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Natureza humana

Print version ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.23 no.1 São Paulo Jan./June 2021

 

ARTIGO

 

A compreensão filosófica da psicanálise de Donald Winnicott na perspectiva de Zeljko Loparic: aspectos fundamentais1

 

The philosophical understanding of Donald Winnicott's psychoanalysis in Zeljko Loparic's perspective: fundamental aspects

 

 

Moisés Ferreira

Membro do PRAXIS - Centro de Filosofia, Política e Cultura (Universidade da Beira Interior/ Universidade de Évora; Portugal); bolsista de pós-doutorado em Filosofia da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Endereço de e-mail: mdsgferreira@gmail.com

 

 


RESUMO

O objetivo do presente trabalho é efetuar uma resenha da compreensão filosófica do pensamento psicanalítico de Donald Winnicott proposta por Zeljko Loparic. Tomando como referência alguns dos seus principais estudos dedicados ao problema da fundamentação filosófica da psicanálise winnicottiana, far-se-á uma exposição detalhada da forma como Loparic analisa e interroga a novidade do contributo de Winnicott para a ciência psicanalítica. Com essa finalidade, destacar-se-ão os dois eixos em torno dos quais a abordagem de Loparic se encontra organizada: (1) o argumento segundo o qual Winnicott inaugura um novo paradigma em psicanálise, nos termos da epistemologia de Thomas Kuhn; (2) a ideia de que o pensamento psicanalítico de Winnicott mantém estreitas afinidades com a analítica existencial de Martin Heidegger, podendo, nessa qualidade, servir o projeto da constituição de uma antropologia, de uma patologia e de uma terapia de inspiração daseinsanalítica.

Palavras-chave: Donald W. Winnicott; Zeljko Loparic; Thomas Kuhn; Martin Heidegger; Paradigma; Psicanálise.


ABSTRACT

The aim of this paper is to accomplish a detailed analysis of the philosophical understanding of the psychoanalytical thinking of Donald Winnicott proposed by Zeljko Loparic. Having into account some of his main articles dedicated to the problem of the philosophical underpinnings of winnicottian psychoanalysis, a thorough description will be made regarding the ways in which Loparic views and questions the novelty of Winncott's contribution to psychoanalytical science. With that purpose in mind, the two axes around which Loparic's approach is organized will be emphasized: (1) the argument according to which Winnicott establishes a new paradigm in psychoanalysis, in the terms of Thomas Kuhn's epistemology; (2) the idea that Winnicott's psychoanalytical thinking maintains tight affinities with Martin Heidegger's existential analysis, being, by that reason, in a favorable position to sustain the project of establishing an anthropology, a pathology and a therapy inscribed in a daseinsanalytical frame.

Keywords: Donald W. Winnicott; Zeljko Loparic; Thomas Kuhn; Martin Heidegger; Paradigm; Psychoanalysis.


 

 

1. Introdução

Nas suas investigações sobre filosofia e psicanálise, Zeljko Loparic aborda insistentemente o problema da compreensão filosófica da psicanálise de Donald Winnicott (1896-1971).2 O tratamento que faz desse problema assenta em dois eixos complementares: (1) por um lado, aplicando à psicanálise a perspectiva epistemológica de Thomas Kuhn (1922-1996) acerca da evolução dos paradigmas em ciência, propõe que com Winnicott se inaugura um novo paradigma psicanalítico, inteiramente distinto do paradigma freudiano; (2) por outro lado, colocando o trabalho de Winnicott em diálogo com a ontologia fundamental de Martin Heidegger (1889-1976), sugere que a psicanálise winnicottiana vai ao encontro da possibilidade de fundar uma antropologia, uma psicopatologia e uma terapia daseinsanalíticas.

Os aportes de Loparic para a compreensão filosófica de Winnicott podem ser situados na continuidade de anteriores leituras que tinham já sublinhado o caráter inovador do pensamento winnicottiano no seio da psicanálise, defendendo a legitimidade de ver em Winnicott um dos grandes precursores daquilo a que veio a chamar-se "psicanálise relacional".3 Loparic, contudo, argumenta que a sua interpretação vai mais longe do que essas prévias abordagens (Loparic, 2006a, p. 3, n. 2), na medida em que fornece os instrumentos conceituais que permitem clarificar em toda a extensão a mudança paradigmática introduzida por Winnicott. Com essa dilucidação dos fundamentos epistemológicos do contributo winnicottiano para a psicanálise, Loparic, de fato, favorece uma compreensão mais aprofundada da especificidade do pensamento psicanalítico de Winnicott, tornando possível delimitar e caracterizar de maneira mais completa o paradigma particular em que o mesmo se inscreve.

Reconhecendo a importância científica de que se reveste a investigação de Loparic, bem como o seu caráter pioneiro no contexto da comunidade científica luso-brasileira, o presente trabalho tem como objetivo fazer uma resenha do tratamento dado pelo autor ao problema da compreensão filosófica do pensamento psicanalítico winnicottiano. Fornecer-se-á, assim, uma visão panorâmica sobre as principais linhas condutoras às quais Loparic tem recorrido para abordar essa questão, focando alguns dos mais relevantes trabalhos que lhe consagra: (1) "Além do inconsciente: sobre a desconstrução heideggeriana da psicanálise" (2001); (2) "Winnicott's paradigm outlined" (2002); (3) "De Freud a Winnicott: aspectos de uma mudança paradigmática" (2006); (4) "Heidegger e Winnicott" (2006). Incidir-se-á, deste modo, sobre os dois eixos que estruturam o diálogo conduzido por Loparic entre a filosofia e a psicanálise de Winnicott, correspondentes, como acima se fez notar, a dois argumentos centrais: (1) em primeiro lugar, a tese de que a psicanálise winnicottiana instaura um novo paradigma em psicanálise, nos termos da teoria da evolução dos paradigmas em ciência defendida por Kuhn na sua obra The Structure of Scientific Revolutions [A Estrutura das Revoluções Científicas] (1970); (2) em segundo lugar, a tese de que a psicanálise winnicottiana vai ao encontro do projeto de criação de uma nova ciência do homem, a partir da perspectiva fenomenológico-existencial de Heidegger, atendendo às reflexões coligidas em Zollikoner Seminare [Seminários de Zollikon] (1987), e no prolongamento das investigações realizadas na obra Sein und Zeit [Ser e Tempo] (1927).

 

2. A Originalidade da Psicanálise de Winnicott

Loparic é um defensor da necessidade de reconhecer a alteração paradigmática que a psicanálise winnicottiana introduz face às posições de Freud. Com esse objetivo, tem procurado demonstrar como a teoria do amadurecimento e a teoria da psicopatologia que Winnicott propõe reúnem, quando confrontadas com o trabalho de Freud, os requisitos necessários para se considerar que são representantes, de acordo com as teses que Kuhn desenvolve em A Estrutura das Revoluções Científicas, de um novo paradigma no âmbito da ciência psicanalítica.

2.1. Winnicott enquanto pioneiro de um novo paradigma em psicanálise

2.1.1. Kuhn e o conceito de "paradigma"

Na perspectiva de Kuhn, a ciência [normal], enquanto "atividade de resolução de problemas semelhantes a quebra-cabeças" (Loparic, 2006a, p. 2), ou "enigmas" (Kuhn, 2009, pp. 63-72; p. 66; p. 72), organiza-se, nos termos da esquematização fornecida por Loparic (2006a, p. 2), em torno de dois elementos centrais definidores da sua estrutura interna: um modo específico de olhar a realidade e um correspondente modo de falar acerca da realidade (Loparic, 2006a, p. 2). Estes elementos, partilhados por uma comunidade de especialistas, traçam as fronteiras daquilo que toma a designação de "paradigma", ou "matriz disciplinar" (Loparic, 2006a, p. 2; Kuhn, 2009, p. 32; p. 47; p. 245).4

Um paradigma incorpora, seguindo a leitura que Loparic (2006a, p. 2) efetua do texto de Kuhn, dois grandes componentes: (1) exemplares [no quadro de um entendimento de paradigma enquanto "realização científica exemplar" (Kuhn, 2009, p. 236; p. 251; pp. 252-257)] e (2) compromissos teóricos [no quadro de uma compreensão sociológica de paradigma como "matriz disciplinar" (Kuhn, 2009, p. 72; p. 236; pp. 244-251)]. Os (1) exemplares consistem em problemas-tipo aos quais se tem acesso no interior do paradigma, juntamente com as soluções consensualmente usadas para resolvê-los. Os (2) compromissos teóricos abarcam, por sua vez, quatro aspectos: (a) generalizações (às quais se recorre como referenciais orientadores da investigação) (Kuhn, 2009, pp. 246-247); (b) modelo ontológico acerca do campo de pesquisa (as assunções, ou pressupostos, acerca da natureza do objeto ou campo de estudo, i. e., aquilo que se entende, em termos gerais, que tais objetos ou campo de estudo "são" e como se encontram constituídos) (Kuhn, 2009, p. 24; pp. 247-248); (c) modelo metodológico (métodos concretos de condução da pesquisa, bem como comparações-padrão consideradas legítimas) (Kuhn, 2009, pp. 247-248); (d) valores epistemológicos (respeitantes a modos específicos de construção e exercício do ramo da ciência considerado) e valores práticos (referentes à transferibilidade do conhecimento da ciência e ao modo como este se revela vantajoso para a sociedade) (Kuhn, 2009, p. 32; pp. 248-251).

Kuhn, como Loparic (2006a, pp. 2-3) sublinha, defende a ideia de que o desenvolvimento histórico da atividade científica (atendendo ao que se verifica em cada um dos múltiplos ramos da ciência) parece obedecer a um padrão geral. De acordo com esse padrão, fases de exercício da ciência normal, em que se vão reunindo dados e resultados que acrescentam "abrangência" e "precisão" ao paradigma vigorante (Kuhn, 2009, p. 64; p. 83) e esclarecem acerca dos fenômenos e teorias sobre os quais o paradigma já incide (Kuhn, 2009, p. 49; p. 119), dão lugar a etapas nas quais começam a surgir, em número crescente, "anomalias"5 (Kuhn, pp. 83-99) que, observadas graças ao seu "contraste com o pano de fundo criado pelo paradigma" (Kuhn, 2009, p. 99), desafiam e ameaçam a estabilidade deste último. Isto suscita uma "crise" (Kuhn, 2009, p. 111; p. 121), desencadeando uma atividade de "investigação extraordinária" (Kuhn, 2009, p. 25) que abre espaço à emergência de novas teorias (Kuhn, 2009, p. 112) e, por fim, de um novo paradigma, já capaz de incorporar nos seus pressupostos a novidade colocada pelas anomalias detectadas, e, simultaneamente, de garantir que todos os problemas que no âmbito do anterior paradigma obtinham solução continuam a poder ser resolvidos, ainda que agora por vias eventualmente distintas. Esta alteração de paradigma merece, para Kuhn (2009, p. 133), a designação de "revolução científica" (Kuhn, 2009, p. 133). Este processo revolucionário em ciência, coincidente com a constituição e afirmação de um novo paradigma, envolve, de acordo com a sugestão de Kuhn (2009, p. 157; p. 171; p. 186; p. 204), o aparecimento de uma nova forma de ver o mundo. Atente-se nas palavras do autor:

Portanto, em tempos de revolução, quando a tradição de ciência normal muda, torna-se necessário reeducar a percepção que o cientista tem do seu meio ambiente -; em algumas situações bem conhecidas ele tem de aprender a ver uma nova gestalt [sic]. Depois de o fazer, o mundo da sua investigação parecerá aqui e ali incomensurável com aquele em que habitava anteriormente (Kuhn, 2009, p. 158).

Segundo Kuhn (2009, p. 202), é da natureza de paradigmas distintos que sejam "incomensuráveis". Esta incomensurabilidade, que impossibilita a compatibilização entre pontos de vista assumidos pelos partidários de paradigmas concorrentes (o antigo paradigma, correspondente ao âmbito de exercício da ciência normal, e o novo paradigma, que desponta com a revolução científica em curso), resulta, essencialmente, do fato de que "os proponentes de paradigmas rivais praticam a sua atividade em mundos diferentes" (Kuhn, 2009, p. 204).

Com o transcorrer da atividade investigativa e a consolidação do novo paradigma derivado da revolução científica, acontece, progressivamente, um retorno a um outro âmbito de ciência normal, agora assente nesse mesmo paradigma. Assim, o paradigma em causa irá também perder a sua "novidade", acabando, eventualmente, por ser suplantado por um outro, que virá reivindicar o seu lugar.

Em suma, para Kuhn o desenvolvimento histórico das ciências acontece em ciclos consecutivos, cada um deles composto pelas etapas mencionadas: (1) um período de vigência da ciência normal; (2) uma subsequente fase de crise, desencadeada pela deteção de anomalias que desafiam e testam os limites da ciência normal; (3) uma posterior etapa de pesquisa revolucionária, em que se procura definir um paradigma que possa responder às limitações evidenciadas pelo paradigma anterior; (4) por fim, caso a pesquisa revolucionária tenha sucesso, um período de afirmação de um paradigma distinto, que passará a determinar um novo e mais alargado âmbito de ciência normal (Loparic, 2006a, pp. 2-3).

2.1.2. O paradigma da psicanálise freudiana

Loparic, apesar de ter em conta essencialmente duas objeções possíveis a uma leitura da psicanálise com base na abordagem de Kuhn (Loparic, 2002, pp. 69-73), aplicará esta última psicanálise freudiana e a psicanálise de Winnicott. Deste modo, identifica em ambas (Loparic 2006a, pp. 3-4; pp. 8-9) os elementos centrais que correspondem aos já mencionados componentes de um paradigma: (1) exemplar; (2) generalização; (3) modelo ontológico; (4) modelo metodológico; (5) valores epistemológicos e valores práticos.

A respeito da psicanálise freudiana, Loparic observa, assim, que (1) o complexo de Édipo constitui o seu exemplar mais importante, remetendo para uma fase da vida em que a criança se vê confrontada com a necessidade de gerir as suas pulsões no contexto de relações triangulares. A (2) generalização mais significativa da perspectiva de Freud consiste, para Loparic, na teoria da sexualidade (postulando a existência de sucessivos estádios que envolvem uma correspondente ativação de distintas zonas erógenas de caráter pré-genital e genital, com o eventual surgimento de fixações de caráter pré-genital). No que se refere ao seu (3) modelo ontológico [contido na "metapsicologia" propriamente dita, marcada pelo seu caráter eminentemente especulativo, e, como tal, pelo seu afastamento da experiência e dos fatos clínicos (Loparic, 2006a, p. 12; p. 24)], a teoria freudiana assenta, de acordo com Loparic, na ideia de que o ser humano é constituído por um "aparelho psíquico" cujo funcionamento depende da atuação de pulsões e outras forças psicológicas, governadas por leis causais. Quanto ao seu (4) modelo metodológico, a psicanálise de Freud baseia-se, segundo Loparic, na interpretação dos conteúdos da transferência tendo como referência o complexo de Édipo ou a regressão a pontos de fixação pré-genital. Por fim, no que concerne aos seus (5a) valores epistemológicos, eles dizem sobretudo respeito, como Loparic propõe, aos valores típicos das ciências naturais e ao esquema de explicação causal que lhes é próprio, e o seu (5b) valor prático mais significativo consiste na anulação do sofrimento resultante de conflitos (Loparic, 2006a, pp. 3-4).

2.1.3. Os desafios à psicanálise freudiana e o paradigma da psicanálise winnicottiana

Winnicott, na sua prática clínica, foi observando que determinadas categorias de perturbações psíquicas não encontravam uma compreensão nem um tratamento satisfatório através da psicanálise tal como Freud a pensava. Era o caso daquilo a que Winnicott chamava "tendência antissocial", à semelhança do que sucedia com a psicose infantil (Loparic, 2006a, p. 4). Loparic mostra como é em torno dos problemas colocados por estas perturbações que Winnicott começa a infletir decisivamente a sua trajetória no seio da psicanálise.

A partir de determinado momento, Winnicott passou a utilizar a designação de "tendência antissocial" para se referir a um conjunto diversificado de manifestações clínicas, que podiam ir desde a avidez e a enurese até à delinquência, às perturbações de personalidade, à psicopatia, e ainda ao roubo e à mentira (Loparic, 2006a, p. 5). Dado que a psicanálise tradicional considerava que a tendência antissocial, por envolver um acting out agressivo que interferia dramaticamente com o processo analítico, se encontrava fora do seu âmbito possível de atuação, Winnicott remetia, de início, esses casos para outras modalidades de intervenção terapêutica (Loparic, 2006a, p. 5). Não obstante, a exclusão dessa classe de patologias inquietava-o, levando-o a crer que denotava uma significativa limitação teórica e técnica que a psicanálise precisava ultrapassar, para se tornar de alguma maneira capaz de lidar com esse tipo de pacientes sem perder a especificidade do seu próprio modo de ser e proceder (Loparic, 2006a, p. 5).

Simultaneamente, Winnicott observou que crianças que padeciam de diversas perturbações psíquicas, sobretudo psicoses, tinham enfrentado problemas no seu desenvolvimento emocional em fases muito precoces da vida, fato que inviabilizava a explicação da etiologia de tais distúrbios com recurso ao complexo de Édipo (válido apenas para entender o desenvolvimento emocional num momento muito posterior da infância) (Loparic, 2006a, pp. 5-6).

Winnicott acabou, assim, por adotar uma posição distinta da psicanálise freudiana. Para ele, a tendência antissocial e a psicose obrigavam a uma mudança de foco, requerendo que a sua origem fosse associada não já a conflitos intrapsíquicos, mas antes a problemas ocorridos com o ambiente inicial de suporte da criança (Loparic, 2006a, p. 6).

Deste modo, Winnicott passou a ver na tendência antissocial uma consequência de falhas ambientais sobrevindas durante a chamada fase da dependência relativa. Estas falhas específicas receberam a designação de "deprivação" (tradução de Loparic do termo inglês deprivation), sendo sua característica o fato de acontecerem num momento do desenvolvimento em que já existe uma estrutura psicológica suficientemente robusta para permitir a percepção da perda de algum elemento ambiental (figura de referência, ou outro aspecto) cuja presença em momentos anteriores tinha sido assegurada (Loparic, 2006a, p. 6).

Paralelamente, as psicoses (com particular destaque para a esquizofrenia) resultavam, de acordo com Winnicott, de uma "deficiência ambiental" (Winnicott, 1958a apud Loparic, 2006a, p. 7) sucedida no estádio de dependência absoluta, ou dupla dependência. Nesse momento do desenvolvimento não existe ainda uma estrutura psicológica bem diferenciada, pelo que o indivíduo não dispõe de condições para perceber o seu elevado grau de dependência face ao ambiente (Winnicott, 1965b apud Loparic, 2006a, p. 7). Esta deficiência ambiental é denominada "privação" (tradução do termo inglês privation), e constitui, dado o momento prematuro em que ocorre e as consequências severas que produz, uma falha profunda dos fatores ambientais (Loparic, 2006a, p. 10).

Observa-se, deste modo, que Winnicott amplia a base da psicanálise freudiana no que diz respeito à compreensão etiológica das classes de distúrbios mencionadas, atribuindo-as não já a fatores internos, mas antes ao impacto de circunstâncias externas, que, por se verificarem numa fase da vida em que a organização psíquica é ainda frágil e pouco diferenciada, terão graves consequências sobre o desenvolvimento psicológico (Winnicott, 1989a apud Loparic, 2006a, pp. 6-7). O caráter patogênico dessas circunstâncias externas, que envolvem, como se sublinhou, uma falha ambiental, resulta, pois, do fato de impedirem que necessidades essenciais do bebê sejam atendidas, interferindo assim com processos cruciais para a constituição da identidade pessoal (Loparic, 2006a, pp. 6-7).

Apesar de tudo, Winnicott não quis efetuar uma rutura radical com a psicanálise de Freud, mas antes, partindo de problemas colocados no âmbito clínico, chamar a atenção para a necessidade de a psicanálise alargar a sua base de compreensão etiológica dos distúrbios psíquicos, passando a considerar nesse âmbito não apenas a dinâmica pulsional e os conflitos internos, mas também a influência de fatores ambientais (Loparic, 2006a, pp. 6-7; Winnicott, 1989a apud Loparic, 2006a, p. 8). Contudo, Loparic mostra que a diferença entre as abordagens de Freud e Winnicott é suficientemente significativa para justificar a afirmação de que se inscrevem em paradigmas psicanalíticos distintos.

Loparic coloca, assim, em destaque os elementos que constituem o paradigma winnicottiano. O (1) exemplar deste novo paradigma não é já o complexo de Édipo, mas "o bebê no colo da mãe", que se encontra em processo de crescimento e, como tal, necessita de assegurar as condições de possibilidade para que o seu desenvolvimento não seja interrompido, de modo a vir a tornar-se um indivíduo com uma estrutura psíquica diferenciada e uma identidade consistente (Loparic, 2006a, p. 8). A (2) generalização que orienta a perspectiva de Winnicott é, de acordo com Loparic (2006a, p. 8; 2006b, p. 16), a teoria do amadurecimento, e não, como em Freud, a teoria da sexualidade, que passa a ser encarada apenas como um dos aspectos da teoria do amadurecimento, de caráter mais abrangente que aquela. O (3) modelo ontológico em que assenta a abordagem winnicottiana consiste na concepção segundo a qual a principal força que guia e estrutura o psiquismo humano é a "tendência para a integração, para o relacionamento com pessoas e coisas e para a parceria psicossomática" (Loparic, 2006a, pp. 8-9), ou tendência para a constituição de uma identidade pessoal (Loparic, 2006a, p. 19). O (4) modelo metodológico, por sua vez, continua a reconhecer a importância da interpretação dos conteúdos transferenciais, mas tendo agora como referência a teoria do amadurecimento, e não o complexo de Édipo e a regressão a pontos de fixação pré-genitais (Loparic, 2006a, p. 9). Por fim, o (5b) valor prático subjacente ao paradigma de Winnicott é, de acordo com Loparic (2006a, p. 9), não já a eliminação do sofrimento que advém de conflitos de natureza interna ou externa (que passa a ser visto como elemento integrante de uma existência saudável), mas, ao invés, o desbloqueio do desenvolvimento afetivo com recurso quer ao desmantelamento de defesas cristalizadas, quer à catalisação de processos desenvolvimentais interrompidos ou não desencadeados, promovendo, em simultâneo, o reconhecimento e integração de aspectos da psique dissociados ou cindidos.

Em face da natureza distinta dos elementos que o compõem, Loparic propõe que o paradigma winnicottiano possa ser designado de três modos: (1) paradigma "dual" (atendendo ao papel central que o autor reconhece à relação mãe-bebê no desenvolvimento psicológico) (Loparic, 2006a, p. 9); (2) paradigma "maturacional" (em razão de a generalização orientadora da teoria winnicottiana ser a teoria do amadurecimento) (Loparic, 2006a, p. 9); ou, ainda, (3) paradigma "acontecencial" (remetendo para a possibilidade, sugerida por Loparic, de estabelecer uma aproximação entre o conceito de amadurecimento, tal como o elabora Winnicott, e a "acontecência do ser-no-mundo do ser humano", nos termos da fenomenologia de Heidegger) (Loparic, 2006a, p. 9, n. 9).

 

3. Uma Leitura da Psicanálise segundo o Pensamento de Heidegger: A Perspectiva de Loparic

Como anteriormente se observou, Loparic, no seu tratamento filosófico da psicanálise de Winnicott, não só recorre ao pensamento de Kuhn, com o objetivo de demonstrar como a psicanálise winnicottiana instaura um novo paradigma distinto do da psicanálise de Freud, mas também faz uso da filosofia de Heidegger (em particular da sua ontologia fundamental), procurando através dela explicitar os fundamentos filosóficos da abordagem de Winnicott, e, desse modo, colocar em relevo a singularidade do contributo winnicottiano, reforçando a tese relativa à novidade epistemológica que este representa.

De seguida, apresentar-se-ão de forma resumida os dois aspectos da filosofia de Heidegger que merecem da parte de Loparic um maior destaque no âmbito da sua leitura da psicanálise de Winnicott: (1) a crítica dirigida (por Heidegger) à psicanálise de Freud; (2) a ontologia fundamental (posta por Loparic em diálogo com a perspectiva psicanalítica winnicottiana). A análise destes dois pontos permitirá chegar a um entendimento geral da compreensão dos fundamentos filosóficos da psicanálise de Winnicott que é proposta por Loparic.

3.1. A visão heideggeriana da psicanálise de Freud

3.1.1. Caracterização geral da psicanálise de Freud

Como Loparic mostra, Heidegger faz uma intensa crítica da psicanálise de Freud, sobretudo na sua obra Seminários de Zollikon. Nessa crítica, expõe a sua discordância relativamente aos fundamentos epistemológicos nos quais Freud baseia quer a sua metapsicologia, quer a sua teoria clínica (Loparic, 2001, p. 91).

Na esteira de Loparic, pode dizer-se que a perspectiva de Freud acerca do psiquismo humano assenta em bases naturalistas e positivistas. Para Freud, segundo Loparic:

O psiquismo é [...] um processo natural e a psicologia, uma ciência natural, que, como qualquer outra disciplina elaborada no paradigma galileano, assume o pressuposto ontológico de que os fenômenos psíquicos obedecem às relações espaço-temporais e causais externas, constituindo "correntes" ou "cadeias", cujos elos são atos mentais singulares (Loparic, 2001, p. 97).

Outros entendimentos da psicanálise clássica, tais como os de Jürgen Habermas (1929-) ou Paul Ricoeur (1913-2005), que admitem a legitimidade de considerar que a psicanálise de Freud inclui não só elementos próprios de uma ciência da natureza, mas também outros oriundos de uma matriz epistemológica distinta (compatíveis, concretamente, com uma teoria da autorreflexão, segundo Habermas, ou com uma ciência humana hermenêutica, segundo Ricoeur), são vistos por Loparic como interpretações errôneas da posição de Freud, cujo entendimento do psiquismo apenas obedece, como Loparic faz notar, à lógica das ciências da natureza (Loparic, 2001, pp. 97-98). De acordo com esta perspectiva, a psicanálise de Freud deve, pois, ser compreendida exclusivamente como uma ciência da natureza, e não enquanto uma ciência do homem (Loparic, 2001, p. 98). Disso é prova o fato de, como indica Loparic, Freud nunca ter distinguido categoricamente entre, por um lado, o plano do conhecimento baseado na observação, quantificação e medição (a dimensão propriamente objetiva do conhecimento e da experiência, tradicionalmente alvo da atenção das chamadas "ciências exatas", ou "ciências da natureza"), e, por outro lado, o plano do conhecimento nascido da experiência de si e da relação com os outros (as dimensões subjetiva e intersubjetiva do conhecimento e da experiência, às quais se dedicam as "ciências humanas", ou "ciências do homem") (Loparic, 2001, p. 98).

A psicanálise de Freud vê no psiquismo humano uma espécie de mecanismo, sujeito a forças quantificáveis que atuam segundo leis deterministas (Loparic, 2001, p. 99). Como defende Loparic, Freud, quer na sua metapsicologia, quer na sua psicologia clínica, agrega aspectos oriundos de dois posicionamentos filosóficos: (1) uma metafísica da subjetividade (derivada do pensamento de Descartes), segundo a qual Freud vai considerar que o inconsciente assenta em "fenômenos e processos mentais representacionais e afetivos" (Loparic, 2001, p. 99); (2) uma metafísica da natureza (associada ao pensamento de Galileu ou Newton), de acordo com a qual o sujeito é sobretudo marcado e influenciado por aspectos externos, nomeadamente relações de ordem espacial, temporal e causal (Loparic, 2001, p. 99).

De acordo com Loparic (2001, p. 99), o esquema de teorização usado por Freud na sua psicologia do inconsciente remonta a Kant: trata-se do "método especulativo ou método de construções auxiliares". Aplicando esse método, Freud recorre a três perspectivas para sustentar sua pesquisa de hipóteses explicativas acerca dos fenômenos do inconsciente: as perspectivas (1) tópica (relativa à estrutura do aparelho psíquico), (2) dinâmica (respeitante às forças que atuam no aparelho psíquico) e (3) econômica (concernente às quantidades de energia libertadas na sequência da atuação de forças) (Loparic, 2001, p. 99).

A metapsicologia de Freud, como resultado do seu uso do método especulativo, é assumida pelo próprio Freud como aspecto de valor meramente utilitário e indicativo, detentora, portanto, de um caráter provisório. O seu propósito é apenas o de ajudar a dar coerência aos dados clínicos existentes. Essas considerações metapsicológicas encontram-se, então, como Freud admite, abertas a revisão, podendo ser substituídas por outras que revelem mais utilidade para o fim em questão (Loparic, 2001, p. 100).

Loparic sublinha que na psicanálise freudiana a metapsicologia e a psicologia clínica têm um estatuto autônomo uma relativamente à outra: a primeira é composta de um conjunto de assunções especulativas que orientam a busca de explicações causais para os fenômenos do inconsciente; a segunda encontra-se essencialmente ancorada em dados clínicos, consistindo em "generalizações empíricas sobre os fenômenos observáveis da repressão, resistência, transferência, sexualidade infantil, etc." (Loparic, 2001, p. 100). Esta independência não significa, no entanto, que tenham raízes epistemológicas distintas, pois tanto a metapsicologia quanto a psicologia clínica se ancoram numa abordagem objetificante e naturalista acerca do psiquismo. Como mostra Loparic, quer uma quer outra são expressões de dois pressupostos fundamentais: (1) o "de que o ser humano realiza atos de representação afetivamente carregados" (reflexo da "teoria metafísica da subjetividade"); (2) o de que o homem é uma entidade situada no espaço e no tempo objetivos, externos, em suma, uma máquina movida a forças que obedecem ao princípio de causalidade" (reflexo da "teoria metafísica da natureza") (Loparic, 2001, p. 101).

3.1.2. A crítica de Heidegger à metafísica da subjetividade e à metafísica da natureza

As críticas que Heidegger dirige à psicanálise de Freud visam precisamente pôr em relevo o seu caráter objetificante e naturalista (Loparic, 2001, p. 102). Estas críticas, expostas por Loparic tendo sobretudo por base as reflexões de Heidegger em Seminários de Zollikon, partem em grande medida da concepção heideggeriana a respeito do ser do homem, sobremaneira desenvolvida na obra Ser e Tempo, e incidem justamente nos dois grandes aspectos já apresentados por Loparic como traços essencialmente caracterizadores da perspectiva freudiana: (1) a metafísica da subjetividade e (2) a metafísica da natureza, que se apresentam, em última análise, como aspectos interdependentes (Loparic, 2001, p. 104). Heidegger irá, por conseguinte, examinar esses dois alicerces da psicanálise tradicional (vertente desconstrutiva) e propor uma nova abordagem à mesma (vertente construtiva), a partir da sua ontologia fundamental (Loparic, 2001, pp. 104-105).

No que concerne à metafísica da subjetividade, Heidegger, como faz notar Loparic (2001, p. 105), entende que a consciência não tem um caráter fundamental em termos ontológicos; para o autor, a estrutura do ser humano é a do ser-no-mundo, i. e., a da abertura, como elemento integrante e distintivo do "ser-o-aí" [Dasein]. Significa isso que a consciência deve ser entendida como um elemento subsidiário de tal estrutura; dito de outro modo, e nas palavras de Heidegger (1987, p. 259 apud Loparic, 2001, p. 105): "A consciência pressupõe sempre o ser-o-aí e não o contrário. Saber e ser consciente movem-se já na abertura do aí, sem a qual não seriam possíveis de modo algum." Esta perspectiva, em oposição às de Descartes, do idealismo e da fenomenologia husserliana, permite sustentar que o estudo científico do ser humano [Wissenschaft vom Menschen (Heidegger, 1987, p. 178 apud Loparic, 2006b, p. 7)] deve eleger como foco não a consciência e aquilo que nela se dá, mas antes as estruturas ontológicas fundamentais (Loparic, 2001, p. 105).

Do ponto de vista de Heidegger, o existir humano, na sua singularidade e irredutibilidade, não se encontra sujeito ao condicionamento nem à influência determinística associados a fatores causais; ele acha-se, ao invés, enraizado "num acontecer no mundo", que é de ordem histórica, ou "acontecencial", e não causal (Loparic, 2001, p. 106). Por conseguinte, o envolvimento do sujeito com a existência não pode ser entendido como um encadeamento de "vivências" [descritas por Loparic (2001, p. 106) como "atos psíquicos representacionais, carregados afetivamente"] que se sucedem num tempo linear e quantificável, pois tal compreensão implica uma apropriação indevida da especificidade inalienável da esfera do existir, i. e., a redução da esfera do existir ao domínio da representação, com o caráter parcelar e, de algum modo, "secundarizante" que é o desse âmbito representacional relativamente ao existir, no seu modo característico e inapropriável de se dar (Loparic, 2001, p. 106). Nesta perspectiva, é, pois, o existir, e não a representação [do existir], que deve ser alvo de consideração quando se trata de atender integralmente à particularidade da experiência que cada sujeito faz de si mesmo e da sua vida (Loparic, 2001, p. 107).

No que se reporta à visão objetificante sobre a realidade, Heidegger questiona radicalmente a redução do âmbito da natureza àquilo que é calculável, na sequência da concepção de natureza formulada por Galileu, que dava primazia aos conceitos de espaço, tempo, movimento e causalidade (Loparic, 2001, p. 107). Segundo Heidegger, como enfatiza Loparic (Loparic, 2001, p. 107), para tornar algo calculável é necessário apreendê-lo e fixá-lo do ponto de vista da "representação". Apesar de a constituição da representação poder ser considerada, intrinsecamente, um processo redutor daquilo que é representado, é através da mesma representação que se assegura a possibilidade de levar a cabo operações de medida, cálculo, previsão e controle, com efeito sobre isso mesmo que é alvo do processo representacional.

Para Heidegger, um dos traços mais salientes da época moderna é, precisamente, o encapsulamento de cada vez mais âmbitos da realidade e da experiência na representação (tal como o autor a conceitualiza), a qual acaba por constituir um expediente instrumental, i. e., um recurso que visa fins determinados de antemão (subsumidos na manipulação das coisas e da realidade) e em nenhum momento se desvia desses fins. Com o avanço da ciência e da técnica, aquilo a que anteriormente podia ser atribuída a designação de "nexo de causalidade" passou a tomar o nome de "informação", desenvolvimento que, na perspectiva heideggeriana, prolonga e amplifica a tendência de afastamento, de perda de contacto vital e de apagamento da experiência de abertura e atenção à existência, aos outros seres humanos, às coisas e ao mundo (Heidegger, 1987, p. 96 apud Loparic, 2001, p. 107; Loparic, 2001, p. 107). A importância desmesurada que a informação veio a tomar no mundo atual (no século XX, época em que Heidegger escreve, e mais ainda no século XXI, que tem sido palco do reforço da posição hegemônica ocupada pela ciência e pela técnica, a par de uma desvalorização e subalternização de outras perspectivas e fontes de constituição do saber) reflete, para Heidegger, o fato de a cibernética constituir o epítome da ciência moderna, enquanto "teoria do controle do fluxo de informação nas máquinas e nos animais" (Loparic, 2001, p. 107).6 E Heidegger considera que a informação, multiplicada e disseminada, "tem a peculiaridade de nos impedir, de maneira radical, precisamente o acesso à forma, à Gestalt, ao que é próprio do ser dos entes" (Heidegger, 1987, p. 75 apud Loparic, 2001, p. 108).

Com efeito, tal como faz notar Loparic, a ascensão da cibernética trouxe consigo uma valorização do conceito de "aparelho", o que aprofunda o processo de objetificação do ser humano, fazendo-o mover-se da naturalização (que resultava da visão da natureza defendida por Galileu, por intermédio da qual se tornava legítimo conceitualizar o homem como ser sujeito a um espaço e a um tempo lineares e unidirecionais, e logo condicionado por nexos de causalidade, à semelhança de qualquer outro fenômeno "natural") à "mecanização", em que o corpo e a mente humanos passam a ser encarados (e também, na sequência disso, tendencialmente vivenciados) enquanto aparelhos, máquinas (Loparic, 2001, p. 108). Assim, em semelhante cenário, quando se trata de procurar compreender o ser humano, o âmbito da consciência e da subjetividade vai perdendo terreno, em favor do modo de funcionar da máquina, e, em particular, do computador (como máquina exemplarmente capaz de manipular informação). Corre-se, consequentemente, o risco de uma objetificação total do ser humano, de uma completa "coisificação" do homem, que, inteiramente reduzido ao estatuto de "coisa", passa a poder ser tecnologicamente engendrado (Loparic, 2001, p. 109).

Na sua apresentação dos aspectos que compõem a crítica de Heidegger à metafísica da subjetividade e à metafísica da natureza, Loparic mostra, enfim, que a "coisificação" do humano tem vindo a adquirir contornos cada vez mais densos desde o início da revolução científica. Pode dizer-se que essa coisificação começa por dar-se como objetificação, tomando depois a forma de uma naturalização, à qual se segue uma "mecanização", consubstanciada sobretudo em "informatização" (Loparic, 2001, p. 110). E dado que cada vez mais aspectos relativos ao ser humano e à natureza vão sendo informatizados, tudo começa a ser tendencialmente compreendido na qualidade de "artefato", inclusivamente aquilo que a natureza produz (Loparic, 2001, p. 110). Neste processo, o desenvolvimento de novas técnicas leva o homem a crer que ele mesmo é capaz de igualar ou superar a natureza como produtora de artefatos; os "artefatos da natureza" vão, assim, cedendo terreno, em termos de importância, aos "artefatos da técnica", e a esfera da técnica, intensificando a sua atuação e conquistando cada vez maior poder sobre o âmbito do humano, torna-se responsável pela modificação acentuada do modo como o próprio homem se entende a si mesmo. Nas palavras de Loparic (2001, p. 110): "a realidade humana passa a ter o sentido de surrealidade ou super-realidade [...] o homo naturalis cede progressiva e como que fatalmente seu lugar ao homo virtualis". Isto conduz à constatação paradoxal de que a exacerbação do materialismo vai conduzir ao seu oposto: uma espécie de "desmaterialização" generalizada, entendida como uma demarcação, um afastamento relativamente às especificidades e à consideração do caráter acabado e inultrapassável dos processos materiais que ocorrem na "natureza". A técnica afirma-se, então, como um poder que se julga capaz de emular a própria natureza, e mesmo de ultrapassá-la, i. e., de, por assim dizer, fazer melhor do que ela já faz.

Heidegger, na sequência das suas críticas à metafísica da subjetividade (Loparic, 2001, pp. 105-107) e à metafísica da natureza (Loparic, 2001, pp. 107-111), mostra-se, portanto, totalmente contrário à conceitualização da existência do homem nos termos de uma cadeia de representações, que se organizam no espaço, se sucedem no tempo e se encontram linearmente sujeitas à lei da causalidade (Loparic, 2001, p. 111). Para Heidegger, o existir humano, na sua singularidade, não pode ser reduzido, cristalizado, encapsulado no âmbito da representação, uma vez que essa visão possui, na sua perspectiva, uma propensão objetificante. As consequências nefastas do fato de as tendências de objetificação, naturalização e mecanização do existir humano terem, na época moderna, tomado a primazia, dão, segundo a perspectiva do autor, testemunho do seu caráter equivocado, o que, ao mesmo tempo, mostra a necessidade de cederem o seu lugar a uma abordagem completamente distinta.

É nesta posição de Heidegger que se radicam, enfim, as suas críticas à teoria clínica de Freud (Loparic, 2001, pp. 111-121) e à sua metapsicologia (Loparic, 2001, pp. 121-129).

3.1.3. A crítica de Heidegger à psicanálise de Freud

Heidegger contesta o modo como Freud, na sua psicologia clínica, se apoia permanentemente numa visão objetificante dos domínios da experiência de si e das relações com os outros, sem atender à sua singularidade e irredutibilidade, mas encarando-os, por intermédio do conceito de psiquismo, como esferas compatíveis com o perfil e as metodologias típicos de uma ciência empírica. Freud apropria-se da esfera do existir humano mobilizando esse conceito, através do qual submete a especificidade das vivências individuais ao âmbito da representação, que Heidegger vê como demasiado restrito (e, logo, também restritivo). Esta perspectiva não pode, segundo Heidegger, servir de base a uma "ciência factual [...] da natureza humana" (Loparic, 2001, p. 112), que, em contraste com a psicanálise na sua condição de ciência empírica, de feição objetificante e naturalista, seja capaz de atender à particularidade e ao caráter originário dos fenômenos ontológicos, inseparáveis da inscrição do ser humano na sua circunstância, i. e., inerentes à condição do homem como ser-com-os-outros e ser-no-mundo, e, logo, inapropriáveis por qualquer tipo de representação (Loparic, 2001, pp. 112-113).

Para Heidegger, o posicionamento de Freud é inadequado, uma vez que reitera uma visão naturalista das vivências do sujeito, objetificando a subjetividade através do conceito de psiquismo e procurando, nessa medida, identificar as causas dos fenômenos psíquicos observados. Heidegger, ao invés, preconiza, com a sua fenomenologia, não a busca de explicações causais, mas a interpretação das vivências enquanto expressões concretas do ser-com-os-outros e do ser-no-mundo (Loparic, 2001, pp. 113-114).

Demarcando-se de Freud, Heidegger chama, consequentemente, a atenção para a necessidade de estabelecer uma distinção clara entre ciências factuais empíricas (de caráter objetificante) e ciências factuais experienciais (de caráter não-objetificante) (Loparic, 2001, p. 114). Se a psicanálise freudiana, enquanto ciência da natureza, se enquadra, segundo Heidegger, na primeira das categorias, o autor considera que a sua perspectiva, fundada numa analítica do Dasein, requer, como refere Loparic (2001, p. 114), a constituição de uma "ciência do homem, ciência inteiramente nova", passível de ser inscrita na segunda das categorias.

Loparic chama a atenção para o fato de Heidegger propor uma redescrição de conceitos da psicologia clínica usados por Freud ou mesmo específicos da sua perspectiva psicanalítica, tais como os de esquecimento (Loparic, 2001, pp. 112-113), representação (Loparic, 2001, pp. 114-115), afeto (Loparic, 2001, pp. 115-116), introjeção (Loparic, 2001, p. 116), projeção (Loparic, 2001, p. 116), regra fundamental (Loparic, 2001, p. 117), repressão (Loparic, 2001, pp. 117-118; p. 119) transferência (Loparic, 2001, pp. 119-120) ou história psicanalítica de vida (Loparic, 2001, p. 120). A redescrição destes (e de outros) conceitos clínicos freudianos não pretende de modo algum anular a validade nem a relevância dos fatos clínicos tais como Freud os estabelece, mas antes, pela reconstrução da linguagem através da qual são conceitualizados, sair, precisamente, do quadro das referidas ciências factuais empíricas, transitando para o domínio das ciências factuais experienciais (Loparic, 2001, pp. 120-121). Com efeito, ao reconhecer que o quadrante epistemológico que verdadeiramente pode legitimá-la, e no qual ela pode ser exercida, não é o das ciências da natureza, mas sim o de uma ciência do homem [ainda inexistente, mas a constituir a partir da analítica do Dasein estabelecida por Heidegger (Loparic, 2001, p. 114)], a psicanálise, segundo o ponto de vista em discussão, passa, tal como sublinha Loparic (2001, p. 121), a ter a possibilidade de ampliar o seu conhecimento a respeito dos fatos clínicos. Ao abandonar uma postura redutora, objetificante, naturalista, e mesmo mecanicista, para passar a ter em conta a singularidade e o caráter irredutível das vivências do sujeito enquanto expressões concretas do ser-com-os-outros e do ser-no-mundo, a psicanálise, clarificando o campo epistemológico que de direito lhe pertence e afinando as metodologias e abordagens que mais se adequam ao novo modo de proceder consonante com esse reposicionamento, dispõe, então, de margem para aprofundar o seu "saber factual" (Loparic, 2001, p. 121).

A crítica de Heidegger à psicanálise freudiana, no âmbito específico da teoria clínica, indissociável da ideia da necessidade de recontextualizar a psicanálise num campo epistemológico distinto do das ciências empíricas, com o objetivo de permitir a redescrição dos fatos clínicos estabelecidos pela observação psicanalítica numa nova linguagem, já sintonizada com a particularidade do campo epistemológico no qual a psicanálise deve, segundo o autor, ser legitimamente enquadrada, tem como fundamento os seus duros reparos à teoria da representação (Loparic, 2001, p. 106; p. 114, n. 36; pp. 114-115).

Heidegger insiste que é indispensável observar que a representação é já um elemento pertencente a uma visão redutora dos modos de concretização do ser-com-os-outros e do ser-no-mundo. Ao contrário do que pretende uma abordagem objetificante e naturalista, no âmbito da qual o conceito de representação é um elemento central, quando se trata de entender as vivências do ser humano, não se lhes pode impor unilateralmente uma estrutura de significado prévia e rígida; é, antes, necessário captar a singularidade dessas vivências, o que, mais do que implicar um reconhecimento do seu caráter prévio à representação (tal como a concebe Heidegger), envolve a verificação da total incompatibilidade, em termos epistemológicos, entre o estatuto do conceito de representação e o dessas vivências propriamente ditas.

No que se refere à crítica heideggeriana à metapsicologia de Freud, Loparic explicita-a, nos seus tópicos mais relevantes, tal como é apresentada por Heidegger na obra Seminários de Zollikon, sistematizando-a em torno de três eixos: (1) a desconstrução do princípio da causalidade (Loparic, 2001, pp. 121-123), (2) a desconstrução da concepção freudiana de aparelho psíquico (Loparic, 2001, pp. 123-124) e (3) a desconstrução do conceito de pulsão (Loparic, 2001, pp. 124-129). Estes três eixos refletem, por conseguinte, a aplicação que Heidegger faz das suas críticas de fundo quer a respeito da metafísica da subjetividade, quer a propósito da metafísica da natureza, especificamente à componente metapsicológica da psicanálise freudiana.

Para expor o cerne da posição heideggeriana relativamente à metapsicologia de Freud, e preparando a elucidação da crítica de Heidegger face à hegemonização do princípio da causalidade, Loparic destaca uma afirmação-chave do autor na sua supramencionada obra. Escreve Heidegger: "A metapsicologia de Freud é a transferência da filosofia neokantiana para o ser humano. De um lado, ele [Freud] tem as ciências naturais e, do outro, a teoria kantiana da objetidade [sic]" (Heidegger, 1987, p. 260 apud Loparic, 2001, pp. 121-122). Heidegger argumenta, pois, que a metapsicologia é ainda herdeira da forma teorética de apreensão da realidade característica das ciências da natureza, cuja matriz Kant exemplarmente sistematizou. Em coerência com esse quadro de referência, no qual o princípio de causalidade ocupa um lugar central, Freud irá estudar a consciência humana de acordo com a lógica determinista referente à associação entre causas e efeitos. Introduzirá, assim, o conceito de inconsciente, para assegurar a possibilidade de explicar dados clínicos que de outro modo permaneceriam sem explicação aparente (Loparic, 2001, p. 122).

Heidegger reivindica que a posição de Freud assenta no pressuposto errôneo segundo o qual o modo teorético de apreensão do real tem a primazia sobre os restantes, porque só esse regime, fazendo valer o princípio da razão suficiente, é capaz de identificar causas, e, desse modo, só ele se encontra em condições de caucionar a realidade efetiva de algo. Contudo, Heidegger replica que essa forma de proceder, típica das ciências da natureza, e que se limita à reiteração de um ponto de vista meramente teorético relativamente àquilo sobre que se debruça, se adequa unicamente ao estudo "dos entes que são coisas e, além disso, coisas objetificadas" (Loparic, 2001, p. 123). Quando se admite de antemão a possibilidade de aplicar sem reservas esse ponto de vista teorético ao ser humano, está-se a tomar por garantido que ele, particularmente no plano das suas vivências, pertence também ao domínio das coisas objetificadas, o que para Heidegger constitui um grave equívoco. Na perspectiva heideggeriana, como Loparic realça, "o ser humano não é coisa alguma; num certo sentido, não é nem mesmo um ente, mas um acontecente, cujo acontecer não é um processo causal" (Loparic, 2001, p. 123).

Fica, assim, claro que para Heidegger o ser humano não é redutível ao estatuto de "coisa", porque aquilo que constitui o traço distintivo do homem é a esfera das suas vivências, e estas, na sua singularidade, e na qualidade particular que assumem para cada sujeito, jamais podem ser captadas e esgotadas meramente segundo um esquema explicativo, numa lógica baseada na identificação de causas.

Observa-se, então, que a crítica dirigida à metapsicologia de Freud, logo no que toca à recusa da legitimidade de mobilizar o princípio da causalidade para estudar o ser humano naquilo que o distingue (a esfera das suas vivências), envolve fundamentalmente, da parte de Heidegger, uma reafirmação da necessidade de reconhecer a singularidade, autonomia e irredutibilidade do âmbito do existir. Esse reconhecimento deve ser acompanhado por uma separação clara face ao campo daquilo que pode ser tomado como "objeto", a par da clarificação de que o exercício legítimo da abordagem teorética, própria das ciências da natureza, deve restringir-se aos limites desse plano do "objetificável", sem a reivindicação da validade da ideia de poder também estender-se, sem prejuízo (i. e., de maneira anódina, inofensiva, sem consequências danosas), a outros âmbitos, qualitativamente distintos e de ordem completamente diversa.

Heidegger, como mostra Loparic, critica também a concepção de aparelho psíquico proposta por Freud nas suas duas tópicas. Para Heidegger, o procedimento de Freud consiste numa tentativa de espacializar aquilo que não pode ser submetido ao esquema do espaço: o existir humano. Segundo a posição heideggeriana, a perspectiva tópica de Freud, implicando a transposição da existência para o espaço euclidiano, favorece a mecanização daquela (Loparic, 2001, p. 123).

A concepção de aparelho, de acordo com a posição heideggeriana, é mais um elemento a traduzir a inscrição de Freud na mundividência das ciências da natureza. Essa concepção serve, com efeito, o entendimento da esfera das vivências do sujeito (aquilo que Freud designa como "psiquismo") segundo uma abordagem mecanicista (e, como tal, redutora e sobressimplificada) (Heidegger, 1987, p. 24 apud Loparic, 2001, p. 124).

Juntamente com esta estratégia de espacialização do psiquismo, Heidegger faz também notar, como Loparic observa, o caráter "a-histórico" e "a-temporal" do aparelho psíquico, o que deixa de lado a consideração do tipo particular de temporalidade do ser-no-mundo, e da historicidade que lhe é inerente. Atente-se no seguinte trecho de Loparic, que resume bem as objeções de Heidegger ao conceito de aparelho psíquico:

[...] a concepção de aparelho psíquico não pode ser tomada por genuína, visto que o homem não é nem uma máquina, nem um psiquismo, mas um ser-no-mundo, caracterizado por uma temporalidade originária extática, não redutível ao espaço externo matemático-físico, e por uma acontecência, não submetida ao princípio da causalidade (Loparic, 2001, p. 124).

No que se reporta, enfim, à crítica heideggeriana ao conceito de pulsão, Loparic esclarece que Heidegger chama a atenção para o fato de esse conceito decorrer diretamente da assunção por Freud do princípio da causalidade característico das ciências naturais. Deste princípio deriva, desde logo, a presunção de que os fenômenos psíquicos podem ser explicados, e que essa explicação é detentora de um alcance universal (Loparic, 2001, p. 124). Depois, da aplicação dessa presunção ao estudo da consciência humana resulta a ideia de que as descontinuidades, ou omissões, da consciência, podem ser explicadas pela atuação de um tipo particular de "forças", que tomam o nome de pulsões. Trata-se da chamada "explicação dinâmica" (Loparic, 2001, p. 124). Quer a ideia da explicabilidade universal dos fenômenos psíquicos, quer a ideia da explicação dinâmica (no caso de Freud, referente, em concreto, às descontinuidades da consciência), fazem parte, como Heidegger (1987, p. 31 apud Loparic, 2001, p. 124) sustenta, do legado de Kant.

Heidegger recusa a aplicabilidade do conceito de pulsão ao estudo das vivências do ser humano, nomeadamente de "fenômenos ônticos como o querer, desejar, pender e pressionar" (Loparic, 2001, p. 125). Para o autor, as pulsões constituem um conceito típico de uma abordagem científica, objetificante até ao extremo do mecanicismo, não se adequando, como tal, ao estudo dos fenômenos humanos. Atente-se nas palavras do próprio Heidegger:

As tentativas de explicação de fenômenos humanos a partir de pulsões têm o caráter metodológico de uma ciência, cuja região temática não é o ser humano, mas sim a mecânica. Por isso, é fundamentalmente discutível, se um método, tão determinado por uma objetividade não-humana, pode, na verdade, ser apropriado para enunciar o que quer que seja sobre o ser humano enquanto ser humano (Heidegger, 1987, p. 217 apud Loparic, 2001, p. 126).

A rejeição heideggeriana do conceito de pulsão é indissociável da recusa da ideia de uma "psique", que subsiste por si mesma como entidade de algum modo independente. Para Heidegger, trata-se aqui, mais uma vez, do reflexo de uma mesma abordagem equivocada, assente na pressuposição da legitimidade de estudar a esfera das vivências subjetivas e do existir a partir dos conceitos e perspectivas próprios das ciências da natureza. A "entificação", ou objetificação, de uma psique, e a postulação da existência de pulsões, não deixam, de acordo com Heidegger, perceber que a esfera do existir e das vivências subjetivas não pode ser separada da interação, sempre variável, com os outros e com o mundo, e que é exatamente a partir do prisma dessa interação, e não do da atuação de pulsões, que depende um entendimento adequado de dinamismos como "o querer, o desejar, o pender e o pressionar" (Heidegger, 1987, p. 217 apud Loparic, 2001, p. 127; Loparic, 2001, p. 131). Dito de outro modo, segundo Heidegger, estes dinamismos são inseparáveis da particularidade do ser-com-os-outros e do ser-no-mundo, i. e., da imersão do Dasein numa circunstância sempre relacional, e da abertura, constitutiva do próprio Dasein, ao caráter permanentemente em devir dessa mesma circunstância. Está-se diante daquilo que Heidegger designa como "estrutura do cuidado" (Heidegger, 1987, p. 217 apud Loparic, 2001, p. 127), e os dinamismos mencionados (concernentes ao querer, desejar, pender e pressionar) podem ser, como faz notar o autor, tomados enquanto transformações dos três momentos que fazem parte da estrutura do cuidado: "ser-adiante-de-si", "ser-desde-sempre-já" e "ser-junto" (Heidegger, 1987, p. 219 apud Loparic, 2001, p. 127).

Em suma, com base no ponto de vista de Heidegger, é legítimo afirmar que a psicanálise de Freud, na sequência da sua inscrição no campo epistemológico das ciências da natureza, ao impor sobre a esfera do existir uma estrutura conceitual que não se adequa à compreensão da sua especificidade, mas antes a reduz e como que desintegra, não pode ser sensível ao fato de aqueles mesmos dinamismos do querer, do desejar, do pender e do pressionar dependerem, em razão da sua conexão à "circunstância", não tanto de algo que esteja localizado como que a montante da experiência de si atual (as pulsões), mas mais de uma orientação, que é inerente ao existir, para algo que se encontra sempre "adiante" (Heidegger, 1987, p. 217 apud Loparic, 2001, p. 126). Nas palavras de Loparic (2001, p. 128): "Em termos temporais, o Dasein é movido, "motivado" pelo futuro, e não causalmente "determinado" pelo passado".

Heidegger não recusa que o passado exerça também uma influência significativa sobre a experiência de si no presente e sobre a projeção de si no futuro. Referindo-se a esse aspecto na sua obra Ser e Tempo, o autor, tal como Loparic (2001, pp. 128-129) recorda, considera que o passado não pode, efetivamente, ser dissociado da orientação para aquilo que se encontra adiante, e que é constitutiva do existir. Contudo, essa

influência consubstancia-se no fato de o ser humano apenas se encontrar adequadamente orientado para o futuro, para aquilo que está adiante de si, ao enraizar-se no seu próprio passado, i. e., tomando aquilo que já foi como ponto de partida para uma abertura àquilo que virá (Loparic, 2001, pp. 128-129). Trata-se, pois, de ver no passado não um fator determinístico, uma força inevitavelmente condicionadora e limitativa, mas antes um elemento propiciador daquela abertura ao que se encontra adiante, e que "lança" o indivíduo ao encontro do, e no, porvir.

 

* * *

 

As críticas de Heidegger à psicanálise freudiana, tendo sido capazes de expor as limitações e a fragilidade dos seus "pressupostos ontológicos centrais" (Loparic, 2001, p. 132), vieram, como refere Loparic (2001, pp. 132-133), lançar ao movimento psicanalítico um desafio de renovação e reconfiguração, no sentido de o incitar a superar a metafísica da subjetividade e a metafísica da natureza que marcaram o contributo pioneiro de Freud. A desconstrução destes pressupostos metafísicos por Heidegger é já sugestiva de caminhos novos para a psicanálise, no sentido de esta se tornar capaz de adotar explicitamente um perfil mais condizente com o retrato esboçado por Loparic:

Ao invés de se dedicar ao conserto de "aparelhos" e de "mecanismos" psíquicos - "programados" pela natureza ou pelo acaso, sendo, de acordo com a interpretação cibernética, "reprogramáveis" com a ajuda dos psicanalistas -, a psicanálise terá recuperado a chance de se ocupar de seres humanos que têm dificuldade em crescer e em exercer a sua liberdade (Loparic, 2001, p. 133).

Ora, Loparic (2006b, p. 9; p. 16) crê que a psicanálise winnicottiana vai ao encontro dos requisitos estabelecidos por Heidegger para uma nova ciência do homem que seja capaz de desencadear uma libertação das amarras dos anteriores alicerces metafísicos. Deste ponto de vista, Winnicott consegue, assim, que a psicanálise deixe de ser uma ciência factual empírica (como tinha sido a psicanálise freudiana) e se converta numa ciência factual experiencial.

Para compreender de que modo Loparic entende que Winnicott é bem-sucedido a operar esta transição crucial, far-se-á em seguida alusão a quais são, na perspectiva de Loparic, os traços mais marcantes da nova ciência do homem que Heidegger propõe, para depois observar a articulação efetuada por Loparic entre o pensamento de Heidegger e a psicanálise winnicottiana.

3.2. A compreensão filosófica da psicanálise de Winnicott à luz do pensamento de Heidegger

3.2.1. A proposta de Heidegger de uma nova ciência do homem

Pode dizer-se que a nova ciência do homem delineada por Heidegger decorre do projeto filosófico inscrito em Ser e Tempo. Dedicando-se à determinação da estrutura ontológica do ser humano, as investigações conduzidas nessa obra permitem "explicitar as condições de possibilidade a priori de realização de uma vida humana" (Loparic, 2001, p. 106, n. 26). É deste horizonte que a nova ciência mencionada irá ocupar-se, mas já caracterizada, ao contrário da psicologia tradicional (Loparic, 2001, p. 114, n. 34; 2001, p. 114) e da psicanálise freudiana, por uma abordagem não-objetivista, não-naturalista e não-mecanicista, i. e., por uma orientação pós-metafísica, em que se busca assegurar o reconhecimento da especificidade das vivências do ser humano e do seu existir, sem reduzi-los ao mero estatuto de "objetos" passíveis de algum tipo de quantificação ou de acomodação a uma lógica de causalidade linear e determinista.

Dirigindo-se esta nova ciência do homem à compreensão das condições de possibilidade a priori de realização da vida humana, as implicações que contém para pensar aspectos como a doença psíquica ou a relação terapêutica são, como destaca Loparic, significativas.

Loparic chama a atenção para o fato de o ponto de vista daseinsanalítico de Heidegger permitir conceber a doença psíquica enquanto "privação da "adaptação" e da "liberdade", decorrente de uma perturbação da relação existencial-ôntica com o mundo" (Heidegger, 1987, p. 256 apud Loparic, 2001, p. 133; Loparic, 2001, p. 133). A perturbação desta relação existencial-ôntica com o mundo pode, segundo Heidegger, resultar de problemas a dois níveis: (1) rutura ou ausência de determinados elementos (i. e., problemas respeitantes àquilo a que Heidegger atribui a designação de "conexão instrumental"); (2) perda do amparo por parte da mãe (Loparic, 2001, p. 134). Pode dizer-se que ambas as classes de problemas dão origem a uma modificação do ser-no-mundo: (1) a primeira resulta numa mudança do "ser-junto-das-coisas" inerente ao ser-no-mundo; (2) a segunda provoca uma alteração do "ser-com-outros" que é também parte integrante do ser-no-mundo (Loparic, 2001, p. 134). Sendo, em ambos os casos, afetado o ser-no-mundo, é-o também o si-mesmo, uma vez que o primeiro não pode ser concebido sem o segundo, e ambos se constituem conjuntamente (Heidegger, 1987, p. 220 apud Loparic, 2001, p. 134). Esta disrupção do si-mesmo, como Loparic põe em evidência, coloca em risco a estabilidade do Dasein, ocasionando uma falha na "continuidade da acontecencialidade" (Heidegger, 1987, p. 256; pp. 288-289 apud Loparic, 2001, p. 134).

O modo de conceber a relação terapêutica a partir desta nova ciência do homem preconizada por Heidegger marca também uma diferença assinalável face a perspectivas diretamente inspiradas nas ciências da natureza. Assim, se a "doença psíquica", neste novo prisma, é compreendida, tal como acima se fez notar, enquanto privação da adaptação e da liberdade devida a perturbações na relação existencial-ôntica com o mundo, a terapia surge enquanto espaço propiciador de uma experiência efetiva "dos distintos modos fatuais de ser-no-mundo" (Loparic, 2001, p. 134). O dispositivo terapêutico destina-se, então, a promover "a concretização das estruturas ontológicas que possibilitam que o ser humano seja ser humano" (Loparic, 2001, p. 134), o que significa que a cura (ou mudança psicológica) passa a ser encarada como algo que depende muito mais da restauração da "relação adaptativa com o mundo" (Loparic, 2001, p. 134) e, pode também dizer-se, da reparação da capacidade de exercer a própria liberdade. A implicação ativa do terapeuta com a situação concreta do paciente e a atenção daquele à forma específica como este sente o seu mal-estar constituem, nesta abordagem, ingredientes fundamentais, desempenhando um papel-chave na catalisação da mudança.

Como Loparic (2001, p. 134) atesta, no âmbito da abordagem fenomenológico-existencial heideggeriana, o processo terapêutico não pode ser pensado meramente como contexto de aplicação e testagem de um saber teórico prévio e unilateral detido em exclusividade e mais ou menos imposto pelo terapeuta, e a cujos constrangimentos fossem submetidas as vivências do paciente, na sua particularidade. O que é considerado fundamental nesta abordagem é a abertura do paciente às possibilidades da sua vida, com a mediação, o suporte ativo e a dedicação do terapeuta, de modo a restaurar, a partir desse encontro, na intensidade e genuinidade devem caracterizá-lo, a integridade e o equilíbrio das estruturas ontológicas modificadas. O elemento que toma a primazia é, pois, o das vivências do paciente, na particularidade e intensidade com que se dão, sem serem sujeitas a qualquer forma de desvalorização, distorção ou apropriação redutora, uma vez que o mais importante é "o ser humano como tal enquanto dado na experiência de si" (Heidegger, 1987, p. 52 apud Loparic, 2001, p. 134).

 

* * *

 

Em Seminários de Zollikon, e mantendo sempre como referência a sua ontologia fundamental, vertida em Ser e Tempo, Heidegger recusa, pois, os pressupostos ontológicos subjacentes à "antropologia metafísica tradicional" (Loparic, 2006b, p. 13), que se perfila como uma antropologia de caráter naturalista (Loparic, 2006b, p. 14), ao encarar o ser humano enquanto "entidade natural e objetiva" (Loparic, 2006b, p. 13). Em lugar desta, o autor abre espaço a uma "antropologia daseinsanalítica" (Loparic, 2006b, p. 14), i. e., àquela já mencionada nova ciência do homem, ou "ciência daseinsanalítica do homem" (Loparic, 2006b, p. 13), retratando-a como "o todo de uma disciplina possível votada à tarefa de produzir uma apresentação concatenada dos fenômenos ônticos exibíveis relativos ao Dasein sócio-histórico e individual" (Heidegger, 1987, pp. 163-164 apud Loparic, 2006b, p. 12). Esta antropologia daseinsanalítica já não se ancora no método hipotético-dedutivo nem no método experimental (Loparic, 2006b, p. 11), mas privilegia, antes, uma abordagem descritiva, hermenêutica e histórica do ser humano (Loparic, 2006b, p. 14; p. 19), i. e., atende à particularidade das vivências, da relação com a circunstância e do permanente devir do homem, reconhecendo a especificidade de cada um desses elementos e o seu caráter não redutível a qualquer aproximação quantitativa e determinística. Ao invés de encarar o homem como objeto natural e de procurar identificar fatores de causalidade para explicar os fenômenos ou comportamentos próprios do ser humano, a antropologia daseinsanalítica distingue-se por referir sempre as experiências específicas de cada homem, nas situações concretas em que este se encontra permanentemente envolvido, à estrutura do Dasein (Loparic, 2006b, p. 13), interpretando-as de acordo com "contextos motivacionais concretos", e na sua ligação a "existenciais regionais e fundamentais" (Loparic, 2006b, p. 13). A antropologia científica daseinsanalítica proposta por Heidegger não conserva, portanto, qualquer cunho objetificante ou determinístico (Loparic, 2006b, p. 13); o seu objetivo declarado é, como afirma Heidegger (1987, p. 1999 apud Loparic, 2006b, p. 14), "ajudar as pessoas a alcançarem a meta da adaptação e da liberdade no mais amplo sentido", o que significa, nas palavras do próprio Loparic (2006b, p. 14), que "não tem por objetivo transformar o homem em objeto de interesse teórico, mas em [sic] ajudar os homens a realizar a sua verdadeira natureza".

A antropologia daseinsanalítica teria como componentes, segundo Heidegger, uma "antropologia normal" (Loparic, 2006b, p. 12), uma "patologia" (Loparic, 2006b, p. 12; p. 15) e ainda uma terapia (Loparic, 2006b, p. 15). Tais componentes do projeto heideggeriano não foram alvo de uma sistematização da parte do autor, tendo esse trabalho ficado em grande medida por realizar, mesmo apesar dos contributos paralelos de Medard Boss (1903-1990) e de Ludwig Binswanger (1881-1966) para o desenvolvimento da daseinsanálise (Loparic, 2006b, p. 16, n. 27).

O projeto antropológico em questão, organizado segundo os três eixos mencionados, permitiria manter uma visão englobante sobre o ser humano e a especificidade das suas vivências, sobretudo nas circunstâncias do chamado "adoecer psíquico", sem ceder, como ficou já claro, ao reducionismo e à parcialidade de uma abordagem objetificante e naturalista.

A constituição desses três eixos da antropologia daseinsanalítica implicaria, de acordo com Loparic, a definição de existenciais derivados (Loparic, 2006b, p. 13; p. 21), capazes de dar conta dos modos de manifestação mais concretos do Dasein em condições e contextos específicos, i. e., de esclarecer acerca dos "traços "regionais" dos fenômenos ônticos (Loparic, 2006b, p. 13). No conjunto destes existenciais derivados, ou "de nível inferior" (Loparic, 2006b, p. 15), podem contar-se, segundo Loparic, "os existenciais da saúde e da doença, dos vários tipos de doenças, da natureza das doenças, das defesas patológicas e das organizações defensivas" (Loparic, 2006b, p. 15), existenciais cuja dimensão histórica deve ser atendida (Loparic, 2006b, p. 15). Este conjunto de existenciais constituiria a "ontologia regional da psiquiatria" (Loparic, 2006b, p. 16), ou "ontologia regional da psicopatologia" (Loparic, 2006b, p. 21), e permitiria ao terapeuta identificar e interpretar aspectos patológicos discerníveis na história do indivíduo (Loparic, 2006b, p. 15).

A par destes, Loparic (2006b, p. 15) refere-se paralelamente a um outro existencial derivado, referente ao percurso biográfico individual. Este existencial forneceria ao terapeuta um contexto interpretativo específico, indispensável para dar sentido, de maneira adequada, aos problemas e questões surgidos no decurso da relação terapêutica com o paciente, ao garantir a possibilidade de nunca perder de vista a singularidade da sua história vivida.

Atendendo à perspectiva de Loparic, é legítimo afirmar que num contexto clínico inspirado por uma antropologia daseinsanalítica, o critério fundamental a ter em consideração é o de que "todos os fenômenos ônticos encontrados no relacionamento clínico devem ser compreendidos à luz dos modos particulares de ser no mundo que lhes deram origem" (Loparic, 2006b, pp. 15-16), e não tanto segundo princípios abstratos que se afastam das vivências e experiências do indivíduo, na sua especificidade.

3.2.2. A ontologia fundamental de Heidegger e a psicanálise de Winnicott

Em termos gerais, Heidegger, como se verificou, faz uma crítica da metafísica da subjetividade e da metafísica da natureza nas quais se radica a psicanálise de Freud. Apesar de rejeitar a componente metapsicológica da abordagem freudiana, Heidegger não descarta a componente da teoria clínica, dado esta ter um cunho mais descritivo e remeter para aspectos experienciais e observações pertinentes. Assim, propondo uma nova ciência do homem, Heidegger vislumbra a possibilidade de repensar radicalmente a psicanálise, reerguida sobre alicerces pós-metafísicos, dispensando o conceito de psiquismo e as especulações metapsicológicas de Freud (Loparic, 2001, p. 135). O que está em causa para Heidegger é, pois, simultaneamente (1) a necessidade de libertar a psicanálise da redução da subjetividade à condição de objeto (sob a forma de mente, psique ou consciência, tomadas enquanto elementos geradores de representações) e (2) a necessidade de deixar de conceber o ser humano à imagem das ciências da natureza, enquanto entidade submetida à ação linear de fatores de causalidade externos.

Assim, Heidegger começa a refundar o sentido da terminologia utilizada por Freud na sua psicologia clínica, ainda refém da metafísica da subjetividade e da metafísica da natureza (Loparic, 2001, p. 135), sugerindo com isso que as certeiras observações clínicas de Freud poderiam passar a ser vistas como elementos de um quadro de entendimento do ser humano diferente daquele em que Freud se movia. Heidegger, como recorda Loparic (2001, p. 135), incentivará Boss, na sua qualidade de médico e psicanalista, a levar por diante, no seu livro Grundriß der Medizin und der Psychologie [Fundamentos da Medicina e da Psicologia] (1971), o empreendimento de evidenciar a adequação e pertinência das reflexões desenvolvidas em Ser e Tempo, concernentes à analítica do Dasein, mediante a cuidadosa observação de dados clínicos e a subsequente articulação destes com essas reflexões. Contudo, de acordo com Loparic (2001, p. 136; 2006b, pp. 22-23), Boss não deu concretização cabal a esse empreendimento, já que, em vez de partir da sua experiência clínica para tornar manifesta a relevância da perspectiva fenomenológico-existencial de Heidegger, procurou adaptar as ideias heideggerianas diretamente ao âmbito clínico, procedendo da maneira inversa.

Neste contexto, Loparic (2001, p. 136) defende que foi a partir do interior da própria psicanálise que acabou por surgir o impulso (nascido sobretudo de uma verificação das limitações da abordagem freudiana no tratamento de certas condições clínicas) que conduziu a uma aproximação (de caráter involuntário) relativamente ao desígnio de Heidegger de criar condições para a constituição de uma nova ciência do homem. Para Loparic, Winnicott assumiu um papel central nessa reorientação (Loparic, 2001, p. 136; Barbosa, Campos & Neme, 2020, p. 137), que, como se observou anteriormente, Loparic encara enquanto expressão de um novo paradigma psicanalítico.

Segundo a perspectiva de Loparic (2001, p. 137), pode dizer-se que é possível encontrar afinidades entre Heidegger e Winnicott no que toca quer à vertente desconstrutiva quer à vertente construtiva que integram o pensamento de cada um dos autores.

No que concerne à vertente desconstrutiva, a crítica heideggeriana às bases filosóficas da psicanálise de Freud encontra, pois, paralelo na psicanálise de Winnicott. Em concreto, Loparic (2001, p. 137) considera que Heidegger e Winnicott partilham, neste âmbito, um reposicionamento face a três aspectos centrais da psicanálise freudiana: (1) a concepção de doença mental enquanto "falha" na consciência; (2) a concepção de inconsciente referida àquilo que é reprimido da consciência; (3) a metapsicologia, i. e., os elementos de caráter especulativo da teoria freudiana do funcionamento da psique.

Com efeito, para Heidegger, como acima se enfatizou, os "distúrbios psíquicos" são já encarados como resultado de uma "privação da "adaptação" e da "liberdade", decorrente de uma perturbação da relação existencial-ôntica com o mundo" (Heidegger, 1987, p. 256 apud Loparic, 2001, p. 133).

A distinção entre consciente e inconsciente é, como também se esclareceu, rejeitada por Heidegger, que nela vê o reflexo de uma concepção redutora, objetivista e naturalista das vivências do ser humano. A essa distinção, de acordo com o autor, está subjacente a ideia de que os fenômenos conscientes e inconscientes têm um caráter mental, psíquico, representacional (Loparic, 2001, p. 131). Contudo, para Heidegger os fenômenos visados por tal distinção devem, antes, ser entendidos na qualidade de modos de realização do ser-no-mundo do ser humano (Loparic, 2001, p. 131). O conceito de inconsciente, tal como é entendido por Freud, necessita, assim, do ponto de vista de Heidegger, de dar lugar ao conceito de "não-consciente originário", através do qual é possível ultrapassar as limitações inerentes à metafísica da subjetividade e à metafísica da natureza (Loparic, 2001, p. 129).

No que se refere à rejeição da metapsicologia freudiana, Heidegger preconiza, como também se fez notar anteriormente, que algo como a abordagem metapsicológica ceda o seu lugar a uma compreensão das estruturas ontológicas do ser humano, inacessíveis em termos empíricos, mas passíveis de apreensão no âmbito de uma perspectiva fenomenológica, e segundo os conceitos próprios da analítica do Dasein (Loparic, 2001, pp. 131-132).

Relativamente à compreensão de Winnicott acerca de cada um dos aspectos anteriores, pode dizer-se que ela mantém estreita afinidade com a abordagem heideggeriana.

A respeito da forma de entender os distúrbios psíquicos, na psicanálise de Winnicott estes nunca podem ser dissociados do processo de amadurecimento individual (Dias, 2008, pp. 32-33), pelo que a designação mais adequada que devem tomar é a de "distúrbios dos processos maturacionais" (Dias, 2019).

Quanto ao inconsciente, em Winnicott ele é visto, como também antes se observou, não enquanto inconsciente reprimido, à maneira de Freud, mas enquanto "não-acontecido", i. e., aquilo que deveria ter acontecido na vida do indivíduo em ordem a impulsionar o processo maturacional, mas não aconteceu (Loparic, 2001, p. 137, n. 61).

No que concerne à rejeição por parte de Winnicott dos conceitos especulativos de Freud (i. e., da sua metapsicologia), ela materializa-se numa linguagem descritiva da experiência individual nas diversas etapas do processo de amadurecimento (Loparic, 2001, p. 132, n. 54; Dias, 2019), i. e., numa linguagem que consegue "trazer a palavra aos fatos pertencentes aos mundos próximos da origem" e "descrever os ambientes nos quais se constitui o ser dos bebês humanos no período inicial do processo de amadurecimento" (Loparic, 2006a, p. 24). Loparic caracteriza de maneira exemplar esta característica tão marcante da linguagem a que Winnicott recorre na sua teoria:

Ao atentar para a multiplicidade de mundos criados e habitados pelos seres humanos ao longo do processo do amadurecimento, assim como para a diversidade de objetos e relações com os quais se vêem envolvidos, Winnicott reconheceu a necessidade de usar a multiplicidade dos dizeres a fim de falar desses mundos (Loparic, 2006a, p. 25).

A vertente construtiva das abordagens de Heidegger e de Winnicott materializa-se precisamente nesse uso que ambos fazem de uma nova linguagem, passo através do qual conseguem, cada um a seu modo, ir além da psicanálise de Freud, afastando-se da vertente especulativa desta e dando prioridade a uma aproximação descritiva, articulada em dois níveis: um nível ontológico e um nível ôntico, ou factual (Loparic, 2001, p. 137).

Estas afinidades entre as perspectivas de Heidegger e Winnicott, começando pela partilha de uma orientação pós-metafísica, levam Loparic não somente a considerar que a psicanálise winnicottiana pode ser lida à luz da filosofia de Heidegger (Loparic, 2006b, pp. 18-19), com o objetivo de "avaliar e articular filosoficamente o paradigma de Winnicott" (Loparic, 2006b, p. 21), como também a defender que a psicanálise winnicottiana pode desempenhar um papel significativo no desenvolvimento das já mencionadas antropologia, psicopatologia e terapia de inspiração daseinsanalítica (Loparic, 2006b, pp. 21-23), encontrando-se em condições de impulsionar de maneira decisiva a constituição da nova ciência do homem antevista por Heidegger (Loparic, 2006b, p. 23).7

Os elementos desconstrutivos e construtivos, acima descritos, que, na perspectiva de Loparic, Heidegger e Winnicott partilham na sua abordagem à psicanálise freudiana e na sua compreensão do ser humano, podem, segundo Loparic, ser correlacionados e entendidos enquanto reflexo de uma mesma posição filosófica fundamental a respeito do ser humano.

Com efeito, em primeiro lugar, de acordo com Loparic (2006b, p. 17) pode dizer-se que a generalização-guia de psicanálise de Winnicott, referente, como anteriormente se fez notar, à teoria do amadurecimento, não é objetificante nem naturalista, ou determinística, tal como Heidegger preconiza para a sua antropologia daseinsanalítica. Loparic sublinha que a teoria do amadurecimento não encara o desenvolvimento do indivíduo como um processo estritamente "natural", mas toma-o como "manifestação da natureza humana", fundamentalmente marcada pelas necessidades de "continuar a ser" e de "ser um si-mesmo independente", as quais, precisamente, não são, como acentua Loparic, característica específica de mais nada para além da natureza humana (Loparic, 2006b, p. 17).

Outro aspecto da psicanálise winnicottiana que, para Loparic (2006b, p. 18), dá testemunho do seu caráter não objetificante e não-naturalista diz respeito ao seu modelo ontológico. Segundo este, a existência é concebida como tendo origem na não-existência, e o ser como emergindo a partir do não-ser [que, em Winnicott, constitui uma dimensão de direito próprio, em oposição à metafísica tradicional (Loparic, 2006b, p. 18)]. Como salienta Loparic (2006b, p. 18), essa asserção implica considerar que há em cada ser humano uma inquietação permanente relativamente à sua condição de "solidão essencial", situada, em última instância, em cada um dos extremos do ciclo vital entre os quais o processo de amadurecimento se desenrola. Essa inquietação, como refere Loparic (2006b, p. 18), é específica do ser humano, o que mostra inequivocamente que a concepção de Winnicott acerca do homem mantém um cunho não-naturalista, i. e., passa por considerar que o ser humano não pode ser encarado nos mesmos moldes usados para entender outras criaturas e fenômenos da natureza. Adicionalmente, este aspecto da psicanálise winnicottiana permite perceber como a visão de Winnicott sobre o homem não é compatível com o conceito de causalidade, uma vez que, como Loparic (2006b, p. 18) também sublinha, nenhum nexo causal pode estabelecer qualquer tipo de articulação entre o não-ser e o ser. Atente-se nas palavras do próprio Loparic, que na seguinte passagem resume de maneira bastante clara as ideias anteriormente expostas, fazendo um nítido contraste entre a psicanálise de Freud e a psicanálise de Winnicott:

Em Freud, o desenvolvimento humano tem lugar na natureza e obedece às leis naturais gerais, em particular a lei da causalidade (que assume a forma do princípio do prazer com sua extensão, o princípio da realidade). Em Winnicott, tornar-se uma pessoa deve-se à necessidade não-causal de ser, que só pode vingar na presença devotada igualmente não-causal de outros seres humanos. O processo de amadurecimento é concebido como uma história humana, não como uma seqüência [sic] de eventos natural e determinística (Loparic, 2006b, p. 18).

Em suma, segundo Loparic (2006b, pp. 18-19), Winnicott é, à semelhança de Heidegger, um pensador não metafísico, ou pós-metafísico. Isto porque, tal como faz Heidegger na sua ontologia fundamental, Winnicott já não pensa o não-ser a partir do ser, mas propõe, antes, que se encare o ser como algo que emerge a partir do não-ser.

Por outro lado, Loparic (2006b, p. 19) faz notar que Winnicott utiliza "regras heurísticas" distintas das de Freud, passando a encarar a regra fundamental de maneira mais limitada e não aceitando, como também acima se pôde verificar, a metapsicologia. O que é específico da abordagem winnicottiana é a descrição e interpretação dos fenômenos que são próprios daquilo a que se chama "normalidade" e daquilo que, em oposição, se designa como "patologia", sem transigir em qualquer terminologia sugestiva de uma abordagem metapsicológica, e enquadrando sempre tais fenômenos no processo de amadurecimento. Essas características são, para Loparic (2006b, p. 19), indicativas de que a psicanálise winnicottiana concretiza "uma versão particular da hermenêutica temporal da facticidade humana", i. e., de que Winnicott se aproxima dos termos da perspectiva da analítica existencial heideggeriana.

Outro dos pontos que para Loparic (2006b, p. 19) sugerem a concordância entre as abordagens de Winnicott e Heidegger está associado ao entendimento subjacente de Winnicott acerca do conceito e dos valores da psicanálise. Ao passo que para Freud o que está em causa no processo psicanalítico parece ser a adaptação estrita do paciente à realidade externa e a restauração da possibilidade de este ter experiências prazerosas, para Winnicott o fundamental reside, antes, na experiência vital de um sentido para a existência, i. e., "se vale ou não a pena viver a vida" (Loparic, 2006b, p. 19). Assim, o tratamento psicanalítico passa a ter como finalidade criar progressivamente as condições que reforcem a capacidade dos indivíduos de serem eles mesmos (no sentido de definirem uma identidade pessoal), de experimentarem com autenticidade aquilo que é próprio do viver, de integrarem e exercerem um controlo equilibrado sobre a dimensão dos instintos e de fazerem face, de maneira confiante e construtiva, aos problemas que a vida humana constantemente coloca (Winnicott, 1958, p. 304 apud Loparic, 2006b, pp. 19-20).

Também este aspecto, ao evidenciar como a atenção de Winnicott recai sobre as condições de possibilidade para se "ser" um ser humano, sem se deter (como, de certo modo, sucede em Freud) na simples homeostasia psíquica, é, pois, indicativo da aproximação da psicanálise winnicottiana à ontologia fundamental de Heidegger, na forma como esta procura preservar a consideração da especificidade do existir e da sua irredutibilidade aos esquemas de análise próprios das ciências naturais, baseados na objetificação, num conceito linear de causalidade, na medida e no cálculo.

Finalmente, também o contraste entre os exemplares próprios da teoria de Freud e da de Winnicott indicia, para Loparic, uma afinidade da psicanálise winnicottiana com a perspectiva de Heidegger. Como se pôde observar em seção prévia do presente artigo, o exemplar da psicanálise freudiana é a situação triangular ("o problema de três corpos", respeitante ao complexo de Édipo, ao passo que o da psicanálise winnicottiana consiste na situação dual ("o problema dos dois corpos"), ligada ao bebê no colo da mãe (Loparic, 2006b, p. 20). Portanto, em Freud o foco incide sobre o conflito entre individualidades plenamente constituídas; em Winnicott, sobre os cuidados prestados pela mãe ao bebê, e que, em função da sua qualidade, podem ou não ir ao encontro das necessidades deste e proporcionar-lhe as condições facilitadoras do seu amadurecimento (Loparic, 2006b, p. 20), i. e., atuar ou não enquanto catalisadores da progressiva transformação do bebê de ser totalmente dependente dos cuidadores, não integrado e não individualizado, em ser relativamente independente, dotado de uma estrutura psicológica ao mesmo tempo coesa e flexível, e de uma individualidade claramente delimitada. A consideração dos exemplares de cada uma das teorias mostra a forma qualitativamente distinta como Freud e Winnicott encaram o problema da origem dos distúrbios psíquicos. Na psicanálise freudiana, a perturbação surge na sequência de uma inadequada resolução dos conflitos libidinais ocorridos no interior da relação triangular; na psicanálise winnicottiana, ela é já vista como o reflexo da insuficiência na qualidade dos cuidados prestados pela mãe, e que desencadeiam interrupções mais ou menos danosas na continuidade de ser do bebê (Loparic, 2006b, p. 20). Isto mostra também, segundo Loparic, como o paradigma da psicanálise winnicottiana, à imagem da perspectiva de Heidegger e da sua proposta de uma antropologia daseinsanalítica, se concentra especificamente na questão do ser, e que é em torno dessa questão que a própria origem da patologia é considerada, como consequência "de modos inadequados de ser com os outros, no interior do relacionamento de dependência constitutivo dos seres humanos" (Loparic, 2006b, p. 20).

 

4. Conclusão

Apesar da natureza exaustiva das suas análises em torno da problemática sobre a qual se debruça o presente trabalho, Loparic (2006b, p. 20) sublinha o caráter ainda provisório dos resultados da sua pesquisa, considerando que eles não permitem (na forma como os explora nos artigos citados) provar incontestavelmente que a perspectiva de Winnicott efetivamente inaugurou um novo paradigma em psicanálise, ou que o pensamento winnicottiano vai categoricamente ao encontro da ontologia fundamental de Heidegger e cumpre inteiramente os requisitos do projeto heideggeriano de uma antropologia, de uma psicopatologia e de uma terapia daseinsanalíticas. Ainda assim, Loparic reconhece que as conclusões preliminares da sua proposta de leitura filosófica da psicanálise de Winnicott são suficientemente instigadoras para justificar que, sobre a base dos estudos que já efetuou, sejam levadas a cabo novas pesquisas na mesma direção, com vista a reunir evidências suplementares que suportem as suas teses centrais.

O presente trabalho não mantinha como objetivo fornecer qualquer contributo adicional às investigações de Loparic, com vista a suportar os seus argumentos de fundo. A sua finalidade era, simplesmente, a de captar os traços essenciais do tratamento dado por Loparic ao problema da interpretação filosófica da psicanálise de Winnicott. Procurou-se cumprir essa tarefa fazendo uma resenha da abordagem de Loparic, sustentada numa revisão de literatura que contemplasse os principais estudos que o autor dedicou a essa matéria. Pretendeu-se, deste modo, fornecer uma síntese rigorosa capaz de voltar a chamar a atenção para a importância e a originalidade do contributo de Loparic para entender a singularidade da psicanálise winnicottiana, e que assim reunisse também as condições necessárias para instigar novas pesquisas em torno dos fundamentos filosóficos do pensamento de Winnicott, quer no sentido de um aprofundamento das direções de reflexão já abertas por Loparic, quer no sentido da sugestão de novas linhas de aproximação.

Porém, pela informação que congrega, o estudo realizado permite não só verificar a importância que o trabalho de Loparic assume quanto à apreciação da originalidade do contributo winnicottiano para a ciência psicanalítica, como também, complementarmente, constatar como a perspectiva de Loparic pode dar suporte a uma percepção mais rigorosa do enraizamento e da ligação entre diversas das mais importantes direções tomadas pela psicanálise na atualidade e o legado de Winnicott.

Fundamentalmente, aquilo que talvez mais se saliente a partir desta abordagem geral da reflexão de Loparic em torno da psicanálise winnicottiana é a particularidade da visão do ser humano que Winnicott construiu. Winnicott não foi apenas um pediatra e um psicanalista; foi também alguém que edificou - ou, pelo menos, esboçou - uma antropologia em moldes inovadores. No seu caso concreto, isto significa dizer que colocou no centro do seu pensamento clínico o ser humano, no seu caráter simultaneamente multidimensional e indivisível, irredutível e inapropriável, e a relação de cuidado entre os seres humanos, como elemento central na constituição da própria humanidade. É esta antropologia, subjacente à psicanálise de Winnicott - e, de algum modo, factualmente validada e testada através das intervenções psicanalíticas de inspiração winnicottiana, cujo sucesso e abrangência têm sido amplamente demonstrados -, que continua a desafiar o pensamento filosófico. O trabalho de Loparic propõe, afinal, uma possibilidade de sistematização filosófica dessa visão antropológica, partindo do diálogo com a epistemologia de Kuhn e indo ao encontro da fenomenologia existencial de Heidegger. Haverá certamente outras leituras legítimas, complementares ou alternativas à de Loparic; contudo, essas leituras, assumindo contornos próximos ou significativamente distintos, não poderão deixar de estar unidas por um objetivo comum: o de evidenciar, em toda a sua extensão, a novidade da visão antropológica que sustenta a psicanálise winnicottiana. E um objetivo como esse reveste-se de importância particular, porque, em última análise, remete para os encargos de uma filosofia prática, que, no seio de uma cultura como a contemporânea, tão marcada pela fragmentação e pela desorientação, não pode deixar de ocupar-se do problema da reabilitação do sentido do humano, tão posto em causa e tão enfraquecido nas sociedades atuais.

 

Referências:

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Recebido em 11/05/21
Aprovado em 27/06/21

 

 

1 Texto elaborado no âmbito do projeto de pós-doutoramento em Filosofia intitulado "Relacionalidade e Criação em Cassirer e Winnicott. Antropologia Filosófica e o Novo Paradigma em Psicanálise", apoiado por bolsa de pós-doutorado (SFRH/BPD/117006/2016) concedida pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) de Portugal, financiada por fundos do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior de Portugal e pelo Fundo Social Europeu através do POCH - Programa Operacional Capital Humano.
2 Na sequência das investigações de Loparic em torno da fundamentação filosófica da psicanálise de Winnicott, vários pesquisadores brasileiros têm dedicado a sua atenção a Winnicott e/ou à possibilidade de pensar uma nova psicanálise em bases epistemológicas distintas das da psicanálise freudiana, seguindo percursos reveladores de alguma ou bastante afinidade com o trabalho desenvolvido por Loparic. São, e. g., os casos de Lepoldo Fulgencio (2007; 2018), Caroline Vasconcelos Ribeiro (2008; 2015) ou Éder Soares Santos (2006; 2007). Esta linha específica de estudos é complementada por um quadro mais amplo de diálogo entre a filosofia e a psicanálise, no qual diversos outros académicos do Brasil se têm destacado, tais como Francisco Verardi Bocca, Eduardo Ribeiro da Fonseca ou Daniel Omar Perez.
3 A este respeito, os argumentos de Jay R. Greenberg e Stephen A. Mitchell na obra Object Relations in Psychoanalytic Theory [Relações de Objecto na Teoria Psicanalítica] (1983), ilustram bem como Winnicott se enquadra num modelo relacional da mente, por oposição ao modelo pulsional característico da psicanálise freudiana (Greenberg & Mitchell, 2003, pp. 228-251). Todavia, para Loparic (2006a, p. 3, n. 2), embora estes autores tenham também, nessa obra, aplicado o pensamento kuhniano à psicanálise, não o fizeram até às últimas consequências, tendo-se limitado a tomar em consideração apenas questões ligadas à componente do modelo ontológico subjacente à teorização psicanalítica, sem atenderem devidamente a um outro elemento fundamental de um paradigma científico: os exemplares.
4 Kuhn (2009, p. 33) refere que a ciência normal pode, em certas circunstâncias, não requerer a existência de um paradigma.
5 Kuhn (2009, p. 90) define "anomalia" como "um fenômeno para o qual o paradigma não havia preparado o investigador".
6 A título meramente ilustrativo, contraste-se o panorama descrito com a atmosfera do poema n.º 827 de Emily Dickinson (1830-1886), que remete para a possibilidade de uma experiência de si e da realidade completamente distinta daquela que parece predominar na época moderna, nos termos em que Heidegger a caracteriza: "The Only News I know / Is Bulletins all Day / From Immortality. // The Only Shows I see - / Tomorrow and Today - / Perchance Eternity - // The Only One I meet / Is God - The Only Street - // Existence - This Traversed // If Other News there be - / Or Admirable Show - / I'll tell it You -".
7 A presente reflexão, contudo, pretende apenas focar-se na leitura heideggeriana de Winnicott que Loparic propõe, e que, como se pôde verificar, se apoia na tese segundo a qual a psicanálise winnicottiana, enquanto expressão de um novo paradigma em psicanálise, vai ao encontro do modo como Heidegger caracteriza aquilo que poderia ser uma "ciência daseinsanalítica do homem" (Loparic, 2006b, p. 16).

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