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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.22 no.2 São Paulo jul./dez. 2020

 

DOSSIÊ

 

Antígona e a violência do significante

 

Antigone and the violence of the signifier

 

 

Allysson Alves AnhaiaI; Eduardo Ribeiro da FonsecaII

ILicenciado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) em 2018. Mestrando em Filosofia pela mesma instituição, em Filosofia da Psicanálise. Pesquisa os seguintes temas: Filosofia Política, Psicanálise Lacaniana, Sujeito Descentrado, Tradição Dialética e Acontecimento. Contato: zubualves@gmail.com
IIDoutor em Filosofia pela USP, docente e pesquisador da PUC-PR

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é destacar o caráter violento da ordem do significante da teoria lacaniana de modo que essa violência serve de fundamento para todas as outras que se desdobram no meio social. Dessa maneira, utilizamos a definição de violência apresentada por Slavoj Žižek para que se possa diferenciar a violência enquanto subjetiva, objetiva e do significante. Após isso, nos detemos em abordar a constituição do campo simbólico a partir da fantasia, para explicitar o caráter violento do significante que separa o sujeito da efetividade, permitindo a apreensão do mundo e a vida em sociedade, mas que impossibilita o combate à violência do significante. Por fim, apresentamos o ato de Antígona como uma possibilidade de combate à violência do significante.

Palavras-chave: Violência; Significante; Antígona; Simbólico; Fantasia.


ABSTRACT

The purpose of this paper is to highlight the violent character of the signifier's order of the lacanian theory, of so that such violence serves as a foundation for all others that unfold in the social environment. Thus, we use the definition of violence presented by Slavoj Žižek to differentiate violence as subjective, objective and of the signifier. After that, we approach the constitution of the symbolic realm from the fantasy to explain the violent character of the signifier that separates the subject from the effectiveness, allowing the apprehension of the world and life in society, although making it impossible to fight the violence of the significant. Finally, we present Antigone's act as a possibility to combat the violence of the signifier.

Keywords: Violence; Significant; Antigone; Symbolic; Fantasy.


 

 

1. Violência subjetiva e objetiva

Nos últimos meses se viu emergir uma onda de protestos contra a violência policial sofrida principalmente por negros e pobres nos Estados Unidos, mas que rapidamente se espalhou por outras partes do globo. Da mesma forma, no Brasil não faltam relatos do mesmo tipo de violência estrutural que nos acompanha desde a fundação de nosso país. Entrelaçado com essa onda de protestos está o debate sobre a violência e a discussão sobre como combatê-la, se se deve utilizar da própria violência contra os agressores ou se a melhor estratégia é a prática da tolerância, se são mais eficazes protestos pacíficos ou aqueles nos quais existe vandalismo e depredações ou, ainda, se realmente é possível alguma mudança a partir da manifestação popular. Em meio a isso, é necessária uma análise da violência e seus desdobramentos, de modo que se possa chegar em uma resposta para as questões citadas acima. Em vista disto, o objetivo deste artigo é apresentar uma noção de violência que emerge desde a entrada do ser humano na ordem do simbólico, bem como oferecer uma proposta de combate a essa violência a partir da posição de Antígona, como apresentada por Jacques Lacan.

Temos como ponto de partida o modo como Slavoj Žižek (2008) apresenta a violência em duas esferas distintas: a subjetiva e a objetiva. A primeira é entendida como algo intencional, executado por agentes ou aparelhos facilmente identificáveis. Se dá como violência física e direta, além de ser percebida como desordem e perturbação do estado natural das coisas e, por conta disso, é capaz de mobilizar grandes quantidades de afeto. Isso faz com que esse tipo de violência, da mesma maneira que seus executores, seja facilmente percebido e identificado. A segunda é a sua contrapartida, uma vez que é uma violência impessoal e indiferente ao sujeito, de modo que nem chega a ser percebida. É o estado natural da sociedade, a própria ordem das coisas, sendo, por isso, normalizada e entendida como não-violência. Isso a torna invisível e anônima, mantenedora do corpo social, ainda que seja responsável pelos males que assolam esse mesmo corpo. Sendo assim, enquanto a violência subjetiva se dá como um efeito, como um distúrbio na ordem social, a objetiva sustenta as relações de poder e deve ser entendida como uma força abstrata que garante o funcionamento da sociedade. E é justamente por isso que se apresenta como uma violência sistêmica.

A partir dessa articulação feita pelo filósofo esloveno, podemos dizer que tanto a violência física e direta - a truculência policial ou os saques em uma manifestação, por exemplo - quanto a violência ideológica - o racismo e a discriminação - se dão como violências subjetivas, portanto, efeitos. Já o meio sobre o qual a sociedade está estruturada seria a violência objetiva, a causa que está por trás e que garante toda violência subjetiva. Assim, a violência objetiva, no contexto atual, é pensada como uma espontaneidade que é fruto de uma gestão não ideológica1, estritamente técnica e pautada na eficiência e eficácia da administração tanto do Estado quanto da vida. E é justamente esse caráter da sociedade atual que impossibilita o combate à violência sistêmica, uma vez que impede os indivíduos de perceberem sua existência. Isto é, à medida que tal caráter advoga pelo abandono das grandes causas ideológicas e coloca a gestão técnica da sociedade e da vida como única alternativa viável, também instaura uma ordem de violência percebida como normal, excluindo qualquer possibilidade de existência além disso.

 

2. A violência do significante

Contudo, a partir da teoria lacaniana, pode-se identificar um nível ainda mais profundo de violência. Isso porque, segundo o psicanalista francês (Lacan, 2009, p. 341), a linguagem é concebida como uma rede sobre a efetividade do mundo que, em "lacanês", responde pela ordem do real, de modo que é a partir da linguagem que se inscreve a ordem do simbólico no real. O simbólico, em Lacan, é um circuito em que o sujeito participa simplesmente por não poder romper com a cadeia do discurso, ou seja, ele vem ao mundo em meio a uma cultura que existe antes dele e a qual ele não conhece, mas da qual precisa para participar, interagir e empregar sentido ao mundo circundante. Dessa maneira, o simbólico pode ser entendido como a ordem do discurso, da cultura e da linguagem. Não obstante, para compreender a ação do simbólico através da cadeia do discurso, deve-se abordar a cadeia significante. Isso porque, na teoria lacaniana, a linguagem é estruturada a partir da relação entre significante e significado, na qual o significante existe de forma pura, ou seja, é anterior e não necessita do significado. Entretanto, diferente da teoria de Saussure, não há ligação entre significante e significado, mas sim um corte. Isso significa que o significante é autônomo, existindo antes do significado, de forma que as representações do mundo são apreendidas como significante e sem significado. Dessa forma, todos os significantes, ainda sem significado propriamente dito, significam a mesma coisa, que é precisamente o desejo do sujeito, isto é, o significante é aquilo que representa um sujeito para outro significante, uma vez que é a partir do desejo que o sujeito consegue apreender um resto de real não simbolizado, que responde pela ordem do significante.

Dessa maneira, o ser humano se inclui no significante, pois ele lhe significa algo pela simples razão de o próprio sujeito ser um significante e não o significante primeiro, mas um que está em uma relação de pura diferença com o anterior. Em outras palavras, o ser humano é um significante para outros seres humanos, porém não um que apresenta significado por si só, e sim somente a partir de sua relação com os outros através do simbólico. Isso quer dizer que algo ou alguém só se define a partir da diferença que apresenta com algo de anterior e esse anterior com algo de anterior a ele e assim sucessivamente, o que caracteriza a rolagem da cadeia do discurso. E é justamente nessa relação entre linguagem e simbólico, nesse deslizamento da cadeia do significante, que se encontra a violência do significante. É nesse deslizamento entre os significantes, no qual sempre se recorre a um outro para encontrar o significado, que nos deparamos com o significante mestre.

Isso se dá porque o processo de significação é composto pelas relações de metáfora e metonímia (Lacan, 1998, p. 814) as quais constituem a cadeia do significante. Essas relações dizem respeito, respectivamente, à substituição e à ligação de significantes uns com as outros. Assim, o que impede que a significação continue deslizando ad infinitum são os significantes mestres, pois permitem a ligação entre si dos outros significantes através da metáfora e metonímia de forma que a significação seja possível mesmo sem um significado. Dessa maneira, por estar diretamente ligado à produção de significado, o significante mestre é capaz de imprimir na cadeia significante uma ordem a qual permite a construção do significado social. Essa característica faz com que o espaço do discurso seja fundado por uma imposição violenta de significado pelo significante mestre. É isso que Žižek (2008, p. 61, tradução minha) quer dizer ao afirmar que

[...] há algo violento na própria simbolização de uma coisa, que é igual à sua mortificação. Essa violência opera em vários níveis. O idioma simplifica o item designado, reduzindo-o para um único recurso. Desmembra a coisa, destruindo sua unidade orgânica, tratando suas partes e propriedades como autônomo. Ele insere a coisa em um campo de significado que em última análise é externo a ela. Quando chamamos ouro de "ouro", extraímos violentamente um metal de sua textura natural, investindo nele nossos sonhos de riqueza, poder, pureza espiritual e assim por diante, que não têm absolutamente nada a ver com a realidade imediata do ouro.2

Assim, além da violência superficial e subjetiva, bem como da sistêmica e objetiva propostas pelo filósofo esloveno, tem-se ainda um terceiro e mais profundo nível, que torna possível para o ser humano entrar na ordem social e dar consistência ao mundo à sua volta: a violência do significante. Sendo assim, tal violência opera realizando um distanciamento entro o indivíduo, de um lado, e a materialidade e efetividade do mundo, de outro. Dessa maneira, o significante, a partir do simbólico, é o responsável por estruturar a realidade para o sujeito, fazendo surgir a diferença entre realidade e real 3. Entretanto, para Lacan (2016, p. 28), a realidade é fundamentada na fantasia, a qual, por sua vez tem a função de dar acomodação ao desejo. Isso porque o sujeito, dentro da cadeia do significante, é privado da ordem do real, isto é, de toda a materialidade do mundo, de forma que a fantasia, a partir do suporte que emprega ao desejo, garante a estrutura mínima para que o sujeito não caia no vazio de um real sem simbolização. O filosofo esloveno (Žižek, 1993, p. 9-10) exemplifica o papel da fantasia com o clássico Blade Runner. O filme se passa em um futuro distópico no qual existem androides chamados replicantes. Em um dado momento, o protagonista, Deckard, interpretado por Harrison Ford, prova à Rachel (Sean Young) que ela é uma replicante ao demonstrar que suas memorias mais íntimas, na verdade, não são dela, mas fabricadas artificialmente. Essa é exatamente a função da fantasia lacaniana, fabricar o desejo do sujeito, dar a ele seu sentido e seu objeto de forma que, a partir dela, toda percepção de realidade bem como a autopercepção e a constituição da identidade dependem de ficções simbólicas fantasmáticas.

Assim, a fantasia é inseparável da realidade de tal forma que se o indivíduo tenta despir-se dela, ultrapassá-la, ele acaba também ultrapassando sua própria noção de realidade e de simbólico, restando apenas o real como experiência de realidade. Entretanto, como o real é vazio e não oferece suporte nem para o desejo nem para a simbolização, ele não consegue finalizar a operação de abandono da fantasia, porque, além de ser inseparável, também dá suporte à realidade. Tem-se, então, um quadro no qual é a violência do significante que permite ao ser humano a apreensão da realidade e o escape do vazio do real, de forma que a ordem social passa a ser entendida como uma ordem sociossimbólica. Isso significa que não é a violência objetiva sistêmica que imprime a estrutura da sociedade, ela apenas mantém seu funcionamento. É a violência do significante que institui o fundamento da sociedade, uma vez que é ela que torna possível o sentido de sua existência, bem como sua apreensão e significação. Sendo assim, por mais que a violência sistêmica esteja por trás da violência ideológica e direta, ela não é sua causa. A causadora é a violência do significante, já que no sistema capitalista atual a fantasia, assim como coloca Žižek (2008a), de forma consciente ou não, opera como uma ideologia capaz de definir o desejo do sujeito. Isso quer dizer que, antes de uma ideologia que possa ser separada da realidade, a própria apreensão da realidade pelo sujeito que se dá através da fantasia é ideológica. Ideológica não no sentido corriqueiro do termo, de esquerda ou de direita, mas uma ideologia que a partir da mídia de massa e do capitalismo tardio 4 imprime sentido no mundo como ele é, excluindo toda e qualquer possibilidade de contraponto.

Se tem, então, um quadro no qual a experiência social é estruturada a partir de uma fantasia ideológica violenta, que mascara a realidade e ensina o sujeito a desejar, uma vez que é a fantasia que acomoda e suporta o desejo do sujeito. É por isso que, para Jason Glynos e Yannis Stavrakakis (2008, p. 256, tradução minha), "A fantasia pode ser entendida como uma forma de medir a relação do sujeito com as normas e ideais administrando uma prática social ou política" 5. Assim, o combate tanto da violência subjetiva quanto da objetiva é infrutífero, pois, a partir da ideologia, o próprio modo violento da política atual é infundido no modo como o sujeito apreende a realidade e percebe seu desejo, permitindo que as duas formas de violência apontadas por Žižek, a partir da fantasia ideológica, sejam percebidas não como violência, mas como a própria ordem das coisas. Contudo, não é possível, em Lacan, o abandono do nível simbólico ou a travessia da fantasia em direção ao real, já que o real é traumático e vazio e, mesmo que fosse possível, significaria a obliteração do nível social que é estruturado pelo simbólico. Sendo assim, chegamos a um impasse, no qual a mesma violência que culmina em morte e exclusão possibilita a vida em sociedade.

 

3. Antígona e o limite

Como saída desse impasse, podemos utilizar o ato de Antígona assim como posto por Lacan nas últimas seis seções de seu sétimo seminário (Lacan, 2008). Na peça de Sófocles, Antígona é condenada à morte por tentar sepultar seu irmão Polinices mesmo após Creonte, seu tio e governante de Tebas, proibir. Creonte fez isso porque considerava Polinices um traidor da cidade por não ter respeitado o acordo com Eteócles, seu outro irmão, sobre a linha de sucessão de Tebas. Dessa maneira, o psicanalista (Lacan, 2008, p. 308) argumenta que Antígona se posiciona no limite entre a primeira e a segunda morte, ou seja, um limite entre o que seria a morte no nível do simbólico, ou seja, a perda do sentido, e a morte no nível do real, ou seja, a morte material e biológica. Nesse limite, o sentido imposto pelo simbólico ameaça se tornar não-sentido. Contudo, por estar no limite, isto é, no ponto no qual se articula o significante entre o simbólico e o real, a posição de Antígona não deve ser entendida como a travessia da realidade rumo ao real, como uma posição fora do simbólico, mas como a posição junto ao significante em seu estado puro, enquanto corte, enquanto relação do sujeito com o significante que ainda não encontrou significado. . Por isso, a posição de Antígona no limite nos permite acessar aquilo que define o desejo ainda que a atitude dela permaneça inflexível6 e não cedendo ao desejo, mesmo que isso cause a morte.

Sendo assim, a partir do Ato de Antígona, que busca encerrar a violência das ordens de Creonte contra seu irmão, se esboça um combate também contra a violência a que estamos sujeitos. Isso porque a posição ocupada pela personagem, no limite, permite uma luta não apenas contra as violências subjetiva e objetiva, mas também contra a do significante, pois o sujeito se afasta o máximo possível da ordem do simbólico e do significado, ameaçando se livrar da fantasia enquanto ideologia. Entretanto, assim como Antígona, que foi condenada à morte, a posição no limite implica a violência autoinfligida, já que requer que o próprio sujeito se afaste da cadeia do significante, fazendo com que ele mesmo se distancie de seu próprio significado e de sua existência. Isso vai de encontro ao que afirma Žižek (2008, p. 79) quando diz que a única forma de protesto na sociedade atual é a violência sem sentido, mas não a pura violência subjetiva, física e direta sem sentido, e sim a violência que parte da posição do não senso, do espaço entre o simbólico e o real, do sujeito enquanto significante puro, sem significado e fora da significação.

Em outras palavras, o combate efetivo contra a violência, de acordo com Žižek e Lacan, seria a partir da renúncia do sentido no qual o sujeito se define, mas que também sustenta a estrutura e a lógica da violência sistêmica em uma sociedade na qual a ideologia se dá por meio da fantasia. É por conta disso que Stavrakakis (2007, p. 293) afirma que qualquer ato que vise romper com a ordem vigente das coisas necessita da estrutura do luto. Se essa ordem é capaz de moldar aquilo que temos de mais íntimo, ou seja, o desejo, o sujeito precisa se desfazer para que ela também se desfaça, enfrentando a morte de sua identidade e de seu desejo. A partir disso, seria possível o afastamento de tudo o que significa o modo sob o qual o sistema capitalista opera, mesmo que, assim como para Antígona, isso signifique a própria morte.

 

Referências

Glynos, J.; Stavrakakis, Y. (2008). Lacan and Political Subjectivity: Fantasy and enjoyment in psychoanalysis and political theory. Subjectivity, 24(1),256-274.         [ Links ]

Jameson, F. (2007). Pós-Modernismo: A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio. São Paulo: Ática.         [ Links ]

Lacan, J. (1998). Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In: Lacan, J. Escritos. Trad. Vera Ribeiro (807-842). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.         [ Links ]

Lacan, J. (2008). O semanário livro 7: A Ética da Psicanálise. Trad. Antônio Quinet. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Lacan, J. (2009).O seminário livro 1: Os Escritos Técnicos de Freud. Trad. Betty Milan. 2º ed. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Stavrakakis, Y. (2007). The lacanian left: Psychoanalysis, theory, politics. Edinburgh: Edinburgh University Press Ltd.         [ Links ]

Žižek, S. (1997). The Plague of Fantasies. London/New York: Verso.         [ Links ]

Žižek, S. (2008). Violence. New York: Picador.         [ Links ]

 

 

Recebido em 17/08/2020
Aprovado em 18/11/2020

 

 

1 Na verdade, o caráter pós-ideológico no qual a democracia liberal se baseia é um dos pontos centrais do edifício teórico do filosofo esloveno, de modo que sua teoria da ideologia (que infelizmente foge ao escopo deste artigo) é articulada como um contraponto a esse modo de se entender a sociedade. Isso porque a noção de pós-ideologia afirma que não existe contraponto possível ao sistema liberal, uma vez que as ideologias caíram junto ao muro de Berlim e o capitalismo liberal seria o fim da história, restando apenas o apego pela técnica, isto é, voltar-se à busca da melhor forma de administração tanto da vida particular quanto da social.
2 "[…] there is something violent in the very symbolization of a thing, which equals its mortification. This violence operates at multiple levels. Language simplifies the designated thing, reducing it to a single feature. It dismembers the thing, destroying its organic unity, treating its parts and properties as autonomous. It inserts the thing into a field of meaning which is ultimately external to it. When we name gold "gold," we violently extract a metal from its natural texture, investing into it our dreams of wealth, power, spiritual purity, and so on, which have nothing whatsoever to do with the immediate reality of gold".
3 Na teoria lacaniana é o real que faz referência à efetividade, àquilo que acontece e por isso poderia ser apreendido objetivamente. Já a realidade está relacionada à realidade psíquica dos indivíduos, portanto, a algo de subjetivo. Dito isto, mesmo que o real, que é o representante da objetividade, não possa ser simbolizado e, consequentemente, não pode ser apreendido pelo sujeito, não significa que a realidade que se estrutura através do simbólico e da fantasia tenha uma caráter exclusivamente subjetivo, justamente porque a fantasia traz à tona o resto de real através do desejo, permitindo que, com a mediação do simbólico, a realidade encontre uma sustentação objetiva. Assim, Žižek (1997, p. 118) dirá que a realidade não é nem objetiva, nem subjetiva, mas objetivamente subjetiva. Isso quer dizer que a consistência da realidade que se mostra como objetiva, é adquirida a partir de sua dependência para com um marco fantasmático.
4 Segundo Jameson (2007), o capitalismo tardio é o modelo econômico que melhor dá conta da complexidade inerente à pós-modernidade, porque, nesse modelo, cultura e economia se tornam uma coisa só, não existindo mais distinção para esses termos. Segundo ele, na pós-modernidade, o capitalismo colonizou os últimos recursos que estavam excluídos de sua rede de exploração, o que implica um novo proletariado privado até de sua esfera privada, de seu desejo, restando para ele apenas o vácuo de uma subjetividade vazia e sem importância. Pode-se perceber a apropriação dos traços culturais pela economia ao se dar conta da volatilidade e da efemeridade das modas, produtos, técnicas de produção, processos de trabalho, ideias, valores e práticas estabelecidas, bem como da tendência mundial de produção de arte (filmes, músicas, peças de teatro, quadros, esculturas e afins) de maneira industrial, objetivando o lucro. Dessa forma, uma das principais características do capitalismo tardio ou pós-industrial, além da descartabilidade, é a venda de estilos de vida que acompanham as mercadorias e a efemeridade, bem como a transformação do conhecimento, da cultura, da arte e da vida como um todo em comodities.
5 "And fantasy can be understood as a way of mediating the subject's relation to the norms and ideals governing a social or political practice".
6 Isso porque uma ética fundada no desejo não deve ser confundida com aquela fundada no prazer, de forma que a primeira não afirma que cada um deva buscar a satisfação de seu desejo particular, mas sim mudar o ponto de visada da racionalidade para o desejo. Além disso, deve-se lembrar que, em Lacan, o desejo é sempre do Outro, portanto, sempre pensado a partir do simbólico, de forma que não há possibilidade de pensá-lo apenas no nível individual. Sendo assim, o "Agistes conforme o desejo que te habita?" de Lacan (2008, p. 367) seria a máxima da ética da psicanálise que surge de Antígona. Contudo, a psicanálise não deve cair no devaneio burguês da tentativa de alcançar o bem, mas se debruçar sobre a busca, sobre o caminho do sujeito até o desejo.

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