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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.22 no.2 São Paulo jul./dez. 2020

 

DOSSIÊ

 

Pulsão de morte, entre a repetição e a criação

 

Death drive, between repetition and creation

 

 

Aline Sanches

Psicanalista (Gtep/ Sedes Sapientae). Psicóloga (Unesp/ Assis), mestre e doutora em filosofia (UFSCar) e doutora em pesquisas em psicopatologia e psicanálise (Université Paris 7). Contato: psicoaline@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

A fim de circunscrever minhas reflexões no tema deste colóquio, que tem pandemia em seu título assim como sofrimento e morte, proponho, como muitos colegas já fizeram e ainda o farão, resgatar noções freudianas sobre a pulsão de morte e sobre a cultura. Ao mesmo tempo, trarei alguns elementos para pensar a pandemia como Acontecimento, de acordo com o aparato conceitual dado por Gilles Deleuze, em que o conceito de pulsão de morte também será fundamental, entrando em novas composições. Se em Freud a pulsão de morte torna-se fundamental para compreender a agressividade e a repetição, Deleuze efetua algumas torções conceituais para associá-la sobretudo à criação.

Palavras-chave: pulsão de morte; instinto de morte; acontecimento; criação.


ABSTRACT

In order to delineate my reflections on the theme of this colloquium, which has the word pandemic in its title as well as suffering and death, I propose, as many colleagues have already done and will still do, to recapture the freudian notions about the death drive and the culture. At the same time, I will bring some elements to think about the pandemic as an Event, according to the conceptual apparatus given by Gilles Deleuze, in which the concept of death drive will also be fundamental, although entering into new compositions. If in Freud the death drive becomes central to understand aggression and repetition, Deleuze makes some conceptual torsions to associate it mainly with creation.

Keywords: death drive; death instinct; event; creation.


 

 

1. Agressividade, egoísmo e narcisismo

Como se sabe, os chamados textos da cultura de Freud vão ganhando força e intensidade ao longo de sua vida e obra.

[...] é correto dizer que desde a postulação das duas espécies de instintos (Eros e instinto de morte) e a decomposição da personalidade psíquica em Eu, Super-eu e Id (1923) eu não mais dei contribuições decisivas à psicanálise [...]. Isto se relacionou com uma mudança ocorrida em mim, com um certo desenvolvimento regressivo, se quisermos chamá-lo assim. Após o détour de uma vida inteira pelas ciências naturais, a medicina e a psicoterapia, meu interesse retornou aos problemas culturais que um dia haviam fascinado ao jovem que mal despertara para o pensamento (1935/2011, p. 164).

De um lado, entende-se que essa mudança ocorrida em Freud possa ter razões teóricas, afinal é impossível avançar na compreensão da economia psíquica, forjada no conflito entre pulsão e repressão, sem também avançar na problemática relação entre indivíduo e cultura. De outro, pode-se supor que os grandes acontecimentos históricos em que Freud estava imerso provocaram e testaram suas próprias concepções sobre o ser humano e sobre a vida em sociedade. A psicanálise freudiana é inseparável de seu contexto de produção, que mais facilmente associamos à poderosa burguesia vienense, à sua opulência artística e intelectual, à sua mescla de conservadorismo e furor revolucionário; mas tendemos a subestimar os impactos da Primeira Guerra Mundial (entre 1914 e 1918) e das forças em gestação que deram forma ao nazismo e à Segunda Guerra nos anos 1940. Melhor dizendo, inúmeros autores já especularam sobre os efeitos de tais acontecimentos na concepção freudiana de pulsão de morte. Mas nem sempre se destaca que tal conceito, assim como os fatos históricos que acompanham sua elaboração, apenas aprofundam a visão essencialmente negativa de Freud sobre a natureza humana.

A despeito de sua coerência interna, a teoria freudiana vai mudando de tom. Se inicialmente observamos certo otimismo e entusiasmo sobre as possibilidades de transformação terapêutica e social promovidas pela psicanálise, após a Primeira Guerra - grande ferida narcísica no coração europeu - vemos Freud cada vez mais empenhado em seu papel de "destruidor de ilusões"1, remetendo a um futuro distante e incerto as saídas para as formas mais nefastas do mal estar humano.

A pulsão de morte é o conceito chave que sintetiza essas mudanças, que são ao mesmo tempo teóricas e sociais. A pulsão de morte será uma resposta conceitual tanto para os limites que Freud encontra em sua prática clínica - com os casos de neurose de guerra, de neuroses traumáticas, mas também casos com fronteiras cada vez mais borradas em relação à psicose - quanto para as suas reflexões acerca da cultura, em que o papel da agressividade vai ganhando cada vez mais protagonismo.

Assim, no texto A moral sexual 'cultural' e a doença nervosa moderna (1908/2020, p. 71), vemos Freud denunciar "a influência prejudicial da cultura", que por meio da moral, exerce uma repressão excessiva e nociva da vida sexual. A despeito de conceber o ser humano como originalmente perverso-polimorfo, sobre o qual é necessário incidir uma repressão para que ele se torne socialmente possível, Freud defende uma maior tolerância e liberdade para a expressão das pulsões sexuais, como se estas fossem menos ameaçadoras do que parecem; muito pior parece ser o excesso de repressão, que forma humanos covardes e servis, "fracotes bem-comportados, que mais tarde mergulham na grande massa que costuma seguir, a contragosto, os impulsos fornecidos por indivíduos fortes" (1908/2020, p. 84). A repressão parece não deixar muita saída entre a neurose e a perversão, e ambos resultados são hostis à cultura. Nesse momento, Freud também parece confiar na sublimação como alternativa à repressão, caminho em que as pulsões seriam transformadas a ponto de se tornarem edificantes da cultura.

Freud é levado então a investigar de que forma as sociedades ditas "primitivas" lidavam com a sexualidade, talvez desejoso de nelas encontrar menos repressão e mais saúde. Contudo, os resultados apresentados em Totem e Tabu (1912-1913/2012) indicam que o humano pré-histórico é nosso contemporâneo e que nossas formações sociais consideradas "civilizadas" são idênticas às sociedades totêmicas, diferindo-se apenas em relação à sua forma, mas não em relação ao conteúdo. Freud começa a se dar conta de que a sexualidade era inseparável da agressividade, que os impulsos sexuais, perversos e incestuosos, eram inseparáveis de impulsos assassinos e cruéis, e que somente a internalização da repressão era capaz de barrá-los. Assim, o foco parece se deslocar e a ênfase do problema se depositar nessa natureza humana que, se não for bem trabalhada e desenvolvida ao longo da infância, sempre permanecerá hostil à vida social, visto que essa hostilidade é constitutiva. Sendo assim, o máximo que conseguiríamos em termos de formação social seriam meras réplicas da família primitiva, funcionamento de horda em que se têm um chefe ou líder exercendo seu poder perverso sobre uma massa obediente, submissa e infantilizada, com toda sua capacidade crítica e intelectual rebaixada.

Parece-nos impossível discordar de Freud, já que vemos por toda parte, especialmente debaixo de nosso nariz brasileiro, que toda tentativa de construir uma sociedade mais justa, mais inclusiva e menos violenta está constantemente ameaçada e subjugada por formas déspotas e fascistas de governabilidade. Nesse sentido, é muito instrutivo o texto Considerações sobre a guerra e a morte (1915/2020). Nesse texto, Freud descreve o que seria uma sociedade ideal, representada pela Europa. Vale a pena retomar integralmente o longo trecho em que ele descreve

[...] as grandes nações de raça branca que dominam o mundo, às quais coube a condução do gênero humano, das quais sabíamos que se consagram ao cultivo de interesses mundiais, e cujas criações são os progressos técnicos no domínio da natureza, bem como os valores culturais artísticos e científicos (Freud, 1915/2020, p. 100).

Uma sociedade de "elevadas normas morais", que tanto os cidadãos quanto o Estado zelam por cumprir; em que as palavras "estrangeiro" e "hostil" deixam de ser sinônimos. Uma união de povos civilizados, onde qualquer um poderia circular "sem inibição e livre de suspeitas".

Assim, ele desfrutava do mar azul e do mar cinzento, da beleza das montanhas de neve e das verdes pradarias, do encanto da floresta nórdica e do esplendor da vegetação meridional, da atmosfera das paisagens nas quais estão guardadas grandes lembranças históricas, e do silêncio da natureza intocada. Para ele, essa nova pátria também era um museu, repleto de tesouros que os artistas da humanidade haviam criado e legado há muitos séculos. Enquanto ele passeava de uma sala a outra desse museu, podia constatar, num reconhecimento imparcial, os diversos tipos de perfeição que a miscigenação, a história e a singularidade da Mãe Terra haviam formado em seus novos compatriotas (Freud, 1915/2020, p. 102).

Este trecho me parece particularmente importante por representar muito bem o que se tinha e ainda se tem como ideal de civilização, em que reinam os valores iluministas de liberdade, igualdade e fraternidade. Mas é com ironia que Freud se refere a essa sociedade pacífica, harmoniosa e justa. A Primeira Guerra, que contou mais de 20 milhões de mortos ao longo de quatro anos, além de outros 20 milhões de feridos e mutilados, produz desilusões, escancara as verdades sobre o ser humano que recusamos aceitar. Ela denuncia que o progresso civilizatório é uma farsa, que a barbárie fervilha em nossas entranhas e nas entranhas do corpo social, a ponto de se produzir a mais sangrenta guerra de toda a história da humanidade no coração das sociedades ditas superiores - isso porque Freud nem imaginava ainda quão degradante seria o curso da história com o nazismo, a bomba de Hiroshima, a guerra do Vietnã, do Iraque, entre outras.

Trazendo tais reflexões para nosso contexto atual de pandemia, podemos nos perguntar: que desilusões ela produz e quais dados de realidade ainda nos recusamos a aceitar? Acreditamos mesmo que as instituições e a política sejam capazes de lidar com essa crise de forma justa, sem violência e minimizando as formas de sofrimento que ela produz? Acreditamos mesmo que as forças coletivas prevaleceriam sobre o egoísmo, e que ter o vírus como um inimigo comum nos tornaria finalmente unidos, cuidando e amparando aqueles que mais necessitam?

Concordo com a análise desenvolvida por Gewehr (2020, p. 3) que, se apoiando em Agambem, afirma que "a peste já estava aqui". A pandemia só faz acentuar as mazelas, as misérias e o flagelo cotidianos. Ela escancara as hipocrisias, o racismo, o espírito colonizador que nunca abandonou nosso imaginário, a lógica do senhor-escravo que nunca foi ultrapassada. A violência e o egoísmo estão presentes tanto nos dirigentes quanto em nossos mínimos gestos e olhares, perpetuados em situações ridículas como a estocagem de papel higiênico, que deixou alguns supermercados desabastecidos no início da pandemia.

Com Freud, devemos nos perguntar quais ilusões ainda nos mantêm em um estado débil e infantil, frustrados por não termos nossos desejos onipotentes e ideais atendidos, à espera de uma justiça e direitos advindos de algum lugar superior, seja de Deus ou do Estado. Ilusões que satisfazem nosso narcisismo e que produzem apenas uma delirante e inútil modificação da realidade. As ilusões nos confortam diante do desamparo, ao mesmo tempo em que o torna ainda mais profundo. Logo, é preciso destruir as ilusões sem, contudo, cair na melancolia, no pessimismo impotente ou na revolta pulverizada e cega.

De que modo poderia o conceito de pulsão de morte nos ajudar a sair desses problemas bastante concretos? Freud mostra que ao lado das pulsões sexuais e de conservação, chamadas de vida, pulsa em nós forças que nos conduzem a estados inertes, inorgânicos e autodestrutivos. Longe de moralizar as pulsões, como o fazem as leituras apressadas e simplistas, não existe algo como a pulsão de vida é boa e a pulsão de morte é má. Tudo se faz na fusão e intrincamento de ambas, as mais sublimes e as mais odiosas coisas. A pulsão de morte, ao ser erotizada, alimenta tanto nossa possibilidade de existência quanto as formas mais cruéis do sadismo e do masoquismo. Contudo, O mal-estar na cultura (Freud, 1930/2020) indica que estamos em um beco sem saída: a cultura fracassa diante da indomável natureza humana.

O que há de realidade negada de bom grado é que o ser humano não tem uma natureza pacata, ávida de amor, e que no máximo até consegue defender-se quando atacado, mas que, ao contrário, a ele é dado o direito de também incluir entre as suas habilidades pulsionais uma poderosa parcela de inclinação para a agressividade. Em consequência disso, o próximo não é, para ele, apenas um possível colaborador e um objeto sexual, mas é também uma tentação, de com ele satisfazer a sua tendência à agressão, de explorar a sua força de trabalho sem uma compensação, de usá-lo sexualmente sem o seu consentimento, de se apropriar de seus bens, de humilhá-lo, de lhe causar dores, de martirizá-lo e de matá-lo (Freud, 1930/2020, p. 363).

Devido a essa hostilidade primária entre os homens, a sociedade seria permanentemente ameaçada de desintegração e os dispositivos repressivos que ela constrói tenderiam a se voltar contra ela mesma. A saída apontada por Freud - se é que podemos chamar isso de saída, parecendo tratar-se muito mais de um beco sem saída - é inseparável de uma miséria neurótica, de tonalidades masoquistas, em que amar se mistura com o medo da perda do amor alheio, em que a agressividade produz sentimento de culpa e consequentemente, repressão. Freud é taxativo: nem a abolição da propriedade privada, nem a abolição da família podem apagar esse "[...] indestrutível traço da natureza humana" (1930/2020, p. 366).

Contudo, pode-se questionar, a despeito de seus vigorosos e louváveis esforços para destruir as ilusões, se Freud ainda estaria envolto em algumas brumas, que mesmo nós mal conseguimos enxergar por entre elas. Estaria Freud envolto em uma estrutura de pensamento demasiadamente eurocêntrico? Este que ainda concebe a natureza e o primitivo como essencialmente negativos e inferiores, algo a ser domado e combatido pela cultura? Este que ainda deposita no progresso científico a esperança de salvação? Eurocentrismo este que, ao extrapolar a noção de propriedade privada para a esfera subjetiva, ainda faz do Eu o núcleo da constituição psíquica?

Toda batalha interna começa pela construção do Eu, de um sistema de defesas contra a selvageria e primitivismo do Isso. Considera-se o narcisismo humano e a ilusão de onipotência como naturais e ao mesmo tempo como conquistas do desenvolvimento. A fase chamada de "Sua majestade, o bebê" é fundamental para a integração do Eu, sem a qual permanece comprometida a capacidade de se distinguir posteriormente entre a imaginação e a realidade. A natureza impele a um egoísmo constitutivo, ao mesmo tempo em que este deve ser garantido e reafirmado pelo desenvolvimento; em seguida, cabe um trabalho da cultura para desmanchar o narcisismo, transformá-lo em ideais, em prol da inserção e da possibilidade do laço social.

Mas estaríamos realmente lidando com dados naturais, que definem o que é o humano em sua essência ou estaríamos às voltas com um narcisismo fabricado, engendrado por essa mesma civilização que almeja combatê-lo? Poderia o narcisismo ser fruto da afirmação de um povo, que ainda se julga o mais desenvolvido e superior do planeta Terra, quiçá do universo? Europa ou América, somos filhos de um povo que engole e canibaliza qualquer outro, congelando-os em seus museus, transformando tudo em si mesmo, construindo todas as narrativas e verdades do mundo, avaliando tudo por sua própria escala. O ser humano narcísico e o colonizador me parecem ser exatamente a mesma pessoa.

 

2. Pandemia como Acontecimento

Sem dúvidas, a pandemia é um acontecimento que perturba, ameaça e nos atinge em nosso mais profundo âmago. Mas talvez esse acontecimento também possa abrir

brechas a golpes de martel como diria Nietzsche, e nos tirar de um certo torpor, desfazer ilusões. E assim como a proximidade da morte também desperta vida, lucidez e reinvenção, o conceito de pulsão de morte também pode estar atrelado mais à criação do que à repetição e à agressividade. O filósofo Deleuze pode nos ajudar nesse ponto.

Segundo Freud, não existe pulsão de morte em estado puro, tampouco existe representação da morte em nosso psiquismo. Mas para Deleuze, o esplendor desse conceito só se atinge quando: 1) considera-se sua forma pura, sem ser erotizada ou capturada pelas formas do sadismo e do masoquismo. Tal forma pura está relacionada à sua função de desligamento, seu potencial inorgânico que é ao mesmo tempo propulsor imprescindível da força vital; e 2) considera-se que existe um protótipo da morte na experiência subjetiva e na vivência psíquica. Se Freud nos ensina sobre o Eu que se acredita imortal e inatingível - "no ponto mais delicado do sistema narcísico, a imortalidade do Eu" (Freud, 1914/2010, p. 25), com Deleuze vislumbra-se um Eu que paga um preço muito alto para se manter nessa ilusão de imortalidade, um Eu onipotente, paranoico e acossado por todos os lados.

Também com Deleuze, é possível situar melhor o que se entende por Acontecimento, afim de associar tal noção com nossa situação atual de pandemia. O acontecimento tem o poder de desorganizar a roda do tempo, esta que também é uma ilusão. A coerência entre passado, presente e futuro, que criamos e nos empenhamos em manter, é tão ilusória e superficial quanto a coerência do Eu. O tempo circular é o tempo da repetição e do princípio de prazer. É onde a cobra morde o rabo, e o futuro nada traz de novo, apenas um passado revisitado, em que se permanece fixado em experiências de prazer ou desprazer já vividas, em modelos e padrões já conhecidos e, consequentemente, que não ampliam nem nossa sensibilidade nem nosso campo de experiência. O acontecimento reposiciona nossa relação temporal, "não cessa de dividir a linha e de se dividir a si mesmo", em "um passado-futuro ilimitado, enquanto se reflete em um presente vazio, presente cuja espessura é a mesma de um espelho" (Deleuze, 1969/2006, p. 153). Daí seu poder de quebrar círculos viciosos e compulsões a repetições, isso que nos impele constantemente e automaticamente a esquivarmo-nos de experiências passadas tidas como frustrantes e buscar no futuro experiências satisfatórias já experimentadas. Isso que também arrasta consigo a repetição de tragédias e traumas. Nesta perspectiva, a compulsão a repetição não remetem diretamente à ação da pulsão de morte, mas à captura erótica dessa pulsão em territórios sadomasoquistas nada desvitalizados, mas bem vivos

e fortes. Sendo assim, existem formações, reais ou ideais, concretas ou psíquicas, que precisam morrer se se quer continuar vivendo com menos sofrimento. So, live and let die.

Eis então que o Acontecimento chega e embaralha tudo; desorganiza-se o Eu, a experiência temporal e o princípio de prazer. É por isso tal conceito está associado ao além do princípio de prazer e à pulsão de morte, que Deleuze prefere chamar de instinto de morte. Para funcionar, a vida precisa de algo não-orgânico, qualquer coisa que produza desligamento ou desconexão. Tratar-se-ia, de fato, do próprio desejo, que emperrado, não podendo fluir livremente, destrói o que o impede de circular. Destrói-se assim as ligações orgânicas de determinado corpo ou forma. Contudo, não se sabe de antemão se essa destruição será positiva ou negativa, afinal isso não está contido nos processos destrutivos como intenção ou finalidade. É nesse sentido que Deleuze compreende o instinto de morte e por isso nele reside a criação. É por meio de sua ação que se realiza a redistribuição das potências, se permite um uso renovado dos órgãos e da sensibilidade, uma recomposição dos territórios.

Em todo acontecimento existe realmente o momento presente da efetuação, aquele em que o acontecimento se encarna em um estado de coisas, um indivíduo, uma pessoa, aquele que designamos dizendo: eis aí, o momento chegou; há uma redistribuição do tempo, e o futuro e o passado do acontecimento não se julgam senão em função deste presente definitivo, do ponto de vista daquele que o encarna. Mas há, de outro lado, o futuro e o passado do acontecimento tomado em si mesmo, que esquiva todo presente, porque ele é livre das limitações de um estado de coisas, sendo impessoal e pré-individual, neutro, nem geral, nem particular, eventum tantum...; [...] Em um caso, é minha vida que parece muito fraca, que escapa em um ponto tornado presente em uma relação assinalável comigo. No outro caso, eu é que sou muito fraco para a vida, é a vida muito grande para mim, jogando por toda parte suas singularidades, sem relação comigo, e sem um momento determinável como presente, salvo com o instante impessoal que se desdobra em ainda-futuro e já-passado (Deleuze, 1969/2006, p. 154).

Compreender o acontecimento como algo que não é nem geral, nem particular, nem coletivo nem privado, mas ambos ao mesmo tempo, é fundamental para se apreender essa noção. O acontecimento é impessoal e pré-individual, ou seja, não depende de uma particularidade pessoal e engendra a possibilidade de individuação. O acontecimento não se passa nem dentro nem fora. Mas se opera nessa dobradiça imperceptível, nesse limite, nessa junção.

"Qual guerra não é assunto privado, inversamente qual ferimento não é de guerra e oriundo da sociedade inteira?" (Deleuze, 1969/2006, p. 155). Nossa liberdade reside nessa abertura ao impessoal, nessa abolição de uma parte demasiadamente humana, demasiadamente narcísica. Tão bem constituído estavam os limites, o Eu tão bem discriminado do Fora, encastelado em suas defesas, majestoso em seu reino. Eis que de repente, fissuras irrompem, as bordas se borram e se embaralham.

A ameaça é evidente: é possível desintegrar-se definitivamente, em uma mistura sem sentido, em que me perco e já não me encontro mais; saídas melancólicas, psicóticas, esconderijos em paraísos ou infernos artificiais, tentativas de soldar o Eu esmigalhado com álcool e drogas; "ponto em que nada mais se pode além de soletrar e gritar, mas não mais falar" (Deleuze, 1969/2006, p. 160). Ou então, é possível enrijecer-se ainda mais: empenhar todas as forças na defesa das barreiras, considerar qualquer diferente como inimigo, tornar-se uma torre de vigilância em torno da qual o resto do mundo gravita; saídas paranoicas ou neuróticas, estado permanente de guerra e de tensão.

Como acolher o acontecimento e a ruptura sem vivê-lo como invasão e ameaça? Sem refugiar-se no sofrimento psicótico ou neurótico, sem tornar-se perverso? Trata-se de uma questão ao mesmo tempo ética, política e clínica. De tais noções, Deleuze extrai uma moral de inspiração estoica, espinozana e nietszcheana:

Não ser indigno daquilo que nos acontece. Ao contrário, captar o que acontece como injusto e não merecido (é sempre a culpa de alguém), eis o que torna nossas chagas repugnantes, o ressentimento em pessoa, o ressentimento contra o acontecimento. Não há outra vontade má. O que é verdadeiramente imoral é toda utilização das noções morais, justo, injusto, mérito, faltas. Que quer dizer então querer o acontecimento? Será que é aceitar a guerra quando ela chega, o ferimento e a morte quando chegam? (Deleuze, 1969/2006, p. 152).

Aceitar as injustiças quando elas acontecem? Não se trata aqui de aceitar passivamente algo ou de se resignar como se nada mais houvesse a fazer. Mas de fazer do acontecimento motor para o desejo, algo que "quer agora não exatamente o que acontece, mas alguma coisa no que acontece" (Deleuze, 1969/2006, p. 152). Amor fati.

Cada acontecimento é como a morte, impessoal e inevitável; "a morte é ao mesmo tempo o que está em uma relação extrema ou definitiva comigo e com meu corpo, o que é fundado em mim mas também o que é sem relação comigo, o incorporal, o impessoal, o que não é fundado senão em si mesmo" (Deleuze, 1969/2006, p. 154). Ninguém pode dizer que a morte é pessoal, que ela vem me perseguir, que ela vem me buscar, que ela está contra mim. Ao mesmo tempo, pode-se dizer eu morro, mas sabe-se que "nela a gente morre, não se cessa e não se acaba mais de morrer" (Blanchot, s/d apud Deleuze, 1969/2006, p. 154).

Cada acontecimento é como a morte, pode-se perder órgãos, membros, o próprio Eu e a linguagem. Mas pode-se também recriar, renascer e não há outro caminho para viver e para menos sofrer. É preciso mais coragem e menos covardia. Trata-se de um convite para se arriscar, correr riscos e perigos nos enfrentamentos mínimos, marginais, mas jamais sem cautela ou prudência. Tampouco sem humor. Deleuze cita o poeta Joe Bousquet, que aos 21 anos tornou-se paraplégico na guerra: "ligar às pestes, às tiranias, às mais espantosas guerras a chance cômica de ter reinado por nada" (Bousquet, s/d apud Deleuze, 1969/2006, p. 154). O humor contra o amargor.

Desejamos mudar o mundo, mas as vezes sequer conseguimos transformar nosso microcosmo, nos relacionar com nossos próximos, tão capturados que estamos pelas forças opressoras e reativas. Precisamos nos lembrar que a busca pela grande saúde não significa jamais adoecer, mas fazer do adoecimento condição e via de acesso para a saúde. Assim sendo, como fazer do sofrimento matéria-prima para o desejo? Como fazer das mazelas sociais uma micropolítica que sirva de antídoto para o fascismo e para o ressentimento que habitam sobretudo em nós mesmos?

 

Referências

Deleuze, G. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2006.         [ Links ]

Freud, S. (1908). A moral sexual 'cultural' e a doença nervosa moderna. In: Freud, S. Cultura, sociedade e religião: O mal-estar na cultura e outros escritos. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.         [ Links ]

Freud, S. (1912-1913). Totem e Tabu. In: Freud, S. Obras completas, volume 11. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.         [ Links ]

Freud, S. (1914). Introdução ao narcisismo. In: Freud, S. Obras completas, volume 12. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.         [ Links ]

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Freud, S. (1935). Autobiografia. In: Freud, S. Obras completas, volume 16: O eu e o id, "autobiografia" e outros textos (1923-1925). São Paulo: Companhia das Letras, 2011.         [ Links ]

Gewehr, R. Lembra-te de que vais morrer! Misérias da vida em comum em tempos de pandemia. Voluntas: Revista Internacional de Filosofia [Online], v. 11, e. 34. Santa Maria, 2020, p. 1-11,         [ Links ]

Quinodoz, J.M. Ler Freud: guia de leitura da obra de S. Freud. Porto Alegre: Artmed, 2007.         [ Links ]

 

 

Recebido em 13/08/2020
Aprovado em 18/11/2020

 

 

1 Justa designação dada pelo escritor francês Romain Rolland (Quinodoz, 2007, p. 250).

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