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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.22 no.2 São Paulo jul./dez. 2020

 

DOSSIÊ

 

Vida e memória: sobre a inscrição de traços mnêmicos na matéria inanimada1

 

Life and memory: on the inscription of memory trace in inanimate matter

 

 

Ana Carolina Soliva Soria

Docente do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq. Contato: anasoliva@ufscar.br

 

 


RESUMO

O presente escrito examina alguns aspectos do argumento de Freud em Além do Princípio de Prazer a fim de compreender a transição de inorgânico para orgânico e a importância da memória em processos vitais.

Palavras-chave: Freud; Pulsão de Vida; Pulsão de Morte; Memória.


ABSTRACT

The present paper examines some aspects of Freud's argument in Beyond the Pleasure Principle in order to understand the transition from inorganic to organic and the importance of memory in vital processes.

Keywords: Freud; Life Drive; Death Drive; Memory.


 

 

Freud muitas vezes voltou sua investigação para o passado mais remoto, não apenas para entender o processo de constituição e funcionamento psíquicos, mas para uma efetiva compreensão da e atuação na clínica. O passado não se mostrou como algo abandonado; ele costura-se ao presente e ganha novamente vida. A criança e o selvagem não têm valor em si mesmos, mas apenas na medida em que nos permitem inteligir os processos patológicos e as formações psíquicas atuais.

O mesmo nos parece acontecer na investigação levada a cabo em Além do princípio de prazer. As especulações apresentadas pelo autor nos levam até a problemática caracterização da vida orgânica em geral e da sua origem na Terra. Também nessa obra, fatos mais remotos dos seres vivos parecem não ter um sentido que se esgota nesses acontecimentos passados, porém, assim como para a criança e o selvagem, eles visam a compreensão de um fenômeno observado na clínica - a compulsão a repetir fatos que trazem grande sofrimento não apenas para a consciência (como desprazer de percepção, relativo apenas à consciência), mas para todo o psiquismo. O valor relativo não está somente no aspecto temporal (passado - presente), mas também no contraste ou conservação de traços funcionais: tem-se, assim, por um lado, a oposição da constituição psíquica do adulto e da criança ou do selvagem e do homem atual e, por outro, a recapitulação do selvagem na criança e desta no neurótico. Ora, essa problemática do contraste ou da conservação de certos traços parece estar também na caracterização da vida orgânica: os fenômenos da vida não podem ser explicados sem que sejam colocados frente à morte, e esta é o começo e o fim de todo organismo vivo.

A indissociabilidade entre vida e morte não é nova na história de nosso pensamento. Quem não se lembrará de Lamarck, que deixa de considerar a natureza como separada em reinos (animal, vegetal e mineral) para instituir a grande cisão entre os corpos vivos e os inorgânicos2 (Lamarck, 1830, p. 377); ou das palavras de Bichat, em Investigações fisiológicas sobre a vida e a morte (1799): "A vida é o conjunto das funções que resistem à morte" (Bichat, 1829, p. 2). Esta supõe necessariamente a vida, assim como a vida supõe a morte; ou ainda das palavras de Schopenhauer, em Sobre a vontade na natureza, para quem "[...] vivo e orgânico são conceitos recíprocos; também com a morte, o que é orgânico [vivo] cessa de ser" (Schopenhauer, 1854/1986, p. 407). Poderíamos ir ainda mais longe no tempo e citar Harvey em seu Estudo anatômico sobre o movimento do coração e do sangue nos animais (1628), para quem o fenômeno vital da circulação sanguínea só pode ser melhor conhecido no momento em que o animal está morrendo e o coração se apresenta durante o repouso como na morte: flácido, esgotado e abatido1.

Vou resistir à tentação de ligar Freud a toda uma tradição de pensamento que apresenta os acontecimentos do organismo vivo em contraste com a morte e cuja relação com esta permite um primeiro discurso científico sobre o indivíduo3, o que sem dúvida extrapolaria as intenções de nosso texto, além de nos colocar problemas que, no momento, ainda são insolúveis para nós. A fim de não ultrapassar nossos limites e dar um passo perigoso, restringir-nos-emos ao texto do próprio Freud, a saber: Além do princípio do prazer, sobretudo aos capítulos IV e V.

Tomemos o seguinte trecho para iniciarmos nossas considerações:

Em algum momento, por uma ação de forças ainda inteiramente inimagináveis, os atributos do vivente foram suscitados na matéria inanimada. Talvez tenha sido um processo exemplarmente semelhante ao que depois, em certa camada da matéria viva, fez surgir a consciência. A tensão que sobreveio, na substância anteriormente inanimada, procurou anular a si mesma, foi o primeiro impulso [der erste Trieb]4, o de retornar ao inanimado (Freud, 1920/2010, pp. 204-5).

As ideais expostas neste trecho são parte da especulação iniciada no capítulo IV (dita especulação de longo alcance [weitausholende Spekulation. Freud, 1920/1999, p. 23]) e, ao que nos parece, colocam o problema da separação ou continuidade entre o organismo vivo e o não vivo (inorgânico). Gostaríamos de analisar algumas ideias aqui expostas e entender o papel que a memória teria para uma possível compreensão da questão.

O primeiro ponto levantado pela citação acima diz respeito aos atributos do vivente suscitados na matéria inanimada: devem-se a um processo exemplarmente semelhante ao que suscitou o aparecimento da consciência na matéria viva. Vejamos essa ideia mais de perto.

 

1. Desprazer e repetição

Na tentativa de responder ao problema da compulsão à repetição nos sonhos dos neuróticos traumáticos, na brincadeira infantil, na neurose de destino e na transferência em análise, somos levados a nos questionar, segundo Freud, sobre a relação entre a compulsão à repetição e o princípio de prazer. Escreve o autor:

É claro que a maior parte do que a compulsão de repetição faz reviver causa necessariamente desprazer ao Eu, pois traz à luz atividades de moções pulsionais [Triebregungen]5 reprimidas, mas é um desprazer que já consideramos, que não contraria o princípio de prazer, é desprazer para um sistema e, ao mesmo tempo, prazer para outro. Mas o fato novo e digno de nota, que agora temos que descrever, é que a compulsão à repetição também traz de volta experiências do passado que não possibilitam prazer, que também naquele tempo não podem ter sido satisfações (Freud, 1920/2021, p. 179).

Para esclarecer esse "fato novo e digno de nota", Freud destaca de maneira exemplar para a sua argumentação os significativos sonhos dos neuróticos traumáticos.

Estes são submetidos a uma comoção mecânica inesperada (um acidente, por exemplo), que põe em risco a sua vida. Duas possibilidades se desenham aqui: caso o indivíduo se machuque, a excitação liberada pelo choque mecânico é conduzida para a parte do corpo afetada e o psiquismo parece encontrar em um investimento narcísico dessa parte uma proteção contra a neurose traumática; esta surgirá nas situações de risco que não provocaram a ferida ou contusão. Devemos estar atentos para o fato de que todo abalo mecânico libera uma quantidade de excitação sexual. Esse excedente energético, ao não se direcionar a um objeto (uma parte do corpo), permanece livre e exerce um efeito traumático sobre o psiquismo. Dito de outro modo: "não é o acidente em si, o seu choque, que é diretamente traumático: o que ele faz é desencadear um afluxo pulsional, interno, esse sim traumático, para o aparelho psíquico" (Monzani, 1989, p. 172).

Os sonhos são uma resposta ao excesso de excitação liberada pelo choque mecânico. Por mais que o doente traumático não tenha reminiscência alguma do evento, "sempre retorna à situação do acidente, da qual desperta com renovado terror. [...] Este se acha, então, psiquicamente fixado ao trauma, por assim dizer" (Freud, 1920/2010, p. 169). Nesse caso, não se sofre de um trauma físico; sofre-se, como foi largamente difundido pelo exame da histeria, de impressões passadas cuja excitação permanece livre e que insistem em ganhar vida de modo inconsciente, na forma de atos patológicos. Sobre isso, esclarece Kimmerle,

Quando não se pode dominar ou passar por uma ocorrência deste tipo, mas ela permanece como impressão persistente recordada inconscientemente, o evento conduz a uma fixação patogênica no passado e desconhecida no presente. A esse respeito, Freud assinala que fixações semelhantes em vivências desprazíveis já eram conhecidas desde as análises de histeria feitas em conjunto por ele e Breuer. De fato, Freud - que certamente já estava convencido a esse respeito desde os primeiros tempos da etiologia traumática da histeria - trata os sintomas histéricos como símbolos de recordação. O comportar-se patológico é, por conseguinte, expressão inconsciente de um passado esquecido. Não é conduzido voluntariamente, e sim imposto por um ritual que se repete de forma compulsiva e também contra a resistência consciente (Kimmerle, 2000, p. 43).

Ora, o que temos então é a formação de uma marca mnêmica inconsciente de um evento que liberou uma energia psíquica superabundante, marca que é novamente percorrida, de modo involuntário, na tentativa de conter a excitação, isto é, de ligá-la. O doente está fixado ao trauma e, no sonho, é recolocado na mesma situação que pôs sua vida em perigo: ele a revive, assim como sua reação de susto. O mesmo acontece com as situações não desejadas e moções dolorosas repetidas pelos neuróticos na transferência: laços amorosos infrutíferos com o genitor, os quais sucumbiram à desilusão; o ciúme da criança que nasceu e que demonstra a inequívoca infidelidade do amado; as exigências da educação, as palavras duras que lhes foram dirigidas e os eventuais castigos revelaram-lhes todo o desdém de que eram alvo. Todas essas situações indesejadas e dolorosas, que deixaram um dano permanente à autoestima, são habilmente repetidas. Contudo, mesmo na época em que aconteceram, não podem ter produzido senão desprazer. Elas não são conscientemente recordadas, porém, os neuróticos na transferência

[...] sabem criar de novo a impressão de desdém, forçar o médico a dizer-lhes palavras duras e conduzir-se friamente com eles, encontram objetos adequados para o seu ciúme, substituem o filho ardentemente desejado dos primeiros tempos pela intenção ou a promessa de um enorme presente, que geralmente é tão pouco real como aquele (Freud, 1920/2010, pp. 180-1)

O paciente revive as situações passadas como vida presente, incapaz de se recordar dos eventos passados como parte do passado. Para Freud, haveria, então, um setor do aparelho psíquico "[...] que não estaria sujeito, dominado, vinculado, e que, [...] seriam as longínquas experiências infantis que sucumbiriam à compulsão à repetição, seja nos seus atos no decorrer da vida, seja na situação analítica" (Monzani, 1989, p. 178). O empenho do psicanalista vai, segundo Freud, no sentido de fazer o enfermo reviver a parte de sua vida esquecida e, por fim, reconhecer a aparente realidade do que é repetido.

Ora, repete-se o passado com o mesmo frescor do presente, sem que ele seja recordado como tal. Porém, não podemos desconsiderar o fato de o traço excitatório traumático estar gravado no psiquismo como traço mnêmico e a excitação percorrer novamente a marca da inscrição, buscando uma identidade perceptiva com o que está inscrito. Nesse caso, porém, o reencontro não se dá com a imagem do que proporcionou uma vivência de prazer, mas, ao contrário, de sofrimento. Qual a causa de se percorrer novamente a via a inscrição do traço, como repetição? Freud expõe essa questão no já mencionado capítulo IV de Além do princípio de prazer.

 

2. A vesícula viva e a gênese da consciência (sua dupla função)

Para construir sua especulação, trata das propriedades da consciência, em contraste com os outros sistemas. O que nos fornece essencialmente a consciência? Fornece-nos percepções de excitações vindas do mundo exterior e sensações de prazer e desprazer, que têm sua origem no interior do aparelho anímico. Por essa razão, a consciência, ou melhor, o sistema percepção-consciência (P-Cs), tem de ter uma localização muito específica no psiquismo: "deve estar na fronteira entre o exterior e o interior" (Freud, 1920/2010, p. 185). Como uma espécie de órgão sensorial, esse sistema deve estar sempre livre para receber novas excitações: nele, nenhum traço de excitação deve se fixar. Dito de modo mais explícito, para que na consciência não se fixe qualquer traço excitatório, esta deve ter chegado ao máximo de sua modificação, tornando-se impossível qualquer inscrição em sua superfície. A hipótese de Freud é que esse fato acompanha a anatomia cerebral, "[...] que situa a 'sede' da consciência no córtex, a camada mais exterior do cérebro que envolve as demais" (Freud, 1920/2010, p. 185). Se a consciência se encontra atualmente no máximo de sua modificação, talvez possamos ainda encontrar na analogia com a anatomia o momento em que essa modificação se inicia e a razão para tal coisa:

A embriologia, enquanto repetição da história evolutiva, mostra realmente que o sistema nervoso central provém do ectoderma, e que o cinzento córtex cerebral é ainda um derivado da superfície primitiva e poderia ter herdado características essenciais desta (Freud, 1920/2010, p. 187).

Superfície primitiva, podemos entender, de um organismo vivo primitivo, pensado "[...] na sua máxima simplificação possível: como uma indiferenciada vesícula de substância excitável" (Freud, 1920/2010, p. 187), cujo invólucro, diferenciado apenas pela sua localização, serve de órgão receptor de estímulos. Devemos supor também que esse organismo vivo primitivo recebeu incessantes choques de estímulos externos e a vesícula foi, pouco a pouco, alterando a sua camada superficial até certa profundidade, formando uma casca que protegeria o interior do organismo.

Transpondo-se isso para o sistema P-Cs, podemos afirmar que se chega ao máximo de modificação pelo fato de excitações externas chocarem-se contra ele: tendo a excitação de superar uma resistência para atravessar a superfície do sistema, acaba por produzir nesse mesmo sistema uma diminuição dessa resistência, formando uma marca do traço de excitação (isto é, um traço mnêmico). Quando a superfície do aparelho chegou à situação de não mais se modificar, surgiu a consciência. Não queremos dizer que não haja processos de excitação nesse sistema, mas que esses processos não geram mudança alguma em seus elementos.

Para além da função de percepção gerada na superfície do aparelho, Freud afirma que há também a de proteção. Retomemos a questão da vesícula orgânica primitiva: essa substância flutuava em um mundo carregado de excitações superpotentes. Sem a formação de uma casca protetora (proteção antiestímulos), o organismo seria liquidado. A proteção é forjada como reação ao choque de estímulos externos contra a vesícula. As modificações as quais é submetida a camada superficial fazem com que perca a estrutura própria do vivo, que se torne inorgânica: "funciona como um invólucro ou membrana especial que detém estímulos, isto é, que faz com que as energias do mundo exterior possam penetrar com uma fração de sua intensidade nas camadas adjacentes, que permaneceram vivas" (Freud, 1920/2010, p. 188). Pois bem, a camada protetora deve estar preparada para reagir aos estímulos superpotentes externos com a mesma força da ação. A reação a esses estímulos é a morte da superfície externa.

 

3. Considerações finais: a vida e a inscrição do traço

Depois de percorrer algumas informações colocadas por Freud em Além do princípio de prazer, acreditamos ter agora elementos para retomar ao ponto deixado em aberto no início de nossa exposição, a saber: o surgimento dos atributos do vivente na matéria inanimada como exemplarmente semelhante ao que suscitou o aparecimento da consciência na matéria viva. O argumento, contudo, que constrói essa passagem parece indicar uma inversão da ordem das coisas, pois, se por um lado tratamos da vida, que para se manter na vesícula viva tem de entregar à morte uma parte de si, a qual passa a proteger o restante dos estímulos externos, por outro, a vida é suscitada no inorgânico como reação ao choque com forças externas. Dito de modo mais explícito: passa-se de algo vivo que entrega uma parte de si para a morte para o não-vivo que ganha vida. Um elemento deve ser considerado para a compreensão dessa inversão: o da introjeção da tensão externa na matéria inanimada e o seu esforço por anular-se a si mesma.

Poderíamos fazer nesse momento uma série de conjecturas sobre o texto freudiano. Algo, por exemplo, como propuseram Dujardin e Schwann a respeito do sarcódio e do citoblastema (Canguilhem, 2011, p. 47): que essa matéria teria de ser inicialmente indiferenciada (isto é, sem estruturas) e tenra o suficiente para permitir que uma tensão interna sobreviesse em seu interior (uma espécie de geleia consistente capaz de se organizar ulteriormente); que ela não pode ser dura ou mole demais a ponto de tensão alguma se produzir em seu interior. A única diferenciação nessa substância seria a que determina o seu limite com o mundo exterior. Uma vez que estímulo algum lhe teria sobrevindo até o momento, também modificação alguma teria lhe sido imposta. Ora, o curioso é que essa parece ser a descrição dada à vesícula viva primitiva, da qual já tratamos acima. Que matéria inanimada é essa a que Freud se refere? Ao que nos parece, o inanimado e o vivo no máximo de sua simplificação não podem ser pensados indissociadamente: são antagônicos e, ao mesmo tempo, complementares. Ou talvez possamos pensar que a distinção que acabamos de mencionar não tenha grandes importâncias e então estender o argumento para todo inorgânico: este seria assim passível de organicidade, bem como todo orgânico ansiaria por sua própria aniquilação.

De qualquer modo, é interessante notar que Freud coloca o agente como sendo a própria tensão. A substância (a matéria inanimada) não é agente, mas sim o estímulo: a tensão que sobrevém na substância até então inerte busca anular-se a si mesma. Esse foi o primeiro impulso: o de retorno ao inanimado. Ou ainda, a tensão que brota no interior da matéria não tem como meta algo fora dela; ela volta-se sobre si mesma e se aniquila.

Mas o que seria a vida se a tensão não tivesse sido inscrita no interior da substância inerte? Ao que nos parece, esse movimento reflexivo da tensão não pode acontecer sem a inscrição do traço de excitação como traço mnêmico, que é novamente percorrido para que a tensão se anule. Conforme as condições externas se modificam, novos traços são abertos na substância. De tal modo que não é possível pensar a vida sem a inscrição de traços de modificação na matéria. As vias calcadas em seu interior constroem-se e ligam-se historicamente a partir de influências externas que criam novas marcas e obrigam a excitação a percorrer caminhos cada vez mais longos para aniquilar-se: nas vias das fixações mnêmicas se dá o embate entre Eros e Tânatos que, como contrários e complementares, são indissociáveis.

A inscrição que criou a primeira via de facilitação é a marca da tensão externa internalizada. Essa substância na qual se produz o primeiro impulso ganha uma nova fonte de excitação, que a difere da matéria inanimada: age nela desde essa primeira aparição não apenas uma força que vem de fora, mas também outra, de dentro. Surge a primeira marca de individualidade e de autonomia do vivente. Enquanto o inorgânico se degrada por forças externas, o orgânico morre por razões internas, em busca da identidade com o estado de excitação zero. A fixação do traço de excitação grava na matéria um primeiro querer: o de retornar à situação anterior, que apenas é possível pela recondução da tensão pela via já cunhada da excitação. A vida é o caminho desse reencontro com o estado primordial.

Mas reencontrar o quê? Do ponto de vista da inscrição de traços, não pode haver memória do momento de excitação zero (do inorgânico): se nesse estado, a tensão não sobreveio na matéria, aos moldes de um impulso interno, ou para usarmos um termo dos escritos metapsicológicos, como um fragmento de atividade que impele à descarga, não há traço mnêmico algum que tenha sido inscrito. Ao contrário da dinâmica da realização de desejo, o que se persegue na anulação das tensões não é um objeto, um tipo de satisfação abandonada ou de relação de objeto, nem mesmo um modo de funcionamento psíquico abandonado: busca-se o traço antes do traço. Vai-se ao encontro daquilo que não se tem inscrição mnêmica alguma (que, em última análise, não pode ser psíquico6), e que é anterior a qualquer desejo. Se em análise força-se o paciente a recordar o que ele repete como ação presente, no que se refere a esse ponto zero ao qual se retorna, estamos diante de algo do qual não se pode escapar e para o qual impreterivelmente nos dirigimos. Não há recordação alguma que possa nos "curar" dessa repetição. E como repetição, a morte se faz presente em cada instante da vida - novamente, ambas são opostas e indissociáveis: vive-se ao se retornar para esse ponto não inscrito na memória, para esse além da satisfação, do desejo, em que não há sujeito nem objeto, ponto cego em que qualquer individualidade se dissolve, mas que, por outro lado, é condição de tudo o que vive, se individua e está destinado a desaparecer. A vida assenta-se sobre um ponto incontornável e absolutamente obscuro, inimaginável, indescritível e que cada qual se encaminha à sua maneira. Podemos afirmar ainda que esse caminho é individual e que a inscrição do primeiro traço impulsivo na matéria forjou a primeira e mais fundamental marca da singularidade dos corpos orgânicos: indissociável da memória, a matéria tornou-se indivíduo.

 

Referências

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Canguilhem, G. (2011). O conhecimento da vida. Rio de Janeiro: Forense Universitária.         [ Links ]

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Kimmerle, G. (2000). Denegação e retorno: uma leitura metodológica de "Para além do princípio de prazer", de Freud. Tradução de Osmyr Faria Gabbi Jr. Piracicaba: Editora Unimep.         [ Links ]

Lamarck, J.B.P.A. (1830). Philosophie zoologique. Paris: J. B. Baillière. Disponível em: https://archive.org/details/philosophiezool07unkngoog/page/n7/mode/2up?q=d%C3%A9form. Acessado em: 27/07/2020.         [ Links ]

Monzani, L. R. (1989). Freud: o movimento de um pensamento. Campinas: Editora da Unicamp.         [ Links ]

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Recebido em 26/08/2020
Aprovado em 18/11/2020

 

 

1 O presente texto foi apresentado na forma de conferência no colóquio Filosofia, Psicanálise e Pandemia:Contemporaneidade, sofrimento e morte, promovido pelo GT Filosofia e Psicanálise da ANPOF entre 15 e 17 de julho de 2020. Agradecemos ao CNPq pelo auxílio (processo 442873/2018-2) concedido, fundamental para a realização desta pesquisa.
2 Em O vivente e seu meio, lemos: "Na concepção de Lamarck, a vida resiste unicamente [ao meio] se deformando para sobreviver a si mesma. [...] a necessidade surda, unicamente o hábito nos meios diversos faziam nascer, no devido tempo, os órgãos, contrariamente ao poder constante da natureza que os destruía, pois o Sr. de Lamarck separava a vida da natureza. A seus olhos, a natureza era a pedra e a cinza, o granito da tumba, a morte. Ali, a vida só intervinha como um acidente estranho e singularmente industrioso, uma luta prolongada com mais ou menos sucesso ou equilíbrio aqui e ali, mas sempre, por fim, vencida; a imobilidade fria era reinante depois tanto quanto antes" (CANGUILHEM, 2011, p. 147). Segundo Jacob, o corte radical entre orgânico e inorgânico só foi possível devido ao critério de organização adotado por Lamarck, isto é, de um princípio interno de desenvolvimento, a saber: o vivo identifica-se com o organizado, e com isso, "os seres separam-se definitivamente das coisas". (JACOB, 1983, pp. 93-94)
3 Quanto a este último aspecto, referimo-nos a Nascimento da clínica, de Michel Foucault (2007, pp. 200-201), e Lacan, a formação do conceito de sujeito, de Ogilvie (1988, p. 13 et seq.).
4 Utilizamos para as citações da obra de Freud a tradução de Paulo César de Souza, contudo, nos momentos em que suas opções de tradução não se ajustarem bem aos termos adotados por nós, faremos a modificação do vocabulário. No trecho indicado, a opção do tradutor foi instinto, o qual modificamos para impulso (Freud, 1920/1999, p. 40).
5 Novamente modificamos o termo usado pelo tradutor, a saber: impulsos instintuais.
6 Acerca dessa problemática, acompanhamos integralmente as palavras de Monzani: "Se a pulsão de morte é aquilo que está na raiz de todo pulsional, se ela é o mais pulsional da pulsão, talvez seja preciso concordar que esse elemento escapa tanto à consciência quanto ao inconsciente, que desses dois sistemas apenas apreendemos os efeitos daquela raiz, efeitos de uma finalidade arcaica e cega, uma espécie de força bruta e mecânica que se instila através de seus derivados. [...] Essa linha de interpretação nos levaria a acreditar que a pulsão de morte, de fato, não pertenceria à vida psíquica, isto é, que ela é representada no inconsciente, mas que estaria, portanto, além do psíquico e apenas produziria efeitos nessa esfera. Essa hipótese aponta, sem dúvida, para um conjunto de explorações que, embora promissoras, encontram-se ainda em estado germinal. O número de questões que essa linha de interpretação levanta não é pequeno, mas esse assunto excede os limites daquilo que nos propusemos tratar nessa discussão. Deixemos, portanto, nossas investigações nesse estágio" (Monzani, 1989, p. 226-7).

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