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Natureza humana

Print version ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.23 no.1 São Paulo Jan./June 2021

 

ARTIGO

 

Desvendando o velho órfão: o falso self como vida malograda1

 

Understanding the old orphan: the false self as lacked life

 

 

André Luiz de OliveiraI; Andrés Eduardo Aguirre AntúnezII

IPsicólogo, Graduado em Psicologia pela Pontificia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestre e Doutorando em Psicologia Clínica no Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Bolsista CAPES-Registro: 33002010039D4. Colaborador do Escritório de Saúde Mental da Pró-Reitoria de Graduação da Universidade de São Paulo
IIProfessor Associado do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia, Professor com vinculação subsidiária no Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina e Coordenador do Escritório de Saúde Mental da Pró-Reitoria de Graduação da Universidade de São Paulo

 

 


RESUMO

Este artigo discute as ideias de verdadeiro e falso self de Winnicott no cenário brasileiro. O objetivo é apresentar como se compõe a estruturação desses tipos de selves relacionados a uma poesia chamada Velho Órfão, usada como ilustração para discutir o sentimento de alguém constituído em uma estrutura de falso self em contexto de vulnerabilidade, cujas implicações clínicas dessa questão são discutidas. Conclui-se que o processo de resgate do verdadeiro self é trabalhoso, mas possível, se o terapeuta estiver engajado nesse projeto com seu paciente, disponível a se comunicar com ele em uma dimensão existencial, no entanto haverá sempre o limite desse trabalho clínico em termos de saúde pública no Brasil.

Palavras-chave: Winnicott; verdadeiro self; falso self; Velho Órfão.


ABSTRACT

This article discusses Winnicott's ideas of true and false self in the Brazilian scenario. The objective is to present how the structuring of these types of selves related to a poetry called Old Orphan is composed, used as an illustration to discuss the feeling of someone constituted in a false self structure in a context of vulnerability, whose clinical implications of this issue are discussed. It is concluded that the process of rescuing the true self is laborious, but possible, if the therapist is engaged in this project with his patient, available to communicate with him in an existencial dimension, however there will always be the limit of this clinical work in terms of public health in Brazil.

Keywords: Winnicott; true self; false self; Old Orphan.


 

 

No trabalho clínico nos defrontamos com diversos aspectos do sofrimento humano no cotidiano, que nos surpreende e nos comove ao entrarmos em contato com ele na clínica. O cenário de violência contra crianças e mulheres e o sofrimento que acarreta nos mostra uma faceta importante da condição humana e se manifesta de diversas modalidades na vida cotidiana. O sofrimento pode se manifestar através de um sintoma físico ou mental e sinalizar uma vacância, que tanto pode ser preenchida pela instalação de uma doença biológica, um esvaziamento de nossas potencialidades existenciais e um sintoma social de difícil resolução.

Na clínica psicológica, uma fonte importante desse sofrimento foi apresentada a nós por Donald Winnicott em seu artigo publicado em 1960, intitulado "Ego Distortion in Terms of True and False Self". A possibilidade de um malogro pessoal na vida do sujeito se constituir já na infância, nas primeiras relações mãe/bebê, a partir de um fracasso relacional nessa díade originária, acaba por resultar em um bloqueio do saudável desenvolvimento do ego da criança, desembocando em importantes consequências em sua vida futura. A menção acerca da importância desse conceito de verdadeiro e falso self do pensamento de Winnicott vem sendo cada vez mais destacado nos últimos anos (Barreto, 2016; Machado, 2016; Ribeiro & Amaral, 2016).

A violência contra crianças no cenário brasileiro é um problema de saúde pública e tem um impacto negativo na vida adulta. A negligência é o principal tipo de violência, principalmente em crianças do sexo masculino, o agressor é um membro da família, sendo os pais os maiores perpetradores da violência contra crianças, inclusive mães (Malta, Bernal, Teixeira, Silva & Freitas, 2017; Nunes & Sales, 2016). Há ainda homoparentalidade masculina e feminina, novas configurações de cuidadores e mães, que tem que conviver com preconceito e violência homofóbica. Porém há relatos de superação desta discriminação e de pessoas que assumem suas orientações afetivo-sexuais e o projeto de ser mãe (Lira, Morais & Boris, 2016).

Os modos de configuração e fruição do self são dimensões importantes de se compreender na clínica, pois se manifestam em uma miríade de expressões humanas, desde obras de arte em que buscam sua sublimação, até na formação de psicopatologias que impactam a vida das pessoas e nos desafiam enquanto clínicos. Apresentaremos elementos que compõem e favorecem o desenvolvimento do verdadeiro self e os que o interditam, culminando em uma cisão em um falso self, conduzindo às consequências do que disso decorre. O limite desse trabalho clínico ainda é a impossibilidade desse desenvolvimento para a saúde pública enquanto não existirem mudanças em política públicas que protejam as crianças e os cuidadores, também merecedores de atenção.

Uma poesia que retrata a condição vivida em falso self servirá como eixo para a discussão e norteará a exposição. Trata-se da poesia Velho Órfão do poeta mineiro José Antônio Jacob. A poesia é uma das mais sublimes expressões artísticas humanas e tem o poder de traduzir em palavras harmoniosas as inquietações da alma. Este poema comunica uma inquietação humana e universal. Essa poesia representa em seus versos as consequências advindas de uma vida vivida em um falso self e o vazio que ela impõe.

Apresentaremos a referida poesia, a discutiremos utilizando o pensamento de Winnicott acerca da constituição do verdadeiro e falso self e finalizaremos discutindo as implicações clínicas derivadas dessa noção de verdadeiro e falso self no tratamento clínico no cenário brasileiro.

 

1. Velho Órfão

Desde cedo esperei o que não vinha
E a minha vida foi perdendo o prazo:
Fui vendo a minha sombra mais sozinha
E o meu destino cada vez mais raso.
E, enquanto andei do quarto até a cozinha,
Pesou-me o passo e me causou atraso,
Desfolharam-se os dias na folhinha
E o tempo foi morrendo em meu ocaso.
Súbitos longos anos tão estreitos,
Sinto tê-los perdidos sem proveitos
E sem proveitos não me presto mais.
Eu sou aquele velho desolado,
Que vive a andar atrás do seu passado
Feito a criança órfã que procura os pais.
(Jacob, 2011, p.21).

Os versos de Jacob são metáforas de um fracasso, a representação do que seria uma existência configurada na vivência de um falso self, uma existência vazia, incompleta, faltante. "É neste campo que precisamos compreender o conceito de self. Ele é um fenômeno processual, não se trata de uma entidade ou instância, mas uma ocorrência que se dá em contínuo devir ao longo do processo maturacional" (Safra, 1999, p.93).

O self é o fenômeno de apropriação da criança de si mesma e de seu mundo circundante (Winnicott, 1960/1965) e de formação de um sentido de unidade de si que apercebe o mundo e seu próprio corpo como tendo continuidade no tempo e no espaço. Esta apropriação e formação ocorrem através das relações que se estabelece com as pessoas em seu viver cotidiano. O surgimento e o estabelecimento do self é um fenômeno processual que acontece na relação que o bebê estabelece com seu ambiente e com sua mãe em sua vivência diária (Safra, 1999).

Uma eventual cisão desse self dependerá dos cuidados que a mãe prestará a seu bebê em seus primeiros contatos afetivos. Nesses termos, Winnicott traz ideia de uma mãe suficientemente boa que através de seus cuidados às necessidades do bebê em desenvolvimento possibilitará que a criança se desenvolva saudavelmente, protegendo-a de intrusões que a façam reagir a acontecimentos que se configurem como eventos traumáticos.

O trabalho em pediatria e psicanálise permitiu a Winnicott (1960/1965) perceber que a mãe precisa estar em sintonia com as necessidades de seu bebê para que os processos maturacionais aconteçam de forma espontânea e saudável. Para que isso ocorra é necessário a presença de uma mãe, descrita assim:

A mãe suficientemente boa é a que responde a onipotência do bebê e de certo modo lhe dá sentido. Isto ela faz repetidamente. O verdadeiro self começa a ter vida através da força que a mãe ao cumprir as expressões de onipotência infantil dá ao débil ego do bebê (Winnicott, 1960/ 1965, p. 145).

A resposta da mãe à onipotência do bebê é fundamental na sintonia desta díade e propiciará à criança as condições para que ela siga em seu desenvolvimento, sem precisar utilizar nenhum mecanismo de defesa para salvaguardar seu ego ainda precário. A constituição desse sentimento de onipotência se dá através do estabelecimento do processo de ilusão pelo qual passa o bebê. Essa ilusão significa que o bebê alucina que o seio da mãe, que lhe fornece o alimento, é criado por ele mesmo. No momento em que ele tem fome e intenciona se alimentar surge o seio materno. A mãe sabe ou intui a hora certa de alimentá-lo e oferece o seio naquele momento em que a criança o necessita ou o deseja. E essa conjunção entre o desejo de alimento do bebê e o aparecer do seio materno permite ao bebê se considerar como criador da realidade.

O bebê passa a ter uma tolerância maior na ausência do seio e o leva a entrar em um estado de onipotência, que se caracteriza como um estado em que o bebê se coloca como único criador da realidade, o responsável por tudo que o abarca e o afeta. Ele se coloca como centro da realidade já que ainda nesse período da vida do bebê não há separação do que é subjetivo e objetivo e do que é interno e externo na experiência infantil (Winnicott, 1960/1965).

A constituição e o respeito a essa condição oferecerão as bases para o florescer do self em toda sua potencialidade e complexidade. Para que isso aconteça de forma saudável torna-se necessário que a mãe ofereça ao seu bebê o que Winnicott chama de "holding" que se configura como um suporte, uma sustentação para que este ego ainda incipiente se construa e se forme de uma forma integrada e coesa, capaz de superar as primeiras angústias que atacam este ego frágil e o impedem de prosseguir em seu processo de maturação. É somente contando com esta sustentação que o bebê terá condições de ter um desenvolvimento saudável e sem interrupções (Braga & Serralha, 2016). É um amparo além do cuidado físico, pois abrange um cuidado e apoio que se configura da maneira mais elementar que propicia o desenvolvimento.

Tal amparo se inscreve no modo em que a mãe segura seu bebê fisicamente oferecendo a ele segurança e confiabilidade em seus movimentos assegurando-lhe que não vai cair e nem se machucar. Na presença da mãe o bebê passa por momentos de maior angústia e ela o protege, satisfazendo sua fome, limpando-o, acudindo-o frente às dores. Amparo ou "holding" que se traduz como a presença da mãe que estabelece um cuidado ao bebê, oferecendo-lhe totais condições para que atinja seu potencial de crescimento e desenvolvimento. De acordo com Ribeiro & Amaral (2016):

(...) o holding teria o papel de proporcionar segurança e relaxamento ao bebê, sendo que, desse modo, este começaria a sair de seu estado de não integração e fusão com o meio externo para um estado integrado e mais individualizado (p.78).

Este estado integrado se refere à possibilidade de o bebê chegar através do amparo adequado que receber a um estado de integração. Isto lhe possibilitará a sensação de existir realmente e assim se desenvolve a capacidade inerente de ser criativo. Esta integração significa que o bebê se estabelece como um indivíduo integrado em seu psicossoma, de modo que há um alojamento da psique no corpo, permitindo então o estabelecimento de um sentido do Eu.

O sentido do Eu permite ao bebê ter a si mesmo como centro de orientação, podendo sentir seu corpo como seu e podendo estabelecer as bases de um processo cognitivo mais elaborado, em que se permite a inscrição de processos de aprendizagem, socialização e mecanismos psíquicos que remetem à condição de ter uma vida interior, uma interioridade. O amparo adequado oferecido pela mãe a seu filho será fruto da capacidade de devoção possibilitada pelo desenvolvimento na mãe da preocupação materna primária (Winnicott, 1960/1965).

Este é um momento em que a mãe se identifica totalmente com seu bebê sendo capaz de compreendê-lo e de suprir suas necessidades com precisão. Isso facilita ao bebê desenvolver-se e estabelecer-se como um ser sem sofrer intrusões que o lancem a um estado de angústia impensável. Conceitualmente, devoção significa que a mãe se devota ao bebê por um determinado período de tempo, dispondo-se a ser seu continente e seu ego auxiliar, capaz de colocá-lo em primeiro lugar até mesmo em relação a si mesma. O que favorece uma estabilidade e segurança ao bebê em seus primeiros processos maturacionais, permitindo que ele siga saudavelmente em seu processo de desenvolvimento emocional. Tal função, exercida pela mãe logo nos primeiros estágios do desenvolvimento do bebê, torna-se fundamental, já que ainda não há separação entre eu e o não eu, o que torna o bebê muito vulnerável a qualquer tipo de descontinuidade.

No processo de preocupação materna primária a mãe se identifica com o bebê e o reconhece como um ser humano que ela própria o é, sendo assim, capaz de intuitivamente pressentir aquilo que o bebê necessita no momento certo e da maneira correta para poder supri-lo em suas necessidades. A identificação inicial da mãe com seu bebê possibilita o surgimento da devoção a esse bebê no momento em que ele ainda está totalmente indefeso e necessita de cuidado permanente e contínuo, que é nos primeiros meses de sua vida, quando sua dependência se encontra no auge. Nesse sentido, Barreto e Tosta (2017) comentam que:

Em estágios iniciais, o lactente ainda não separou o self do cuidado materno, de maneira que existe uma dependência psicológica e quase absoluta deste. Nesse período, ele necessita que o ambiente lhe forneça um cuidado que supra algumas características: satisfação de necessidades fisiológicas e consistência implicando empatia materna (p.175).

No entanto, esse estado de devoção da mãe a seu bebê é algo instintivo e inconsciente e é vital no florescimento do vir a ser. Ele é vital no florescimento do potencial desse bebê em se tornar uma pessoa. A introdução feita por Winnicott desses conceitos de identificação materna primária, e a partir deles, o de devoção, nos mostra que o cuidado de um ser humano em relação ao outro é fundamental para o desenvolver e aflorar do vir a ser. O cuidado é indispensável para o surgimento do ser humano como pessoa complexa, singular e inigualável. O primeiro cuidado humano da mãe em relação a seu filho é o propiciador de tudo o que o ser humano se tornará no futuro e esse cuidado se funda em uma característica humana que é intuitiva e inconsciente, que é essa noção de preocupação materna primária.

É através desse cuidado frutuoso da mãe que o verdadeiro self vai se estabelecer e ter possibilidade de se expressar. O verdadeiro self é justamente aquele em que se configura o verdadeiro eu da pessoa, é aquele que mostra a pessoa em sua concretude, portadora de características singulares e um modo de ser genuinamente seu. É aquele que favorece a prática criativa.

O verdadeiro self só é desenvolvido mediante o fornecimento de um ambiente saudável para o bebê, em que ele não tenha sofrido nenhum tipo de intrusão que seja forte o suficiente para lhe provocar uma mobilização defensiva de cisão, em que, para impedir que o ego ainda frágil possa ser atingido por algo com o qual ele ainda não dá conta de suportar, se cria um outro self, chamado de falso self.

O "falso self" tem que se equilibrar com a formulação do que se poderia denominar adequadamente o "verdadeiro self". Nas etapas mais primitivas, o verdadeiro self é a posição teórica de que provém o gesto espontâneo e a ideia pessoal. O gesto espontâneo é o verdadeiro self em ação. Só o verdadeiro self pode ser criativo, e só o verdadeiro self pode sentir-se real. Enquanto que um verdadeiro self se sente real, a existência de um falso self dá por resultado uma sensação de irrealidade ou futilidade (Winnicott, 1960/1965p. 148).

O verdadeiro self se configura como a expressão máxima do ser humano em sua jornada pelos caminhos da vida. Ele é a possibilidade da realização humana no mundo. A partir do momento em que o self se configura como verdadeiro ele expressa realmente o que aquele ser humano é, tornando real a sua ação no mundo e, ao mesmo tempo, tornando real a si mesmo em seu viver cotidiano. O verdadeiro self é o terreno fértil para a assunção da criatividade e para a execução do gesto espontâneo que coloca em movimento a translucidez do ser e fornece o sentimento de existência que enriquece o viver.

No entanto, diante do cenário de violência que a dupla mãe-bebê tem que lidar em nossa realidade, se essa possibilidade de realização é impedida, pode se formar um falso self, uma proteção inconsciente vivida pela criança. O maior limite do trabalho clínico, psicanalítico, é que nem ele mesmo poderá garantir uma continuidade de cuidados para a demanda da saúde pública. Esse é ainda um problema a ser debatido, discutido e reavaliado por políticas públicas que garantam atendimento de qualidade em perspectivas psicanalítica para uma parcela da população mais vulnerável.

 

2. A metáfora do desamparo

É na falta desse sentimento de sentir-se real e de ter colocado em jogo toda sua autenticidade singular na passagem de sua vida que o Velho Órfão poetizado por Jacob expressa. Um sentimento de vazio, de profundo desamparo e indelével incompletude em que o significado dos dias na sua passagem de tempo se encontra desbotado pela lacuna deixada por uma vida vazia e não acontecida que toma conta de sua alma. O Velho Órfão comenta que desde cedo esperou o que não vinha e sua vida foi perdendo o prazo, ainda assim guardava a esperança no curso de sucessivas perdas.

Os dias passam e ele se dirige ao passado buscando lá encontrar o paraíso perdido, pleno de significados e de possibilidades de ser. Podemos dizer que ao Velho Órfão faltou em algum momento de seu processo maturacional a oportunidade de ser constituir como ser completo. Faltou o cuidado que através do olhar refletisse ao velho aquilo que ele era, sua condição de ser existente e com possibilidades de ações autênticas no mundo. Quantos "velhos órfãos", desamparados e sós se reproduzem no cotidiano em nosso país?

A mãe desempenha um papel fundamental e importante no estabelecimento dessa condição na criança, de se sentir existindo e pertencendo ao mundo. Isso acontece através do seu olhar que é dirigido a criança na amamentação (Winnicott,1971/2005). A mãe olha para a criança e devolve a ela um sentimento de existência, como um espelho que reflete para a criança uma experiência de si mesmo.

O que vê o bebê quando olha o rosto de sua mãe? Eu sugiro que em geral se vê a si mesmo. Em outras palavras, a mãe o olha e o olhar dela parece se relacionar com o que ela vê nele. Tudo isso se da por garantido com demasiada facilidade. Eu peço que não se tome por pressuposto que as mães que cuidam de seus bebês fazem isso com naturalidade. Posso expressar o que quero dizer indo diretamente no caso do bebê cuja mãe reflete seu próprio estado de ânimo, ou, pior ainda, a rigidez de suas próprias defesas. Neste caso, o que vê o bebê? (Winnicott, 1971/2005, p.151).

Neste caso, em que a mãe se torna rígida em suas defesas e impossibilitada de devolver ao bebê o sentimento de existência, o bebê fica barrado e dificultado em seu florescer. Surgem nele defesas que buscam se integrar e sobreviver, mesmo que de uma forma disruptiva e problemática, uma experiência de falso self. Quando a criança é alvo de um cuidado em que há a preparação de um ambiente facilitador e de experiências relacionais saudáveis, o processo de maturação acontece naturalmente, propiciando que passe pelos estágios de desenvolvimento que a conduzirão de um estado de dependência ao estado de independência.

A constituição de um verdadeiro self está integrada nesse processo, já que com um ambiente facilitador e cuidadoso em seus aspectos relacionais no momento em que o ego infantil ainda se encontra em formação, este ambiente fornecerá os elementos necessários para que esse self se constitua, se realize no mundo e dê lugar a um viver enriquecedor, criativo e pleno de si.

O verdadeiro self se torna rapidamente complexo e se relaciona com a realidade externa mediante processos naturais, os processos que se desenvolvem na criança individual no decorrer do tempo. A criança se torna capaz de reagir a estímulos sem traumas, porque o estimulo tem uma contraparte em sua realidade interior, psíquica. Então a criança explica todos os estímulos como projeções, porém, esta é uma etapa que não necessariamente se alcança, ou que só se alcança parcialmente, ou que se alcança e depois se perde. Se esta etapa foi alcançada, a criança conserva a sensação de onipotência, inclusive quando reage aos fatores ambientais que o observador pode discernir como verdadeiramente externos a mesma. Tudo isso ocorre anos antes que a criança possa dar cabo com o raciocínio intelectual a ação de o puro azar (Winnicott,1960/1965, p. 149).

Com a constituição de um verdadeiro self a criança se torna capaz de ser criativa em sua interação com o mundo. Ela se torna capaz de agir no mundo e nas relações com as pessoas através da instauração de seu gesto espontâneo, que a configura e a materializa como um ser existente e potencialmente apto a participar da cultura e produzir cultura.

A criatividade e o gesto espontâneo são provenientes do sentimento de estar vivo, de ter uma configuração no mundo, o que implica em se sentir fazendo parte do acontecimento que é viver. Newman (2003) refere que: "A criatividade, então, sob este ponto de vista, é o fazer que emerge do ser. Alguns bebês são obrigados a gastar o seu tempo e toda a sua energia tentando chamar a atenção da mãe. Eles são obrigados a fazer" (p.117).

Agir criativamente quer dizer se sentir fazendo a diferença no mundo, é se sentir preenchido de sentido e consequentemente, sentir que a vida vale a pena ser vivida. "Usar a criatividade significa ver tudo de novo com "novos olhos" o tempo todo. Ou seja, a criatividade pertence ao estar vivo" (Newman, 2003, p.117). Esta é uma sensação diferente da apresentada pelo Velho Órfão de Jacob, pois este não consegue ver o mundo com "novos olhos" como afirmou Newman, mas vive um mundo congelado, voltado para o passado e ancorado pela falta e pela sensação de tempo perdido, de vida não realizada. Nem a própria sombra o acompanhava! O Velho Órfão é aquela criança que cresceu em corpo, mas segue menino desamparado e à espera, mas mantém uma possibilidade criativa, expressa pelo gesto poético e artístico. Quantas crianças vivem uma vida não realizada em sua potencialidade? Quantas mães gostariam de ofertar a seus filhos essa possibilidade, mas não podem dadas as violências que tem que lidar no cotidiano?

Esta é uma típica configuração de uma vida vivida em uma experiência de falso self, em que se "sobrevive" e não se "vive", já que não se age no mundo, mas se reage a ele, na busca do significado perdido e do desempenho concreto de si, no fluir da vida que passa. O tempo morrendo, longos anos estreitos e o Velho Órfão expressa: "Sinto tê-los perdidos sem proveitos. E sem proveitos não me presto..."

O Velho Órfão representa aquela existência que não aconteceu e que vaga pela vida em busca de um sentido de si. Uma vida que não consegue se sentir preenchida, pois algo falta, está vago, existe uma experiência de vazio que não se completa na futilidade dos relacionamentos protocolares que se desenrolam durante a experiência de vida. O preenchimento desse vazio é buscado com o trabalho, com o lazer, com os relacionamentos, com o consumo, mas estas experiências falham ao oferecer a significação precisa que contemple e preencha esse buraco. Essa significação é ansiada por muitos jovens quando podem expressar o forte vazio que sentem.

Winnicott (1960/1965) afirma:

Em contraste, quando existe um alto grau de cisão entre o verdadeiro e falso self, que oculta o anterior, encontramos uma capacidade escassa para a utilização de símbolos e pobreza da vida cultural. Em lugar de atividades culturais, em tais pessoas observamos uma extrema inquietude, incapacidade para concentrar-se e necessidade de recolher aspectos da realidade externa, para que o tempo de vida do indivíduo possa preencher-se com reações a elas (p. 150).

Apesar da ideia do surgimento de um falso self ser considerada como uma reação defensiva e perturbadora frente às agonias impensáveis com as quais o self primitivo ainda não está preparado para lidar, Winnicott (1960/1965) mostra que o falso self também serve para proteger o verdadeiro self e mantê-lo oculto até que as condições sejam oferecidas para que este possa emergir e se expressar ao lidar com a realidade. Ele apresenta as configurações que o falso self pode tomar na vida do sujeito, que vão desde as mais graves, em que o falso self o leva ao desenvolvimento de uma experiência de vida malograda como no caso do Velho Órfão, até as mais leves, em que o falso self é útil e necessário para que o ser humano possa se integrar na sociedade com suas regras e modos de convivências estabelecidos.

Na saúde: o falso self é representado por toda organização da polidez e da atitude social amável, um "não levar as coisas tão a sério", como se diz. Uma grande parte desse processo deve-se a capacidade do indivíduo de deixar de lado a onipotência e os processos primários em geral, pois o ganho é um lugar na sociedade que jamais pode ser conquistado ou mantido graças somente ao Verdadeiro Self (Winnicott, 1960/1965, p. 143).

O falso self também possui sua utilidade e tem seu lugar na vida humana, mas a saúde acontece apenas quando ele ocupa um pequeno lugar na vida do sujeito e a vida é primordialmente conduzida e vivida tendo como base um verdadeiro self, que a preencha de sentido e a torne digna de ser vivida. A saúde trazida por Winnicott (1960/1965) como portadora dessas possibilidades e flexibilidades mentais para lidar com a realidade de acordo com o modo como ela se apresenta à criança e ao ser humano como um todo, portanto, só é possível através da passagem pelos processos desenvolvimentais necessários para o crescimento em um ambiente de amparo e presença humana que suporta e sobrevive as diversas manifestações que esse ego em desenvolvimento apresenta. A passagem da condição de dependência a independência é um processo longo e delicado e necessita da presença de um outro que cuide, faça existir e possibilite viver. Ofertando suporte para que esse árduo processo se desenvolva e a criança atinja a conquista que é se constituir como um ser integrado e pessoalizado em sua relação com a vida da qual ela é proprietária. Infere-se daí que a ideia de saúde em Winnicott relaciona-se com a possibilidade de sentir-se real, de expressar-se no mundo de forma singular, de sentir-se na base dos fenômenos que criam e recriam o mundo (Rodrigues & Peixoto Júnior, 2017, p.23).

E um desses processos importantes que a criança precisa passar para que possa se constituir saudavelmente e viver a partir de um verdadeiro self que dialoga com o mundo e consigo mesmo na busca de se estabelecer como real através dos gestos que executa é o estabelecimento do fenômeno transicional. Este que será o responsável em fazer com que a criança dissocie o mundo externo de seu mundo interno e, consequentemente, evolua em criar possibilidades de se integrar-se à vida cultural da sociedade onde vive e de configurar-se como um ser criativo dentro da mesma. Ribeiro & Amaral (2016) pontuam que:

Emergindo da área de ilusão da onipotência, os fenômenos e objetos transicionais, tais como uma melodia, um ursinho ou um pedaço de pano que o bebê elege, marcam a passagem do autoerotismo e satisfação oral para a apreensão de um objeto. Nesse processo, já podemos observar algumas mudanças: embora o objeto transicional se adapte ao bebê, já não o faz de modo absoluto, como a mãe; o bebê deixa de ser o objeto para possuir o objeto, ou seja, nessa fase, predominará menos o controle mágico e onipotente e mais o controle pela manipulação e motilidade; e, ainda, o objeto transicional cumpre um papel calmante e de amparo ao bebê, como um substituto da mãe que se ausenta (p. 80).

O fenômeno transicional bem desempenhado no processo maturacional proporcionará à criança sair da onipotência e se encontrar com o mundo externo que a circunda. A partir das inevitáveis falhas da mãe, que levam ao processo de desilusão, a mãe passa a ser percebida como um ser humano autônomo com um modo de ser próprio, o que demandará uma outra forma de configuração no lidar da criança com essa nova realidade, uma configuração mais complexa e mais sofisticada. É no transcorrer de todo esse sensível e desafiador processo de desenvolvimento que a criança se desenvolverá, tendo o ambiente que a circunda como um fator decisivo em sua constituição como um ser autônomo, integrado, pessoalizado e realizado, capaz de agir criativamente e de sentir-se preenchido e verdadeiro no mundo. Mas isso é possível para a maior parte das mães em nosso país?

"O ambiente pode subsidiar um espectro de experiências e ser considerado facilitador ou nocivo. O ambiente facilitador promove crescimento rumo à saúde, distintamente aquele que falha e leva a instabilidade e ao adoecimento" (Barreto, 2016, p. 148). O ambiente em que se encontra o ego ainda em formação definirá os rumos de seu desenvolvimento, seja para um desenvolvimento saudável, desembocando em uma vivência de verdadeiro self, seja em uma constituição de um viver adoecido, configurado na vivência de um falso self. Mas, tendo esta condição de falso self configurada como a totalidade de um viver, como vimos no Velho Órfão poetizado por Jacob, como lidar com isso na clínica e auxiliar o paciente na saída dessa condição de esvaziamento de si? Como ajudar as crianças, mães e "velhos órfãos" clinicamente em instituições públicas, ampliando os cuidados e ofertando continuidade de cuidados?

 

3. O Falso Self na clínica

A experiência de uma vida construída em uma modalidade de falso self pode ser desesperadora e geradora de muito sofrimento. O paciente que chega nessa condição na clínica psicológica, seja ele adulto ou criança, apresenta características singulares e especificas que são desafiadoras para o profissional que vai trabalhar com ele e exigem por parte desse profissional que tenha a sensibilidade para detectar esse modo de ser no paciente e auxilia-lo nesse processo de encontro de si mesmo.

Se um paciente que vive em uma modalidade de falso self não for identificado como tal pelo terapeuta, será um candidato a uma análise interminável (Winnicott, 1960/1965), pois o falso self tende a cooperar com o terapeuta dando a este a falsa impressão que uma aliança terapêutica foi estabelecida e que a análise caminha bem. Na verdade, é apenas mais uma modalidade da vida do paciente em que o falso self dele se adapta e reage ao ambiente com o fim de ocultar o verdadeiro self e mantê-lo fora do jogo. De modo que é preciso identificar o falso self e manejá-lo no trabalho clínico.

Quanto à identificação de um paciente que funciona em uma modalidade de falso self, Winnicott (1960/1965) mostra que o principal é perceber qual é capacidade que o paciente tem de ser espontâneo e criativo em sua vida diária. Perceber se há um sentimento de vazio e de não existência no paciente que está procurando ajuda através de seus relatos acerca de si mesmo, no caso de adultos e adolescentes mais velhos e, no caso da criança, se existe esse tipo de elemento no enredo que perpassa suas brincadeiras e manifestações várias.

Na poesia Velho Órfão há um relato de vivência de desamparo e solidão, de saudade de algo indizível, há a presença de um vazio que não se preenche e de uma vida pesada e de irrealizações existenciais. O sujeito pode até ter sucesso no trabalho e em suas relações de amizade e familiares, mas ele não se sente real, se sente uma fraude e desrealizado. Esse tipo de condição aponta a existência de um falso self atuando e para que o terapeuta possa lidar com ele na clínica, visando sua supressão e a viabilização de que o verdadeiro self possa enfim emergir Winnicott (1960/1965) indica:

Caberia formular o seguinte princípio: que na zona correspondente ao falso self dentro do exercício da psicanálise se avança mais reconhecendo a inexistência do paciente que empenhar-se em realizar o tratamento atendendo a seus mecanismos de defesa egóicos. O falso self do paciente é capaz de colaborar indefinidamente com o analista na análise das defesas; pode se dizer que se coloca ao lado do analista. A única forma de empregar vantajosamente essa árdua tarefa consiste que o analista consiga assinalar especificamente a ausência de algum aspecto essencial, dizendo ao paciente, por exemplo, que "não tem boca" que "todavia não começou a existir", que "fisicamente é homem, porém que não sabe por experiência nada sobre a masculinidade", etc. O reconhecimento de fatores de tamanha importância, realizado claramente e no momento preciso, prepara o caminho para a comunicação com o verdadeiro self (p. 152).

O que está em jogo nessa relação é ajudar o paciente diante desses sentimentos de vazio e desrealização que ele sente, mas não reflete porque não foi cuidado suficiente para tanto. Assim, poderá surgir nele a esperança de que algo ainda possa acontecer. Surgir a esperança de que o domínio de si, nunca concretizado, possa através do reconhecimento de uma inexistência real, viver na relação analítica uma possível retomada e seu movimento ser colocado em devir. No caso da criança, Mello, Féres-Carneiro e Magalhães (2015) enfatizam que:

Desse modo, o analista deve criar um dispositivo terapêutico adaptado às necessidades próprias da criança, não cabendo a esta se adequar ao referido dispositivo. Tal adaptação comporta, justamente, a oferta de tempo e espaço para o brincar criativo, ambos avessos à pressa e rigorosamente espontâneos (p. 276).

Isso implica em muito trabalho e se configura como uma tarefa de fôlego para o terapeuta, já que o paciente, para entrar em contato com esse sentimento de não existência e permitir acesso a seu verdadeiro self, regredirá e se colocará a um estado de dependência importante em relação a ele (Winnicott, 1960/1965). Estado esse que vai exigir do terapeuta capacidade de ser sustentação para que todo o processo de encontro com o verdadeiro self se desenvolva. O que envolve não só as projeções primitivas que esse paciente destinará ao terapeuta e que este terá que lidar na transferência, mas, também, os ataques que o paciente proporcionará ao terapeuta visando testar sua sobrevivência e condição de ser usado como amparo no alcance de seu ser verdadeiro.

Winnicott (1971/2005) discorre sobre esse difícil processo na análise:

Foi só nos últimos anos que eu me tornei capaz de esperar e esperar pela evolução natural da transferência, que surge da confiança crescente do paciente na técnica e no setting psicanalítico, e evitar romper esse processo natural fazendo interpretações. Chamo a atenção para o fato de que me refiro à produção de interpretações, e não as interpretações enquanto tais. Me choca pensar em quanta mudança profunda impedi, ou retardei, em pacientes de certa categoria de classificação pela minha necessidade pessoal de interpretar. Se pudermos esperar, o paciente chegará à compreensão criativamente e com imensa alegria, hoje tenho mais prazer nessa alegria do que costumava ter com o sentimento de ter sido esperto. Ao interpretar, acredito que o faço principalmente com o intuito de deixar o paciente conhecer os limites de minha compreensão. Trata-se de partir do princípio de que é o paciente, e apenas ele, que tem as respostas. O que podemos fazer ou não é torná-lo capaz de abranger o que é conhecido, ou disto tornar-se ciente e aceitá-lo (p. 116).

Portanto, o que importa para o terapeuta é fazer com que o paciente nesse estado de alienação de si possa evoluir nesse processo de busca de si mesmo. E isso se dá com a capacidade que o terapeuta desenvolve de ser empático, confiável e de estar em disponibilidade para ser usado, favorecendo o encontro do paciente com o real, o real do mundo que o cerca e o real que ele verdadeiramente é.

A empatia vivida pelo terapeuta em relação ao paciente que sofre é um elemento fundamental, pois a possibilidade de ser usado pelo paciente nesse duro e longo processo de integração de si passa pelo sentimento por parte do paciente de se sentir compreendido e cuidado pelo terapeuta. E tal sentimento só é suscitado, caso o paciente viva em sua relação terapêutica uma experiência de mutualidade em que suas agruras são compartilhadas e elaboradas por se sentir sustentado em seus processos. Esse sentimento é possibilitado, portanto, pela empatia que facilita o encontro e permite e inaugura uma relação de confiança. Difícil é o limite do tempo para tanto, seja por parte das condições psicológicas do terapeuta, seja por parte da demanda da instituição, que em termos de saúde pública não fornece condições ideais para que os psicólogos possam exercer tais cuidados em larga escala, exigindo uma reinvenção e muito investimento financeiro para permitir esses cuidados, possíveis na clínica privada. Como esperar pela evolução natural da transferência em ambiente público? Não sendo possível, outras modalidades psicoterápicas aparecem validadas sob a expressão de serem baseadas em evidências científicas cujo modelo epistemológico e técnico segue a égide das ciências naturais. Pontuar esses limites ressituará a psicanálise contemporânea, colocando-a em alerta sobre esses lugares que, de acordo com Martins (2020), são retrógrados em termos civilizatórios?

Ao replicar na análise aquela experiência originária da mãe, que se confiável e cuidadosa proporciona o crescimento e desenvolvimento saudável da criança, o terapeuta com sua presença, cuidado e sobrevivência aos gestos e atuações do paciente, abre o caminho do reencontro entre seus selves cindidos e da integração desse paciente, possibilitando o que não aconteceu finalmente acontecer e que a experiência do brincar e do criar na vida de forma genuína se configure em verdade e continuidade. "Há algo de sagrado no brincar de faz de conta, no ato imaginativo, nas conexões das quais as crianças são capazes, mesmo as muito pequenas" (Machado, 2016, p. 465). Assim, a capacidade de brincar é essencial para vida, não só das crianças, mas também dos adultos, que brincam quando criam e são inventivos em seu cotidiano.

O resgate dessa capacidade de brincar nos pacientes falso self é o resgate do gesto espontâneo, da criatividade e da alegria de viver. De acordo com Machado (2016):

Poiésis própria da criança, o brincar imaginativo há que ser resguardado com serenidade pelos adultos do mundo circundante, compartilhado: abertura para ciclos de alegria-luto, chuva no rosto. Fogo que transforma o alimento. Terra para o errante navegante. Ar para o primeiro necessário movimento: inspiração ou susto diante do corte do primeiro cordão umbilical. Caminhos míticos, ou rotas pré-socráticas nas quais deslizam os pés dos meninos e meninas. Na queda, dê a mão (p. 468).

Assim sintetizamos a perspectiva de Winnicott em relação ao trabalho com pacientes falso self. Um trabalho que busca ajudar o paciente a reencontrar o caminho de si mesmo e restabelecer sua capacidade de brincar imaginativo, que seja capaz de torná-lo real no mundo e real para si mesmo. Vimos como a amamentação é importante no desenvolvimento humano do bebê, como forma bases para sua personalidade e vida futuras. Esse cuidado da amamentação só ocorre na relação íntima entre a mãe e seu bebê. Com o desenvolvimento dele, da infância à vida adulta, é possível retomar e fazer esse verdadeiro self aparecer e ganhar autonomia e espontaneidade diante do acompanhar de alguém, seja homem, seja mulher. O que mostra que o ser humano não é determinado pelas primeiras relações que leva ao fracasso absoluto. Winnicott mostrou como é possível na relação o surgimento do novo, do não acontecido, do não vivido, pois o ser humano mantém uma esperança essencial que o ajudará a viver novas configurações pessoais, relacionais e sociais.

Segundo Martins (2020), encorajar ao desamparo que romperia com imaginários de esperança e medo é atribuir uma potência a forças subjetivas que, nas atuais circunstâncias políticas e sociais, pode ser temerária para a sobrevivência de muitos cidadãos do mundo, pois corpos vulneráveis e invisíveis são atacados, muitas vezes de maneira irreversível. Seriam esses os casos da esperança de Winnicott e de muitos em ser espontâneos ou do Velho Órfão que expressa essa irreversibilidade de seu sofrimento no poema de Jacob?

O processo de resgate do verdadeiro self é longo, complexo e tortuoso, mas é possível se o terapeuta estiver engajado e irmanado nesse projeto com seu paciente, estando lá, disponível a se comunicar com o paciente na maneira mais elementar, em uma maneira não necessariamente intelectual, mas existencial, e disposto a dar a mão para que se levante e possibilitar com que o Velho Órfão configurado em cada paciente possa ser resgatado ou encontrado na companhia de alguém. Talvez assim seja possível reescrever o poema, finalizando-o com um começo inédito: "Eu não sou mais aquele velho desolado, Que vivia a andar atrás do seu passado, pois hoje já me reconheço mais. Sou a criança órfã que nesses dias encontrou no outro a alegria e no poema um amor de pais".

 

Referências:

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Recebido em 05/11/20
Aprovado em 24/04/21

 

 

1 Todas as traduções feitas das citações de língua inglesa são de responsabilidade dos autores.

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