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Natureza humana

Print version ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.22 no.2 São Paulo July/Dec. 2020

 

DOSSIÊ

 

A pandemia e seus efeitos: as consequências psíquicas do excesso de idealização1

 

The pandemic and its effects: the psychological consequences of over-idealization

 

 

Julia Joergensen Schlemm

Doutora em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) na linha de filosofia da psicanálise - bolsista CAPES -, início março de 2016, conclusão abril 2020. Doutorado sanduíche realizado em psicanálise na Université Paris 7 Denis-Diderot entre agosto de 2018 a julho de 2019. Mestre em psicologia na linha de psicologia clínica na Universidade Federal do Paraná (UFPR) - bolsista CAPES -, conclusão em março de 2016. Formada em psicologia pela UFPR, no ano de 2013. Participou em projeto de extensão em Neuropsicologia (2010) na UFPR, projeto de pesquisa sobre trauma psíquico (2011) e projeto de pesquisa sobre luto, ambos na UFPR e vinculados ao Laboratório de Psicopatologia Fundamental. Membro do GT Filosofia e Psicanálise da ANPOF. Contato: schlemm.julia@gmail.com

 

 


RESUMO

A pandemia de corona vírus, com início em março de 2020 no Brasil, impôs aos indivíduos mudanças na realidade material. Com Freud (1900), estabelece-se que essa realidade compartilhada não é percebida por todos do mesmo modo, constituindo, com isso, outra realidade, a saber, a psíquica. Na obra freudiana, a castração aparece como elemento central para se pensar a formação da realidade psíquica em cada um, relação brevemente demonstrada neste trabalho. O objetivo deste artigo foi questionar as diferentes formações psíquicas geradas diante de um mesmo cenário, especificamente a melancolia. A escolha por essa patologia se deu pelo seu quadro depressivo presente atualmente em muitos relatos. Para tanto, relacionou-se a melancolia à castração, indicando o modo como esta é vivida nessa patologia. Na teoria freudiana, a castração é tomada como sinônimo da percepção da diferença da realidade material que acarreta uma perda de um estado de idealização narcísico. Diante dessa constatação, o melancólico se inebria, impossibilitado de renunciar ao estado de idealização. Conclui-se que as mudanças impostas pelo contexto atual podem ser vivenciadas de modo melancólico, enquanto repetição de um excesso de idealização que se recusa renunciar.

Palavras-chave: Pandemia; Melancolia; Realidade psíquica; Castração; Idealização.


ABSTRACT

The corona virus pandemic, which started in Brazil in March 2020, imposed to the individuals changes in their material reality. Freud (1900) established that this shared reality is not perceived in the same way by everyone, thus constituting another reality, the psychic one. In Freud's work, castration appears as a central element to think the formation of psychic reality in each one, a relation briefly demonstrated in this paper. The aim of this article was to inquire the different psychic formations generated in the same scenario, specifically melancholy. The choice for this pathology was due to its depressive condition, which can be found in many actual narratives. For that, melancholy was related to castration, indicating how it is experienced in this pathology. In Freud's theory, castration is understood as a synonym for the perception of the difference in material reality, which conducts to a loss of a narcissistic idealization state. Facing this fact, the melancholy would inhibit, unable to renounce the state of idealization. We conclude that the changes imposed by the current context can be experienced in a melancholic way, as a repetition of an excess of idealization that refuses to renounce.

Keywords: Pandemic; Melancholy; Psychic reality; Castration, Idealization.


 

 

No final de março de 2020, iniciamos no Brasil as medidas preventivas contra o contágio do corona vírus. Essas medidas envolveram o fechamento de diversos setores, entre eles o da educação. Com isso, muitas pessoas tiveram suas rotinas e planos alterados, como é o caso de diversos estudantes. Não são poucos os casos de alunos que iriam ingressar na faculdade ou que iriam terminá-la este ano. Esses dias escutei estudantes falando que suas vidas estariam impedidas pela pandemia, assim como tomei conhecimento de casos de depressão e suicídio de pessoas nessas mesmas condições. Claro que não se pode generalizar. Cada caso é um caso e não se sabe todos os detalhes da história de cada um, saliento, porém, que entre aqueles que vivem a mesma realidade material - para usar um termo de Freud em A interpretação dos sonhos - há diversas formas de compreendê-la.

Uma das conclusões que se pode tirar do trabalho de Simanke (2009) sobre as psicoses na teoria freudiana é que há uma relação entre a noção de realidade e a de castração na obra de Freud, a saber, a realidade seria a própria castração. Esse conceito perpassa a constituição psíquica, levando assim a questão do contexto atual aos primórdios da história de cada indivíduo. Sobre a castração na obra de Freud, pode-se dizer que esta assume um cunho imaginário e simbólico. Não se trata de uma castração real, mas sim do corte simbólico que retira o indivíduo do seu estado imaginário de completude narcísica. Assim sendo, a castração não é necessariamente sinônimo de mutilação corporal, estando mais relacionada à projeção psíquica do corpo biológico. A etapa do narcisismo, com a fusão dos impulsos em torno de um mesmo objeto, formando o que Freud chama de eu, seria a viabilizadora da realização de uma imagem psíquica unificadora do corpo biológico, o que Dolto chama de "a imagem inconsciente do corpo". Esta imagem se forma a partir das excitações das zonas erógenas, que são representadas através de sua satisfação facilitada pelo mundo externo. Com isso, a cada etapa do desenvolvimento da libido, essa imagem se torna mais concisa, representando um corpo e um objeto unificado. Aqui, a relevância das etapas oral, anal e fálica, todas elas anteriores à genitalidade da puberdade, é ressaltada.

Um dos fatores que permite a formação e coesão da imagem inconsciente do corpo, em outras palavras, a formação do eu e do objeto, é a renúncia à cada uma dessas etapas. Essa ação permite que a próxima etapa entre em cena e seja significada psiquicamente. Essas renúncias correspondem a uma repressão que, ao mesmo tempo que reprimem uma satisfação, organizam e direcionam o impulso. Assim, representam todas castrações de satisfações físicas e psíquicas. A passagem por todas essas etapas se faz importante, pois as castrações oral e anal só serão sentidas como castrações a posteriori, com a passagem pela fase fálica e sua castração. Simanke (2009) compreende essa afirmação de Freud, no sentido de que apenas com a passagem dessa última fase é que se formaria a unidade narcísica passível de ser castrada, talvez pelo fato de ocorrer em um momento de maior capacidade de percepção e reflexão do indivíduo. Disso concluímos que, antes da fase fálica, não há unidade narcísica, formação do eu e do objeto.

A partir de 1924, com o texto A perda de realidade na neurose e na psicose, como o psiquismo reage diante da percepção da castração passa a ser o organizador teórico de Freud para explicar as doenças psíquicas. A recusa de renúncia psíquica de uma satisfação diante de uma exigência externa, que o autor considerava até então como a causa das neuroses e psicoses, encontra na percepção da castração um balizador comum. Não se trata mais apenas de um adulto inconveniente e exigente que não deixa o outro gozar como deseja, mas sim da realidade externa que impõe a diferença para cada um, sinônimo de quebra do narcisismo. De modo geral, o conceito de castração entra para indicar a marca que distingue o que foi uma vez percebido e representado e a realidade atual. Em suma, todos, de uma forma ou de outra, a partir da passagem pela fase fálica, perceberiam que o objeto representado não se encontra na realidade como tal. Não só isso. Pela perspectiva de que o objeto e o eu se formam conjuntamente, isso significaria dizer que todos descobririam, cada um a seu modo, não apenas que o objeto não se encontra mais na realidade como uma vez representado, mas que o próprio indivíduo também não é bem como se imaginava ser. Como cada um se posicionará diante dessa realidade que se impõe, ou seja, diante da castração, é o que norteará a constituição psíquica e formação de sintomas.

Mas e por que falarmos em constituição psíquica, se a questão em relação ao corona vírus é extremamente atual? Aqui vale ressaltar ao leitor que assumimos a concepção, que se apoia na teoria freudiana, mas não se confunde com ela, de que percebemos o mundo através de uma lente formada na constituição psíquica de cada um e pela qual o indivíduo irá interpretar sua realidade. Dito isso, gostaríamos de propor um pequeno percurso por um dos modos de se perceber e posicionar-se diante da castração: a melancolia. Escolhemos essa forma pois muitos dos relatos atuais envolvem histórias de depressão, perda de vontade e suicídio, características comumente atribuídas à patologia da melancolia. Para pensarmos esse assunto, abordaremos rapidamente a melancolia na obra freudiana.

Ao longo da obra de Freud, a melancolia é tida como sintoma ou patologia psíquica a ser clinicamente tratada. Por esse motivo, entendemos que essa concepção se insere na prática psiquiátrica, que, no século XIX, concebe a melancolia como uma alteração do sistema nervoso. No entanto, com o desenvolvimento dos escritos freudianos e as formulações metapsicológicas, podemos dizer que, em certa medida, a concepção de Freud sobre a melancolia, sem perder sua referência médica, aproxima-se também de ideias da filosofia, da literatura e da religião, as quais, de acordo com Schmidt e Simanke (2014), relacionam-se à tristeza e à falta de vontade, por vezes associadas a um processo de idealização. De modo geral, podemos dizer que a melancolia ocupa, na obra freudiana, uma ideia de depressão psíquica, no sentido de uma tristeza que se expressa, muitas vezes, em uma falta de vontade.

Para formarmos um quadro descritivo da melancolia, garimpamos seus sintomas citados ao longo da obra de Freud e chegamos à seguinte formação: começamos em 1884 com sintomas de inibição e estado nervoso e psíquico de fraqueza, para, em 1899, chegarmos à alteração de humor, ideias delirantes, luto, baixa autoestima, desinteresse, apatia, anestesia, inibição, anorexia, problemas gastrointestinais, dificuldade para dormir, empobrecimento do investimento no mundo externo, dor, estados de esgotamento do eu, culpabilizações, convicção de não prestar e de não ser capaz de nada.

Sobre as explicações dadas à melancolia, podemos dizer que giram em torno do luto e do sofrimento doloroso de uma perda, primeiramente como perda de libido, para depois assumir também a face de perda do eu e do objeto. Em suma, Freud (2016) delimita que o melancólico sofre de um luto pela perda de algo, que não sabe exatamente o que é.

O desconhecimento sobre a perda leva Freud a concluir que esta apresenta a particularidade de ter um cunho ideal. Por estar no plano ideal, pode-se dizer que a perda não precisa realmente ter ocorrido, como no caso de uma morte, basta ter sido vivenciada como tal. A idealização serve para se recuperar ou adquirir, através do objeto, características perdidas ou admiradas. Isso significa que, se a perda é ideal, ela corresponde ao âmbito narcísico, à perda de características de si mesmo, perda de seu eu. Assim, o que o funcionamento da melancolia apresentaria de diferença em relação ao luto é, justamente, a identificação narcísica ao objeto. Como coloca Freud (2016), "Uma parte das características da melancolia é tomada de empréstimo do luto e outra parte, do processo de regressão da escolha narcísica de objeto ao narcisismo" (p. 214).

A presença da idealização indica que há uma fixação imaginária, no inconsciente. No caso da melancolia, segundo Freud (2016), o indivíduo estaria fixado na fase narcísica oral canibalesca, na qual o eu se distingue e aproxima-se de maneira ambivalente de seu objeto de amor. Essa forma de relação com o objeto corresponde, por um lado, a uma identificação com o objeto. Em suma, podemos dizer que o melancólico está fixado em uma fase da satisfação libidinal correspondente a um momento de completude narcísica em que, psiquicamente, praticamente não há distinção entre eu e objeto. Consequentemente, o melancólico renuncia a seu objeto na realidade material, mas o que não faz é renunciar a um ideal. Por mais que, conscientemente, seja a perda do objeto e um empobrecimento do eu que se manifestem, inconscientemente o investimento do ideal narcísico continua firme e forte.

Essa dupla posição - investimento em um desejo totalitário e aparente desvinculação das excitações ligadas ao objeto externo - fornece outra dimensão ao suicídio. Nessa perspectiva, encontramos os estudos de Lambotte (1997). A autora relata que sua prática clínica mostrou que a maior parte dos suicídios de melancólicos seriam defenestrações. Essa escolha é interpretada pela analista como representação do ato de se buscar o prazer absoluto, que se esconde por detrás da castração. Assim, ao atravessar a moldura da janela, o melancólico se depararia psiquicamente com a totalidade mortífera. O suicídio seria assim, por um lado, a castração total do eu e do mundo e, por outro, a satisfação completa de prazer.

Assim, a melancolia nos mostra que a libido, enquanto investimento erotizado provindo de zonas erógenas e representante de investimento objetal, quando investida no inconsciente, pode se manifestar de outras formas, além de amor-próprio e direcionado às pessoas. O que faz com que, na melancolia, manifeste-se um eu empobrecido, sem amor-próprio?

Para tentarmos nos aproximar de uma explicação, pularemos um pouco nos textos de Freud até chegarmos aos estudos que envolvem a castração, que, como falamos acima, é a chave para compreendermos a forma como um indivíduo realiza o que lhe ocorre. A castração, enquanto possível exigência de renúncia de satisfação e repressão, oferece meios para pensarmos como um excesso de investimento psíquico é vivenciado em sua outra extremidade como falta. De acordo com Lambotte (1997, p. 299, grifos do original):

[...] Ela [a castração] fez muito mais o sujeito depender de um saber funesto que, tendo para sempre condenado a ilusão, afirma a castração de maneira absoluta e recusa, em sua própria essência, a natureza imperfeita do investimento. Afirmar a castração, para o melancólico é, pois, fazer de forma a se interditar de toda possibilidade de investimento e a ignorar o mundo [...].

A partir de um ponto de vista que considera a melancolia como uma forma de constituição psíquica, diferentemente de Freud, que a toma mais como uma neurose atual ou traumática, a autora entende que o melancólico teria se deparado em sua infância com uma perda muito precoce de um objeto significativo, em um momento em que só foi possível constituir o supereu em sua severidade. Essa perda, sem um psiquismo capaz de anteparar a dor, é reconhecida pela autora como a castração, a qual impossibilita o sujeito melancólico de recobrir o mundo com o véu da fantasia. Desse modo, afirmar a castração representa uma falta de lugar para a fantasia, o desejo, o prazer, restando ao indivíduo um lugar de desvalorização subjetiva que se manifesta na sua baixa autoestima. E como ocorre esse processo de afirmação da castração?

Como dito anteriormente, a castração é a responsável pela constatação da diferença, algo que Freud trabalha através do complexo de Édipo e da diferença dos sexos. Uma situação edípica que se assemelha à melancolia é a da menina, pois, em ambos os casos, Freud relata a presença de um sentimento de inferioridade. Pelo fato de Freud não trabalhar a castração na constituição da melancolia, muito provavelmente por compreendê-la como uma neurose atual ou traumática constituída em um tempo, tomaremos o caso do Édipo na menina como parâmetro para reflexão. A menina, quando se compara ao menino, percebe que aquilo que lhe tinha valor de membro fálico, o clítoris, é muito pequeno. Toma essa percepção como inferioridade (Minderwertigkeit) de sua pessoa, sem abrangê-la ao restante das mulheres e aos homens. "A conclusão é então uma diferença essencial, que a menina aceita a castração como um fato consumado, enquanto o menino teme diante da possibilidade de sua realização" (Freud, 1924a/1994, p. 250). Portanto, Freud (1925/1994) determina que a menina, diferentemente do menino, entraria no complexo de Édipo pela percepção da castração. Impossibilitada de ter um pênis e decepcionada com sua mãe por não tê-la dado um, realiza uma troca de objeto de sua mãe para seu pai, passando a desejar ter um filho deste. Esse desejo será interditado e reprimido - assim como o do menino de tomar sua mãe como sua mulher - para que, futuramente, possa ter um filho de outro homem. Assim, o Édipo possibilitaria ao sujeito uma troca simbólica para seu desejo impossível. A diferença entre o Édipo na menina e o caso da melancolia está em que a menina não ficaria presa a essa inferioridade, como parece ser o caso na melancolia, mas, em paralelo a esse sentimento que se instaura com a castração, encontraria em seu pai uma figura que poderia dar-lhe o que deseja. Já o melancólico parece ficar paralisado, inibido diante da castração, sem possibilidade de ação, de troca.

Pensamos o melancólico como o poeta, retratado em Sobre a transitoriedade, que se atenta apenas para o término das coisas à sua volta, sendo essa constatação - que por apontar para a imperfeição e incompletude das coisas pode ser interpretada como a castração - a responsável pela perda do valor das coisas. Entendemos ser nesse sentido que Lambotte (1984) afirma que o melancólico seria aquele que percebe o mundo em uma única dimensão, sem conseguir enxergá-lo em suas profundidades e outros ângulos além daquele referente à sua efemeridade. Essa ideia se manifestaria no uso do significante do destino, ou seja, de que estamos todos fadados a morrer.

Há uma questão importante a qual ainda não respondemos: o que o melancólico perde de tão importante que o torna impotente diante da realidade? A identificação narcísica ao objeto inconsciente juntamente à manifestação consciente de ser um nada nos indicam que, muito provavelmente, o melancólico tenha perdido o único traço que lhe diferenciava como sujeito. Se aplicarmos essa ideia ao contexto da concepção sobre a representação de coisa e de palavra, exposta em O inconsciente, assumindo que a representação de palavra é a que distingue e forma o eu e o objeto, poderíamos dizer que, na constituição psíquica, à representação de coisa se adicionou uma representação de palavra e esta última foi perdida. Nesse sentido, o que Freud narra em Luto e melancolia sobre a perda do melancólico seria referente à perda da representação de palavra, que faz a ponte entre inconsciente e consciência. Essa ausência marca uma antiga presença, mas, justamente por ser a viabilizadora de consciência, impede que se saiba o que se perdeu. As implicações disso parecem ser a possibilidade ou não de uma troca simbólica de objeto, a continuidade do investimento no mundo, que permite a manifestação da vontade.

Pela significação da representação perdida não é qualquer objeto que pode ocupar esse lugar. Nesse sentido, a única forma para que o melancólico tenha satisfação é o encontro com algo ou com alguém perfeito, que corresponda completamente aos seus ideais - ideia que se aproxima do apaixonar-se de Hassoun (1995) enquanto crença imaginária de pelo menos por um momento se ter encontrado tudo o que se quer. Freud compreende que no enamoramento o objeto seria colocado no lugar de ideal de eu do sujeito, levando a uma suspensão momentânea das barreiras repressivas, ou seja, eu e objeto representar-se-iam novamente como um. Importante ressaltarmos que, por mais que Freud entenda que nesse momento de enamoramento as repressões seriam removidas, estas já foram formadas, marcando o psiquismo com as perdas passadas. Com isso, o estado de enamoramento não consegue recuperar completamente a unidade uma vez formada com o objeto, assim como não consegue impedir futuras decepções. Portanto, podemos imaginar que perder esse objeto que ocupa o lugar de ideal de eu pode ser sentido como uma perda do próprio eu, como nos é descrito o processo da melancolia em Luto e melancolia.

Retomando a introdução deste texto, compreendemos que a perda ou a desilusão que se vive com um objeto atual, em outras palavras, a forma como se vivem perdas atuais, é, de acordo com a psicanálise freudiana, uma repetição de uma vivência infantil ligada à castração. Transpondo essa ideia ao contexto atual, poderíamos pensar que não encontrar mais a realidade assim como se imagina e idealiza pode levar a uma forte decepção, ao estado patológico da melancolia.

Concluímos com a ideia de que um contexto como o da pandemia de corona vírus, que modifica a vida de muitas pessoas, acarretando perdas, pode ser vivido de maneira melancólica. Isso quer dizer que o indivíduo, diante da realidade externa que se impõe a ele, pode perder justamente aquilo que o conectava com o mundo, que o retirava de sua célula narcísica inconsciente e diferenciava-o de seu objeto de amor. A consequência pode ser um estado depressivo que pode culminar em suicídio2.

 

Referências

Dolto, F. (1984). L'image inconsciente du corps. Paris: Éditions du Seuil, 1984.         [ Links ]

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Hassoun, J. (1995). La cruauté melancolique. Paris: Psychanalyse aubier, 1995.         [ Links ]

Lambotte, M.C. (1984). Esthétique de la mélancolie. Paris: Aubier,1984.         [ Links ]

Lambotte, M.C. (1997). O discurso melancólico: da fenomenologia à metapsicologia. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1997.         [ Links ]

Schmidt, E.; Simanke, R.T. Depressão e mal-estar contemporâneo de um ponto de vista psicanalítico. In: Schmidt, E.; Simanke, R.T. Psicanálise em Perspectiva V. Curitiba: CRV, 2014.         [ Links ]

Simanke, R.T. (2009). A formação da teoria freudiana das psicoses. São Paulo: Edições Loyola, 2009.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 11/09/2020
Aprovado em: 18/11/2020

 

 

1 Este trabalho é fundamentado na tese de doutorado da autora, defendida em abril de 2020, financiada pela CAPES, título: "O caráter melancólico: uma proposta à concepção de melancolia a partir de uma releitura da obra de Sigmund Freud."
2 É importante mencionar que compreendemos que a psicanálise, em sua prática clínica, pode intervir nesses estados e oferecer um novo lugar ao sujeito, permitindo uma saída para seu sofrimento. A direção do tratamento seria justamente a de construção de representações que diferenciem o sujeito enquanto tal. Para mais, ver Schlemm (2020).

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