociedade normal e sadia". [...] era possível reconhecer a linha que separava a Europa desse além-mundo no fato de que era lá que cessava a limitação da guerra. Do outro lado da linha, diz Carl Schmitt, começava uma zona em que, na falta de qualquer limitação jurídica imposta à guerra, contava apenas o direito do mais forte. [...] O além do mundo é [...] esse espaço livre da luta desenfreada [...], onde os homens são livres para se confrontarem como animais selvagens (Mbembe, 2013/2019, p. 111-3)

Em nome da inferioridade moral dos africanos, de sua condição de "[...] escravo por natureza" (Mbembe, 2013/2019, p. 114), o africano era considerado inimigo e isso justificava sua sujeição.

Na realidade, existia um direito, para os civilizados, de dominar os não civilizados, de conquistar e escravizar os bárbaros devido à sua intrínseca inferioridade moral, de anexar suas terras, ocupa-las e subjuga-los. Esse direito originário de intervenção fazia parte do "bom direito", que se aplicava tanto às guerras de extermínio quanto às guerras de escravização (Mbembe, 2013/2019, p. 114-5).

O direito do "civilizado" de agir como um animal selvagem, dominando e escravizando, fundamentava-se na "[...] ideia da humanidade dividida entre raça de conquistadores e outra de escravos" (Mbembe, 2013/2019, p. 115). Passa a existir, no século XX, uma naturalização do racismo por meio da cultura de massas. Nos Estados Unidos, é emblemático o filme O nascimento de uma nação, onde o negro ataca a ingênua branca. O negro passa então a fazer parte constante do noticiário policial. Por outro lado, na Europa, concebe-se a cruel dominação como proteção a idiotas:

o africano é mostrado não apenas como uma criança, mas como uma criança idiota [...]. Essa idiotia seria consequência de um defeito congênito da raça negra. A colonização seria uma forma de assistência, de educação e de tratamento moral dessa idiotia, além de um antídoto para o espírito de brutalidade [...] representavam uma benção da civilização. [..] Léon Blum chegou a dizer em 1925: "Admitimos o direito e até o dever das raças superiores de atrair a si aquelas que não alcançaram o mesmo grau de cultura, de chama-las para os progressos realizados graças aos sacrifícios da ciência e da indústria". Os colonos eram, não senhores cruéis e ávidos, mas sim guias e protetores (Mbembe, 2013/2019, p. 121)

Assim, concebia-se que ser conquistado era uma libertação para os pobres coitados:

As tropas francesas eram heroicas e intrépidas, arrancavam dos escravos [por natureza] os grilhões que os prendiam pelo pescoço e as cordas que os atavam pelas pernas. Esses pobres coitados, tão logo eram libertados, ficavam tão felizes que chegavam a dar pulos de alegria (Mbembe, 2013/2019, p. 121).

Como encobrimento da violência fundadora que despojou o africano de sua humanidade, sua figura é apresentada como exótica, frívola e voltada para diversão: os negrinhos brincalhões, "[...] os pretos bons e seus bons amos, libertos mas eternamente gratos e fiéis, cujo papel é validar a magnanimidade do branco" (Mbembe, 2013/2019, p. 127) "[...] as 'belezas negras' seriam mulheres indolentes, disponíveis e submissas [...], instigam as pulsões fantasiosas do macho [...], que logo se imagina como o explorador branco nos confins da civilização" (Mbembe, 2013/2019, p. 128). "Devido à sua inferioridade, os negros eram aptos à escravidão, e sua felicidade só poderia ser alcançada a serviço de um bom senhor" (Mbembe, 2013/2019, p. 137).

Essa nova construção do negro é contemporânea ao fim da escravidão no Brasil, à chegada dos imigrantes europeus como mão de obra e à consequente exclusão dos primeiros do mercado de trabalho. A respeito das teorias deterministas, também denominadas "darwinistas sociais", que, nesse contexto, pretenderam classificar a humanidade em raças, Lilia Schwarcz escreve:

As decorrências desses pressupostos tinham, entre outros, o poder de perpetuar estruturas de dominação do passado, colocando em seu lugar novas formas de racialização, as quais buscavam justificar biologicamente diferenças que eram históricas e sociais [...] Tal configuração social, que levou à exclusão de boa parte da população das principais instituições brasileiras, produziu ainda um apagamento dos poucos intelectuais negros que haviam logrado se distinguir na época colonial e especialmente durante o Império. Também ocultou uma série de sociedades, associações e jornais comunitários negros, idealizados na Primeira República, que procuravam na base da coletividade, lutar pela necessária inclusão social. [...] Com a entrada do século XX [...] a exclusão social voltou a crescer no Brasil; os negros sendo sistematicamente apartados das políticas e das benesses do Estado (Schwarcz, 2019, p. 31).

A quarta forma de segregação, os Estados racistas, representados em seu extremo pelo apartheid na África do Sul e na Alemanha nazista, decorre de uma relação entre raça e burocracia que "[...] resultaram potencialidades inéditas de acumulação de poder para espoliar, produzir e gerar resíduos de homens" (Mbembe, 2013/2019, p. 107). Relação cuja combinação "[...] acarretou igualmente um engrenamento das potencialidades de destruição, massacre e administração" (Mbembe, 2013/2019, p. 107).

Se o racismo acarretou potencialidades de destruição inimagináveis, é de se notar que foi também construído como um trabalho de ocultação, de justificação da violência:

Os selvagens são, por assim dizer, seres humanos 'naturais', que carecem do caráter específico humano, da realidade especificamente humana, de tal forma que, 'quando os europeus os massacravam, de certa forma não tinham consciência de cometerem um crime' (Arendt, Origens do totalitarismo) (Mbembe, 2003/2018, p. 36).

Trata-se de destituir o outro de humanidade para extorqui-lo, destruí-lo sem culpa, para realizar uma certa banalização do mal. Freud, em Considerações sobre a guerra e a morte, identifica um fenômeno similar nos soldados que retornavam das batalhas. Diante da morte do inimigo, não há nem ambivalência nem consciência da satisfação do ódio. Em relação à proibição "não matarás" aplicada aos inimigos, escreve:

Neste último caso não é mais sentida pelo homem civilizado. Quando a selvagem luta dessa guerra estiver decidida, cada um dos combatentes vitoriosos retornará feliz para o lar, para sua mulher e seus filhos, desimpedido e sem perturbar-se com a lembrança dos inimigos que matou em corpo a corpo ou por armas de longo alcance (Freud, 1910, p. 240).

O combatente, portanto, não só não reconhece seus impulsos cruéis, como também não sente remorsos quando os satisfaz. Coisa bem diferente, diz Freud, ocorre nas outras culturas:

O selvagem - australiano, bosquímano, fueguino - não é absolutamente um matador sem remorso; ao retornar vitorioso de uma expedição guerreira, ele não pode pisar o chão de sua aldeia nem tocar em sua mulher sem antes expiar, por meio de penitências [...] os atos assassinos que cometeu na guerra. [...] o selvagem ainda teme a vingança dos espíritos dos que abateu. Mas os espíritos dos inimigos abatidos não são outra coisa que a expressão de sua má consciência devido à 'dívida de sangue' [o 'derramamento de sangue'- 'Blutschuld']; por trás dessa superstição está um quê de sensibilidade ética que nós, homens civilizados, já perdemos (Freud, 1910, p. 240).

Os civilizados perderam sua sensibilidade, não sentem remorsos. Diferente dos australianos, bosquímanos e fueguinos, os civilizados perderam a consciência de sua ambivalência para com o objeto, para com o inimigo. Na infância, amor e ódio se aproximam. Amor implica em devoração, quer dizer, em destruição; ódio implica em romper uma resistência do objeto odiado, o que fortalece o indivíduo e, por isso, provoca admiração pelo objeto odiado, que resiste. Na constituição das massas, como vimos, há uma rígida separação entre amor e ódio. O amor é dirigido para os iguais e só para eles e o ódio é dirigido para os diferentes. Na psicologia das massas, não há ambivalência, pois os iguais não admitem hostilidade entre si. Esta, portanto, se amplia em direção ao diferente. Na perda da sensibilidade dos combatentes a hostilidade, apesar de intensa, também não é percebida como tal. É como se houvesse um trabalho para disfarçá-la.

A criação fictícia do inimigo, do selvagem perigoso, parece também ter servido para matá-lo, dominá-lo e explorá-lo sem culpa, de forma indiferente, insensível. Há todo um esforço para ocultar a violência como exceção. A violência precisa ser justificada, legitimada, aparecer como seu oposto.

Por um lado, a violência satisfaz as exigências de justiça do ressentido, ou seja, todos tem de permanecer insatisfeitos, todos aqueles que não permanecem na mesma condição de insatisfeitos, os diferentes, são odiados e devem ser controlados, reprimidos ou mortos. Por outro lado, a violência representa o forte, o livre, justamente aquilo que se quer negar, por isso é necessário disfarçá-la. Como no Antigo Testamento, que oculta o fato de os judeus terem matado Moisés, as racionalizações do eu ocultam, disfarçam a realização de desejos reprimidos, como a indiferença diante do genocídio brasileiro é disfarçada pela indignação. O racismo serve para ambos, serve como motivo para a violência e como disfarce da mesma.

O que se passa na pandemia? Um claro genocídio à população pobre, disfarçado de fatalidade, vivido com indiferença por aqueles diretamente responsáveis - o poder público - e assistido com indiferença pela população, que consente e continua apoiando o governo que exerce seu poder de escolher aqueles que deixará morrer.

É evidente a diferença entre a organização da resposta dada à pandemia aos primeiros casos que chegaram ao Brasil, quando brasileiros voltam da Europa e a Covid-19 ameaça, portanto, a elite, em comparação à resposta à sua disseminação nas periferias, desorganizada e desinformada. O abandono é simbolizado tanto na ausência de um ministro da saúde quanto na diferença, por exemplo, entre um hospital de campanha montado no Pacaembu em São Paulo, sem pacientes, e o Hospital Tide Setúbal na zona Leste da cidade, com lotação máxima e uma taxa de mortalidade de 90% nos leitos de UTI. Isso porque os pacientes ali chegavam em estado já muito avançado da doença, uma vez que era indicado à população evitar ir ao hospital. Trata-se da mais explícita necropolítica, da divisão entre os que devem viver e os que devem morrer, aqueles por quem vale a pena gastar dinheiro público e aqueles que não o merecem. O fato da maioria de mortos ser negra nos impede de não vincular esse genocídio com o racismo, elemento de sustentação do biopoder:

Na formulação de Foucault, o biopoder parece funcionar mediante a divisão entre as pessoas que devem viver e as que devem morrer [...] pressupõe a distribuição da espécie humana em grupos, a subdivisão da população em subgrupos e o estabelecimento de uma cesura biológica entre uns e outros. Isso é o que Foucault rotula com o termo (aparentemente familiar) "racismo" (Mbembe, 2003/2018, p.17)

Não se tratou, portanto, de uma insensibilidade diante das mortes devido à pandemia, pois, no que diz respeito às classes alta e média, estas foram eficientemente evitadas com o isolamento inicial. Tratou-se sim de insensibilidade com a morte de determinada parcela da população: dos pobres, dos negros. Pobres divididos em saudáveis e frágeis, ou seja, idosos e pessoas com comorbidades. Os pobres saudáveis, fundamentais para transportar os objetos de consumo das classes alta e média no isolamento (os motoboys), instados a rompê-lo, como se, para a classe média, não fosse contraditório reclamar da falta de adesão às normas de segurança e, ao mesmo tempo, valer-se excessivamente do serviço dos motoboys. A população, apesar de criticar duramente o presidente, aceitou as mortes com naturalidade, como se fossem esperadas; eram mortes apenas antecipadas. Odiar o presidente parecia nos dar direito de utilizar o serviço dos motoboys sem culpa. Ao mesmo tempo, a não existência de nenhum movimento efetivo contra o governo, manteve a legitimação de suas ações. É como se as ações do governo ficassem entre o que nos indigna, nos mantendo com nossa consciência moral satisfeita e iludida, e o que aceitamos e legitimamos, pois nos é indiferente. Legitimação esta que não acontece a partir de um discurso em prol do racismo, por exemplo, mas com nossa indiferença aos horrores e violências que ele produz e que o escancaram.

Mas, se a indiferença das classes alta e média diante do genocídio provocado pela falta de estrutura no combate à Covid-19 significou uma forma de legitimá-lo, a base de sustentação do governo (e, portanto, da legitimação do genocídio) é também popular. E, nesse sentido, o racismo parece ter um importantíssimo papel.

Segundo Jessé Souza, a estratégia do governo Bolsonaro foi acirrar o racismo na periferia, destruindo os laços sociais duramente constituídos e fortificados nos últimos governos do PT (sendo necessário observar, nos próximos anos, se essa tendência à destruição de fato destruiu ou se gerou uma maior organização, tendo em vista as mobilizações do movimento negro e a organização interna de muitas comunidades no combate à Covid-19 sem, no entanto, esquecer que o apoio ao presidente ainda é bastante persistente). Segundo Jessé Souza, "[...] a irracionalidade de Bolsonaro, sua loucura e sua idiotice são a expressão perfeita do ódio racial brasileiro" (Souza, 2019a). Qual a história do ódio racial no Brasil? Na sociedade pós-escravocrata, o ex-escravizado, abandonado e humilhado, é relegado a funções de trabalho indignas, trabalho sujo, pesado, perigoso, doméstico.

[...] é afastado do mercado de trabalho competitivo e passa a desempenhar as mesmas funções humilhantes e indignas que exercia antes. Seja tanto as funções de trabalho sujo, pesado e perigoso, para os homens, quanto as funções domésticas do antigo "escravo doméstico", para as mulheres, as quais reproduzem todas as vicissitudes da antiga relação senhor/escravo. Faz parte do âmago desta relação não só a exploração do trabalho vendido a preço vil, mas também a humilhação cotidiana transformada em prazer sádico para o gozo frequente e para a sensação de superioridade e a "distinção social" das classes média e alta (Souza, 2019a, s/p).

Trata-se, segundo Jessé de Souza, da constituição de uma ralé:

A 'ralé de novos escravos', mais de um terço da população, é explorada pela classe média e pela elite do mesmo modo que o escravo doméstico: pelo uso de sua energia muscular em funções indignas, cansativas e com remuneração abjeta. Em outras palavras, os estratos de cima roubam o tempo dos de baixo e o investem em atividades rentáveis, ampliando seu próprio capital social e cultural (com cursos de idiomas e pós-graduação, por exemplo) e condenando a outra classe à reprodução de sua miséria. A [...] ralé é uma continuação direta dos escravos. Ela é hoje em grande parte mestiça, mas não deixa de ser destinatária da superexploração, do ódio e do desprezo que se reservavam ao escravo negro. O assassinato indiscriminado de pobres é atualmente uma política pública informal de todas as grandes cidades brasileiras (Souza, 2017, s/p).

Essas classes populares são odiadas e desprezadas, como os escravos eram. Você pode matar um pobre no Brasil, que não acontece nada. A polícia mata com requintes de crueldade e ninguém se comove porque os pobres são percebidos de modo desumanizado, como os escravos eram. A escravidão perpassa o núcleo da sociedade brasileira. E boa parte da classe média tem preconceitos de senhor de escravo e da elite com relação a esse povo (Souza, 2019b, s/p).

Se a classe média não se comove com os assassinatos, para a polícia que mata, para as milícias e apoiadores de Bolsonaro, a violência contra essa "ralé" é aplaudida e estimulada, assim como a ficção do inimigo africano perigoso. O mesmo ocorre com a perspectiva da catástrofe na saúde nos bairros pobres:

A perspectiva de uma catástrofe de saúde nos bairros pobres - em que as famílias vivem em condições extremamente apertadas e principalmente sob condições higiênicas miseráveis - parece ser uma promessa para certos grupos. O aviso de que o cornavírus matará muitos idosos e pobres nas favelas é música para os ouvidos dos seguidores radicais de Bolsonaro. Espera-se que a morte de muitos idosos possa reduzir o déficit no sistema de pensões. Ao mesmo tempo, as milícias usam o caos nas favelas para seu modelo de negócios semelhante à máfia. Toda morte de um jovem negro que não pode mais se tornar um "criminoso" é cinicamente comemorada como um "expurgo ético" (Souza, 2020, s/p).

O acirramento do racismo por parte do governo consistiu em contrastar "pobres honestos" e "pobres delinquentes". Racismo de quem? De uma parcela de imigrantes europeus brancos, como o presidente, que vieram para o Brasil quando, depois da abolição da escravidão, o país implementava uma política abertamente racista de importação de imigrantes europeus brancos.

O imigrante branco, na maioria o italiano ou o português, irá constituir no Brasil, ao mesmo tempo em aliança e a serviço da elite de proprietários, uma espécie de 'bolsão racista e classista' contra os negros e pobres que constituem a maior parte do povo. [...] o preconceito universal contra o negro e ex-escravo permite a construção de uma frente comum para a manutenção de uma distinção social positiva contra os negros, o que eterniza o abandono, a humilhação, e o genocídio desta raça/classe como política pública informal. [...] Muitos imigrantes não conseguiram ascender à classe média verdadeira nem à elite. Boa parte vai constituir uma zona cinza que inclui a classe trabalhadora precária e o que poderíamos chamar de "baixa classe média". O cotidiano de muitos destes não difere muito da vida do negro e do pobre brasileiro. Moram eventualmente no mesmo bairro e passam privações materiais. É precisamente nesta faixa social que o preconceito de raça é ainda mais importante. Afinal, a única distinção que este pessoal tem na vida é a "brancura" da cor da pele para exibir contra o negro. [...] Neste contexto, não se casar com um negro ou com uma negra é a regra familiar mais importante e mais rígida. Aqui, o preconceito puro, o orgulho da cor da pele e da origem é a única distinção social positiva ao alcance. Se a elite e a classe média exploram economicamente - além de humilhar - os negros, aqui só se pode humilhar. Enfatizar uma distância social quase inexistente do ponto de vista econômico exige um racismo "racial" turbinado e levado às últimas consequências. Embora a elite e a classe média real e canalha também tenham votado nele [em Bolsonaro], sua real base de apoio é o "lixo branco" brasileiro, próximo do negro e por conta disso ávido por criminalizá-lo, estigmatizá-lo como bandido e por assassiná-lo impunemente. A associação com a milícia, a tara pelas armas e o discurso de ódio são para matar o preto e o pobre (Souza, 2019a, s/p)

Esse racismo do branco pobre (petit Blanc) é também apontado por Mbembe:

O sistema de plantation e a colônia foram [...] fábricas por excelência de raça e do racismo. Em especial para o branco pobre, era alimentando e cultivando as diferenças que o separavam do negro que ele obtinha a sensação de ser humano. O sujeito racista reconhece em si mesmo a humanidade não naquilo que o torna igual aos outros, mas naquilo que o distingue deles (Mbembe, 2013/2019, p.76)

Bolsonaro, seus seguidores e as milícias parecem realizar um papel bastante similar ao dos colonizadores, ou melhor, dos capitães do mato, aqueles que fazem o serviço sujo no qual há "[...] a combinação de volúpia, frenesi e crueldade" (Mbembe, 2013/2019, p. 196), algo que Mbembe relacionou ao dionisíaco. Mas que tipo de crueldade é essa? Aquela bárbara à qual o trabalho da civilização se opõe? Já vimos que não. Ela foi a contrapartida dos ideais igualitários e a garantia dos direitos dos europeus; é fundamento do capitalismo e aliada à burocracia, como foram os campos de concentração na Alemanha nazista. É a contrapartida da administração total, do biopoder. O que em Nietzsche seria a moral do fraco, que odeia o diferente.

O nobre, que estaria mais próximo ao prazer dionisíaco, no entanto, tem outra relação com a violência. Ele não a descarta e tem satisfação com ela. Assim, escreve Nietzsche:

[...] o credor podia infligir ao corpo do devedor toda sorte de humilhações e torturas. [...] A equivalência está em substituir uma vantagem diretamente relacionada ao dano (uma compensação em dinheiro, terra, bens de algum tipo) por uma espécie de satisfação íntima, concedida ao credor como reparação e recompensa - a satisfação de quem pode livremente descarregar seu poder sobre o impotente, a volúpia de "fair ele mal pour le plaisir de le faire", o prazer de ultrajar [...] Através da "punição" ao devedor, o credor participa de um direito dos senhores; experimenta enfim ele mesmo a sensação exaltada de poder desprezar e maltratar alguém como "inferior" [...] A compensação consiste, portanto, em um convite e um direito à crueldade (Nietzsche, 1887/1998, p. 54).

Ver-sofrer faz bem, fazer-sofrer mais bem ainda - eis uma frase dura mas um velho e sólido axioma, humano, demasiado humano, que talvez até os símios subscrevessem (Nietzsche, 1887/1998, p. 56).

Apesar do prazer no fazer sofrer, como aponta Giacoia,

[...] forte não é aquele que é capaz de sujeitar o outro pela violência, ou de impor de modo impiedoso e desconsiderado seus apetites de poder, seus interesses. Em sentido próprio, forte é aquele que possui força plástica de esquecimento e assimilação mais inteira, mais organicamente sadia (Giacoia, 2001, p.85).

O forte, diferente do fraco, não leva a sério seus inimigos; quando quer se vingar, reage imediatamente e não se envenena com seu ódio. Segundo Nietzsche,

Mesmo o ressentimento do homem nobre, quando nele aparece, se consome e se exaure numa reação imediata, por isso não envenena: por outro lado, nem sequer aparece, em inúmeros casos em que é inevitável nos impotentes e fracos. Não conseguir levar a sério por muito tempo seus inimigos, suas desventuras, seus malfeitos inclusive - eis o indício de naturezas fortes e plenas, em que há um excesso de força plástica, modeladora, regeneradora, propiciadora do esquecimento [...]. Um homem tal sacode de si, com um movimento, muitos vermes que em outros se enterrariam (Nietzsche, 1887/1998, p. 31) .

Nesse sentido, forte é aquele cuja força plástica garante que seu ódio não o envenene. O prazer na crueldade do presidente, dos bolsonaristas, das milícias e dos racistas, no entanto, é um prazer no ódio que envenena, de quem falta força plástica para livrar-se do próprio ódio, portanto daquele que cultiva o ódio em vez de sacudi-lo de si. É evidente, no entanto, que a indiferença à política genocida deve-se aos interesses aos quais ela serve: um diversionismo enquanto se "passa a boiada"1. E qual é a boiada?

[...] a suspensão dos direitos sociais em nome da austeridade fiscal [que] tornaram populações inteiras submetidas as mais precárias condições ou simplesmente abandonadas a própria sorte [...] Em nome de uma pretensa 'responsabilidade fiscal', segue-se a onda de privatizações, precarização do trabalho e desregulamentação de setores da economia. Do ponto de vista ideológico, a produção de um discurso justificador da destruição de um sistema histórico de proteção social [...] o discurso ideológico do empreendedorismo [...], da meritocracia, do fim do emprego e da liberdade econômica (Almeida, 2019, p. 206).

Por que diversionismo?

Ao mesmo tempo, naturaliza-se a figura do inimigo, do bandido que ameaça a integração social, distraindo a sociedade que, amedrontada pelos programas policiais e pelo noticiário, aceita a intervenção repressiva do Estado em nome da segurança, mas que na verdade servirá para conter o inconformismo social diante do esgarçamento provocado pela gestão neoliberal do capitalismo (Almeida, 2019, p. 206-7).

E o racismo, diante do desmantelamento do Estado, cumpre um papel fundamental. Também nas palavras de Silvio Almeida,

Nos momentos de crise, em que há uma aumento do desemprego e rebaixamento dos salários, o racismo desempenha um papel diversionista bastante importante, pois os trabalhadores atingidos pelo desemprego irão direcionar sua fúria contra as minorias raciais e sexuais, que serão responsabilizadas pela decadência econômica por aceitarem receber salários mais baixos quando não pela 'degradação moral' a que muitos identificarão como motivo da crise. O racismo será, portanto, a forma dos trabalhadores brancos racionalizarem a crise que lhes trouxe perdas materiais e de lidarem com as perdas simbólicas (Almeida, 2019, p. 187).

Tendo em vista como a psicologia das massas, isto é, o ódio ao diferente, se manifesta atualmente no Brasil com o acirramento do racismo, voltemos a Freud para fazer uma rápida observação sobre o papel que a união das massas e a reivindicação de igualdade tem em seu pensamento. Apesar de Freud, assim como Nietzsche, denunciar o ressentimento e a violência do espírito da massa em sua reivindicação por igualdade, violência esta que a história parece confirmar, para ele, a psicologia dos filhos é condição da vida social e cultural, enquanto a psicologia do pai, livre, artista e inteligente, só pode ser emancipatória como restos do reprimido. Se as denúncias de Freud podem apontar a modos de vida distintos dos atuais, nos quais os sofrimentos provindos das exigências do supereu e das reivindicações de igualdade (ambos expressões do ódio ressentido) podem ser minimizados, parece-nos que o psicanalista em momento algum almeja uma sociedade sem esses elementos constitutivos da psicologia dos filhos. Isso porque, parece-nos, essa psicologia contém algo que para Freud tem um valor inestimável: as condições para o desenvolvimento científico.

No terceiro aspecto da psicologia dos filhos se encontra o elemento necessário para a constituição do espírito científico: a sede de submissão. Se também a submissão deve ser atenuada em uma vida social menos ressentida, ela, junto com a sublimação (disposição da psicologia do pai), é condição do espírito científico. A ciência exige a inibição da onipotência do pensamento (do pai primitivo) e uma total submissão à realidade (a Ananke, à necessidade), atribuindo apenas um pequeno, apesar de fundamental, lugar à sublimação. Ideia presente tanto em O futuro de uma ilusão como na conferência 35, Acerca de uma visão de mundo (Über eine Weltanschauung), mas que não cabe ser desenvolvida no presente artigo, o qual visa as manifestações patológicas da psicologia dos filhos.

Para Freud, todas as disposições presentes nos seres humanos, quando hipertrofiadas, determinam as diversas patologias. A submissão, quer dizer, a atitude passiva-masoquista hipertrofiada, em sua forma patológica também se encontra no estabelecimento do bolsonarismo.

 

8. A sede de submissão

Vejamos primeiro como Freud descreve a sede de submissão. Vimos que as massas não só reivindicam a igualdade, como se submetem cegamente ao líder, nele depositando seu ideal do eu. Freud, em Psicologia das massas e análise do eu, remete as relações de submissão ao líder às relações dos filhos da horda primitiva com o pai perseguidor. Considera a relação com o líder similar à relação com o hipnotizador: "[...] a relação hipnótica é [...] uma formação de massa a dois. [...] a relação do indivíduo da massa com o líder" (Freud, 1921/2011, p. 74). A relação com o hipnotizador, por sua vez, remete à herança arcaica da horda primitiva:

Com suas medidas, o hipnotizador desperta no sujeito uma porção da herança arcaica deste, a qual também se harmonizou com os pais e na relação com o pai experimentou uma revivência individual, a representação de uma personalidade muito potente e perigosa, ante a qual só se podia ter uma atitude passiva-masoquista, à qual a vontade tinha de se render, parecendo uma arriscada empresa estar a sós com ela, 'cair-lhe sob os olhos'. Apenas assim, aproximadamente, nos é dado representar a relação de um indivíduo da horda primeva com o pai primordial (Freud, 1921/2011, p. 91).

O líder da massa continua a ser o temido pai primordial, a massa quer ainda ser dominada com força irrestrita, tem ânsia extrema de autoridade ou, nas palavras de Le Bon, sede de submissão (Freud, 1921/2011, p. 91).

Essa herança da psicologia dos filhos da horda, uma atitude passiva-masoquista na qual se perde a própria vontade em prol da autoridade, submetendo-se irrestritamente a ela, é relacionada, em O homem Moisés e a religião monoteísta, à castração. O costume judeu da circuncisão faz reviver a castração que ocorria na horda primitiva, indicando, com isso, a submissão incondicional à vontade paterna:

Quando lemos que Moisés 'santificou' seu povo ao introduzir o costume da circuncisão, passamos a compreender o sentido profundo dessa afirmação. A circuncisão é o substituto simbólico da castração, que o pai primevo infligira aos filhos outrora, na plenitude do seu poder, e quem aceitava esse símbolo indicava a disposição de se submeter-se à vontade do pai, ainda que este lhe impusesse o mais doloroso sacrifício (Freud, 1938/2018, p. 168).

Aceitar a castração, desejá-la, sentir prazer com ela significa submeter-se incondicionalmente ao castrador, atribuindo a ele a própria vontade. No manuscrito enviado a Ferenczi em 1915, o décimo segundo escrito metapsicológico, Visão geral das neuroses de transferência2, Freud descreve a constituição filogenética da psicologia dos filhos nos tempos da horda primitiva. A psicologia dos filhos se opõe à psicologia do pai da horda primitiva que, por sua vez, remete à constituição da pulsão sexual e do desenvolvimento da inteligência, da linguagem, das invenções e de um primeiro domínio sobre o mundo. Enquanto as fases de desenvolvimento da psicologia do pai correspondem às disposições para as neuroses de transferência, as fases da psicologia dos filhos correspondem às disposições para as neuroses narcisistas, isto é, para as psicoses. O desfecho da psicologia dos filhos corresponde ao surgimento da cultura, possibilitado pelo parricídio e pela devoração do pai, ou seja, pela satisfação do ódio e pela identificação com o pai, respectivamente. A psicose correspondente a esse desfecho é a mania-melancolia, na qual a identificação com o objeto possibilita o retorno do ódio contra si mesmo. Portanto, no desfecho da psicologia dos filhos é constituído o supereu. Disposição que, neste artigo, supomos estar fortemente presente e de forma patológica nos eleitores de Bolsonaro, principalmente nos evangélicos. Supereu que determina um excessivo moralismo que, por sua vez, determina a repressão à liberdade da satisfação das próprias pulsões e das dos familiares: filhos, esposa, namorada, enteado (como vimos anteriormente).

A penúltima fase da psicologia dos filhos corresponde à psicologia das massas que é apoiada no narcisismo das pequenas diferenças e no acirramento do ódio ao diferente, disposição que corresponde à paranoia e que remete aos sentimentos desenvolvidos entre os filhos que fugiram da horda (sentimentos homossexuais), baseado na insatisfação e na condição de igualmente perseguido e, portanto, no sentimento de ódio para com o pai. Disposição que vimos fortemente estimulada no bolsonarismo por meio do acirramento do racismo.

Como base dessas duas fases, a primeira fase filogenética da psicologia dos filhos corresponde à disposição adquirida por ocasião da castração realizada pelo pai primitivo que determinou a atitude passiva-masoquista. Trata-se do retorno da libido para o próprio corpo, como descrito em Introdução ao narcisismo, consequência da dor e identificado com a hipocondria (que está para as neuroses narcisistas - para as psicoses - como a angústia está para as neuroses de transferência). Essa disposição corresponde à demência precoce (esquizofrenia) e pode ser ilustrada pelas autocastrações dos doentes. Trata-se, portanto, da posição passiva masoquista, da sexualização da dor, da sede de obediência e do próprio sacrifício (exemplificado na autocastração). Desenvolvi, em outro texto (Corrêa, 2015), que a suposição dessa disposição conduz à formulação da pulsão de morte que seria a tendência a deixar-se ser destruído pelo outro.

Se as relações de Bolsonaro com Donald Trump ou a de seus fiéis seguidores com o próprio Bolsonaro parecem ter essa característica da submissão incondicional, o sacrifício parece também ter uma certa importância no fanatismo do bolsonarismo: a exposição ao coronavírus, por meio das aglomerações e do não uso de máscaras, algo que parece remeter a políticas suicidárias, e a própria vitória de Bolsonaro, que foi, no fundo, decidida por uma facada, o que representa a figura do mártir. Nesse caso, tanto faz se a facada é falsa ou verdadeira, uma vez que, como mostra sua atitude diante da epidemia, ele poderia, sem muita resistência, deixar-se ser esfaqueado em sua luta contra seus adversários.

 

9. Considerações finais

Esperamos ter mostrado neste artigo as três figuras de ódio ressentido que são intensificadas de forma patológica no fenômeno do bolsonarismo e que a indiferença e, por meio dela, a legitimação do genocídio impetrado na população pobre do Brasil revelou: o moralismo, representado por um severo supereu; o homicídio, dirigido aos diferentes, acirrado pelo racismo; e, por fim, o autossacrifício e a submissão incondicional.

 

Referências

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Recebido em: 21/09/2020
Aprovado em: 18/11/2020

 

 

1 Fala do ministro do meio ambiente, Ricardo Sales, na reunião ministerial de 22/04/2020.
2 Übersicht der Übertragungsneurose (1915/1985), traduzido pela editora imago em 1987 com o título Neuroses de transferência: uma síntese.

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