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Natureza humana

Print version ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.22 no.2 São Paulo July/Dec. 2020

 

DOSSIÊ

 

Perturbações na percepção em termos de pandemia: o viés da repressão

 

Perception disorders in pandemic times: the bias of repression

 

 

Letícia Campos da SilvaI; Eduardo Ribeiro da FonsecaII

IFormada em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Especialista em Psicologia clínica: abordagem psicanalítica e em Saúde mental e psicanálise pela mesma universidade. Mestre em filosofia e doutoranda em filosofia também pela mesma universidade. Psicóloga clínica em Curitiba desde 2015. Contato: Lcampospsicologia@hotmail.com
IIDoutor em Filosofia pela USP e membro do PPGF da PUCPR. Ganhou o prêmio Jabuti na categoria Psicologia e Psicanálise em 2013 com "Psiquismo e Vida: Sobre a noção de Trieb nas obras de Freud, Schopenhauer e Nietzsche" (2012) e em 2015 na categoria Tradução, com o livro de Arthur Schopenhauer "O Mundo como Vontade e Representação: Complementos. " (2014). Coordenador do GT Filosofia e Psicanálise e membro do GT Schopenhauer da ANPOF e da Seção Brasileira da Schopenhauer-Gesellschaft. Contato: eduardorfonseca@uol.com.br

 

 


RESUMO

Este artigo objetiva investigar, a partir do caminho percorrido pelo conceito de repressão nos textos de Freud de 1891 a 1915, possíveis formas de associar como a "tensão" entre as noções de realidade e percepção influencia a forma como um indivíduo recepciona um conteúdo perceptivo a partir de um estímulo externo (visual ou acústico), e se isso pode sofrer alguma "perturbação" em tempos de pandemia. Por "perturbação" entendemos tanto os casos em que os estímulos externos (mesmo que recepcionados pelos órgãos do sentido) encontram-se impossibilitados de se associar a uma cadeia de representações, quanto os casos em que os estímulos externos se apresentem distorcidos, para que seja suportável ao indivíduo o seu pertencimento a alguma rede de representações.

Palavras chave: Realidade psíquica; Representação; Perturbação; Pandemia.


ABSTRACT

This article aims to investigate, from the path taken by the concept of repression in Freud's texts from 1891 to 1915, possible ways of associating how the "strain", between the notions of reality and perception influences how an individual receives a perceptive content from an external stimulus (visual or acoustic), and whether this can suffer any "disruption" in times of pandemic. By "disturbance" we mean both cases in which external stimulus (even if received by the organs of the sense) are unable to associate themselves with a chain of representations, as the cases in which the external stimuli are distorted, to make it possible for the individual to belong to a network of representations.

Keywords: Psychical Reality; Representation; Disorder; Pandemic.


 

 

1. Introdução

Destacaremos a partir do cenário atual de pandemia do coronavírus no mundo, o cabo de tensão que sustenta a relação entre as noções de realidade e percepção descrito com destaque por Sigmund Freud desde o texto Interpretação dos sonhos, como ressaltaremos nos próximos parágrafos. Porém, mesmo antes de Freud (1900/2019) ter desatrelado, ao menos em parte, uma representação (psíquica) da percepção (estímulo externo), a forma como um material reprimido, assim nomeado por ser excessivamente desprazeroso, poderia retornar à consciência já demarcava o caráter de tensão dessa relação.

A partir desse cabo de tensão, discussões acompanham a linha teórica da "filosofia da psicanálise", ou "filosofia e psicanálise", enquanto uma disciplina buscando responder a seguinte questão: afinal, a partir da noção de repressão que foi instaurada por Freud no texto metapsicológico A repressão (1915/2010), a noção de realidade foi desatrelada no todo ou em parte da noção de percepção? A respeito dessas discussões, destacamos, primeiramente, o livro O movimento de um pensamento de Luiz Roberto Monzani. Nesse livro, o comentador ressalta que haverá sempre um elemento entre a construção da fantasia e a realidade, ou, nas palavras de Monzani (2014, p. 50), haveria sempre "[...] o grão de realidade a partir do qual a cena [da fantasia] foi construída".

Em contrapartida ao pensamento de Monzani (2014), os comentadores Arlow e Brenner (1973) no livro Conceitos psicanalíticos e a teoria estrutural ressaltam ser inegável que a primeira tópica freudiana é discordante em todos os aspectos da segunda tópica, sendo esta última a que carrega toda relevância do pensamento freudiano. Sobre isso, Arlow e Brenner (1973, p. 15) comentam que "Não obstante, somos de parecer que as teorias topográfica e estrutural não são nem compatíveis nem intercambiáveis. Sustentamos ser positivamente desvantajoso intercambiar os termos das duas teorias".

"As duas teorias que, na realidade, são tão semelhantes em muitos aspectos, em outros se apresentam tão distintas a ponto de se tornarem incompatíveis" (Arlow e Brenner, 1973, p. 15). Jean Laplanche (1985), por sua vez, comenta no livro Vida e morte em psicanálise que o âmago da obra freudiana não estaria no todo, mas sim no que foi representado enquanto cena originária de sedução sendo a cena de sedução memorizada pela histérica enquanto um simples arquivamento.

Não objetivamos, neste breve texto, entrar nos embates teóricos que essa questão convoca nos dias de hoje, mas apontar, a partir dela, possíveis formas de associar como a "tensão" entre essas duas noções (realidade e percepção) influenciam a forma como um indivíduo recepciona um conteúdo perceptivo e se isso sofre alguma alteração ou agravamento em tempos de pandemia. Ao longo deste artigo, apontaremos, além da construção do conceito de repressão, duas formas de "tensão" às quais um estímulo externo (visual ou acústico) está sujeito. Chamaremos essas forma de "tensão" de "perturbações".

Primeiramente, notaremos que o estímulo externo pode ser recepcionado pelo sistema psíquico sem conseguir se associar a nenhuma rede de associações. Dito de outra forma, o estímulo externo é bloqueado não da recepção, mas da associação. Em segundo plano, comentaremos como um estímulo externo pode ser distorcido para que seja suportável para o indivíduo o fato de ele pertencer e se associar a alguma rede de representações no psiquismo. Nestes termos, a construção que será feita a respeito do conceito de repressão guiará o leitor a essas duas formas de "perturbações" citadas acima.

 

2. A recepção do estímulo externo pelo aparelho psíquico

Optamos por seguir a leitura do tema da recepção de um estímulo externo, seguindo o princípio demonstrado por Monzani (2014, p. 20) que encontra na obra de Freud "[...] um núcleo teórico que atravessa de ponta a ponta e que (independente de todas as variações que ela tenha sofrido) é razão suficiente para não pensarmos numa ruptura [...]". De fato, se destacamos na relação entre percepção e realidade um cabo de tensão, isto se deve ao fato de estarmos negando que ocorreu uma ruptura no pensamento freudiano.

Talvez o marco dessa "tensão" entre realidade e percepção envolva a fantasia, haja vista a preciosa discussão travada por diversos comentadores dos textos de Freud, e busca responder outra questão: afinal, Freud abandonou ou não a "teoria da sedução"? Na carta A teoria transformada, Freud (1897/1986) decreta o fracasso dessa teoria. Mas seria esse fracasso um abandono ou seria possível trilhar uma nova perspectiva a respeito da sedução? A respeito disso, não podemos afirmar que esta não se manteve presente na teoria freudiana sobre a sexualidade.

Porém, foi inevitável ao conceito de sedução uma mudança, passando de um fato consumado a uma questão de cunho teórico, tendo em vista a dificuldade da fantasia e da realidade, a partir desta carta, de se distinguirem no inconsciente. É a partir disso que, para Monzani (2014, p. 43), a teoria da sedução "[...] passa a exercer um papel extremamente minimizado em relação ao que exercia até então". Por esse fato, a partir da noção de inconsciente postulada em Interpretação dos sonhos, esse cabo de tensão entre as noções de realidade e percepção se instaurou definitivamente, vindo a ser ainda mais tensionado no texto metapsicológico A Repressão (1915/2010).

Embora este artigo tenha como foco principal A repressão, se faz importante percorrer brevemente alguns textos iniciais de Freud, como Sobre a concepção das afasias, Projeto para uma psicologia científica e Carta 52, a fim de ter um solo resistente acerca de como o conceito de repressão influenciou essa "tensão" que consolidou a conflituosa relação entre as noções de percepção e realidade.

Nesse sentido, não é possível entender a cena da fantasia histérica enquanto um simples arquivamento, caso pudéssemos, estaríamos lendo a histeria a partir dos ensinamentos postos no texto freudiano Sobre a concepção das afasias: um estudo crítico, sem levar em consideração o peso que a noção de inconsciente teve a partir de 1900. Nesse texto, publicado em 1891, o autor apresentou o conceito de representação (Vorstellung) para designar a inscrição de um estímulo externo sem a interferência da noção de realidade psíquica, que seria formulada posteriormente em Interpretação dos sonhos.

Então, segundo Hanns (1996, p. 390), o termo Vorstellung é utilizado para designar as representações (imagens) em um sentido psíquico que "estão no lugar de algo", por exemplo, no lugar de um estímulo sonoro estaria uma imagem de som (klangbild). Embora mesmo nesse texto a formação de uma imagem não fosse um processo simples (visto que deveria haver a repetição de vivências sensitivas para formar uma imagem de lembrança psíquica do objeto), ainda não havia nenhuma preocupação de como a realidade externa seria recepcionada pelo aparelho de linguagem e se essa recepção ocorreria sem resistências.

O que poderia ocorrer era que um estímulo externo não conseguisse se associar à uma cadeia de representações, o que não descartaria o fato de ele ser recepcionado pelo aparelho de linguagem. Porém, em nossa leitura, resta desse texto de Freud a seguinte questão: o que justificaria o impedimento a um estímulo externo de se associar a uma rede de representações?1

Fato que, no decorrer de sua obra, Freud construiu duas tópicas ou, ditas de outra forma, dois modos de funcionamento do psiquismo. No texto Interpretação dos sonhos e na vigência da primeira tópica, Freud (1900/2019) afirmava que o desejo influenciava a forma como o Eu relacionava o processo perceptivo com as inscrições psíquicas a partir de uma noção de realidade dividida em externa e psíquica.

Segundo Freud (1900/2019, p.666), "O inconsciente é a verdadeira realidade psíquica, tão desconhecido para nós, em sua natureza íntima, quanto a realidade do mundo externo, e nos é apresentado de modo tão incompleto pelos dados da consciência quanto o mundo externo pelas indicações de nossos sentidos". Sobre o papel da consciência, Freud (1900/2019, p. 666) afirmou ser "[...] nada mais que um órgão sensorial para a percepção de qualidades psíquicas". Mas que contexto anterior fez com que o autor chegasse a essa conclusão em 1900 e o que da relação entre realidade psíquica e percepção viria a ser destacado posteriormente em 1915?

Nestes termos, para apontar por que os textos iniciais de Freud (escritos entre 1891 e 1900) se tornaram indispensáveis para o trabalho de pesquisa sobre o conceito de repressão, precisamos entender do que se trata um mecanismo de defesa, o qual funciona para bloquear ou diminuir os impactos que certos estímulos externos provocam no aparelho psíquico por serem fortes causadores de desprazer. Como afirmamos no parágrafo anterior, desde Sobre a concepção das afasias: um estudo crítico, Freud (1891) buscava entender como funcionava a relação entre realidade e representação e, embora não houvesse uma noção de realidade psíquica presente em sua obra, havia uma distinção entre estímulo recebido e representação que deveria ser ressaltada.

De acordo com Freud (1891/2013), essa distinção se devia, pois, para que uma imagem se formasse, seria necessária a formação de uma imagem de lembrança psíquica. No texto de 1891, o autor também destaca que os estímulos externos poderiam ser associados às representações anteriormente inscritas no aparelho enquanto um grupo de imagens e, desta forma, cadeias [de representações] se formariam, visto que a função de um aparelho de linguagem é "[...] trabalhar a partir de um estímulo espontâneo". (Freud, 1891/2013, p. 109)

Sobre o conceito de imagem apresentado em Sobre a concepção das afasias: um estudo crítico, Caropreso (2008, p. 83) comenta que ela seria uma representação simples, sendo que "[...] não é possível, nos correlatos da representação, distinguir algo simples: estes só existem enquanto complexos, pois só com a associação surge o correlato de uma representação".

Embora até 1891 Freud ainda não tivesse articulado nenhuma teoria sobre o conceito de desprazer e/ou dor, ele afirmava que todas as representações estavam sujeitas a uma falha na condução, sendo que esta ocorreria em uma cadeia associativa e sua consequência seria um impedimento da reorganização a partir do estímulo externo (Freud, 1891/2013). Isto é, para que um estímulo sensório pudesse reorganizar a cadeia, deveria ser recepcionado e, se houvesse uma falha na condução, a reorganização não ocorreria. Não estamos afirmando que o estímulo não estaria presente, mas que sua ação seria nula na cadeia de representações. Dito de outra forma, ele seria recepcionado, mas não causaria efeitos no aparelho de linguagem.

A ideia de que uma percepção poderia causar uma nova rede de associações foi retomada alguns anos depois no texto Projeto para uma psicologia científica. "No 'Projeto', como se sabe, Freud tenta explicar os processos psíquicos a partir de dois postulados principais: quantidade e neurônio" (Caropreso, 2008, p. 91). Assim, segundo esses dois postulados principais, um aparelho psíquico só poderia recepcionar estímulos externos através dos órgãos dos sentidos caso esses estímulos não fossem excessivamente desprazerosos para o aparelho psíquico (Freud, 1895/1974). Digno de nota que esse texto enfatiza tanto a maneira como o meio poderia impactar o organismo como quanto o organismo poderia impactar o meio.

Assim, Freud (1895/1996) escancarava a noção de economia psíquica, destacando um aparelho de memória composto por um sistema de neurônios que estava o tempo todo em movimento, administrando o aspecto quantitativo. Para ele, os estímulos poderiam se originar de duas fontes: do mundo externo (Q) e das entranhas do próprio aparelho psíquico (Qn). Neste trabalho, nossos interesses estão nessa primeira fonte de estímulos e em como ela poderia ser ou não recepcionada pelos órgãos dos sentidos.

Se no texto Projeto para uma psicologia científica o autor inseriu a noção de economia, seria possível, a partir dele, falar em dor e desprazer. Deste modo, segundo Freud (1895/1996), quando o órgão do sentido recebe a quantidade excitatória, o sistema de neurônios do aparelho é capaz de memorizar certa experiência como prazerosa ou desprazerosa. Assim, novas percepções poderiam ser memorizadas a partir do que já estava representado mnemonicamente e, a cada percepção externa, seria revivida a marca mnêmica inaugural através de um retorno. Nestes termos, o conceito de desejo apontaria para um caminho facilitado para a descarga econômica e a dor seria uma recepção de estímulos caracterizada por uma quantidade excessiva de estímulos. Nas palavras do autor, "[...] a repressão é invariavelmente aplicada às representações que despertam no Eu um afeto penoso (de desprazer) [...]" (Freud, 1895/1996, p. 414).

Como comenta Gabbi Junior (1991, p. 177), "No Projeto, a memória não deforma o desejo; ela pode somente, em certas circunstâncias, alucinar o objeto de desejo, mas não deformá-lo. Só se recorda aquilo que existiu". No decorrer da obra, Freud vai acrescentando uma função produtiva à memória, o que afeta tanto a forma como os estímulos perceptivos são reorganizados dentro do aparelho quanto a forma como são recepcionados.

 

3. O filtro econômico dos estímulos externos

Segundo Freud (1895/1996), quem realizaria essa ligação entre estímulo externo e as representações seria o Eu, o denominado sujeito da percepção, tendo a função de distinguir um traço mnemônico de uma alucinação para permitir o investimento econômico apenas se houvesse um objeto de satisfação presente. Assim, temos um primeiro apontamento por parte do autor sobre os psiquismos que escolhem investir economicamente em realidades psíquicas que, em muitos momentos, podem estar distantes da realidade externa. Nestes casos, o Eu tira parcialmente o investimento econômico do sistema de percepção-consciência, provocando um distanciamento pontual da realidade externa (o que não caracteriza um rompimento com a mesma).

A partir deste ponto, intencionamos realizar uma relação possível entre essas formas de defesa apresentadas em Sobre a concepção das afasias: um estudo crítico e em Projeto para uma psicologia científica para, a partir daí, entender o mecanismo de funcionamento de uma representação que não poderia passar pelo processo de tradução apontado por Freud (1896/1996) na Carta 52. Em outras palavras, apesar de o autor ressaltar desde 1891 por que as representações poderiam estar impedidas - por uma desordem funcional de entrar na cadeia associativa de pensamentos -, apenas em 1896 ele acrescenta que esse processo se trataria de uma falha de tradução, isto é, uma dificuldade de reorganizar as representações a partir dos estímulos recepcionados no sistema percepção-consciência.

A hipótese de Freud (1896/1996) era a de que um estímulo perceptivo poderia se estratificar no sistema de memória. Assim teríamos, segundo Caropreso (2010, p. 129), "[...] a hipótese de que o sistema de memória possuiria vários princípios associativos, cada um dos quais predominaria em uma etapa do desenvolvimento do sujeito". Isto seria possível, segundo Freud, pelo sistema psíquico estar separado em camadas que comporiam um aparelho de memória determinado pela temporalidade.

Destacamos essa falha de tradução como uma precursora do que viria a ser o conceito metapsicológico de repressão em 1915. Para ressaltarmos do que se trata uma falha de tradução para Freud (1896/1996), devemos apontar os signos de percepção destacados pelo autor, pois seria a partir deles que uma percepção distinguiria realidade e alucinação. Digno de nota o fato de não afirmarmos com isso que a noção de repressão - enquanto falha na tradução (apresentada por Freud na Carta 52) é idêntica à noção de repressão apresentada em 1915, assunto que será tratado em breve neste texto.

Sobre o processo de tradução proposto por Freud (1896/1996), explicamos: através da percepção, uma representação (atual) seria capaz de ressignificar outra representação que já inscrita no aparelho psíquico e, como isso, afetaria a recepção de estímulos pela percepção externa, provocando uma perturbação. Assim, após este processo feito repetidamente, e após a formação da distinção entre mundo externo e interno, o indivíduo teria formado seus signos de percepção que comporiam uma relação particular de cada psiquismo com a realidade. A partir disso, afirmamos que aparelho de memória trabalha com esses signos de percepção e não com os estímulos externos.

Vale ressaltar que o autor não destaca apenas um signo de percepção, mas um registro composto por diversos elementos. Para Freud (1896/1996), no âmbito da estratificação da memória (uma subdivisão interna por características), para que ocorra uma nova tradução psíquica, a representação anterior deveria estar inibida, ou seja, com o investimento econômico reduzido ao mínimo. Sobre esse processo de inibição de uma representação, Porchat (2005, p. 66-7) comenta que "A distinção entre mundo interno e mundo externo não é imprescindível para seu funcionamento inicial, mas logo será necessária".

Assim, um estímulo poderia ser traduzido a partir de uma próxima representação, sendo o psiquismo formado por camadas que se sobrepõem umas às outras. Caso esse mecanismo não funcione, estaria formado o sintoma, visto que não teria sido possível reajustar o aspecto econômico nem escoar o que se fazia excessivo. Assim, teríamos formado um mecanismo de defesa patológico que poderia reprimir os conteúdos do processo de tradução, o que influenciaria diretamente a recepção ou o impedimento de associação de um estímulo externo.

Nestes termos, as representações que carregam as experiências de sexo e morte são lembradas pelo autor, visto que um acontecimento de cunho sexual (assim como um conteúdo que colocasse o indivíduo frente à morte) com caráter excessivamente desprazeroso poderia causar novamente um desprazer quando despertado por um estímulo externo e, por isso, não poderia passar pelo processo de inibição, não havendo, consequentemente, uma tradução daquela nova representação.

Cerca de 19 anos depois da Carta 52, Freud explicou em A repressão como ocorreria o mecanismo de funcionamento de uma representação que não poderia passar pelo processo de tradução apresentado em 1896. Porém, em 1915, ele já havia trilhado o caminho dos aspectos metapsicológicos, os quais propiciaram um terreno firme para que pudesse explicar o processo de repressão. Fato é que os textos metapsicológicos dimensionaram que a noção de repressão (de 1915) influenciava a recepção dos estímulos perceptivos e que isso se trava de um mecanismo de defesa. A partir daqui, este trabalho se destina a explicar esse ponto.

Freud (1915/2010, p. 83) não hesita em dizer que o estado da repressão se trata de uma tentativa de tornar um estímulo inoperante e, no caso dos estímulos externos (o que se escuta e o que se vê, por exemplo), "[...] a fuga seria, obviamente, o recurso adequado". Então, se em tempos de pandemia o caráter das informações é excessivamente desprazeroso para o indivíduo, estas terão uma ação inoperante no aparelho. Dito de outra forma, esses estímulos externos (visuais e acústicos) até podem, no melhor dos casos, ser recepcionados pelos órgãos dos sentidos, mas não serão associados na rede de representações psíquicas, não tendo, assim, efeito nenhum.

Se acompanharmos o conceito de repressão ao longo dos textos de Freud, notamos que isso já estava apontado quando em 1910, no texto Concepção psicanalítica do transtorno psicogênico da visão, o autor se pergunta

[...] de onde deve se originar essa oposição, que provoca a repressão, entre o Eu e determinados grupos de representações? Os senhores notam que essa pergunta não era possível antes da psicanálise, nada se sabia a respeito de conflito psíquico e da repressão (Freud, 1910/2013, p. 316).

Ressaltamos esse texto por nele o autor questionar por que o Eu (enquanto sujeito da percepção) deve se opor a um grupo de representações que possa causar desprazer psíquico. Quando faz esse questionamento, Freud já está se aproximando do que viria a ser a sua segunda tópica. Nesta, ele destacou o Eu compondo duas funções e não apenas uma como antes (sujeito da percepção). A primeira função seria muito próxima ou até idêntica à posição que o Eu ocupava na primeira tópica, porém agora, além de ser o sujeito da percepção e mediar a relação entre estímulos externos e representações, o Eu também comportaria uma parte superficial do Isso.

Como uma instância como o Eu pode atuar em polos opostos? Retirando o excesso econômico da instância do Isso e investindo nos objetos do mundo externo, o que influencia diretamente os estímulos externos que podem realizar alguma associação psíquica. Nas palavras de Freud (1910/2013, p. 319-20),

A aplicação disso ao olho e à visão é simples. Quando o instinto sexual parcial que se utiliza da visão - o prazer sexual em olhar - atrai a reação defensiva dos instintos do Eu por suas exigências excessivas, de modo que as representações em que se exprimem seus desejos sucumbem à repressão e são mantidas longe da consciência, a relação do olho e da visão com o eu e a consciência é perturbada. O Eu perde seu domínio sobre o órgão, que então se coloca inteiramente à disposição do instinto sexual reprimido.

O autor ainda afirma que os órgãos dos sentidos se caracterizam por servirem a dois senhores ao mesmo tempo, ou seja, às pulsões e aos estímulos externos. E, quando um órgão está nessa posição, "[...] é de se esperar, em termos bem gerais, que isso não ocorra sem alterações na excitabilidade e na inervação, que se darão a conhecer como transtornos na função do órgão a serviço do Eu" (Freud, 1910/2013, p. 322).

Importante notar que o autor não destaca a repressão como sendo uma defesa inata do indivíduo. Nas palavras de Freud (1915/2010, p. 85), a repressão "[...] não é um mecanismo de defesa existente desde o início [...]", ela é uma construção de defesa e "[...] sua essência consiste apenas em rejeitar e manter algo afastado da consciência". Como já apontamos, desde o texto Projeto para uma psicologia científica, sabemos que esse "algo" é o economicamente excessivo, que não pode permanecer na consciência.

O aspecto econômico de 1895 segue fortemente atuante no processo de repressão em 1915, como podemos acompanhar na seguinte passagem: "Não se deve imaginar o processo de repressão como algo acontecido uma única vez e que tem resultado duradouro, mais ou menos como quando se abate algo vivo, que passa a estar morto; a repressão exige, isto sim, um constante gasto de energia" (Freud, 1915/2010, p. 90). Freud (1915/2010) ainda afirma que, caso esse gasto constante de energia fosse cessado, a descarga psíquica não teria nenhum êxito, o que poderia fazer necessário um novo momento de repressão. Assim, tem-se que

O reprimido exerce uma continua pressão na direção do consciente, a qual tem de ser compensada por uma ininterrupta contrapressão. Portanto, manter uma repressão pressupõe um permanente dispêndio de energia, e sua eliminação significa, economicamente, uma poupança (Freud, 1915/ 2010, p. 90).

 

4. Conclusão

A partir disso, temos embasamento teórico para afirmar que uma pandemia mundial de coronavírus pode influenciar a forma como os estímulos externos são representados ou até mesmo recepcionados pelo psiquismo. Atualmente, face à presença alastradora desse vírus entre nós, as reações aos dados sobre a pandemia são as mais diversas e particulares possíveis e uma dessas formas é a repressão do problema. A consequência dessa forma de lidar com o caráter excessivo dos estímulos externos é um tamponamento parcial ou total dos órgãos perceptivos, fazendo com que, muitas vezes, não recepcionem as informações reais e atuais da situação. Com isso, evita-se o acesso dessas informações à consciência por serem causadoras de desprazer, impedindo o rearranjo e a tradução das representações psíquicas conscientes do indivíduo.

Freud (1915/2010, p. 90) conclui que a repressão "[...] não impede a representante da pulsão de prosseguir existindo no inconsciente", mas "[...] perturba apenas a relação com um sistema psíquico, o do consciente". A partir dessa ideia, a repressão primordial é uma defesa a qual o indivíduo pode se submeter, porém, com a condição de que ela deixe sintomas no psiquismo, uma espécie de efeito que impede que os conteúdos perceptivos desprazerosos se associem às representações já inscritas no aparelho. Desse modo, quando a repressão entra em cena, além da experiência com caráter excessivo ter o acesso à consciência negado, será igualmente evitada por novas repressões parciais.

A partir disso, o Eu tende a fazer retornar, através dos pontos de fixação, ao que aponta a realidade psíquica no indivíduo. Os órgãos do sentido podem até recepcionar o estímulo externo, porém, se forem insuportáveis economicamente não serão associados na cadeia de representação, o aponta para a realidade psíquica de cada um. Assim, caracterizamos uma perturbação acústica ou visual como situações em que estímulos visuais ou acústicos encontram um psiquismo completa ou parcialmente bloqueado, não podendo atravessar a percepção e realizar associação. Dessa maneira, não se escuta e não se vê o que realmente está acontecendo no mundo, mas o que é possível ver e escutar.

Por fim, finalizo com o fato de não haver como desatrelar, segundo Freud (1996), a íntima relação entre os conteúdos vistos e ouvidos em tenra infância e aquilo que encontra uma representação impossível (sexo e morte). Nesses termos, o bloqueio dos órgãos perceptivos (ocorrido na vida adulta) se dá na relação do Eu com o aspecto excessivo (causador de desprazer). Assim, os ouvidos e os olhos, enquanto órgãos do sentido, podem recepcionar e permitir que esses conteúdos façam parte da rede de

representações ou bloquear esses estímulos provocando alterações do mundo externo (necessárias para a preservação da vida). Como coloca Edith Lecourt (1997, p. 87), independentemente da idade cronológica que tenha um indivíduo, a partir de uma excitação sensorial a receptividade é sempre sexual e infantil.

 

Referências

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Recebido em: 01/09/2020
Aprovado em: 18/11/2020

 

 

1 A resposta a essa questão será apontada no decorrer da escrita deste artigo. Verdade é que cerca de quatro anos depois de escrever Sobre a concepção das afasias: um estudo crítico, já em posse da noção de economia psíquica, ele conseguiria responder essa questão no texto Projeto para uma psicológica científica.

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