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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.22 no.2 São Paulo jul./dez. 2020

 

DOSSIÊ

 

O que esperar da sociedade frente a uma pandemia? Freud-Canguilhem

 

What to expect from society facing a pandemic? Freud-Canguilhem

 

 

Vinícius Armiliato

Pós-doutorado em Filosofia no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCPR (bolsista CAPES/Fundação Araucária), psicólogo clínico, mestre e doutor em Filosofia (PUCPR). Contato: vinicius.arm@gmail.com

 

 


RESUMO

Diante das reações de negação à pandemia de Covid-19, bem como de desrespeito às recomendações sanitárias de isolamento social, procuramos, a partir de Sigmund Freud e de Georges Canguilhem, fornecer operadores conceituais para a circunscrição de tais movimentos, antagônicos à manutenção de uma vida em sociedade. Do primeiro autor, situamos como o fenômeno da regressão desencadeado diante de contingências ambientais revela vicissitudes na formação de uma coletividade engajada com ela mesma. Já do segundo, veremos como a sociedade, diferentemente de um órgão ou um organismo vivo, não possui finalidade intrínseca, gerando com isso infindáveis debates quanto a como deve ser seu ordenamento. Com isso, observamos que os movimentos de boicote às recomendações de autoridades de saúde são condizentes com uma sociedade pouco altruísta (Freud) e que somente sobrevive através de crises no que diz respeito a seus fins (Canguilhem). Ao final, colocamos que a noção de normatividade vital contribui para a proposição de uma vida em sociedade cuja criação e revisão incessante de seus modos de existência pode ser uma ferramenta para evitar, ou postergar, seu colapso.

Palavras-chave: Covid-19; Sigmund Freud (1856-1939); Georges Canguilhem (1904-1995); Normatividade vital; Regressão.


ABSTRACT

Considering the denials to the Covid-19 pandemic, as well as the disrespect for the sanitary recommendations of social isolation, this work seeks to provide, from the perspective of Sigmund Freud and Georges Canguilhem, conceptual operators for the circumscription of such movements, antagonistics to the maintaining of a life in society. From a Freudian perspective, we situate how the phenomenon of regression triggered in the face of environmental contingencies reveals vicissitudes in the formation of a community engaged with itself. Considering Canguilhem's perspective, we will see how society, unlike a living organ or organism, has no intrinsic purpose, thereby generating endless debates about how its ordination should be. With that, we observed that the boycott movements to the recommendations of health authorities are consistent with a society that is not altruistic (Freud) and that only survives through crises regarding to its purposes (Canguilhem). In the end, we propose that the notion of vital normativity contributes to the proposition of a life in society whose creation and incessant review of their ways of existence can be a tool to prevent, or postpone, their collapse

Keywords: Covid-19; Sigmund Freud (1856-1939); Georges Canguilhem (1904-1995); Vital normativity; Regression.


 

 

"[...] nosso inconsciente é tão inacessível à ideia da própria morte, tão sanguinário contra os estranhos e tão ambivalente quanto às pessoas queridas, como o fora o homem primordial. O quanto nos afastamos deste estado primitivo em nossa atitude cultural e convencional diante da morte! Não é difícil determinar a atuação da guerra sobre esta dicotomia. Nos despe das sobreposições posteriores da civilização e deixa novamente descoberto o homem primitivo que nos alenta" (Freud, 1915/1981, p. 2116-7).

"uma das tarefas da organização social consiste em descobrir seus fins possíveis, fato este que bem parece revelar que essa sociedade não tem, na verdade, finalidade intrínseca. No caso da sociedade, a regulação é uma necessidade à procura de seu órgão e de suas normas de exercício" (Canguilhem, 1966/2014, p. 201-2).

Sigmund Freud e Georges Canguilhem são dois pensadores que requalificaram um conjunto de perspectivas referentes aos processos patológicos. Por exemplo, as noções de doença, cura, normalidade e patologia, terapêutica e restabelecimento receberam novos contornos e importantes problematizações que seguem ecoando em pesquisas não só no campo da saúde, como também no âmbito da filosofia. E para além dessas noções, também propuseram reflexões sobre as expressões culturais e sobre as normas que, na sociedade, são balizadoras dos modos de existência individual e coletivo. Neste trabalho, localizamos algumas pontuações de ambos os autores que podem contribuir para uma apreensão mais detida do presente, notadamente quanto ao que podemos esperar da sociedade diante da contingência pandêmica.

É inegável que a pandemia de Covid-19 se trata de uma variação ambiental radical que mobilizou distintas reações por parte da população. Algo que parece dialogar significativamente com o que Canguilhem pontuou em O normal e o patológico quanto à doença figurar como a ausência da confiança do próprio indivíduo em suas capacidades vitais - como as de superar circunstâncias nocivas decorrentes de alterações de seu meio interno ou externo. O estado de saúde é por Canguilhem entendido como a capacidade do organismo em estabelecer novas normas diante de contingências ameaçadoras. Assim, a saúde seria poder ficar doente e superar o estado malogrado adotando novos modos de funcionamento. Citando Canguilhem,

Pouco a pouco, surge um mal-estar pelo fato de não se estar doente em um mundo em que há doentes. E se isso ocorresse não por sermos mais fortes que a doença ou mais fortes do que os outros, mas simplesmente por não ter havido oportunidade de a doença se manifestar? E se, afinal, quando chegasse a ocasião, nós nos mostrássemos tão fracos, ou talvez mais desprotegidos ainda do que os outros? Assim nasce, no homem normal, uma inquietação por ter permanecido normal, uma necessidade da doença como maneira de testar a saúde, isto é, como sua prova, uma procura inconsciente da doença, uma provocação à doença. A doença do homem normal é o aparecimento de uma falha na sua confiança biológica em si mesmo (Canguilhem, 1966/2014, p. 234)

Podemos, com essa passagem de O normal e o patológico, reconhecer o assombro que a pandemia de Covid-19 tem causado nas pessoas. Quem já foi acometido por uma doença, como uma gripe, e a superou, não a teme quando corre o risco de contaminar-se novamente. Mas quando se trata de um vírus novo que tem interferido na organização da sociedade de maneira global e gerado dúvidas sobre quais corpos serão ou não capazes de enfrentá-lo, a indeterminação de suas consequências não deixa de causar desconforto.

Dentro desse contexto, nosso esforço neste artigo será o de estabelecer uma compreensão mínima de reações contrárias às mudanças na forma de viver devido à ameaça à vida que a pandemia nos impôs, como, por exemplo, não cumprir as normas de isolamento social. Para circunscrever esse fenômeno, examinaremos duas leituras sobre certas expressões culturais que figuram em trabalhos de Sigmund Freud e de Georges Canguilhem. Nos parece que alguns insights de Freud, quanto ao fenômeno da regressão, que revela vicissitudes na formação de uma coletividade harmônica, e de Canguilhem, quanto à presença de autorregulação orgânica das formas vivas e à ausência de regulação inerente às formações sociais, fornecem dispositivos conceituais para construirmos ações sobre o temor do inefável que a situação pandêmica tem a nós legado. Esperamos reduzir a frustração de uma ideia de coletividade que é rompida na recusa ao isolamento e outros comportamentos de negação à pandemia vistos na sociedade. Reduzir a frustração não porque julgamos que tais comportamentos não são nocivos, mas pelo contrário, justamente porque revelam as marcas egoístas do psiquismo (Freud) ou a ausência de um plano diretor e intrínseco à vida em sociedade (Canguilhem). Ao final, esperamos mostrar que, a partir de Canguilhem, é possível construir um entendimento da vida como incessante criação de possibilidades de existência. Em suma, almejamos oferecer novos recursos conceituais para avaliação do contexto contemporâneo referente à pandemia de Covid-19 e, esperamos, fornecer argumentos e reflexões para tomadas de decisão na elaboração de políticas de resistência1.

 

1. Freud: a regressão nos tempos de guerra e de morte

A presença das pessoas no comércio das ruas, shoppings, restaurantes, bares, praças, praias tem chamado a atenção no que tange ao não cumprimento da recomendação de confinamento visando o cuidado com a disseminação da Covid-19. Desde março de 2020, acompanhamos flutuações nos indicadores de isolamento social, mas sobretudo, conforme os meses avançam, um amplo relaxamento ou mesmo um desdém a tais cuidados. Minimamente, a partir da psicanálise freudiana, poderíamos dizer que esses comportamentos dizem algo sobre os modos de satisfação, ou seja, não seria possível resguardar-se, fazer quarentena, restringir os deslocamentos, privar-se de aglomerações em vista do cuidado com o outro. Se seguirmos essa linha de raciocínio, vemos como as normativas da cultura, de uma ordem social construída a partir de repressões instintuais, apresenta fragilidades, instabilidades ou mesmo inviabilidades. É esse o argumento que Freud apresenta em Considerações sobre a guerra e a morte, texto publicado em 1915, e que exploraremos nesta seção2. Ambicionamos indicar notadamente como situações adversas à organização da vida, passíveis de ocorrer em qualquer momento da história da humanidade, revelam a ausência de uma natureza imanente de colaboração altruísta que seguiria um curso previamente orientado3, natural à uma espécie gregária como a nossa.

Tais movimentos, de negação e desrespeito às autoridades sanitárias, revelariam uma tendência, circunscrita por Freud, na própria formação psíquica. Uma tendência de retorno ao passado, a um modo de relação com as intempéries ambientais que desvela algo que, para o pensamento freudiano, é arcaico e propriamente humano, qual seja, a valorização do individual em detrimento do coletivo4.

Mas antes de passarmos para o texto que detalharemos, lembremos de modo muito breve que a característica regressiva aparece em Freud como uma tendência inerente do psiquismo que objetiva a realização de um desejo. As tendências de regressão, de satisfação de desejos interditos aparecem em uma das primeiras e mais célebres publicações de Freud, A interpretação dos sonhos. Nela, anunciou que o sonho é "Em si uma regressão às mais precoces circunstâncias do sonhador, uma ressureição de sua infância, com todos seus impulsos instintivos e suas formas expressivas" (Freud, 1900/1981, p. 679). Pouco mais de uma década depois, em Totem e tabu, a mesma perspectiva é notada em manifestações consideradas patológicas: "Essa mesma regressão ao infantilismo psíquico tem efeito também nas neuroses e psicoses, cujas singularidades hão de ser descritas em sua grande maioria, como arcaísmos psíquicos" (Freud, 1913/1981, p. 1863). Do mesmo modo, em obra ainda mais posterior, O mal-estar na cultura, a emergência do passado no presente é dada por um movimento de regressão que condiz com a necessidade de satisfação de algo não possível no tempo atual. Dessa forma, no psiquismo "[...] tudo se conserva de alguma maneira e pode voltar a surgir em circunstâncias favoráveis, como, por exemplo, mediante uma regressão de suficiente profundidade. [...] na vida psíquica a conservação do pretérito é a regra, mais do que uma curiosa exceção" (Freud, 1930/1981, p. 3020-2). Vemos, enfim, que o funcionamento psíquico do pretérito é marcado pela satisfação mais imediata das ambições pulsionais.

Como a psicanálise freudiana indicou inúmeras vezes, o funcionamento das circunstâncias ambientais avaliadas pelos indivíduos como desfavoráveis podem conduzi-los, dadas suas tendências psíquicas, a formações patológicas reconhecidas como expressões arcaicas. Seja nas "cinco psicanálises" ou na metapsicologia, vemos como expressões que em determinado meio foram favoráveis deixam de o ser em circunstâncias específicas do presente. Por exemplo, quando Freud afirma em Neuroses de transferência: uma síntese, rascunho redigido em 1915, que na histeria de angústia e de conversão, assim como na neurose obsessiva, notamos "[...] regressões a fases pelas quais toda a espécie humana teve que passar do começo ao fim dos tempos glaciais" (Freud, 1915/1987, p.74), donde, a neurose "[...] é também a expressão da resistência contra essa regressão, um compromisso entre coisas antigas dos tempos primitivos e a exigência do culturalmente novo" (Freud, 1915/1987, p. 75). Encontramos essa formação de compromisso como uma característica própria das neuroses, consideradas por Freud como um modo de satisfação que respeita aspectos do psiquismo individual e que evita um conflito maior com a cultura, tornando-se, de algum modo, aceitável. Como escreve Corrêa, "Os elementos que não se adaptam à civilização são considerados elementos originais das disposições do homem civilizado" (Corrêa, 2013, p. 3)

Por essa senda, poderíamos entender que o não cumprimento do imperativo do isolamento social não deixa de dizer sobre um modo de satisfação. Parece haver aqui uma lógica presente na dificuldade de seguir a regra de cuidado com o outro, na dificuldade em reconhecer o outro que não é o outro imediato, mas sim abstrato (os profissionais de saúde desgastados, os grupos de risco, aqueles que têm menos acesso à um serviço de saúde de qualidade etc.). Passemos agora mais detidamente, como prometido acima, ao texto Reflexões sobre a guerra e a morte. Utilizaremos essa obra, pois parece colocar como expressões culturais (no caso do texto, a guerra) explicitam a tendência biológica da regressão a condições psíquicas primevas5.

O argumento central de Freud pauta-se em mostrar que o estado de guerra em uma sociedade faz emergir aspectos constitutivos dos indivíduos, em especial quando se observa que justamente nos povos ditos mais civilizados e refinados, portadores dos mais altos valores artísticos e progressos técnicos, é que se vê o recurso à guerra, e não a outros meios, para alcançar os interesses nacionais. A natureza humana, diante de uma situação adversa, faz emergir inclinações mais fortemente enraizadas evolutivamente6:

[...] as más inclinações do homem são desenraizadas nele e substituídas, sob o influxo da educação e da cultura circundante, por inclinações ao bem. E então podemos estranhar sem reservas que o homem assim educado volte a manifestar tão eficientemente o mal (Freud, 1915/1981, p. 2105).

Freud observa que tais sentimentos não são nem bons nem maus, uma vez que sua presença decorre de necessidades básicas, biológicas. No entanto, é a partir da organização social que se estabelecem julgamentos sobre tais impulsos instintivos: "[...] os classificamos, e classificamos assim suas manifestações, segundo sua relação com as necessidades e as exigências da comunidade humana" (Freud, 1915/1981, p. 2105). Dentro dessa lógica, as ações brutais que ocorrem em cenários como a guerra poderiam até ser consideradas como benéficas para a comunidade, no entanto, como veremos, são para ele expressões autênticas de uma fase anterior do desenvolvimento filogenético, a qual é mais egoísta e estaria, aparentemente, superada.

O contrário das ações de uma natureza brutal, de desdém e violência com relação a outros humanos, que Freud vê acontecer na guerra, seria a transformação dos instintos egoístas em altruístas. Transformação que fomentou a formação da cultura, dado que "A união dos componentes eróticos transforma os instintos egoístas em instintos sociais" (Freud, 1915/1981, p. 2106). Nessa esteira, a educação também cumpriria seu papel na coerção à renúncia instintiva. Esta seria continuamente exercida pela vida civilizada, de modo que "A civilização foi conquistada por obra da renúncia à satisfação dos instintos e exige de todo novo indivíduo a repetição de tal renúncia" (Freud, 1915/1981, p. 2105).

Nesse ponto, Freud reforça uma tese lamarckista de que as renúncias pulsionais foram, ao longo da história da civilização humana, sendo transmitidas às demais gerações. No entanto, não houve um apagamento destas, mas uma coexistência, afinal, "[...] o indivíduo não se acha tão só sob a influência de seu meio civilizado presente, mas está submetido à influência da história cultural de seus antepassados" (Freud, 1915/1981, p. 2106).

Mesmo que haja uma disposição à cultura, por vezes a superestimamos em relação à vida instintiva mais arcaica e egoísta e seríamos assim induzidos a julgar os seres humanos como melhores do que realmente são. Mas, na realidade, para Freud, "[...] a sociedade, guiada por fins práticos, não se preocupa com tal distinção: se contenta com que um homem oriente seus atos e sua conduta conforme os preceitos culturais e não pergunta por seus motivos" (Freud, 1915/1981, p. 2106).

O que Freud procura explicitar é que a vida em sociedade implica em uma constante renúncia à natureza instintiva, ou seja, ao distanciamento do passado filogenético, pois, como disse, os cidadãos "[...] se veem impostos a uma regulação continuada dos instintos cuja tensão se manifesta em singularíssimos fenômenos de reação e compensação" (Freud, 1915/1981, p. 2107). Seriam esses fenômenos de reação e compensação que se materializam nas neuroses, oriundas das vicissitudes de regulação dos instintos. Mas, além das neuroses, a pressão da vida civilizada gera alterações que não podem ser consideradas como patológicas, mas constitutivas de um caráter que é suscetível à expressão de instintos inibidos os quais visam a satisfação, pois "O sujeito assim forçado a reagir permanentemente no sentido de preceitos que não são a manifestação de suas tendências instintivas, vive, psicologicamente falando, sobre seus meios e pode ser objetivamente qualificado de hipócrita" (Freud, 1915/1981, p. 2107).

Esse fato levou Freud a reforçar seu entendimento da coexistência de tempos filogenéticos operando no psiquismo do indivíduo quando, a qualquer momento, os estados anímicos anteriores podem se manifestar. Freud considerou essa possibilidade como uma involução, uma vez que estágios posteriores podem não ser alcançados novamente, enquanto que "[...] os estágios primitivos podem sempre ser reconstruídos; o anímico primitivo é absolutamente indestrutível" (Freud, 1915/1981, p. 2108). Nesse âmbito, "A essência da doença mental consiste no retorno a estados anteriores da vida afetiva e de sua função" (Freud, 1915/1981, p. 2108).

O que esse texto nos revela é que há a possibilidade de localizar na obra de Freud a existência de uma pressão da civilização que incita ao enfraquecimento de instintos egoístas em vista da manutenção de uma vida em sociedade. Freud fornece dois exemplos de onde esse enfraquecimento é anulado: nos sonhos, que "[...] podem nos dar notícias da regressão de nossa vida afetiva a um dos primeiros estágios evolutivos" (Freud, 1915/1981, p. 2108), e na guerra. Ambos "Reproduzem talvez a evolução dos indivíduos e nos mostram o presente em estágios muito primitivos, da organização, em formação de unidades superiores" (Freud, 1915/1981, p. 2109).

Sob a pena de Freud, poderíamos dizer que características rudes, brutais, consideradas egoístas têm perdurado na civilização e emergido em momentos específicos do desenvolvimento ontogenético. Diante de tal avaliação, da força dessa tendência biológica oriunda dos tempos primevos da humanidade, os indivíduos necessitariam lidar com duas polaridades, o egoísmo e o altruísmo, equilibrando sua existência na sociedade7.

Vemos que há, no pensamento freudiano, uma perspectiva de civilização ancorada em um modelo de inibições às manifestações egoístas oriundas da formação psíquica filogenética, e que a sociedade pode, a qualquer tempo, sucumbir diante do afrouxamento de tais inibições.

 

2. Canguilhem: a sociedade sem princípio regulatório

Poderíamos dizer que há um movimento patológico nas expressões da sociedade neste momento de pandemia? Que há, conforme vimos através de Freud, uma espécie de regressão patogênica, um mal psíquico que possa ser lido no rebaixamento do altruísmo que se espera para uma vida em coletivo? Não podemos incorrer nessa afirmação se tomarmos de Canguilhem a tese de que o estado patológico apenas pode ser assim dito se valorado pelo indivíduo que se sente doente. Afinal, para Canguilhem,

[...] existe medicina, em primeiro lugar, porque os homens se sentem doentes. É apenas em segundo lugar que os homens, pelo fato de existir uma medicina, sabem em que consiste sua doença. Qualquer conceito empírico de doença conserva uma relação com o conceito axiológico de doença. Não é, portanto, um método objetivo que qualifica como patológico um determinado fenômeno biológico. É sempre a relação com o indivíduo doente, por intermédio da clínica, que justifica a qualificação de patológico8 (Canguilhem, 1943/2014, p. 166-7).

Ora, diante do cenário que descrevemos, referente à presença de pessoas nas ruas, evidenciando comportamentos pouco comprometidos com o cuidado com o outro e, portanto, com o funcionamento de uma sociedade, gostaríamos agora de indicar aquilo que Georges Canguilhem escreveu sobre a ideia de regulação aplicada à vida em sociedade. Isso porque, se a população descumprir as normas sanitárias, veríamos uma disfunção em um projeto de cuidado coletivo, social. Mas esse projeto de sociedade, seu funcionamento e funções, sua organização e regulação são a ela inerentes? Vejamos como Canguilhem trata desse problema.

Conforme argumenta na conferência intitulada O problema das regulações no organismo e na sociedade (Canguilhem, 1955/2005), não é possível afirmar que, no momento, atravessamos uma patologia social, dado que a sociedade não é um órgão, não tem um corpo, tampouco funções definidas tal como um órgão de um corpo vivo. Seria impraticável, nesse âmbito, entender a sociedade como falhada, malograda. Na conferência em questão, Canguilhem percorre as relações que se estabeleceram entre o funcionamento do organismo e da sociedade, questionando seus ouvintes se "A assimilação usual, ora científica, ora vulgar, de uma sociedade a um organismo é mais do que uma metáfora? Será que essa assimilação recobre algum parentesco substancial?" (Canguilhem, 1955/2005, p. 71). Caso positiva a resposta, Canguilhem observa um problema, que é o de fazer subordinar o social ao biológico, vendo neste último um argumento para práticas políticas (Canguilhem, 1955/2005, p. 72). Já o oposto disso, de subordinar o biológico ao modo de leitura da sociedade, é uma tentação que perdura na história. Por exemplo, nos séculos XVIII e XIX, quando os economistas liberais e socialistas

[...] chamaram a atenção para o fenômeno social da divisão do trabalho e seus efeitos, efeitos felizes para alguns, detestáveis para outros, os fisiologistas acharam muito natural falar de divisão do trabalho no que concerne às células, aos órgãos ou aos aparelhos que compõem um corpo vivo (Canguilhem, 1955/2005, p. 72).

Ou também como ocorreu com Claude Bernard, quando se referia à "vida social" das células, demandando se estas

[...] em sociedade, têm a mesma vida que elas teriam em liberdade, o que equivalia a formular, por antecipação, o problema dos resultados de uma cultura de células. Será que, quando liberada de todas as relações que mantém com as outras em um organismo, a célula se comportará da mesma maneira que em sociedade? (Canguilhem, 1955/2005, p. 72).

Canguilhem mostra os efeitos do que chama de tentação em assimilar a vida biológica à sociedade e vice-versa. Segundo ele, o ponto que mobiliza tal reflexão são os problemas de ordem orgânica e de ordem social: "O que domina a assimilação do organismo a uma sociedade é a ideia da medicação social, a ideia da terapêutica social, a ideia de remédios para os males sociais" (Canguilhem, 1955/2005, p. 74).

No entanto, a profunda diferença reside no debate sobre o que seria um estado de saúde do organismo e da sociedade. Bom, quanto ao organismo não há dúvida sobre o que é um estado de saúde. Nenhum doente põe em dúvida se ele está se sentindo bem ou não. Não há diferença entre uma norma/regra e a existência de um corpo em si:

A partir do momento em que um organismo é, que ele vive, é que ele é possível, ou seja, ele responde a um ideal de organismo. A norma ou a regra de sua existência é dada em sua própria existência, de tal modo que, quando se trata de um organismo vivo [...] a norma que é preciso restaurar, quando este organismo está lesado ou doente, não se presta em nada à ambiguidade. Sabe-se muito bem qual é o ideal de um organismo doente: é um organismo são da mesma espécie (Canguilhem, 1955/2005, p. 75).

Pode-se, no campo da terapêutica, não ser nítido qual é a natureza do mal, da doença, mas não há debate quanto ao que é o corpo são. O corpo que quer viver, que quer manter sua homeostasia, sabe de sua organização sem sabê-la, dado que é autogerido, diferentemente de uma máquina, da matéria bruta9. O ideal do organismo é o próprio organismo. Não se discute, quando se fala de organismo, o ideal de bem, o que se discute é a natureza do mal.

Na sequência de seu argumento, Canguilhem apresenta o problema da finalidade, de certo modo intrínseca ao organismo (manter-se vivo, autorregulando-se) e extrínseca à sociedade. Logo, se a finalidade de um organismo é interior a ele mesmo, quanto ao que deve ser restaurado, podemos pensar que a sociedade possui essa mesma característica? Porta a sociedade uma finalidade, um ideal social, cuja norma/regra é interior a ela mesma, tal como ocorre em um corpo vivo? Em resposta, Canguilhem é objetivo: "Desde que o homem vive em sociedade, todo mundo discute, precisamente, sobre o ideal da sociedade" (Canguilhem, 1955/2005, p. 76). Embora se diga, quanto ao corpo biológico, que muitas vezes a natureza do mal é pouco evidente, no caso da sociedade é a natureza do mal o que mais pauta o debate. Do ponto de vista social "[...] o abuso, a desordem, o mal são mais claros que o uso normal. O assentimento coletivo se faz mais facilmente sobre a desordem" (Canguilhem, 1955/2005, p. 76).

E por que o mal é mais facilmente localizado? Parece aqui que a desordem emerge em contraposição a uma ideia partilhada, a de que haveria uma ordem e, sobretudo, tal como em um órgão biológico, uma função a ser cumprida por cada extrato social. Ou seja, o mal opera como uma ruptura à ideia de finalidade atribuída de forma extrínseca à sociedade10. Desse modo, alguns elementos da sociedade, sem função ou despreocupados com a execução das funções, são vistos como o problema do não sucesso. É o que explicita no seguinte argumento:

O trabalho das crianças, a inércia da burocracia, o alcoolismo, a prostituição, a arbitrariedade da polícia são males sociais sobre os quais a atenção coletiva incide (é claro, para os homens de boa-fé e de boa vontade), e sobre os quais o sentimento coletivo é fácil. Em contrapartida, os mesmos homens que concordam sobre o mal se dividem quanto ao tema das reformas. O que parece remédio para uns, para outros aparece como um estado pior que o mal, devido ao fato de que, precisamente, a vida de uma sociedade não é inerente a ela própria (Canguilhem, 1955/2005, p. 76).

Canguilhem alerta que o fato de a sociedade apresentar uma organização não significa que opera como um organismo, dado que o que faz um organismo é sua finalidade, a ele inerente, presente em todas as partes; e anuncia: "[...] uma sociedade não tem finalidade própria; uma sociedade é um meio; uma sociedade é mais da ordem da máquina ou da ferramenta do que da ordem do organismo" (Canguilhem, 1955/2005, p. 85). A sociedade é, para Canguilhem, um meio, uma ferramenta. Justamente por não ser um organismo que a sociedade apela para "regulações". "Não há sociedade sem regulação, não há sociedade sem regra, mas não há, na sociedade, auto-regulação. Nela, a regulação é sempre acrescentada, se assim posso dizer, e sempre precária" (Canguilhem, 1955/2005, p. 85).

E assim ele se pergunta "[...] se o estado normal de uma sociedade não seria mais a desordem e a crise do que a ordem e a harmonia" (Canguilhem, 1955/2005, p. 85). Disso decorre que

O sinal objetivo de que não há justiça social espontânea, quer dizer, não há auto-regulação social, de que a sociedade não é um organismo e que, por conseguinte, seu estado normal é talvez a desordem e a crise, é a necessidade periódica do herói experimentada pelas sociedades (Canguilhem, 1955/2005, p. 87).

É pela ausência de uma sabedoria social, como haveria, metaforicamente, uma sabedoria do corpo, que surgem os heróis. Isso se dá especialmente quando vemos projetada a sombra da dissolução da sociedade. O herói surge, como Canguilhem situa a partir de Bergson, em situações extremas, no perigo:

Essa é a razão pela qual acredito haver uma ligação essencial entre a ideia de que a justiça não é um aparelho social e a ideia de que, até o momento, nenhuma sociedade pôde sobreviver senão por meio das crises e graças a esses seres excepcionais que se chama heróis (Canguilhem, 1955/2005, p. 87).

O herói encarnaria a solução para problemas finais da sociedade, ou seja, seria alguém que apontaria sua finalidade e surgiria para corrigi-la, estancando seus movimentos próprios, sem fim. Dez anos após proferir essa conferência, em Novas considerações referentes ao normal e ao patológico (1963-1966), Canguilhem retoma e resume essa articulação entre a organização de um organismo e a de uma sociedade, reforçando que a segunda possui uma arbitrariedade ausente no primeiro:

Deve-se constatar em primeiro lugar que, em uma organização social, as regras de ajustamento das partes, a fim de formar uma coletividade mais uma menos lúcida quanto à sua finalidade própria, são exteriores ao complexo ajustado, quer essas partes sejam constituídas de indivíduos, de grupos ou de empresas com objetivo limitado. As regras devem ser representadas, aprendidas, rememoradas, aplicadas. Ao passo que, em um organismo vivo, as regras de ajustamento das partes entre si são imanentes, presentes sem ser representadas, atuantes sem deliberação nem cálculo. Não há, nesse caso, desvio, distância, nem intervalo de tempo entre a regra e a regulação. A ordem social é um conjunto de regras com as quais seus servidores ou seus beneficiários, de qualquer modo, seus dirigentes têm de se preocupar. A ordem vital é constituída por um conjunto de regras vividas sem problemas (Canguilhem, 1966/2014, p. 199).

A partir de tais argumentos, os quais revelam que a finalidade de uma organização social é convenção, incomparável com a ordem vital, nos parece necessário atentar e ser vigilante a assimilações entre uma e outra. Especialmente porque tende-se a inserir, na ideia de sociedade, uma noção de finalidade que estancaria as variações, desvios e diversidade em relação a ela11. Como afirma adiante,

Se existisse uma finalidade perfeita, consumada, um sistema completo de relações de conveniência orgânica, o próprio conceito de finalidade não teria nenhum sentido como conceito, como projeto e modelo para pensar a vida, pela simples razão de que não haveria motivo para pensar nem razão para o pensamento, não havendo nenhuma defasagem entre a organização possível e a organização real. O pensamento da finalidade exprime a limitação da finalidade da vida. Se esse conceito tem um sentido, é porque ele é o conceito de um sentido, o conceito de uma organização possível, e, portanto, não garantida (Canguilhem, 1966/2014, p. 229).

Entender a sociedade como um organismo, que tem uma função a qual deve ser franqueada a todo custo, apresentaria um perigo de existência à criação de novas formas de relação com o mundo. Ao mesmo tempo, entender que a sociedade pode ser um conjunto de possibilidades, que cada indivíduo, com sua potência normativa, pode estabelecer, alterar, interferir em seu meio e que este não deve ser pensado a partir de si como núcleo, mas a partir de um conjunto de organismos normativos pode ser um caminho para o acolhimento das singulares formas de existência e da construção de combinados em coletividade; fluidos, não eternos, sem uma finalidade absoluta, mas sempre provisórios e precários12. Em A saúde: conceito vulgar e questão filosófica, Canguilhem escreve que

[...] para o homem, viver é também conhecer. Eu me porto bem à medida que me sinto capaz de portar a responsabilidade de meus atos, de portar coisas à existência e criar entre as coisas relações que não lhes aconteceriam sem mim, mas que não seriam o que são sem elas. Então, preciso aprender a conhecer o que elas são para poder mudá-las (Canguilhem, 1988/2005, p. 48).

Nesse sentido, a ausência de finalidade na organização da sociedade é um ponto fundamental para que se permita a incessante construção e emergência de novas formas relacionais, de afetação e de intervenção junto ao meio.

 

3. Considerações finais sem finalidade e com normatividade

A partir dos aspectos que frisamos nos dois autores, nos parece possível dizer que não vivemos hoje um projeto de sociedade que deu errado. Se a tendência é o retorno ao arcaico, como vimos com Freud, o retorno a uma instintualidade egoísta, a sociedade do presente nada mais seria do que um meio cuja função é agenciar os corpos na repressão de seus impulsos egoístas. Sabemos, no entanto, de nossas tendências instintuais gregárias. Isso significa que a vida em sociedade, a qual supõe uma emancipação mínima de um egoísmo instintivo e da satisfação primária dos desejos a todo custo, é um tributo que pagamos para receber satisfações de outra ordem, referentes ao compartilhamento de nossos afetos com o outro. Frente às reações dos indivíduos junto à pandemia, que vemos nas aglomerações, praias, manifestações que ignoram pesquisas baseadas em evidências, sem dúvida parece ser necessário que nos dediquemos a aprimorar a ideia de vida em coletivo.

Mas o que seria possível construir a partir desses cenários desenhados pelos dois autores que aqui exploramos? A noção de normatividade vital de Canguilhem parece trazer um importante aporte ao debate. Como bem descreve Pierre Macherey, a tese central de O normal e o patológico trata de indicar que

há uma normatividade essencial do vivente, criador de normas que são a expressão de sua constitutiva polaridade. Essas normas dão conta do fato de que o vivente não é redutível a um dado material mas que ele é um possível, no sentido de uma potência, ou seja, uma realidade que se dá de conjunto como inacabada porque ela é confrontada intermitentemente aos riscos da doença, e ao da morte em permanência (Macherey, 2009, p. 102).

Diante do risco da morte, da precariedade da existência, do inacabamento da realidade - exemplos que não são tributários de perspectivas idealizadas da vida e da espécie humana -, é que se demanda a necessidade de o indivíduo ser capaz de se recompor, se refazer, criar ações para se equilibrar diante das contingências próprias à vida13. Mas observemos que aqui a normatividade opera no sentido de que saber viver sob novas normas é saber manter-se vivo, e não manter a sociedade viva. Como dirá Canguilhem, "Não há sabedoria social como há uma sabedoria orgânica" (Canguilhem, 1955/2002, p. 123). Isso nos leva a pensar que o movimento das pessoas nas ruas, a negação da ciência, da pandemia, a negação da morte iminente, do risco aos profissionais de saúde, tudo isso em paralelo com seus opostos, ou seja, a aceitação da máscara, do isolamento, o uso do álcool em gel, a interrupção do modo de produção, todos esses agrupamentos conflitantes que vemos aparecer na sociedade são, se Canguilhem tiver razão, contraditórios em relação a projetos diferentes de coletividade. Ou seja, não rompem com uma finalidade da sociedade seja por quem acata seja por quem desacata as recomendações sanitárias; apenas mostram como cada corpo organizado tende a manter sua própria auto-organização. Enfim, não há normatividade vital na sociedade.

A reflexão de Canguilhem parece contribuir para a construção de uma ética, de um processo de reflexão sobre nós. Para Canguilhem, "Curar é criar para si novas normas de vida, às vezes superiores às antigas" (Canguilhem, 1943/2014, p. 166). Dentro dos entendimentos de coletivo que apresentamos aqui, podemos talvez considerar propor uma perspectiva que leva em consideração a ausência de um projeto de sociedade a ela inerente, considerando a vida e, consequentemente, a vida em sociedade como um projeto sempre inacabado, em reforma, porque sem fim, sem finalidade. Intuímos que assumir a ausência de finalidade da vida em sociedade permitiria fragilizar com mais contundência os recursos que as políticas adotam diante das crises. Evitaríamos, como indica a reflexão de Canguilhem em alusão às comparações entre a ideia de sabedoria do corpo e sabedoria social, a espera por um herói:

O sinal objetivo de que não há justiça social espontânea, quer dizer, não há auto-regulação social, de que a sociedade não é um organismo e que, por conseguinte, seu estado normal é talvez a desordem e a crise, é a necessidade periódica do herói experimentada pelas sociedades (Canguilhem, 1955/2005, p. 87).

Estamos diante do problema do herói, da espera de um herói para nos livrar do mal da pandemia, da desigualdade, das mazelas sociais. Um herói surge especialmente quando as finalidades à vida em sociedade tornam-se totalitárias:

[...] o herói é aquele que, uma vez que os sábios não resolveram o problema, não evitaram que o problema se apresentasse, vai inventar uma solução. [...] até o momento, nenhuma sociedade pôde sobreviver senão por meio das crises e graças a esses seres excepcionais que se chamam heróis (Canguilhem, 1955/2005, p. 87).

Lembremos que é justamente por sua precariedade que a sociedade é possível; precária, por certo, mas possível graças a regulações que os coletivos procuram interpor. Assumir isso nos livraria de esperar a cura final para os males, o herói, a salvação precisa e pontual que alinharia a sociedade a determinados projetos vendidos como inerentes a ela, dados como portadores de certa natureza orgânica. De modo radical, seria preciso abandonar a expectativa de um projeto de sociedade a fim de que não nos submetamos a novos heroísmos decorrentes da insatisfação crescente com os messias atuais. Algo possível de esperar, embora difícil de acreditar quando olhamos para as reações nefastas da sociedade e dos heróis na lida com a pandemia. Ao que parece, esses heróis têm estimulado o egoísmo e a satisfação mais arcaica e imediata a todo e qualquer desejo, sem qualquer compromisso com os pactos sociais. Uma regressão, diria Freud.

 

Referências bibliográficas

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Recebido em: 15/09/2020
Aprovado em: 18/11/2020

 

 

1 Nos parece oportuno fazer uma advertência a nós mesmos: escrever sobre um presente tão inesperado e novo, como muitos especialistas têm feito no momento, é escrever sobre algo do qual não se tem repertório vivencial. Em O normal e o patológico, Canguilhem lembra que a perspectiva da norma, da saúde e da doença é extraída pelo médico em três níveis, sendo a própria experiência algo que não é deixado de ser considerado por aquele que intervém sobre a doença: "O médico geralmente tira a norma de seu conhecimento da fisiologia, dita ciência do homem normal, de sua experiência vivida das funções orgânicas, e da representação comum da norma em um meio social em dado momento" (Canguilhem, 1943/2014, p. 77). A segunda delas, a experiência vivida, é o que nos falta e, sobre isso, não sabemos se devemos lamentar ou comemorar.
2 Este raciocínio, presente no texto freudiano, que caracteriza tendências entrópicas-declinistas em sua metapsicologia, é largamente mapeado por Bocca e Mouammar (2011) e Bocca (2019).
3 O trabalho de Bocca (2016) indica como, em Freud, há uma filosofia da história a qual indica um percurso previamente orientado de evolução anímica, em partes tributário da filosofia de Augusto Comte. Nesse sentido, Freud "[...] associou o animismo ao narcisismo, a fase teológica à escolha objetal e a científica à escolha de objetos na realidade exterior" (Bocca, 2016, p, 38). No entanto, o autor conclui que, em Freud, "[...] as representações que o homem produz no mundo permaneceriam sempre psicológicas e nunca objetivas ou positivas como preconizou Comte, de quem se manteve tão perto e longe" (Bocca, 2016, p. 54).
4 Embora Freud situe uma evolução rumo à fraternidade, como explora amplamente em Neuroses de transferência, uma síntese (Freud, 1915/1987), não deixa de considerar a força que o arcaico tem na constituição psíquica. O filogenético tem uma potência bastante importante e não deixa de emergir com força ao longo da vida de qualquer indivíduo, quando este se apresenta em condições desfavoráveis. Sobre essa emergência do passado no presente, ver também Corrêa (2013), Ritvo (1992), Gould (1977) e Winograd (2007).
5 Em situações onde a violência é notadamente uma ferramenta de poder que visa a obtenção de satisfações individuais, conforme escreveu em Totem e tabu (Freud, 1913/1981), em Neuroses de transferência: uma síntese (Freud, 1915/1987) e, duas décadas depois, em Por que a guerra? (Freud, 1933/1981).
6 Sobre isso, cabe a análise das influências de Ernst Haeckel quanto à teoria da recapitulação (Sulloway, 1992; Bolens, 2001) ou das do médico inglês Hughlings Jackson (Caropreso, 2010).
7 Sobre esse ponto, Bocca e Perez consideraram que "Freud sustentou a hipótese especulativa de que os caminhos da civilização seriam indicados pelas forças instintuais em sua motivação fundamental, o prazer na quietude. O que possibilitou justificar fatos como a guerra, reconhecer nela razões para satisfazer motivações que nada mais seriam do que o cumprimento de interesses primitivos das forças instintuais. De modo a admitir que a civilização emerge, não para se opor ou constituir alternativa ao seu destino entrópico, mas para completar sua tarefa, finalizar o processo de evolução da vida rumo ao inorgânico" (Bocca e Perez, 2019, p. 114).
8 Nos parece que é preciso interrogar, portanto, nas análises que contemporaneamente fazemos das reações de certos grupos à pandemia, se consideramos os valores subjetivos ou, em uma acepção canguilhemiana, se consideramos os valores vitais negativos que passam naqueles que não executam as medidas sanitárias. O que diz a agressividade que manifestam quando questionados? Seria o próprio receio do isolamento? Seria a dificuldade de inserir novas normas à existência?
9 A qualificação das diferenças entre o que seria um organismo vivo e elementos não vivos - sejam conceituais, como a sociedade, sejam brutos, como as máquinas -, que é a capacidade de autorregulação, é também explorada por Canguilhem em outros trabalhos, como em O problema da normalidade na história do pensamento biológico (Canguilhem, 1973/1977, p. 107-122).
10 Em O normal e o patológico, Canguilhem reforça que o mal, o desvio, o falho existe em função de uma natureza atribuída ao vivente. "[...] não há, em tese e a priori, diferença ontológica entre uma forma viva perfeita e uma forma viva malograda. Aliás, seria lícito falar de formas malogradas? Que falha pode-se detectar em um ser vivo, enquanto não se tiver fixado a natureza de suas obrigações como ser vivo?" (Canguilhem, 1943/2014, p. 4-5, grifo nosso). Tal ideia parece ser aplicada em O problema das regulações no organismo e na sociedade, com referência às funções artificialmente atribuídas à vida em sociedade.
11 A ausência de desvios na sociedade, bem como a inserção de um plano a ela desencadeariam seu próprio esgotamento. Como Canguilhem afirmou, retomando Charles Darwin, é justamente a incessante produção de variações por parte das formações vivas que permite sua continuidade ao longo da história. Ver notadamente Canguilhem (1962/1975, p. 212-25) e Canguilhem (1973/1977, p.107-22).
12 Vemos aqui o perigo que um conjunto de reivindicações as quais visam a pátria, o Brasil, a família, a tradição em detrimento das pessoas e suas singularidades que compõem essas instituições propõe uma finalidade transcendental que exclui as dissidências (organizações familiares não hegemônicas, criações estéticas de ruptura, novas relações com a ideia de território, tradições e costumes).
13 Como escreveu Bilbao quanto à noção de indivíduo em Canguilhem, "O que o indivíduo exprime pelo ato de existência é tudo o que não é mais do mundo. Forma de expressão de uma "dinâmica dos possíveis" na qual pode se estabelecer uma ideia da ação, da responsabilidade humana. A consideração da noção de indivíduo se manterá em Canguilhem, sempre ligada ao território desta responsabilidade, que é também uma forma de ligação com os objetos, com o conhecimento destes. É, indubitavelmente, no desenvolvimento desta mesma consciência que o próprio indivíduo se realizará" (Bilbao, 2013, p. 196-7)

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