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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.22 no.2 São Paulo jul./dez. 2020

 

DOSSIÊ

 

Temporalidade, sentido autêntico da existência e a questão da ontologia fundamental em Heidegger1

 

Temporality, authentic meaning of existence and the question of fundamental ontology in Heidegger

 

 

Alexandre Guedes

Bacharel, Mestre e doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Contato: guedestayor@hotmail.com

 

 


RESUMO

O presente artigo trata do sentido do Ser, questão central da obra de Martin Heidegger, Ser e Tempo. Compreender o sentido do Ser por ele mesmo, sem que seja por referência a um ente específico é o objetivo de sua Ontologia Fundamental. Para tanto, Heidegger inicia sua investigação pelo sentido do Ser em geral através da busca pelo sentido do Ser do Dasein. Esse método pode levar à compreensão de que o sentido do Ser em geral é "retirado" do sentido do Ser do Dasein, o que impossibilitaria o estabelecimento da Ontologia Fundamental enquanto compreensão do Ser sem relação ao ente. Sendo assim, nosso objetivo é esclarecer que a temporalidade (Zeitlichkeit) é o sentido do Ser do Dasein, que é transcendente a ele, e que ao entendermos autenticamente a nossa existência já estamos lançando mão da temporalidade e não o contrário. Outrossim, veremos que há diferença entre a temporalidade (Zeitlichkeit) e a temporialidade (Temporalität) e que essa diferença será determinante para o entendimento da investigação diretriz da Ontologia Fundamental.

Palavras-chave: Temporalidade. Existência. Ontologia Fundamental.


ABSTRACT

This article deals with the meaning of Being, a central issue in the work of Martin Heidegger: Being and Time. Understanding the meaning of Being by itself, without reference to a specific being, is the objective of his Fundamental Ontology. For this, Heidegger begins his investigation of the meaning of Being in general through the search for the meaning of Being of Dasein. This method can lead to the understanding that the meaning of Being in general is "taken away from" the meaning of Being of Dasein, what would make impossible the establishment of Fundamental Ontology as an understanding of the Being without relation to the being. Therefore, our aim is to clarify that temporality (Zeitlichkeit) is the meaning of the Dasein's being, that it is transcendent to him, and that, when we authentically understand our existence, we are already using temporality and not the contrary. Furthermore, we will see that there is a difference between temporality (Zeitlichkeit) and temporality (Temporalität) and that this difference will be decisive for the understanding of the investigation of Fundamental Ontology.

Keywords: Temporality. Existence. Fundamental Ontology.


 

 

1. Introdução

Martin Heidegger (1989 - 1976), em Ser e tempo (1927), ao buscar alcançar um modo apropriado de colocar a questão pelo sentido do Ser em geral, nos chama atenção para a possibilidade de uma Ontologia Fundamental, isto é, uma compreensão ampla e original do Ser por ele mesmo que não seja atrelada a um ente específico. Para tanto, Heidegger dá início a sua investigação ontológica com a primeira seção de Ser e tempo, que é dedicada à análise fundamental preparatória do Dasein. Ela consiste na análise fenomenológica do modo de ser do homem no "aí" do mundo, o que significa dizer, de acordo com o pensador, no "aí" de sua existência (Heidegger, 2012a, p.59). Podemos, no entanto, antecipar que este proceder da Analítica do Dasein não visa obter o sentido do Ser em geral como se ele pudesse ser "retirado" do homem, seja por meio de uma autoanálise psicológica rigorosa, seja como um resultado de uma antropologia filosófica adequada. Como veremos, sendo a temporalidade o sentido e, portanto, o que permite o homem alcançar o entendimento autêntico de sua existência, ela transcende o próprio Dasein. Além disso, veremos que é pela experiência da temporalidade que se permite o emergir do problema do Ser por meio de uma nova perspectiva, a do horizonte temporal.

Como sabemos, o conceito de "existência" tem uma importância ímpar no projeto de Ser e tempo. Nessa obra, a existência é compreendida como "possibilidade de ser" em contraposição ao "efetivamente real" que, de acordo com Heidegger, é o modo como a ontologia antiga a ela se refere. Assim, à sua perspectiva filosófica da existência, Heidegger reserva o termo alemão Existenz, já à compreensão que dela a tradição metafísica tem por "realidade efetiva", ele atribui o termo latino existentia. Tal demarcação conceitual, visa menos criar um estilo filosófico próprio, embebido em determinações terminológicas vazias, do que sinalizar um ponto crucial necessário para distinguir "sentidos" de ser. A diferença entre existentia e Existenz, que agora é apenas entre termos, como veremos, indicará os distintos modos de temporalização da temporalidade. Ou seja, o sentido do modo de ser inerente à subsistência (Vorhandenheit), e o sentido de nosso modo de ser, a existência (ek-sistencia), se dão por referência aos diferentes modos temporais que, no entanto, são oriundos de um único horizonte temporal. Este horizonte temporal responsável pelo sentido do Ser em geral é o que Heidegger busca tematizar por meio da Analítica Existencial, e, por sua vez, é algo indispensável ao projeto da Ontologia Fundamental.

Todavia, antes de adentrarmos propriamente na Analítica, convém evidenciarmos o significado de "sentido" para Heidegger:

[...] sentido é aquilo em que a entendibilidade de algo se mantém, sem que ele mesmo fique expresso e tematicamente à vista. Sentido significa aquilo-em-relação-a-quê do projeto primário, a partir do qual algo pode ser concebido em sua possibilidade como o que ele é. O projetar abre possibilidades, isto é, abre o que possibilita algo. (2012a, pp. 881-883).

Para Heidegger, o sentido, mesmo não estando "tematicamente à vista", expressa uma relação na qual o entendimento de algo se estabelece, pois nos permite acessar o ente em seu ser em referência a algo (Heidegger, 2012a, p. 883). E é desta maneira que a Analítica Existencial encontra na temporalidade "aquilo-em-relação-a-quê" o entendimento do ser do Dasein, isto é, a existência, pode ser estabelecido em seu sentido autêntico.

Com efeito, a partir do entendimento do caráter relacional do sentido em Heidegger, avançaremos propriamente rumo à Analítica Existencial do Dasein, a análise fenomenológica do seu ser-no-mundo, na qual buscaremos o entendimento da autêntica questão do Ser em geral. Veremos que a Analítica Existencial revela a temporalidade (Zeitlichkeit) como o sentido mais próprio do modo de ser do Dasein, o que por sua vez, difere do "tempo do mundo" (Innerzeitlichkeit), que é o sentido do ser dos entes não conforme ao Dasein (âmbito da subsistência). Ademais, será visto que a temporalidade permite a compreensão do si-mesmo do Dasein não como um "si encapsulado", uma ipseidade, ou mesmo uma identidade fechada em sua mesmidade. Pelo contrário, a temporalidade faz com que compreendamos o Dasein como uma essência expropriada, um sentido constantemente presente em seus conceitos e expressões como, ser-"", estase, ex-istência, aberturaextática-angustiante face ao nada, pura possibilidade de ser, e adveniência fundamentada no porvir.

 

2. Quem é o ser-no-mundo?

In-der-Welt-Sein2, ser-no-mundo, é uma nuance conceitual presente no termo "Dasein". Ele agrega a complexidade da unidade do fenômeno referente ao nosso comportamento no mundo. Ser-no-mundo faz referência a um único, porém, amplo e complexo fenômeno, porque o mundo, como resultado de uma totalidade de significância, não é independente do Dasein, e este, enquanto constante busca de sentido, não é um ser etéreo aquém do mundo. Na perspectiva heideggeriana, o mundo não é uma região, nem mesmo pode ser considerado um ente (1983, p. 116). Ele é o modo de ser do Dasein em sua totalidade (Heidegger, 2009, p. 256). Desta maneira, somos abertos a entender o nosso modo-de-ser, o ente que nós mesmos somos, o Dasein, à medida em que entendemos o nosso mundo, o nosso modo de ser-no-mundo, pois, em todo entender de mundo, diz Heidegger, está coentendida a existência e o inverso (2012a, p.431).

O Dasein como ser-no-mundo deve ser compreendido em suas múltiplas relações no mundo em que vive. Podemos reconhecer tais relações como culturais, sociais, profissionais, em suma, relações que estruturam um mundo que nos é próprio, âmbito no qual atribuímos significados às coisas, bem como, por meio do qual, podemos colher diversos significados possíveis (Heidegger, 2009a, p. 328). Assim, na familiaridade com essas relações, diz Heidegger, "[...] o Dasein "significa" a si mesmo, dá-se a entender originariamente seu ser e poder-ser relativamente a seu ser-no-mundo [...]" (2012a, p. 259). O todo-relacional desse significar é denominado significatividade: "[...] A significatividade é aquilo-em-relação-a que o mundo, como tal, é aberto. [...]" (Heidegger, 2012a, p. 407). A unidade desta significatividade constitui a estrutura do mundo onde o Dasein desdobra seu ser como tal (Heidegger, 2012a, pp. 261; 989).

Assim, a totalidade complexa da existência se revela pela mundidade no co-pertencimento entre o Dasein e o mundo (Heidegger, 2012a, p. 199). Tanto a significação do mundo, quanto a significação do Dasein, apresentam-se num círculo hermenêutico, caracterizado pelo movimento no qual a compreensão de mundo requer a referência ao Dasein e vice-versa, não sendo possível pensar a significância de um sem o outro. Na análise da estrutura ontológica da mundidade, o caráter ôntico do mundo, quer dizer, a sua constituição espacial estritamente relacionada às coisas no mundo, as quais Heidegger estabelece diferenças entre os entes intramundanos, subsistentes, prontos à mão, e ao uso, é relevante apenas por ser um modo de acesso ao ser pelo caráter existencial que demandam. O martelo ao martelar; a cadeira ao sentar; o sentimento pelo animal de estimação, etc., apontam para o modo de ser do Dasein, para seu comportamento no mundo, uma maneira de existir que, como veremos, é "imprópria", mas que, de certo modo, possibilita a compreensão da existência "própria e autêntica", pois o "sentido" de uma acaba por entrelaçar-se ao "sentido" da outra.

Desta maneira, o ente que está no mundo - de modo distinto do nosso modo-de-ser - e que fenomenicamente podemos expor seu sentido, faz parte da existência (existentia) entendida como o "efetivamente real" do qual falamos na introdução do artigo. Ademais, neste âmbito, podem ser diferenciados, por um lado, os entes simplesmente à vista, as coisas no espaço que estão dispostas "por aí" sem um sentido prévio (vorhanden), e por outro, os instrumentos, ou objetos de trato (zuhanden), que podem ser considerados juntamente com os primeiros, como entes pertencentes ao mundo. (Heidegger, 2012a, p. 207).3 A propósito, a causa deles virem a ser, por exemplo, dos martelos, ou das cadeiras, depende de uma originária percepção inerente ao Dasein, chamada por Heidegger de circunspecção, circunvisão, ou ver-ao-redor (Umsicht). A circunvisão faz com que, na ocupação, o Dasein perceba a diferença entre os entes do interior do mundo, pois

[...] Na medida em que em geral um ente se mostra para a ocupação, isto é, na medida em que o ente é descoberto no seu ser, ele já é cada vez um utilizável do-interior-do-mundo-ambiente e não precisamente "de pronto" só um "material do mundo" subsistente. (Heidegger, 2012a, p. 255).

Neste sentido, por meio de nosso complexo e específico modo de ver da circunspeção, somos capazes de diferenciar os entes simplesmente dispostos no mundo, dos entes que nos servem como instrumentos de ajuda em nossa lida diária de ocupações variadas (Heidegger, 2012a, p. 211). Quer dizer, face às demandas inerentes ao nosso cotidiano, sabemos o "para quê" do instrumento, lançando mão, assim, de determinado utensílio para determinada finalidade, ou objetivo, aberto pela circunvisão. Essa visão que nos permite estabelecer uma relação de uso com um instrumento, também nos permite enxergar, por contraste, as coisas do mundo que estão postas sem um sentido determinado. Ou seja, o martelo é diferente da pedra, do vulcão e da cigarra.

De acordo com Heidegger, com a análise fenomenológica de nossas ocupações diárias, podemos também perceber que o instrumento faz parte de uma complexa rede de usabilidade disponível ao nosso talante. Por exemplo, o martelo serve para fixar com o prego o pé da cadeira que estava bambo que, por sua vez, serve de utensílio para o professor sentar e, assim, preparar a aula do dia seguinte; a aula ministrada formará profissionais de diversas áreas que, consequentemente, farão uso de mais e mais instrumentos que venham, por ventura, a atender suas necessidades etc. Isso, todavia, além de indicar uma tautologia sobre o sentido do utensílio - que é ser usado por nós - assinala para a nossa existência como sendo a razão de desvelamento do seu ser4: a usabilidade do utensílio tem certa finalidade somente por estar em meio ao nosso ser-no-mundo.

Contudo, até aqui, aparentemente, não vemos problemas com o sentido da existência, cuja ocupação do quotidiano, ao determinar nosso modo de ser, nos faz sentir "em casa" e totalmente familiar com o mundo de significações que nos cerca. Mas, segundo Heidegger, nessa mediania não há ainda uma reflexão sobre o si-mesmo do Dasein. Por isso, o filósofo adverte-nos que sem um adequado entendimento do nosso ser si-mesmo próprio, isto é, sem a explicitação da origem do sentido de nossa existência, corremos um grave risco de sermos absorvidos pela ocupação do cotidiano e, com isso, nos identificarmos com o modo subsistente de ser. Para que haja, portanto, uma "desfamiliarização do quotidiano", quer dizer, para que o problema do sentido da existência venha à tona pelo desnível de nossa ipseidade com relação ao ente subsistente, o então professor de Freiburg indica uma sutil diferença no modo como fazemos a pergunta pelo que em nós é mais próprio. Ao invés de perguntarmos o que é o Dasein, devemos, antes de tudo, perguntar "quem ele é", pois, segundo o pensador alemão, a existência se revela pelo quem, ao passo que o ente do interior do mundo, de um modo amplo, se mostra pelo quê.5

Porém, Heidegger diz que "o quem não é este nem aquele, nem a-gente mesma, nem alguns, nem a soma de todos. O 'quem' é [em alemão] o neutro: a-gente." (2012a, p. 365). O a-gente neste caso, é aquele ao qual sempre nos referimos em nossa cotidianidade no sentido de ser o regulador e justificador de nossas ações ou escolhas, mas que, propriamente, não é um alguém.6 Neste sentido, diz Heidegger: "[...] A-gente, com a qual se responde à pergunta pelo quem do Dasein cotidiano, é o Ninguém ao qual todo Dasein já se entregou cada vez em seu ser-um-entre-outros." (2012a, p. 367). No entanto, esse modo-de-ser neutro, também chamado de impróprio (Uneigentlichkeit), não é o único possível. Heidegger aponta que "o si-mesmo do Dasein cotidiano é a-gente-ela-mesma que distinguimos do si-mesmo próprio, isto é, do si-mesmo possuído de modo apropriado [...]" (2012a, p. 371). Há uma diferença entre ser próprio e ser impróprio, autêntico e inautêntico (Eigentlichkeit/Uneigentlichkeit) e a seguir trataremos dela.

 

3. O sentido do Dasein como ser-para-a-morte.

Vimos, na introdução, que o sentido é uma relação que permite o entendimento de algo no que ele é. Com isso, vimos que a existência é o sentido dos entes subsistentes, pois permite o acesso ao ser do utensílio e, portanto, permite a compreensão de sua usabilidade no engajamento e na ocupação inerente ao nosso dia a dia. A partir disto, podemos até mesmo dizer que nós somos os doadores de sentido ao instrumento, pois sua razão de ser, obviamente, é nos servir. Mas, quanto ao sentido de nosso ser, o sentido de nossa existência, qual a relação que permite alcançarmos sua verdadeira compreensão?

Antes de tudo, precisamos atentar para uma tênue diferença discriminada por Heidegger no tocante aos modos de entendimento. Em Ser e tempo, temos a entendibilidade (Verständigkeit) relacionada à ocupação, e a entendibilidade (Verständlichkeit) relacionada à temporalidade (Zeitlichkeit), que, como veremos na próxima seção, é o sentido da preocupação do Dasein consigo mesmo. A entendibilidade inerente à ocupação age como "escamas sobre os olhos" do Dasein, impedindo-o de enxergar seu poder-ser próprio, o qual Heidegger diz ser sua abertura (Erschlossenheit). Ela é a condição para a possibilidade mesma do ser-no-mundo, como bem diz Giacoia:

Ser-no-mundo é, antes de tudo, abertura (Erschlossenheit), estar aberto para a mundanidade (Weltlichkeit), nos planos da relação cognitiva, tecnocientífica, é lidar com as coisas, manter um relacionamento com elas enquanto utensílios (Zuhandenheit) ou, enfim, relacionar-se com os outros como pessoas, em um modo de ser-com, de compartilhar (mit-sein). (2013, p. 74).

A entendibilidade da temporalidade é experimentada de modo originário no ser-todo do Dasein, no fenômeno chamado pelo filósofo de resolução (Entschlossenheit). Apesar de em português resolução e abertura não terem de pronto nenhuma conexão de sentido, em alemão essas palavras são bem próximas. O verbo schliessen que significa "fechar, trancar" somado ao prefixo ent, que equivale ao nosso prefixo des, que nos dá um sentido de oposição, ou reversão de um estado anterior, formam entschliessen, nos permitindo alcançar o sentido de "desfechar, destrancar". Em erschliessen (abertura), o prefixo er que dá a ideia de "fora, adiante", obtém a mesma função de ent em entschliessen. Segundo Inwood (2002, p. 33), antes do século XVI entschliessen era usado como "abrir, destrancar", e não como "decisão, decidir" (sich entschliessen). Em Heidegger o uso de Entschlossenheit (resoluto) e Erschlossenheit (abertura) é muito próximo e apesar da circularidade dos termos indicarem o significado de "abertura para a abertura", essa proximidade tem a ver com o próprio sentido do ser do Dasein.

Sendo assim, o ser-resoluto pode ser compreendido como a decisão que projeta insistentemente o Dasein em direção ao entendimento do sentido do seu si-mesmo. Mas, como foi abordado ligeiramente ao final da seção anterior, para que a compreensão originária possa sair do encobrimento que a ocupação cotidiana favorece, e que o modo de ser da subsistência homologa, a investigação pelo modo próprio de existir do Dasein deve nos remeter à experiência da temporalidade. Ela proporcionará o entendimento do Dasein na totalidade pela relação ser-para-a-morte, a qual nos abrirá à compreensão autêntica de nosso si-mesmo.

Vale dizer que, não obstante o "ser como todo mundo é" ofuscar o entendimento autêntico, pois "[...] dissolve por completo o Dasein próprio, no modo-de-ser "dos outros" [...]" (Heidegger, 2012a, p. 365), ainda assim, o modo "neutro" não é, por assim dizer, a "certidão de óbito" da possibilidade da existência própria. Em verdade, diz Heidegger, "o si-mesmo do Dasein cotidiano é a-gente-ela-mesma que distinguimos do si-mesmo próprio, isto é, do si-mesmo possuído de modo apropriado [...]" (2012a, p. 371). Há uma diferença entre ser próprio e ser impróprio, autêntico e inautêntico (Eigentlichkeit/Uneigentlichkeit). Isso não quer dizer que haja uma "oposição" entre modos possíveis de existência, como se houvesse um indicativo categórico da escolha do melhor e mais excelso modo de vida em detrimento de um pior. Aqui, apresenta-se mais uma diferença conceitual, que pretende salientar dois possíveis níveis de aprofundamento na busca do entendimento de si do Dasein. A radicalidade do aprofundamento desta busca de si encontra na possibilidade mais certa do Dasein, no ser-para-a-morte, o seu limite. A relação com a morte faz com que o Dasein compreenda-se como possibilidade de "não poder ser". Isso, prima face, nos conduz a um problema. Ora, se o entendimento do si-mesmo do ser-aí, que depende da análise de seu modo de ser-no-mundo, obtém essa compreensão por meio da morte, que é a possibilidade do Dasein não mais existir no mundo, como a compreensão adequada de nosso ser-no-mundo resulta no entendimento de nossa ipseidade como um não ser mais no mundo? Depois de termos visto o modo inautêntico da existência, o ninguém, modo em que o si-mesmo do Dasein passa a dissolver-se no cotidiano de domínio do impessoal, vemos agora com o ser-para-a-morte um outro ponto problemático para o entendimento de nossa "mesmidade": somos propriamente nosso fim que está por vir. Isso nos faz perceber que somos afetados por um duplo estranhamento oriundo do arrebatamento de "nosso" si-mesmo. O primeiro, relacionado ao vazio contido na referência ao cotidiano, o qual apenas fornece-nos um entendimento neutro, comum e público de nós mesmos; uma compreensão, por assim dizer, ainda "superficial" da existência. O segundo estranhamento, mais "radical", é caracterizado pela condição confusa na qual o Dasein, por não se sentir "em casa" (Heidegger, 2012a, p. 527), passa a angustiar-se diante da falta de "solo firme" para o seu entendimento como ser-no-mundo (Heidegger, 2012a, p. 525), um modo de existência que não é intramundano:

[...] É apenas porque não somos capazes de provar a necessidade da existência de um Dasein que o seu ser escapa à intramundaneidade. Mas este escapar não é de modo algum exibido nos rostos que ela nos oferece. É apenas deduzido posteriormente da contingência da existência do ser-aí. [...] (Taminiaux, 1995, p. 115).

Neste sentido, "[...] O mundo já nada pode oferecer [...] A angústia retira, assim, do Dasein a possibilidade de, no decair, entender-se a partir do "mundo" e do público ser-do-interpretado. [...]" (Heidegger, 2012a, p. 525).

Todavia, a angústia, de acordo com Heidegger, "manifesta no Dasein o ser para o poder-ser mais próprio, isto é, o ser livre para a liberdade do-a-si-mesmo se-escolher e se-possuir." (2012a, pp. 525-527). Neste "escolher-se", o Dasein "escolhe escolher"; segundo o filósofo, nisto está a possibilidade de seu poder-ser próprio, como acontencer-do-ser, filosofia e liberdade (2012a, p.737). "Na angústia libera-se o poder-ser mais próprio, mais autêntico do Dasein", pois, desta maneira, escolhe não fugir da "possibilidade de sua impossibilidade", quer dizer, de sua morte (Nunes, 2002, p.21). O Dasein escolhe "antecipar-se", projetando-se "na direção da morte que o totaliza" (Nunes, 2002, p.25).

A respeito da forma com que Heidegger pensa a morte no contexto da ontologia fundamental, salienta Inwood:

[...] Ele não trata a morte "antropologicamente" ou em função de uma" visão-de-mundo", e sim na perspectiva de uma "ontologia fundamental". Ele não afirma o niilismo ou a falta de sentido do ser. Adiantar-se à morte nos abre para o ser: "a morte é o maior e mais elevado testemunho do ser" (LXV, 284). ST tentou "levar a morte para dentro de Dasein, de modo a dominar o Dasein em seu âmbito insondável e assim avaliar inteiramente o solo da possibilidade da verdade do ser". [...] (2002, p. 117).

A despeito do ser-para-a-morte apresentar - em nossa primeira aproximação - uma relação em que entender o ser do Dasein é compreender que o seu fim está próximo, nos levando, com isso, à inevitável sensação de nada ter sido efetivamente entendido quanto ao nosso "ser", vislumbrar a possibilidade da morte no horizonte da existência só é possível, como veremos, por nossa peculiar relação com o tempo. Ademais, o indicativo da temporalidade como condição da projeção desse fenômeno fundamental, o qual possibilita o entendimento autêntico da existência, está estritamente conectado com o projeto geral de Ser e tempo, porque é íntimo à sua meta provisória: "[...] a interpretação do tempo como horizonte possível de todo entendimento-do-ser em geral [...]" (Heidegger, 2012a, p. 31). Na próxima seção, nos deteremos um pouco mais sobre este ponto.

 

4. O sentido da preocupação e a temporalidade.

A possibilidade de nos referirmos ao fenômeno ser-para-a-morte como sendo o acontecimento mais certo, intransferível e "irrelativo" de nossa existência (Heidegger, 2012a, p. 839) está fundamentada no que Heidegger chama de temporalidade. Ela é a autêntica compreensão do tempo, "[...] o originário 'fora de si', em si mesmo e para si mesmo. [...]" (Heidegger, 2012a, p. 895). Assim, por compreendê-la como um originário "fora de si", Heidegger a caracteriza pelo termo estase (Ekstase). Seu significado neste contexto é praticamente o mesmo que êxtase, cujo sentido de arrebatamento, suspensão e expropriação, atende suficientemente a intenção da representação conceitual da temporalidade.

Por mais que a temporalidade, ou o "tempo autêntico", possua três momentos, ou melhor, três estases, porvir (Zukunft), ter-sido (Gewesenheit), e presença (Gegenwart), ela não deve ser pensada do mesmo modo que o tempo vulgar, quer dizer, não deve ser pensada como uma sucessão entre o passado, o presente e o futuro. Nem mesmo seria adequado afirmar que o tempo autêntico seja constituído, ou mesmo, seja o resultado destas estases. O que parece ser mais apropriado, no entanto, seria dizer que a temporalidade mostra-se nesses momentos. Além disso, diferentemente do que comumente se pensa sobre o tempo, o modo originário da temporalidade é o futuro (porvir - Zukunft). Podemos dizer que o Zukunft, o porvir, é o que conduz os outros momentos das estases. Ou seja, sendo pelo porvir que o Dasein se percebe como um ser-para-a-morte, é também, por essa relação ao porvir, que o Dasein se percebe como já ter sido (Gewesenheit) lançado no mundo. E, por fim, é pela mesma relação ao porvir que se instaura o presente, ou a presença (Gegenwart), momento em que se manifesta a tonalidade afetiva da angústia, reflexo da insistência no enfrentamento de nossa condição de ser caminhante para o fim, para o nada.

Outrossim, esta concepção do tempo próprio em Heidegger difere da concepção do fluxo temporal, que é compreendida como sequências de "agoras". A compreensão do tempo como fluxo tem como ponto fulcral "o agora do instante vivido". Este se deslocaria, pela memória, para um passado, e se projetaria para o futuro como a expectativa de um "agora vindouro".7 Diferente disso, como diz Nunes, "[...] temporalidade autêntica: o futuro, que puxa a cadeia dos êxtases, é uma antecipação; o passado, a retomada do que uma vez foi possível; e o presente, o instante da decisão. [...] " (2002, p.25). Quer dizer, o porvir (Zukunft) permite a abertura (Erschlossenheit) entendedora do Dasein na relação ser-para-a-morte. Essa abertura sempre lhe foi possível (ter-sido / Gewesenheit), mas só nos damos conta disso quando já estamos nos referindo ao porvir no momento resoluto. Nesta decisão (Entschlossenheit) em persistir no enfrentamento do nada, instaura-se a presença (Gegenwart), a "abertura" extasiante do Dasein, que é constatada pela tonalidade afetiva da angústia.

Nesta perspectiva, Heidegger caracteriza o modo pelo qual nos importamos com o nosso si-mesmo por meio do termo preocupação, cura, ou cuidado (Sorge). Ao contrário da ocupação (besorgen) que sempre está relacionada com alguma coisa no cotidiano, a preocupação não se instaura por meio de uma relação com um quê. Sua essência é caracterizada pela busca do sentido mais próprio do quem, capaz de identificar o ser si-mesmo do Dasein sem ser por meio de sua relação, seja para com os outros seres-aí, seja para com os demais entes subsistentes (Heidegger, 2012a, p. 363). "O ser do qual o Dasein cuida é a 'existência', constantemente ameaçada pela morte e em última instância condenada à destruição. [...]" (Arendt, 2008, p. 208). Ao contrário da tradição, que estabelece uma distinção entre essência - o que a coisa é - e existência - o modo como tal coisa é -, em Heidegger não há propriamente uma essência do Dasein a despeito de sua existência. Por mais que o filósofo tenha feito referências a essência do Dasein, sua intenção é indicar uma característica que lhe "dá ser", algo que o permite ser como ele é. "Ser" e "como ser" são o mesmo quando Heidegger se refere ao Dasein.

Dasein é existência. O que em outras palavras significa dizer que essencialmente o Dasein é fora, ser-aí, excêntrico, extático, existe. Isto porque, segundo Heidegger, a compreensão originária da existência tem a ver com a ideia que os gregos tinham da "instabilidade" e do "não-ser". Em Introdução à metafísica, ele diz que o Ser era entendido pelos gregos como "estabilidade" em dois sentidos: 1) "Estar em si", enquanto surgindo na physis (ϕὑσις), isto é, constância da força que emerge e impera nos entes do mundo; 2) "Estável" como permanente, como o que perdura como substância, ousía (ονσια). "Não-ser", por sua vez, é entendido como fora da estabilidade da permanência, i.e., "existência" (eksistazai - e)e)εξ'ιστασζαι), sentido presente no verbo latino eksistere, "dar um passo para fora", ekstasis (Inwood, 2002, p. 58). Desta maneira, segundo Heidegger, usar o termo "existir" para significar "ser" é uma degradação que compromete a riqueza do sentido que um dia os gregos tiveram da "existência" (Heidegger, 2001, p. 65).

Destarte, pensando na riqueza de sentido presente no conceito de existência, Heidegger indica que, obviamente, cada Dasein pode escolher ser o que bem quiser no mundo. A estrutura ontológica que comporta todos os modos existenciais possíveis é chamada pelo filósofo de estrutura ontológica existencial (existenzial), um horizonte composto pela inter-relação existenciária (existenziell) inerente à possibilidade de ser de cada "Dasein individual" (Arendt, 2008, p. 208).

No entanto, para Heidegger, a existência autêntica é a preocupação com o si-mesmo, e o sentido da preocupação é a temporalidade. Ela que mantém o entendimento da unidade da estrutura-da-preocupação, compreendida como existência, factualidade e decair (Heidegger, 2012a, pp. 891; 893). Ou seja, o porvir é o que permite a existência ser caracterizada como plena possibilidade de ser; o ser-sido é o que fundamenta a compreensão do Dasein como factum dejectado, um ser lançado no cotidiano fático que, por sua vez, dá margem ao seu decaimento na ocupação do mundo subsistente que, mesmo indicando a prevalência do presente impróprio, tem por fundamento o "presencizar" primário do tempo autêntico (Heidegger, 2012a, p. 893). Isto porque o modo de ser impróprio é fundamentado na ocupação, cuja característica principal é a fuga diante do si-mesmo, uma reação negativa, portanto, ao entendimento do si-mesmo como finitude que, como visto, é fundamentado na presença autêntica (Gegenwart). A salvação do decair ocupado do Dasein e da interpretação de si como subsistente, âmbito do tempo do intramundano, é o ser-resoluto. Esse modo-de-ser possibilita-lhe despertar desta condição inautêntica da existência, mantendo-o numa abertura para o verdadeiro entendimento de seu si-mesmo mais próprio, colocando-o novamente na direção da temporalidade autêntica, fundamento da existência própria.

Desta maneira, realçando o caráter fugaz e contingente da nossa existência, a finitude nos concede uma concepção de nosso modo-de-ser que é diametralmente oposta à concepção obtida da existência como subsistência. A confiável e ingênua familiaridade com o mundo é posta em cheque pela temporalidade, e a "prova" disto está na tonalidade afetiva da angústia. Ou seja, nenhum ente subsistente, ou intramundano, pode quebrar o silêncio angustiante que atesta a imposição do nada da morte ao si-mesmo. Nem mesmo a totalidade de significância, que constitui a mundidade do mundo, pode fornecer ao ser-aí um modo de ser próprio em detrimento da temporalidade. Fora da tonalidade fundamental da angústia, o que o mundo da ocupação pode fornecer é um abrigo, um esconderijo para a fuga diante da verdade sobre o si-mesmo próprio (Heidegger, 2012a, p. 519). Mas é enfrentando a angústia que, como indica Seibt, o Dasein se torna corajoso, pois nela é que ele experimenta a sua própria transparência, fora das relações de familiaridade com o mundo, confrontando-se com sua própria nudez, com sua mais própria possibilidade de não-ser (2010, p. 251).

Retomando. Até aqui compreendemos que na resolução o Dasein alcança a verdade originária da existência como abertura e pura possibilidade de ser (Heidegger, 2012a, p.839). Esse entendimento é fundamentado na temporalidade, que permite ao Dasein, por meio da relação ser-para-a-morte, a compreensão de si como existência finita. Portanto, a ideia da presença permanente, atribuída aos entes do modo de ser da subsistência, não se apresenta como sendo a maneira adequada em que o Dasein pode colher o real entendimento de seu si-mesmo. A temporalidade, na estase do porvir, devolve ao Dasein a compreensão do seu modo-de-ser próprio, que é a existência. O porvir, mostrando-lhe a finitude, apresenta-lhe a impossibilidade de ser, realçando, com isso, a existência como possibilidade livre, e abertura para ser. Por isso, o ser em geral do Dasein é adveniente, e o sentido de sua totalidade é a temporalidade (Heidegger, 2012a, p. 887).

Como vimos, a Analítica Existencial revela a temporalidade como o sentido da existência. Mas como isso se relaciona com o projeto da Ontologia Fundamental? O horizonte necessário à interpretação do Ser foi alcançado? Quanto ao sentido do Ser em geral, em que nos auxilia a temporalidade? Há uma temporalidade própria do Ser em geral diferente da temporalidade como sentido do ser do Dasein? Ser e tempo além de explicitamente não responder tais questões, ainda termina por meio de uma: "o tempo ele mesmo se manifesta como horizonte do ser?" (Heidegger, 2012a, p. 1179). Seria essa derradeira questão do tratado a autêntica pergunta pelo sentido do Ser, anunciada como projeto na introdução da obra?

Na preleção, Os problemas fundamentais da fenomenologia, que fora ministrada no verão de 1927, na Universidade de Marburgo, a qual Heidegger afirma ser a reelaboração da terceira seção de Ser e tempo (2012b, p. 7, nota de rodapé de número 1), pode nos fornecer importantes contribuições a esse respeito. Lá, o filósofo afirma que o resultado da Analítica Existencial revelou que a constituição do ser do Dasein é fundamentada na temporalidade (Heidegger, 2012b, p. 332). Ademais, diz que somente por isso, isto é, somente pelo sentido do Ser do Dasein ter se revelado por referência à temporalidade (Zeitlichkeit), foi possível uma adequada problematização do Ser por referência ao horizonte temporal denominado de temporialidade (Temporalität):

[...] O resultado da analítica existencial, isto é, da exposição da constituição ontológica do ser-aí em seu fundamento, nos diz: a constituição ontológica do ser-aí se funda na temporalidade. [...] então, se é que a compreensão de ser pertence à compreensão de ser do ser-aí, esse ser-aí também precisa se fundar na temporalidade. A condição ontológica de possibilidade da compreensão de ser é a própria temporalidade. A partir dela, por isso, precisa ser possível resgatar aquilo a partir do que nós compreendemos algo assim como o ser. A temporalidade assume a possibilitação da compreensão de ser e, com isso, a possibilitação da interpretação temática do ser e de sua articulação e modos múltiplos, isto é, a possibilitação da ontologia. Daí emerge uma problemática própria, ligada à temporalidade. Nós a designamos como a problemática da temporialidade (Temporalität). O termo "temporialidade" não é equivalente ao termo temporalidade (Zeitlichkeit), apesar de não passar da sua tradução. Ele designa a temporalidade na medida em que ela mesma é transformada em tema como condição de possibilidade da compreensão de ser e da ontologia enquanto tal. O termo "temporialidade" deve indicar que a temporalidade não representa na analítica existencial o horizonte a partir do qual compreendemos ser. O que inquirimos na analítica existencial, a existência, revela-se como temporalidade que, por seu lado, constitui o horizonte para a compreensão de ser, que pertence essencialmente ao ser-aí. (Heidegger, 2012b, pp. 332, 333).

Na citação acima, vemos, claramente, Heidegger dizer que a Analítica revelou a temporalidade como característica essencial da existência do Dasein, bem como, que ela possibilitou, com isso, uma tematização apropriada ao problema da temporialidade como condição da possibilidade da compreensão do ser, fundamento da ontologia como tal. Além disso, também o vemos dizer que a temporialidade se apresenta na Analítica como fundamentadora da temporalidade, a qual, por sua vez, fundamenta a compreensão do ser que pertence exclusivamente ao modo de ser do Dasein. O que em outras palavras, significa dizer que o sentido da temporalidade é a temporialidade.

Deste modo, compreendemos que a Analítica, ao nos conduzir ao entendimento do sentido do ser do Dasein por referência à temporalidade, nos permite, própria e adequadamente, iniciar a investigação do sentido do Ser em geral por referência a uma problemática circunscrita a um horizonte específico, a temporialidade. Ela é o panorama no qual pode-se localizar a temporalidade como uma compreensão de ser restrita ao Dasein que nos permite entender a finitude da existência como pura possibilidade de ser.

Além disso, em Ser e tempo, vemos Heidegger ser bem direto ao dizer que a intenção da Ontologia Fundamental é a interpretação do Ser por meio da temporialidade. É claro também ao dizer que a exposição da problemática da temporalidade é uma resposta concreta à pergunta pelo sentido do Ser, pois põe em liberdade o horizonte possível para o início da investigação:

[...] a tarefa ontológica fundamental da interpretação de ser como tal compreende em si a elaboração da temporalidade do ser (Temporalität des Seins). Só na exposição da problemática da temporalidade pela primeira vez se dá uma resposta concreta à pergunta pelo sentido do ser.

Porque o ser só pode ser apreendido cada vez na perspectiva do tempo, a resposta à questão-do-ser não pode residir numa proposição isolada e cega. A resposta não é entendida na mera reiteração do que é enunciado em proposição, sobretudo se é posta em circulação como resultado flutuando no ar para mero registro de uma informação sobre um "ponto-de-vista" que talvez se afaste do modo de tratamento até agora usual. Se a resposta é "nova", não tem importância alguma e permanece algo exterior. O que há de positivo nela deve estar em ser suficientemente antiga para ensinar a conceber as possibilidades que os "Antigos" prepararam. Segundo seu sentido mais-próprio, a resposta indica uma diretriz para que a pesquisa ontológica concreta inicie o perguntar investigativo no interior do horizonte posto-em-liberdade - é o que ela somente oferece. (Heidegger, 2012a, p. 79, parêntesis nosso).

Portanto, o projeto da Ontologia Fundamental está comprometido com a evidenciação da temporialidade como horizonte do sentido do Ser, razão que condiciona a meta de Ser e tempo. Porém, o que para nós não deixa de ser problemático para o

entendimento do pensamento heideggeriano, é que, para o filósofo, evidenciar a problemática já é dar a resposta concreta à pergunta pelo sentido do Ser. Ou seja, para Heidegger pergunta e resposta não necessariamente devem ser anunciadas sob os moldes das proposições cujas sentenças compostas por mediações simbólicas - palavras, conceitos, signo e significado - preconizam a fixidez e a restrição. A resposta à Questão do Ser, no pensamento heideggeriano, pode ser compreendida como um direcionamento adequado para o início de uma investigação propriamente ontológica, a qual toma por base a referência ao horizonte do sentido do Ser, que é a temporialidade.

 

5. Considerações Finais

Ao buscar atingir o objetivo deste artigo, que era, grosso modo, o de esclarecer as diferenças entre o sentido do Ser em geral e o sentido do Ser do Dasein, podemos concluir o que se segue.

Vimos que o "sentido" é relacional, isto é, algo só passa a ser entendido, quando tem outra coisa por fundamento. Com efeito, em cada temporalização da temporialidade (Temporalität) temos o sentido do Ser de algum ente. Por isso, a temporalidade do Dasein (Zeitlichkeit) é diferente do tempo intramundano da subsistência (Innerzeitlichkeit). De fato, o tempo para a confecção, ou para o uso de um sapato é distinto da estase temporal, a qual permite o Dasein vislumbrar a sua morte como um acontecimento único e inevitável, o derradeiro evento da impossibilidade da possibilidade de ser. A finitude, deste modo, realça a existência como livre escolha de modos possíveis de ser, algo que os entes subsistentes não possuem. Nenhum ente tem a possibilidade de dar-se um si-mesmo próprio e autêntico a não ser o Dasein.

Outrossim, vimos que, por mais que Heidegger tenha partido da Analítica Existencial do Dasein para nos apresentar a temporalidade, isso não significa que sua concepção é deduzida, ou retirada da experiência de nossa existência. Ao contrário, entendemos o nosso modo de ser porque temos, de certa maneira, uma pré-compreensão da temporalidade, sobretudo, por estarmos imersos nela. Ou seja, quando nos damos conta da finitude de nosso existir, já estamos na estase da presença que é constatada pela angústia de ser um ente caminhante para o nada da morte; que estamos jogados no mundo sem uma existência pré-determinada; e que precisamos decidir, ou por uma existência própria e autêntica, ou por apenas viver como todos vivem.

Por fim, entendemos a temporialidade como o horizonte que comporta todas as possíveis temporalizações e, por conseguinte, os sentidos do ser dos entes. Ela se mostra como a tarefa da Ontologia Fundamental na busca pela adequada compreensão do Ser em geral por referência ao tempo. Contudo, algumas questões permanecem: sabemos o que é o tempo, o qual possibilita a compreensão do Ser? Ademais, se ele é o sentido do Ser, isto é, "aquilo" que permite uma relação mantenedora de entendimento, não estaria o tempo para "além do Ser"? Faz sentido perguntarmos por algo além do Ser? Qual a relação entre Ser e tempo? Não visamos aqui alcançar as respostas para tais questões. Porém, por meio delas, podemos ter certeza que, com Heidegger, a ontologia alcançou um novo patamar a partir do qual ela pode refazer suas análises: o tempo.

 

Referências bibliográficas

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Recebido em 06/07/20
Aprovado em 14/11/20

 

 

1 Este artigo é uma adaptação dos capítulos III e IV de minha dissertação: A ontologia fundamental heideggeriana em Ser e Tempo, apresentada em 10/04/2018 para a obtenção do título de Mestre em Filosofia pela UFG.
2 O constante uso de hifens reflete o original alemão e é mantido em algumas traduções (In-Der-Welt-Sein = ser-no-mundo). Visa também expor certo modo de ser em seu fenômeno unitário específico.
3 Há uma diferença que Heidegger estabelece entre os entes intramundanos. O ser-à-mão (zuhanden) está ligado ao ver-ao-redor, à circunvisão (Umsicht), ao passo que o ser-à-vista (vorhanden) está para o objeto simplesmente visto a nossa frente, como coisas desligadas da práxis que é decorrente do ver-ao-redor.
4 Ou seja, seu sentido.
5 A compreensão do ser-si-mesmo (Selbstsein), o que com prejuízo diríamos ser a procura por sua identidade mais própria, se inicia com a pergunta pelo "quem" e não pelo o "que" é o Dasein. Apesar de, em português, ambos os termos serem classificados como pronomes relativos, podemos perceber uma ligeira diferença entre eles. A pergunta pelo "que" está mais direcionada para uma "coisa", a algo estabelecido, determinado, ao passo que a pergunta pelo "quem" está mais direcionada a uma pessoa, ou a um agente qualquer. Por exemplo, é mais adequado perguntarmos o que é um triângulo?, do que perguntarmos quem é um triângulo ? Ademais, a pergunta pelo quem ampliaria a perspectiva de análise, tanto no sentido de não pensarmos o Dasein como sendo uma coisa, ou um objeto, quanto no sentido de nos incluirmos na análise, uma vez que o Dasein é o modo de ser do ente que nós mesmos somos.
6 Isto é, se tomamos vinho é porque a-gente toma vinho; se vamos ao teatro é porque a-gente vai ao teatro; se nos vestimos adequadamente em cerimônias formais é porque a-gente assim se veste nestes casos.
7 Modo de compreensão do tempo que pode ser depreendido da fenomenologia de Husserl.

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