SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.22 número2Os caminhos do ódio na civilização propostos por Freud e como eles se apresentam no Brasil atualPulsão de morte, entre a repetição e a criação índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.22 no.2 São Paulo jul./dez. 2020

 

DOSSIÊ

 

Uma leitura feminista decolonial de o mal-estar na civilização

 

A decolonial feminist view of culture and its discontents

 

 

Alessandra Affortunati Martins

Psicanalista, doutora em Psicologia Social e do Trabalho pela USP, membra do GT de Filosofia e Psicanálise da ANPOF, autora de Sublimação e Unheimliche (Coleção Clínica Psicanalítica/Pearson, 2017), O sensível e a abstração: três ensaios sobre o Moisés de Freud (Coleção Peixe-elétrico-ensaios/e-galáxia, 2020) e organizadora de Freud e o Patriarcado (Hedra, 2020). Contato: aaffortunattimartins@gmail.com

 

 


RESUMO

Trata-se de examinar o ensaio O mal-estar na civilização, de Freud (1930), a partir de leituras feministas decoloniais, especialmente da obra Um feminismo decolonial, de Françoise Vergès (2020), e de Memórias da plantação, de Grada Kilomba (2019). Freud diz que há três ameaças feitas à civilização. Uma delas viria de cristãos que desnutriram a vida terrena com suas crenças na vida do além; outra teria sido feita por mulheres sedentas de sexo e de afetos familiares, dois aspectos que disputariam investimento libidinal com a cultura e o âmbito público da vida, espaços exclusivos de homens, únicos verdadeiramente capazes de sublimação; a última seria oriunda de cidadãos europeus simpatizantes dos povos colonizados. Não se trata aqui de julgar Freud anacronicamente por suas posições e elaborações teóricas pautadas em visões alinhadas aos processos de colonização e à misoginia. Apontar esses embaraçosos pontos é interessante hoje apenas na medida em que "ressitua" a psicanálise contemporânea e a coloca em alerta sobre esses lugares um tanto quanto retrógrados em termos civilizatórios. De qualquer maneira, o Moisés de Freud ainda é um texto freudiano que pode fazer frente aos tropeços do velho pai da psicanálise.

Palavras-chave: Mal-estar; Civilização; Ameaças; Feminismo decolonial.


ABSTRACT

It is a question of examining the essay Culture and its Discontents, written by Freud (1930), from a decolonial feminist perspective, especially from Françoise Vergès' (2020) A decolonial feminism and Grada Kilomba's (2019) Memories of plantation. Freud says that there are three threats made to civilization. One would come from Christians who have malnourished earthly life with their beliefs in the hereafter; another would have been made by women thirsty for sex and family affections, two aspects that would dispute libidinal investment with culture and the public sphere of life, spaces exclusive for men, the only ones truly capable of sublimation; the latter would come from European citizens sympathetic to the colonized peoples. It is not a matter of judging Freud anachronically by his positions and theoretical elaborations based on visions aligned with the colonization processes and misogyny. Pointing out these embarrassing points is interesting today only insofar as it re-situates contemporary psychoanalysis and puts it on alert about these places somewhat retrograde in civilizing terms. In any case, Freud's Moses is still a Freudian text that can face the stumbling blocks of the old father of psychoanalysis.

Keywords: Malaise; Culture; Threats; Decolonial feminism.


 

 

o ser humano não é uma criatura branda,
ávida de amor, que no máximo pode se defender,
quando atacado, mas sim que ele deve incluir,
entre seus dotes instintuais,
também um forte quinhão de agressividade.
Em consequência disso,
para ele o próximo não constitui apenas
um possível colaborador e objeto sexual,
mas também uma tentação
para satisfazer a tendência à agressão,
para explorar seu trabalho sem recompensá-lo,
para dele se utilizar sexualmente contra a sua vontade,
para usurpar seu patrimônio,
para humilhá-lo, para infligir-lhe dor,
para torturá-lo e matá-lo.
Homo homini lupus [O homem é o lobo do homem];
quem, depois de tudo o que aprendeu
com a vida e a história, tem coragem de discutir essa frase?

Freud, O mal-estar na cultura

 

 

1. Introdução

O convite para pensar Filosofia, Psicanálise e pandemia partiu de Eduardo Ribeiro da Fonseca que, como coordenador do GT (Grupo de Trabalho) de Filosofia e Psicanálise da ANPOF, realizou um evento importantíssimo para os estudos de cada um de seus integrantes. Em meio aos tenebrosos tempos nos quais estamos todos imersos, convocou membros e membras do GT a pensarem sobre questões contemporâneas a partir de seus referenciais de pesquisa e apresentarem aquilo que conseguissem articular sobre os dramas da política atual e a forma como ela está atrelada à situação pandêmica com a qual o mundo se debate.

Mergulhada em minhas leituras feministas interseccionais e decoloniais e, ao mesmo tempo, às voltas com meus incansáveis exames da obra freudiana, elegi trechos de Um feminismo decolonial, de Françoise Vergès (2020), de seu prefácio à edição brasileira e de Memórias da plantação, de Grada Kilomba (2019), que iluminaram pontos um tanto quanto controversos de O mal-estar na civilização. Com Françoise Vergès encontramos as razões pelas quais a luta emancipatória alinha-se ao feminismo decolonial que seria, de acordo com ela, uma forma de "política radical" que leva "[...] em conta os desafios impostos a uma humanidade ameaçada de desaparecer" (Vergés, 2020, p. 28).

Ameaças à vida humana e da natureza estão atreladas ao poder estruturado pela lógica patriarcal, colonial-capitalista de espoliação de todos os recursos naturais e da exploração de toda a força de trabalho. A extração de potências vitais e até mesmo da própria existência de parte significativa de habitantes da terra, bem como a destruição da natureza, colocam em risco quase tudo que vive. E isso para atender à manutenção de privilégios e poderes de uma parcela bastante reduzida de seres.

Diante dos diagnósticos de Vergès (2020) e Kilomba (2019), que convergem com os de tantas outras autoras e autores feministas decoloniais1, abrem-se novos ângulos a partir dos quais se torna possível analisar a obra freudiana. Esses vislumbres inéditos nem sempre são felizes. Não se trata aqui, todavia, de simplesmente jogar de maneira anacrônica Freud num tribunal, transformando-o agora em réu. O que interessa assinalar são veios cegos de seus escritos em relação a políticas colonialistas e análises sobre as mulheres. Identificar tais aspectos na obra freudiana permite que não se reproduza ainda hoje uma clínica psicanalítica e uma metapsicologia a partir de alicerces misóginos e/ou racistas.

Antes de examinar Freud, porém, vejamos o que diz Vergès (2020, p. 21) no aludido prefácio:

Enquanto escrevo este prefácio, a epidemia do Covid-19 poderia fazer com que minhas observações parecessem irrisórias. Mas o confinamento imposto pelos países europeus para frear a epidemia do vírus torna ainda mais visível a divisão profunda entre vidas tornadas vulneráveis e vidas protegidas. Na realidade, a possibilidade de confinamento nos países europeus ilumina mais do que nunca a diferença de classe, gênero e raça. Há os/as confinados/as e os/as não confinados/as, e estes últimos garantem a vida cotidiana dos primeiros, levam os produtos aos comércios abertos porque são "essenciais" ao funcionamento da sociedade, arrumam as mercadorias nas prateleiras, organizam os caixas; são os coletores de lixo, as funcionárias e os funcionários do correio, os entregadores, os motoristas de transporte público, as mulheres responsáveis pela limpeza de clínicas e hospitais, as babás e tantas outras profissões.

Quando se volta a atenção ao trabalho reprodutivo de mulheres e aos subempregos que garantem a manutenção da vida civilizada do globo, algumas interpretações sobre o mal-estar, feitas por Freud, chegam a ser um tanto quanto embaraçosas. Os problemas, que se tornaram ainda mais profundos em decorrência da pandemia, não surgiram com ela e nem se apresentaram apenas no presente. São dificuldades estruturais, isto é, são impasses que atravessam diferentes momentos históricos, alguns deles observáveis desde a época de Freud. Disfunções semelhantes às de agora afloram nos intermitentes momentos de crise, também eles parte inexorável da dimensão estrutural do capitalismo imperialista e patriarcal.

Ler Freud munida de referências dos feminismos interseccional e decolonial revela que certas análises do pai da psicanálise reiteram e reproduzem, em vários pontos, questões delicadas quando se quer pensar horizontes políticos emancipatórios. Alguns desses pontos serão aqui expostos a partir de um exame de O mal-estar na civilização, em especial suas críticas feitas aos europeus que viam com bons olhos diferentes formas civilizatórias de povos do "novo" mundo e outras dirigidas a uma figura genérica da mulher, supostamente avessa aos processos civilizatórios. Subsequentemente buscaremos pensar, ainda a partir da obra freudiana, em algumas perspectivas psicanalíticas politicamente mais promissoras para refletir sobre as abissais dificuldades da atualidade.

 

2. Sabotadores/as da cultura: mulheres e aliados dos povos colonizados

O paralelo traçado entre Leviatã, de Hobbes (1651/ 2015), e Totem e tabu, de Freud (1914/2012), é velho conhecido na literatura psicanalítica. Seguindo essa tradição, Jessica Benjamin (1988) formula duas questões que serão centrais para o que pretendo desenvolver aqui. Logo na "Introdução" de The Bonds of Love, ela pergunta-se: 1) qual é o lugar das mulheres nos arranjos políticos desenhados por Freud - onde elas estão, afinal? Outra de suas questões refere-se à insistência de psicanalistas no modelo freudiano, alinhado à lógica paterna. É possível reformulá-la nos seguintes termos: 2) quando o mais ostensivo desastre civilizatório está bem diante de nossos olhos, ainda faz sentido insistir nas mesmas bases patriarcais, claramente falidas?

De acordo com Jessica Benjamin (1988), a dominação de viés patriarcal vem sendo investigada num amplo espectro nas mais diferentes vertentes psicanalíticas. Há uma insistência - caberia perguntar: compulsiva? - injustificável na lógica da luta pai-filho, exposta por Freud em Totem e tabu. Não raro, as críticas formuladas por psicanalistas recaem numa clara condescendência à autoridade paterna. Concluem que a arquitetura totêmica que prospecta a versão arcaica do patriarcado moderno, não parece tão ruim, já que os filhos herdam não apenas os limites da Lei, como também seus benefícios. Há aqueles que fazem concessões à autoridade patriarcal, argumentando que, se por um lado ela parece opressora, por outro seria o recalque a dissolver a destrutividade inerente às pulsões mortíferas. Ou seja, supõem que a oposição à lei paterna conduz necessariamente ao aniquilamento da vida, observado de maneira recorrente ao longo da história e mais especificamente nos movimentos fascistas de massas, que seriam reações a uma "sociedade [pretensamente] sem pai" ou "sem Lei". Reestabelecer a autoridade paterna em face da liderança tirânica equivaleria, por conseguinte, a uma disputa entre uma democracia racional e uma autoridade irracional. Nos termos de Jessica Benjamin: uma escolha pelo menos pior.

Freud evidentemente não é um autor ingênuo. Ele sabe dos limites da ordem patriarcal estabelecida entre irmãos em torno da Lei paterna. Em O mal-estar na civilização, lembra em tom sarcástico que seus estudos ligados à religião visavam saber como os sujeitos reiteram suas razões fundadas na crença em um "sistema de doutrinas e promessas que [...] esclarecem os enigmas deste mundo com invejável perfeição" (Freud, 1930/ 2010, p. 25-6) e numa "solícita Providência" (Freud, 1930/2010, p. 27) que supostamente seria capaz de velar por suas vidas ou recompensar eventuais frustrações delas oriundas em outra existência extraterrena. Desde sempre, a Providência é vista por Freud como um substituto de "um pai grandiosamente elevado" que seria "capaz de conhecer as necessidades da criatura humana, de ceder a seus rogos e ser apaziguado por seu arrependimento" (Freud, 1930/2010, p. 27).

Embora o anseio por proteção e consolo persista na vida adulta dos sujeitos, Freud (1930/ 2010) não deixa de vê-lo como algo "claramente infantil" e completamente "alheio à realidade" (Freud, 1930/2010, p. 27). Nem os filósofos modernos, que insistiram em secularizar a imagem de Deus para preservar seu domínio numa vertente alinhada à razão, foram poupados da crítica irônica de Freud (1930/2010, p. 27): "Quase nos juntaríamos às fileiras de crentes", diz ele "para lembrar a advertência: 'não invoquem o santo nome do Senhor em vão!' aos filósofos que acreditam salvar o Deus da religião, substituindo-o por um princípio impessoal, espectralmente abstrato". Ainda que de relance, essa breve passagem de O mal-estar na civilização demonstra uma leitura quase kafkiana da sociedade moderna: sistemas institucionais de jurisdição como substitutos abstratos do pai e de seu poder arcaico divino e arbitrário.

É curioso que, não só sabendo das insuficiências de tal modelo patriarcal como até mesmo criticando-o de forma cáustica, Freud se aferre a ele como único meio pelo qual seria possível a ordenação da vida comum. Quando escreve O mal-estar na civilização em 1930, Freud já tinha passado pela Grande Guerra e percebera claramente os limites civilizatórios do paradigma ocidental europeu, pautado na lógica da soberania paterna de viés hobbesiano ou de uma organização liberal abstrata fundada em sua Lei.

Entretanto, para ele, aquele episódio histórico parece ter sido apenas um grande e tenebroso capítulo dos entraves do Iluminismo, de certa forma esperado no interior da imperfeição que faz parte da natureza de todas as coisas humanas. É importante notar que, com seu O homem Moisés e a religião monoteísta, escrito entre 1934 e 1938 e publicado em 1939, Freud (1939/2014) finalmente consegue penetrar os impasses de uma estrutura social que ganhara feições psicanalíticas pelas suas mãos a partir de Totem e tabu. Como alvo central e vítima de um dos episódios mais sombrios que o Ocidente foi capaz de promover dentro da própria Europa - a ascensão de Hitler e o nazismo -, Freud rompe barreiras entre estrangeiro e próprio, Ocidente e Oriente, África e Europa, negros e brancos, cultos e incultos.

Vamos, então, ao exame de O mal-estar na civilização que nos interessa realizar aqui. O diagnóstico feito por Freud (1930/2010) sobre as causas do mal-estar na civilização elenca três principais aspectos para pensar sofrimentos de sujeitos modernos: "a prepotência da natureza, a fragilidade de nosso corpo e a insuficiência das normas que regulam os vínculos humanos na família, no Estado e na sociedade" (Freud, 1930/2010, p. 43). Freud também pensa naquilo que poderia torná-los felizes. Com o panorama aporético entre avanços e retrocessos civilizatórios por ele exposto, acentua-se o enigma anteriormente apresentado aqui, a saber: por que, afinal, Freud não abandonou os liames com o falido patriarcado? Para responder a esta questão, deve-se observar de quem, aos olhos de Freud, o modelo civilizatório patriarcal-europeu precisava se proteger.

Segundo Freud (1930/2010, p. 44), aqueles que dirigem suas críticas à cultura, atribuem a "culpa por nossa miséria" à "nossa civilização". Haveria, por conseguinte, afirma Freud, o equívoco de pressupor que "seríamos bem mais felizes se a abandonássemos e retrocedêssemos a condições primitivas" (Freud, 1930/2010, p. 44). Para ele, o equívoco reside no fato de que é graças à civilização - e aqui há o pressuposto de que civilização ou cultura é apenas a civilização ou cultura europeia - que podemos nos proteger da ameaça das fontes do sofrer. Tal condenação ou hostilidade contra a civilização (europeia)2 tem uma de suas raízes, ainda de acordo com o pai da psicanálise, na vitória do cristianismo sobre as religiões pagãs, que implicou uma depreciação da vida terrena. Até aqui estamos de acordo, sem que seja necessário estender muito o debate: em certa medida, o universo cristão desvitalizou o que está ao alcance de homens e mulheres na terra.

O que nos interessa sobremaneira destacar, todavia, são os outros dois polos de onde partiriam supostos ataques à civilização (europeia). Para leitores de Freud, um dos pontos indigestos está alocado na controversa afirmação: "[...] as mulheres [...] contrariam a corrente da civilização (europeia) e exercem [...] influência refreadora e retardadora" (Freud, 1930/2010, p. 67) sobre ela. Para Freud, embora nos primórdios tenham sido as mulheres a fornecerem "[...] o fundamento da civilização [europeia] através das exigências de seu amor" (Freud, 1930/2010, p. 67), seus interesses pela família e pela vida sexual andariam na contracorrente do trabalho pela cultura (europeia), que teria se tornado "[...] cada vez mais assunto dos homens" (Freud, 1930/2010, p. 67). Com o avanço cultural (europeu), diz Freud (1930/2010, p. 67), os homens enfrentam "[...] tarefas sempre mais difíceis, obriga-os a sublimações instintuais de que as mulheres não são muito capazes". Seguindo sua lógica econômica dos investimentos libidinais, Freud destaca que

não disp[ondo] de quantidades ilimitadas de energia psíquica, [o homem] tem que dar conta de suas tarefas mediante uma adequada distribuição da libido. Aquilo que gasta para fins culturais, retira na maior parte das mulheres e da vida sexual: a assídua convivência com homens, a sua dependência das relações com eles o alienam inclusive de seus deveres como marido e pai (Freud, 1930/2010, p. 67).

Daí que a mulher se veja "[...] relegada a segundo plano pelas solicitações da cultura [europeia], adotando [...] uma atitude hostil frente a ela" (Freud, 1930/2010, p. 67). Difícil reunir forças para expor certas obviedades em relação a esse teor discursivo misógino. Entretanto, esse passo se faz necessário na medida em que ainda há segmentos de psicanalistas que preferem a cegueira complacente ao trabalho de separar o joio do trigo na obra freudiana.

Torna-se pouco discutível, quando se leem essas passagens freudianas, a impossibilidade de "mulher" e "cultura" (europeia) coabitarem um mesmo campo na estrutura social e política (Silveira e Martins, 2020)3. O interesse pela família e pela sexualidade, identificado por Freud nas mulheres, se coloca, aos olhos dele, como antitético da cultura (europeia).

Todavia, o mínimo que se pode dizer é que tal "interesse pela família" não é, como aqui parece sugerir Freud, algo que brota naturalmente e nem é parte de afetos espontâneos. Não há esposa-mãe que seja instintivamente dedicada e que ame de modo incondicional sua cria e seu lar em detrimento de interesses sublimatórios e culturais. O cuidado voltado às crianças e à manutenção da vida privada são antes trabalhos árduos da cultura e, mais especificamente, nos moldes colocados ali, da cultura burguesa, europeia e branca.

Tal afirmação não significa dizer que as tarefas da maternidade sejam desacompanhadas de amor. Trata-se, entretanto, de um amor cultivado, como são todos os afetos e práticas humanas. São ocupações tradicionalmente relegadas às mulheres e graças às quais homens sentem-se livres para circularem na esfera pública. Com o casamento e a família, que sustentavam as bases da sociedade burguesa, as mulheres viam-se repentinamente lançadas a um rol extenso de afazeres domésticos e responsabilidades extenuantes, sobrando-lhes pouquíssimo espaço e tempo para outras atividades socialmente valorizadas e dignamente remuneradas. Seus consolos eram as "ajudas" de trabalhadoras domésticas, cujas tarefas eram infinitamente mais complexas do que o mero desempenhar de funções mecânicas e destituídas de pensamento, como frequentemente se supõe. Educavam crianças, doavam-lhes afeto e recursos psíquicos, além de se ocuparem de uma infinidade de serviços essenciais para o bem-estar dos membros familiares.

Mulheres que se dedicaram às famílias burguesas em subempregos não foram escutadas por Freud naquela época. São, aliás, muito recentes as análises voltadas ao papel das babás nos cuidados de adultos neuróticos analisados por Freud (McClintock e Dentzien, 2010) e, por consequência, na constituição de suas subjetividades para além do triângulo edípico classicamente pensado.

Se nem elas foram escutadas ou tiveram sua importância considerada na formação psíquica dos sujeitos burgueses, quem dirá a relação antitética inarredável entre a identidade europeia ligada à alta civilização e a depreciação de povos colonizados, tidos como selvagens.

É de se notar, e não apenas em O mal-estar na civilização, que Freud, infelizmente, aderiu, sem grandes questionamentos, à ideologia europeia que justificava invasões e espoliações colonizadoras do Sul global. Essa não escuta não era uma limitação individual de Freud. Trata-se de uma dinâmica silenciadora muito mais ampla. Como explicita Grada Kilomba (2019), em Memórias da Plantação, europeus colonizadores amarravam até mesmo uma máscara na boca dos escravos que trabalhavam com a cana-de-açúcar ou o cacau. Embora o argumento fosse de que a máscara tivesse a função de evitar que escravos comessem a cana-de-açúcar ou o cacau, invertendo, como mostra detalhadamente a autora por meio de bases teóricas psicanalíticas, quem rouba quem - já que a pilhagem vinha do lado europeu, tido como civilizado -, ela cumpria sobretudo uma função de silenciamento. Por que, pergunta-se Grada Kilomba (2019), a boca do sujeito negro/a tinha que ser amarrada? Por que ele/ela tinha que se calar? O que ele/ela poderia falar, caso deixassem sua voz livre? O que o sujeito branco/a teria a escutar? O/a sujeito branco/a seria obrigado/a a escutar verdades negadas e reprimidas sobre a violência da escravização, do racismo, da colonização. Nas palavras de Grada Kilomba (2019, p. 41-2),

O medo branco de ouvir o que poderia ser revelado pelo sujeito negro pode ser articulado pela noção de repressão de Sigmund Freud, uma vez que a "essência da repressão", segundo ele: "Encontra-se simplesmente em afastar-se de algo e mantê-lo à distância do consciente". Esse é o processo pelo qual ideias - e verdade - desagradáveis se tornam inconscientes, vão para fora da consciência devido à extrema ansiedade, culpa ou vergonha que causam. Contudo, enquanto enterradas no inconsciente como segredos, permanecem latentes e capazes de serem reveladas a qualquer momento. A máscara vedando a boca do sujeito negro impede-o /a de revelar tais verdades, das quais o senhor branco quer "se desviar", "manter à distância" nas margens, invisíveis e "quietas".

 

 

Como salientei anteriormente, não será o caso, aqui, de cobrar Freud pelo que estava além de seus limites. Contentemo-nos com a crítica em relação à sua visão parcial freudiana das mães e esposas burguesas. Se, de fato, o lado dessas mulheres era infinitamente mais favorável do que o das trabalhadoras e escravas, também elas viam restrições na participação política e cultural. Cativas na enodada teia de encargos

domésticos e afetos familiares, as esposas burguesas reivindicavam ao menos dois elementos de uma relação marital que lhes havia exigido praticamente a renúncia de toda a liberdade no âmbito público: cuidados de homens nas responsabilidades afetivas de filhos e erotismo sexual vigoroso - e não o caráter obsessivo e desvitalizado de conduzir a vida sexual no casamento ao modo próprio de muitos homens daquela época.

Freud bem sabia de tudo isso. Por vezes, contudo, parecia ser conveniente às suas teorizações esquecer-se das camadas sociopolíticas e históricas de suas próprias descobertas em relação aos sintomas histéricos das mulheres. Em O mal-estar na civiliazação, apresenta esses complexos impasses ligados ao lugar delas na sociedade burguesa como meros caprichos inconsequentes ou sintomas subjetivos que desviavam os homens de interesses sublimatórios e das exigências de uma cultura elevada que os convocava à dedicação pública e ao trabalho cada vez mais extenuante para compô-la. Mulheres eram um estorvo aos processos civilizatórios - ou projetos de poder - dos homens brancos. Nessa construção de ataques à civilização (europeia) feitos, aos olhos de Freud, pelas mulheres, estas aparecem como uma espécie de entidade inclinada a anseios pueris e irresponsáveis, que se opõem aos necessários sacrifícios de pessoas comprometidas com a sustentação da complexa civilização. Em suma: mulheres são tidas como espécies de tolas que se imiscuem ou atrapalham os sérios assuntos de homens adultos, ocupados com os rumos da cultura.

Ainda hoje há aqueles que colocam obstáculos em escutá-las quando elas atravessam as balizas dos sintomas subjetivos para colocarem o dedo na ferida de sintomas evidentes nos processos civilizatórios europeus patriarcais, nocivos a parte considerável dos seres viventes. Muitas mulheres, contudo, têm insistido em abrir suas gargantas e soltar suas vozes. Françoise Vergès (2020) é uma das feministas decoloniais a mostrar como torna-se complicado defender os fundamentos da civilização ocidental quando eles se apoiam num solo de sangue, exploração e opressão de uma parte extensa do globo. Diante desses diagnósticos, a Sars-Covid-19 só expõe mais ostensivamente o lugar no qual desembocamos ao seguir essas vias da civilização ocidental e patriarcal.

Em alguns anúncios estatais, mortes parecem ser mero detalhe quando o imperativo é o de "seguir em frente" na engrenagem do mercado e na precarização extrema do trabalho. Muitos sujeitos veem-se ante o dilema de morrerem contaminados ao saírem para obter seu ganha-pão ou morrerem de fome durante a pandemia. O sangue que escorre é infinitamente mais volumoso entre segmentos menos favorecidos da população global: refugiados/as, imigrantes, pobres, negros/as, indígenas. Lutam pela sua sobrevivência enquanto garantem o bem-estar de todos, exceto deles mesmos. Onde estaria alocado, então, o mal-estar na civilização?

Vejamos agora o terceiro e último motivo de ataques à civilização identificado por Freud. Ele teria relação com as viagens de "descobrimento" (talvez coubessem melhor termos como dominação e espoliação) em que se estabeleceu contato com tribos e povos "primitivos" (as aspas são minhas). Para Freud,

Devido à observação insuficiente e à compreensão equivocada de seus usos e costumes, eles pareceram, aos europeus, levar uma vida simples, feliz, de parcas necessidades, inatingível para os visitantes culturalmente superiores. A experiência posterior corrigiu vários julgamentos dessa ordem; em muitos casos se atribuíra erradamente à ausência de complicadas exigências culturais uma maior facilidade no viver, que realmente se devia à generosidade da natureza e à comodidade na satisfação das grandes necessidades (Freud, 1930/2010, p. 45).

Os europeus, "visitantes culturalmente superiores" olham a "ausência de complicadas exigências culturais" e a "comodidade" dos povos "primitivos" atendidos pela "generosidade da natureza". Idílica imagem selvagem que só confirma alguns dizeres de Aimé Césaire, reiterados por Françoise Vergès (2020, p. 45): "[...] a colonização trabalha para descivilizar o colonizado", inclusive nas suas construções discursivas, como são as palavras aqui ingenuamente articuladas por Freud.

De fato, alguns europeus idealizaram ou viram qualidades em outros povos e civilizações por ocasião dos processos de colonização e exploração nas Américas, na África, no sudeste da Ásia e no extremo Oriente. Entretanto, a idealização, nos ensina Freud (1899) em Lembranças encobridoras, é sinal de angústias e sofrimentos relativos ao que se tem nas palmas das mãos e diante dos olhos no presente. Idealizar civilizações não-europeias ou enxergar nelas qualidades bem pode indicar, então, um certo anseio por uma realidade distinta da ocidental. E querer outra composição civilizatória, por sua vez, pode ter relação íntima com o horror ante a violência europeia impingida aos povos dominados.

Levando em conta os apontamentos freudianos em O mal-estar na civilização, caberia a seguinte pergunta: se contrastada com outros modelos civilizatórios, a cultura europeia não apresenta, de fato, problemas incontornáveis? Ou seja, os "ataques" de europeus identificados com os povos colonizados à civilização europeia que foram destacados por Freud não seria um tantinho justificável?

Em outros termos: não teriam as civilizações colonizadas e aqueles que viram de perto os processos de espoliação destas pelos europeus realmente questões importantes a serem colocadas em relação ao modelo civilizatório ocidental e seus sistemas de dominação? Como diz ainda Vergès (2020, p. 43): "[...] não podemos nos contentar em pensar a colônia como uma questão subsidiária da história". Isto é, só existe Europa civilizada porque existe o Sul explorado para servi-la, o que produz consequências nada irrelevantes em termos psíquicos, sociais e políticos em dimensões globais.

Em relação aos outros quesitos identificados por Freud e ligados aos ataques feitos pelas mulheres à civilização (europeia) - afetos familiares e sexualidade -, não teriam também questões que valeriam ser tomadas à sério? Ou seja: sexo, corpo e afetos não mereceriam ganhar lugar de importância equivalente à sublimação e à cultura? Aliás, a questão deve ser formulada de outro modo: há corpo ou sexo que não seja já atravessado pela cultura e cultura que não esteja fundada na sexualidade erótica e nos afetos, como nos ensina o próprio Freud? Que estranhas subdivisões seriam aquelas feitas em O mal-estar então?

Eis que toda composição freudiana emerge sob um novo prisma. A civilização talvez não estivesse sendo atacada por mulheres e europeus aliados de povos colonizados, como quis Freud em seu clássico O mal-estar na civilização. Invertendo esse raciocínio, talvez o que se tenha são as raízes do próprio mal-estar da civilização europeia na culpa e vergonha pela verdade relacionada à opressão, à exploração, à violação dirigidas a determinadas classes, povos colonizados e a metade da humanidade, composta de mulheres. Do lado de sujeitos explorados e oprimidos, não só o mal-estar atormentava essa parcela, mas, para garantir o bem-estar de alguns, as próprias condições precárias de vida a desestabilizava psíquica, política, social e fisicamente. Talvez, com isso, estejamos em lugares um pouco mais precisos para abordar o mal-estar atrelado à civilização.

Lembremos como Freud (1930/2010) define a palavra civilização ou cultura: ela "[...] designa a inteira soma das realizações e instituições que afastam a nossa vida daquela de nossos antepassados animais, e que servem para dois fins: a proteção do homem contra a natureza e a regulamentação dos vínculos dos homens entre si" (grifos meus). (Freud, 1930/2010, p. 48-9). Tal definição não é neutra. Proteger-se contra a natureza redundou em domínio, extração e destruição de corpos viventes e de recursos naturais de forma talvez hoje irreversível. Ou seja, estamos diante de uma humanidade e natureza ameaçadas não em razão de mulheres lamuriosas ou de simpatizantes europeus dos povos colonizados, mas devido à insaciedade de uma camada da população que quer sempre mais poder e privilégios, devastando florestas, matas, exterminando povos nativos e explorando o trabalho da maioria. O outro ponto que define a cultura aos olhos de Freud, a regulamentação de vínculos entre os cidadãos, exige que se formule outra questão: de que modo a regulamentação de vínculos tem operado no interior do modelo civilizatório ocidental?

 

3. O medo e a regulamentação de vínculos

Em O circuito dos afetos, Vladimir Safatle (2015) demonstrou como a regulamentação de tais vínculos entre os homens obedece ainda hoje a uma gramática hobbesiana, na qual o medo de uma guerra de todos contra todos orienta a circulação de afetos e dirige o sistema de jurisdição da vida. Para Hobbes (1651/2015, p. 267),

De todas as paixões a que menos inclina os homens a violar as Leis é o Medo. De fato (com exceção de algumas naturezas generosas), é a única coisa (sempre que a violação das Leis trouxer oportunidades de lucro ou prazer) que faz os homens seguirem as Leis.

Ainda sobre o medo, diz o autor:

A força das Palavras (como já dito anteriormente) é muito fraca para vincular os homens a cumprirem seus Pactos; há na natureza do homem apenas dois auxílios imagináveis para reforçá-las, são eles: ou o Medo da consequência de quebrar sua palavra; ou certa Glória ou Orgulho em parecer ser alguém que não necessita quebra-las. A segunda é uma Generosidade muito rara para podermos nela confiar, especialmente quando alguém está em busca de Riqueza, Comando ou Prazeres Sensuais, isto é, na maioria dos Seres Humanos. A paixão com a qual podemos contar é o Medo; o qual pode se referir a dois objetos bastante gerais: o primeiro é o Poder dos Espíritos Invisíveis; o outro, o Poder daqueles homens que possam vir a ser Ofendidos. Entre os dois temores, embora o primeiro constitua um Poder maior, mesmo assim o segundo gera maior Medo. O primeiro medo está em cada homem em sua própria Religião: algo que existe na natureza do homem antes da existência da Sociedade Civil. O segundo medo não existia antes da Sociedade Civil, pelo menos não o bastante para que os homens mantivessem suas promessas; porque, no estado de mera Natureza, a desigualdade de Poder só é percebida durante as Batalhas. Antes da existência da Sociedade Civil, ou em sua interrupção por Guerras, não havia nada que pudesse reforçar um Pacto de Paz efetuado contra as tentações da Avareza, da Ambição, da Lascívia e de outros desejos poderosos, a não ser o medo desse Poder Invisível, que todos adoram como Deus; e temem como um Vingador de sua perfídia. Assim, entre dois homens que não estão sujeitos aos Poderes Civis, tudo o que pode ser feito é deixá-los frente a frente para jurarem pelo Deus que cada um deles teme (Hobbes, 1651/ 2015, p. 130-1).

O medo é o afeto central no circuito que rege a gestão social. Dele extrai-se a estratégia fundamental de aquiescência à norma e respeito às leis. Daí Safatle (2015) perguntar-se como ele é produzido e reiteradamente mobilizado. Ou, dito com palavras mais precisas, como o medo torna-se o laço que ata os sujeitos numa coesão social?

Analisando várias camadas do problema, Safatle (2015) conclui que o viés hobbesiano de organização social e jurídica continua atual. Estudá-lo, então, não implicaria um interesse meramente histórico. Trata-se, ao contrário, de um "[...] modelo hegemônico de circuito de afetos próprio a nossas sociedades de democracia liberal, com suas regressões securitárias e identitárias periódicas" (Safatle, 2015, p. 19).

Como dispositivo afetivo que organiza os sistemas de jurisdição, o medo permeia o campo imaginário que os atravessa, diz Safatle (2015), pautado na ideia de uma morte violenta sempre à espreita, no risco premente da despossessão de bens pessoais, na proteção contra uma constante ameaça de invasão da privacidade e na fantasia de perda dos predicados que supostamente definem os sujeitos. É bem verdade que num registro de perda de certos privilégios e confortos, seria interessante enfrentar o medo e flertar com a condição subjetiva - e não material - de desamparo. Entretanto, caminhando por trilhas um pouco diferentes daquelas propostas por Vladimir Safatle, acrescentaria que tais medos não são alimentados apenas imaginariamente. Nem são infundados.

Não que esteja sugerido o caráter injustificável do medo em O circuito dos afetos. Vladimir Safatle sabe bem que o medo paira por todos os lados por razões concretas. Entretanto, encorajar ao desamparo que romperia com imaginários de esperança e medo, a meu ver, é atribuir uma potência a forças subjetivas que, nas atuais circunstâncias políticas e sociais, pode ser bastante temerária para a sobrevivência de grande parte dos cidadãos do mundo. Há casos em que viver o desamparo implicará ser morto/a, assassinado/a, estuprado/a, escravizado/a, encarcerado/a ou espancado/a pela polícia. Em suma: corpos vulneráveis e invisíveis são frequentemente atacados, muitas vezes de maneira irreversível. Retrato de uma necropolítica assumida pelos Estados-nação e que sustentam estruturas concretas para incitar o medo e manter o poder e a exploração.

Daí que pareça mais sensato considerar - e agora retomo as críticas tecidas aqui ao ensaio O mal-estar na civilização - as ameaças à cultura, atribuídas por Freud às reivindicações das mulheres por sexo e por maior afeto familiar e às identificações de europeus com povos colonizados probleminhas um pouco maiores, vindos de políticas orientadas pelo patriarcado em sua versão capitalista e imperialista abstrata.

 

4. O Moisés de Hobbes e o Moisés de Freud

durante o tempo em que os homens
vivem sem um poder comum capaz de
mantê-los todos em temor respeitoso,
eles se encontram naquela condição
a que se chama guerra; e uma guerra
que é de todos os homens contra todos os homens.

Hobbes

Como vimos, com Totem e tabu Freud pensa uma estrutura social condizente com os preceitos hobbesianos. Não é o caso de detalhar aqui todas as figuras do soberano para Hobbes. Basta lembrar que seu poder se dedica à "[...] busca da segurança do povo - a que ele está obrigado pela Lei Natural - e a prestar contas apenas a Deus, o Autor dessa Lei, e a mais ninguém" (Hobbes, 1651/ 2015, p. 297, grifo nosso). Por segurança, Hobbes entende não apenas a preservação da vida como também todos os outros confortos dela que por esforço lícito o homem adquire em benefício próprio, sem perigo ou inconveniente para a república.

Com o valor central dado ao poder soberano em nome da segurança de todos, Hobbes curiosamente elege Moisés como um primeiro representante desse modelo de poder. No capítulo XL, lemos:

[...] uma vez que Moisés não tinha autoridade para governar os Israelitas como sucessor do direito de Abraão, porque ele não poderia alegar que a havia recebido por herança, então, até aquele momento, não parece que o povo não estava obrigado a aceitá-lo como Tenente de Deus, senão pelo tempo que acreditassem que Deus havia falado com ele. E, portanto, a sua autoridade (não obstante o pacto que fizeram com Deus) ainda dependia da mera opinião que eles tinham de sua Santidade, da realidade de suas Conferência com Deus e da veracidade de seus Milagres; e se essa opinião mudasse, eles não mais estariam obrigados a aceitar qualquer coisa que ele pronunciasse, em nome de Deus, como sendo a Lei de Deus. Devemos, portanto, considerar que existia outro fundamento para que estivessem obrigados a obedecê-lo. Pois não poderia ser o mandamento de Deus que os obrigava, porque Deus não falou com eles de forma imediata, mas por meio da mediação do próprio Moisés. E o nosso Salvador diz de si mesmo: se eu der testemunho de mim mesmo, meu testemunho não será verdadeiro (Jo 5:31); muito menos o de Moisés seria aceito se ele desse testemunho de si mesmo (especialmente em uma afirmação de poder Real sobre o povo de Deus). Portanto, a sua autoridade, como a de todos os outros Príncipes, deve estar fundamentada no consentimento do Povo e na promessa do povo em obedecer-lhe. E assim foi: pois o Povo, ao ver Trovões e Raios, e o som da Trombeta e a fumaça da montanha, retirou-se e ficou longe. E disseram a Moisés: fale conosco e ouviremos, mas não permita que Deus fale conosco para que não morramos (Ex 20:18). Eis a promessa de obediência; e foi por isso que eles se obrigaram a obedecer a tudo aquilo que ele lhes transmitisse como Mandamento de Deus (Hobbes, 1651/ 2015, p. 413).

Conceder a Moisés o lugar análogo ao dos reis que estabelecem contratos sociais em nome da segurança de todos tem uma série de implicações delicadas que precisaria de análise detida e detalhada. Aqui poderei apenas indicá-la a partir do seguinte recorte: pela perspectiva hobbesiana, os reis estariam naturalmente autorizados a coibirem qualquer tipo de insurgência que ameaçasse a paz comum. Resistências à autoridade do soberano, discórdias, rebeliões ou discursos que colocassem em xeque sua legitimidade e a segurança do Estado, tal como estabelecida pela jurisdição soberana, seriam, por conseguinte, alvos de ações políticas e, em último caso, do exército que se dedicaria à manutenção da ordem e da segurança.

Ora, se Moisés é um líder legítimo pelos olhos de Hobbes e se olharmos de maneira mais aguda a partir do texto de Freud, não caberia a pergunta sobre seu lugar de liderança insurgente e revolucionária em relação aos faraós do Egito? Qual o limite para que se considerem legítimas a rebelião e a secessão? Todas as leis estabelecidas por Moisés se deram como forma de recusa dos valores e costumes egípcios. Daí que a pergunta agora se dirija de maneira mais contundente às premissas de Freud em O mal-estar na civilização: com todas as mazelas observadas na história da civilização ocidental que razão poderia existir para críticas às manifestações insurgentes contra seus pilares? Mulheres e simpatizantes de povos colonizados até que foram bastante comedidos em suas reivindicações ou, nos termos de Freud, "ataques" à civilização (europeia). Não são sujeitos sensíveis aos outros modelos civilizatórios de países dominados pela força e pela violência ocidental ou mulheres que apelam pela contribuição ou atenção nas responsabilidades afetivas e amorosas aqueles a desvirtuarem os processos civilizatórios.

Se lançarmos o olhar de Edward Said (1986; 2003) a dois textos por ele comentados e resenhados - Êxodo e Revolução, de Michael Walzer (1986), e O homem Moisés e a religião monoteísta, de Freud - temos dois elementos conjugados que nos parecem extremamente promissores para que a psicanálise tenha matéria em sua literatura para uma arquitetura arcaica revolucionária no lugar da desgastada estrutura hobbesiana erguida em Totem e tabu.

Sim, pois, embora Freud reitere o modelo contratual e ordenado em torno da Lei paterna também em seu Moisés, Said reconhece a força freudiana de dissipar qualquer linha fronteiriça fixa entre Ocidente e Oriente, África e Europa, negros, árabes e brancos. De outro lado, ainda que considere louvável o ímpeto Walzer ao tentar circunscrever uma estrutura arcaica revolucionária a partir do Êxodo e da figura de Moisés, Said avalia a empreitada do autor como, no mínimo, extremamente parcial. Sem considerar os problemas do judaísmo, do monoteísmo, da violência na Bíblia, do lugar dos judeus na história pregressa à opressão no Egito, Walzer teria falseado a história em nome de um ideal pouco fiel aos problemas materialmente existentes nela.

Para nós, o principal problema existente no modelo mosaico refere-se à instituição do patriarcado e de leis misóginas a partir do Templo de Salomão. De outro lado, porém, salvaguardar a estrutura do Êxodo e da figura egípcia de Moisés parece ser uma saída potente para embaralhar as engessadas modulações jurídicas oferecidas por Thomas Hobbes. Se seguirmos Freud na observação dos gestos de um líder estrangeiro que, sem garantias e sem uma língua precisa, aceita assumir riscos e caminhar pelo deserto com seu povo em busca da realização do desejo de liberdade, temos um modelo nada desprezível para outras possibilidades políticas a serem pensadas no interior da psicanálise nos dias de hoje.

 

Referências bibliográficas

Butler, J. (2019). Corpos que importam. São Paulo: N-1 edições, 2019.         [ Links ]

Carneiro, S. (2019). Escritos de uma vida. São Paulo: Pólen Livros. 2019.         [ Links ]

Davis, A. (2016). Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.         [ Links ]

Fanon, F. (1968). Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.         [ Links ]

Freud, S. (1899). "Lembranças encobridoras". Trad. André Carone (versão não publicada).         [ Links ]

Freud, S. (1914). Totem e tabu. In: Freud, S. Obras completas. V. 11. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.         [ Links ]

Freud, S. (1930). O mal-estar na civilização. In: Freud, S. Obras completas. V. 18. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.         [ Links ]

Freud, S. (2014). O homem Moisés e a religião monoteísta. Porto Alegre: LP&M, 2014.         [ Links ]

Hobbes, T. (1651/2015). Leviatã. São Paulo: Edipro, 2015.         [ Links ]

hooks, b. (2019). Eu não sou uma mulher? Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.         [ Links ]

Kilomba, G. (2019). Memórias da plantação. Rio de Janeiro: Corobó, 2019.         [ Links ]

Lorde, A. (2019). Irmã Outsider. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.         [ Links ]

Mbembe, A. (2018). Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018.         [ Links ]

McClintock, A.; Dentzien , P. (2010). Couro Imperial. Campinas: Editora UNICAMP, 2010.         [ Links ]

Safatle, V. (2015). O circuito dos afetos. São Paulo: CosacNaify, 2015.         [ Links ]

Said, E. (1986). Michael Walzer's "Exodus and Revolution": A Canaanite Reading. In: Grand Street, v. 5, n. 2, 1986, p. 86-106.         [ Links ]

Said, E. (2003). Freud e os não-europeus. São Paulo: Boitempo, 2003.         [ Links ]

Silveira, L.; Martins, A.A. (2020). Freud e o patriarcado. São Paulo: Hedra, 2020.         [ Links ]

Silveira, L. (2017). Assim é a mulher por trás de seu véu?. Revista Lacuna, 2017. Disponível em: https://revistalacuna.com/2017/04/28/n3-08/. Acessado em 09/09/2020.         [ Links ]

Vergès, F. (2020). Um feminismo decolonial. São Paulo: Ubu, 2020.         [ Links ]

Walzer, M. (1986). Exodus and Revolution. New York: Basic Books, 1986.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 16/09/2020
Aprovado em: 18/11/2020

 

 

1 Cf. bell hooks (2019), Sueli Carneiro (2019), Audre Lorde (2019), Judith Butler (2019), Angela Davis (2016), Achille Mbembe (2018) e Franz Fanon (1968) entre outros.
2 Visto que Freud fala em civilização e cultura como se fossem universais, mas tratando apenas da civilização europeia ou da cultura europeia, colocarei daqui pra frente o adjetivo "europeia" a fim de delimitar a civilização ou a cultura à qual Freud se refere, diferenciando-a de outras não-europeias, que, como se deduz, não são tidas por Freud como formas de civilização e cultura.
3 Léa Silveira tem insistido nesse ponto em vários artigos (Silveira, 2017) e o expôs muito bem na introdução que escrevemos juntas à Freud e o patriarcado (Silveira e Martins, 2020). Recentemente ficou claro, embora ela ainda deva o registro disso em algum artigo, como ela vislumbra uma impossibilidade lógica de coexistência da cultura e da mulher nas teorias lacanianas que retomam a psicanálise freudiana. Esse aspecto, do ponto de vista feminista, é gravíssimo.

Creative Commons License