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Natureza humana

Print version ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.23 no.1 São Paulo Jan./June 2021

 

ARTIGO

 

Memória da presença e desenvolvimento emocional em Winnicott

 

Presence memory and emotional development in Winnicott

 

 

Jaqueline C. Salles TrindadeI; Maria da Conceição Fonseca-SilvaII

IPsicóloga. Doutoranda do Programa de Pós-graduação Memória: Linguagem e Sociedade/UESB. Mestre em Memória: Linguagem e Sociedade pela UESB. Artigo resultante da dissertação de Mestrado intitulada "Memória da Presença e Memória da Ausência em Winnicott" e financiada pela CAPES
IIDocente pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade (PPG-MEMORIALS-UESB) e pesquisadora do CNPq. Pós-Doutorado em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas

 

 


RESUMO

O presente artigo busca mostrar como a constituição do si mesmo winnicottiano está ancorada na experiência de sustentação oportunizada por um ambiente suficientemente bom. Ambiente que se inscreve na experiência do bebê como uma memória da presença, assim designada por nós. Essa memória da presença constitui-se nas marcas da presença materna que o bebê já é capaz de sentir e confiar, pelas repetidas experiências em que ele pôde se retirar do mundo "objetivo" tranquilamente, retornando ao seu mundo subjetivo, no descanso e relaxamento propiciados por um ambiente adaptado à sua necessidade de criação do mundo, vivendo a ilusão de onipotência na relação primitiva mãe-bebê. Discutimos ainda como o paciente constituído pela memória da presença poderá apresentar necessidades especificas na clínica, por meio da regressão à dependência.

Palavras-chave: Memória da presença; Winnicott; Regressão; Clínica psicanalítica.


ABSTRACT

This paper aims to show how the constitution of the Winnicottian self is grounded on the experience of support that is made possible by a good enough environment. This environment gets inscribed into the baby's experience as a memory of presence, as we call it. The memory of presence comprises marks of a mother's presence, which babies can already feel and trust, and which repeatedly allows them to make themselves calmly absent from the "objective" world, thus returning to their subjective world at state of rest and relaxation. This is rendered possible by an environment adapted to the baby's need for the creation of a world, while living under the illusion of omnipotence in the primitive mother-baby relationship. The paper also discusses how the patient constituted by the memory of presence may exhibit specific needs while in clinical sessions, by regressing to dependency.

Keywords: Memory of presence; Winnicott; Regression; Psychoanalytic practice.


 

 

1. Introdução

A teoria de Donald Winnicott trata da experiência humana como relação interpessoal. Por debruçar-se na relação mãe-bebê como primordial para o desenvolvimento emocional dos indivíduos, é preciso considerar de imediato que na perspectiva winnicottiana não existe um ideal a ser buscado sobre o ser mãe. Há uma fase de alta adaptação do ambiente às necessidades do bebê e, de início, esse ambiente é a mãe. Para o psicanalista, é a partir dessa relação inicial que o eu se constitui, podendo vislumbrar um futuro como alguém. Desta forma, "[...] os processos de uma criatura viva constituem um vir-a-ser, uma espécie de plano para a existência. A mãe que é capaz de se devotar, por um período, a essa tarefa natural, é capaz de proteger o vir-a-ser de seu nenê" (Winnicott, 1963/1983, p. 82).

Winnicott (1988) considera que a adaptação materna às necessidades do bebê é facilitada quando realizada pela mãe biológica, pois espera-se que as alterações fisiológicas decorrentes da gestação contribuam para esse estado singular em que a mãe é capaz de se identificar com o bebê pela proximidade da relação entre eles. O autor reconhece que essa ampla adaptação é limitada, restringindo-se aos meses iniciais, sobretudo pela necessidade de separação da fusão mãe-bebê que não poderia sustentar-se permanentemente. O autor nomeia essa fase de preocupação materna primária, fase na qual "[...] ao fim da gravidez e nas primeiras semanas depois do nascimento de uma criança, a mãe está preocupada com (ou melhor, 'devotada ao') o cuidado do seu nenê, que de início parece ser parte dela mesma", possibilitando a ela reconhecer exatamente o que ele precisa, por meio da sua própria experiência como bebê (Winnicott, 1963b/1983, p. 81).

Abram (1996) esclarece que Winnicott não acredita na existência do instinto materno e nem na impossibilidade de outra mãe realizar tal função. A questão é colocada na experiência emocional e no tipo de adoecimento oportunizado pela preocupação materna primária, que possibilita à mãe identificar-se com o bebê de um modo único e singular nessa fase. Devido a esse estado especial, a mãe também deve ter seu ambiente cuidado, sua condição acolhida, dando-lhe a possibilidade de devotar-se ao bebê sem preocupações adicionais. Winnicott defende a importância do pai, da família, enfim, do ambiente mais próximo que também compreenda e reconheça as necessidades maternas, visto que "[...] a própria mãe está em um estado dependente, e vulnerável" (Winnicott, 1963b/1983, p. 81).

O estado unitário do eu se forma quando o ambiente responde e atende às necessidades do bebê, de modo a possibilitar sua constituição. O ambiente suficientemente bom oportuniza a conquista pelo bebê de três experiências fundamentais ao estado unitário de eu: a integração, a personalização ou integração psicossomática e introdução das relações objetais (Winnicott, 1963/1983), as quais devem ser alcançadas no decorrer das fases do amadurecimento, conforme veremos. Esse cuidado materno é o que irá promover a continuidade de ser do bebê. Dias (2003, p. 93) explica que "o processo de amadurecimento pessoal depende fundamentalmente de dois fatores: a tendência inata ao amadurecimento e a existência contínua de um ambiente facilitador", e é principalmente a existência deste último que poderá promover o desenvolvimento do bebê. Nosso objetivo é demonstrar como um funcionamento de memória participa da constituição do estado unitário do eu, ou seja, da constituição do bebê como pessoa, memória que se inscreve e acompanha o sujeito no decorrer da vida. Para isso, buscamos, inicialmente, problematizar o amadurecimento emocional na teoria winnicottiana, fundamentado como memória da presença. Para cumprimos com este objetivo, acompanhamos cada uma das fases do amadurecimento, com maior destaque para a especificidade da fase de dependência absoluta. Partindo do desenvolvimento emocional, poderemos, em momento posterior, discutir nossa compreensão a respeito da maneira como essa memória é mobilizada no setting analítico da regressão.

As conquistas do amadurecimento são explicitadas em termos de fases, embora o processo não seja contínuo e direto, podendo retornar à fase anterior sempre que a vida exigir. As fases são assim dividas: dependência absoluta, dependência relativa e rumo à independência. Cada uma delas é caracterizada por conquistas necessárias ao desenvolvimento emocional, de modo que as falhas irão provocar uma paralisação no desenvolvimento emocional. Isso faz com que seja necessário retomá-las em algum momento, garantindo, assim, sua continuidade. A seguir, apresentamos cada uma dessas fases e sua importância para a constituição do bebê como um eu capaz de viver relações com o mundo de modo integrado.

 

2. A dependência absoluta e a memória da presença

A dependência absoluta tem como princípio indispensável, como o próprio nome diz, uma dependência extrema do ambiente. O que melhor explica essa dependência é o chamado holding, ou seja, o segurar e sustentar o bebê enquanto corpo e pessoa realizados pela mãe ou por quem exerce esse papel. Conforme Winnicott (1960/1983, p. 44), holding "[...] é utilizado aqui para significar não apenas o segurar físico de um lactente, mas também a provisão ambiental total anterior ao conceito de viver com". É o holding que facilita a constituição do bebê como um eu capaz de viver relações com o mundo (Winnicott, 1960/1983).

No início da vida do bebê, não há um eu, mas uma tendência inata à integração dada a todo indivíduo, que não garante, porém, a integração. Esta precisa ser conquistada, possibilitando que o psiquismo se forme. Esse potencial criador humano refere-se à capacidade para viver experiências, como a singular forma de criar a realidade vivida pelo bebê, o que Winnicott nomeará ilusão de onipotência. Para o autor, a natureza humana é potencialmente criativa, visto ir ao encontro do mundo. O que é apresentado precisa ser criado subjetivamente para ser parte da experiência pessoal do indivíduo, e isso só poderá ocorrer sob determinadas condições ofertadas ao bebê pelo ambiente. Para o psicanalista, essa experiência trata-se de uma:

[...] fruição altamente apurada do viver, da beleza, ou da capacidade inventiva abstrata humana, quando me refiro ao indivíduo adulto, e, ao mesmo tempo, o gesto criador do bebê que estende a mão para a boca da mãe, tateia-lhe os dentes e, simultaneamente, fita-lhe os olhos, vendo-a criativamente (Winnicott, 1971d/1975, p.147).

Esta é uma das bases para a saúde, uma vida sentida como real, pois tem lugar subjetivo, valor e comunicação com o self. É no contato com o corpo da mãe, especialmente com o seio, na mamada, que o bebê vai experimentando o calor do corpo, os batimentos cardíacos e sentindo o mundo na extensão do corpo da mãe, embora não a reconheça como objeto externo a ele. Conforme o autor, na continuidade das mamadas, portanto após a primeira mamada teórica (caracterizada pelas diversas e repetidas experiências de mamadas no início da vida do bebê) e a partir dessa contato materno, "[...] aos poucos o bebê se torna capaz de alucinar1 o mamilo no momento em que a mãe está pronta para oferecê-lo", isto é a vivência da ilusão de onipotência, ou seja, a criação do objeto (Winnicott, 1988d/1990, p. 126).

Nesse processo, vai se construindo um mundo subjetivo no qual, do ponto de vista do bebê, o seio é o seu próprio corpo, portanto, criação sua, disponível no momento em que ele precisa. A mãe, por sua adaptação e atenção, vai ao encontro do bebê mesmo sem saber exatamente a importância desse movimento no tempo em que ele precisa. Ela "[...] está esperando ser descoberta. E não é preciso que ela reconheça intelectualmente o quanto é importante que o bebê a crie, para que ela possa fazer a sua parte e ser criada por cada bebê novamente" (Winnicott, 1988d/1990, p. 122). Para Winnicott, é desta experiência criativa, de relação com um objeto subjetivamente criado que todas as outras com sentido próprio para o indivíduo podem existir.

É na constância dessa experiência, dessa presença da mãe que oferta o seio no tempo do bebê, fazendo com que este tenha a ilusão de que o criou por sua vontade, que uma memória vai se constituindo por meio de "[...] inúmeras impressões sensoriais, associadas à atividade da amamentação e ao encontro do objeto" (Winnicott, 1988d/1990, p. 126). Esta é uma experiência2 extremante enriquecedora e é base para a criatividade e integração num eu unitário, visto que a confiança nesses cuidados é que possibilitará ao bebê constituir-se. É por meio da adaptação da mãe ao bebê que ele pode habitar um mundo subjetivo criado por ele e "alheio" ao mundo externo, anterior à sua existência.

Nessa fase do desenvolvimento do bebê, a criação, como parte do mundo subjetivo, demonstra que a constância no cuidado, na presença, é que poderá garantir a experiência de sentir-se alguém, viver experiências, pois, "[...] a primeira mamada teórica é também a primeira mamada real, exceto pelo fato de que a experiência real não é tanto um acontecimento singular quanto uma construção do evento a partir da memória" (Winnicott, 1988d/1990, p. 120, grifos nossos). Compreendemos, nesta afirmação de Winnicott, que há um funcionamento do que designamos memória da presença. Mas com se dá o seu funcionamento? Entendemos que durante a fase de dependência absoluta ela começa a se constituir, posteriormente à primeira mamada teórica, na experiência de ilusão de onipotência, caracterizando-se pela constância e repetição dos cuidados ofertados pela mãe neste percurso e consolidando as primeiras impressões da presença da mãe, as quais possibilitam a experiência da ilusão da criação do mundo.

É desta experiência que todas as outras podem advir, ou seja, o bebê vai ao encontro do mundo e o mundo acolhe seu gesto, porque também vai ao encontro dele, reconhece sua existência, ofertando-lhe aquilo de que ele precisa e o que acredita ter criado. Somente pela confiança conquistada neste momento, de que a mãe estará presente nos períodos de devaneio no mundo interno do bebê e, ao mesmo tempo, presente em seu retorno, pronta a apresentar o mundo no tempo do bebê, é que o mesmo pode constituir e criar um mundo subjetivo. Mundo esse que será a base para todo o seu desenvolvimento como um ser real, capaz de viver experiências, em comunicação com o self, habitando o mundo externo em troca constante com um mundo interno sentido como próprio e digno de ser vivido. Isto explica, pois, o modo como a memória da presença funciona.

Winnicott afirma que, na experiência da ilusão de onipotência, "[...] o lactente experimentando sob a tutela do ambiente facilitador cria e recria o objeto, e o processo gradativamente se forma dentro dele e adquire um apoio na memória" (Winnicott, 1963c/1983, p. 164). Embora não explicite que memória essa, entendemos que se trata da experiência repetida da presença materna, a qual possibilita ao bebê criar o mundo (neste momento representado pela mãe). Sua presença confiável é a base para a constituição do objeto subjetivo, pois, ao criar a mãe como objeto subjetivo, por meio da ilusão de contato que tem na presença, constância, ele também vai se constituindo pelo encontro e amadurecimento que essa presença proporciona.

A experiência de confiança no ambiente, possibilitada no início pela experiência de criação do objeto subjetivo, é salutar para o futuro desenvolvimento do bebê, é a base para as relações. O que pode ser constituído nas relações iniciais entre mãe-bebê o acompanham no decorrer da vida, pois sua história começa ali. A ênfase dada por Winnicott nesse período revela a fragilidade existencial sentida pelo bebê. No começo, tudo é precário, incerto. É preciso uma continuidade, previsibilidade para que o senso de confiança de que o bebê será amparado e acolhido possa se sedimentar. Consoante ao autor, vimos que a constância dessa adaptação materna ao bebê "[...] durante certo período de tempo, origina nele, e na criança que cresce, um sentimento de confiança. A confiança do bebê na fidedignidade da mãe e, portanto, na de outras pessoas e coisas, torna possível uma separação do não-eu a partir do eu" (Winnicott, 1971d/1975, p. 151), crença constituída, em nossa compreensão, pela memória da presença.

Compreendemos que esse relacionamento profundo entre mãe e bebê instaura e funciona como protótipo do que ocorrerá na fase de dependência relativa, quando as relações com o mundo, percebido como externo ao bebê, começam a se realizar. É a crença nessa primeira relação que o acompanhará em todas as outras. Quando constituído por essa confiança, o bebê, no decorrer de seu desenvolvimento, poderá estabelecer relações de objeto, fazer uso do objeto, mas, para isso, precisa antes conviver com o objeto subjetivamente concebido por ele. O que só é possível por meio da maternagem suficientemente boa, capaz do holding (segurar), handling (manejar), de apresentar objetos ao bebê (como pequenas doses do mundo) e, com isso, propicia-lhe a continuidade de ser.

Winnicott (1960/1983; 1988/1990) afirma que quando o cuidado é satisfatório para o bebê não há uma percepção clara dele, "[...] a adaptação ativa às necessidades mais simples (o instinto ainda não tomou posse de seu lugar central) permite ao indivíduo SER sem ter que tomar conhecimento do ambiente", pois é parte do continuar a ser, transita entre o mundo interno e o externo de um modo que não exige atenção do bebê (1988g/1990, p. 151). Compreendemos, assim, que até a conquista de um eu, não podemos dizer que uma presença é percebida, elaborada psiquicamente, mas é, sobretudo, parte da vivência daquele ser que está se constituindo pela memória de ser cuidado.

Participa desse processo complexo de integração outra importante conquista no amadurecimento do bebê propiciada pelo ambiente, e à qual Winnicott nomeará de inserção da psique no soma, ou personalização, caraterizada pela integração do ego no corpo por meio do handling e da integração no tempo e no espaço que ele propicia. A personalização se dá pelo toque materno, de modo que "[...] o bebê passa a sentir, como uma consequência do toque amoroso, que seu corpo constitui-se nele mesmo (o bebê) e/ou que seu sentimento de self centra-se no interior de seu próprio corpo" (Abram, 1996, p. 138). Vê-se, então, que a relação entre psique e corpo não é dada, é parte do desenvolvimento primitivo e ocorre por meio dessa integração de fundamental importância para desenvolvimento saudável do self, que existe em relação com o corpo e não separado deste como algo isolado. Winnicott (1988/1990, 1988/1990, p. 37) explica:

A base da psique é o soma, e, em termos de evolução, o soma foi o primeiro a chegar. A psique começa como uma elaboração imaginativa das funções somáticas, tendo como sua tarefa mais importante a interligação das experiências passadas com as potencialidades, a consciência do momento presente e as expectativas para o futuro. É desta forma que o self passa a existir. A psique não tem, obviamente, existência alguma fora do cérebro e do funcionamento cerebral.

Por meio desta afirmação, o autor explica o funcionamento da integração temporal e espacial do bebê. O modo como é manejado o faz sentir o próprio corpo, viver um tempo entre ser levantado do berço, por exemplo, e levado ao colo ou a outro lugar. Essas vivências vão possibilitando ao bebê experimentar-se como algo unitário. A união das partes do corpo pelas mãos maternas, pelo toque, pelo contato une as partes que estavam separadas, do ponto de vista do bebê. Ser unido, tornado corpo, possibilita ao bebê experimentar-se como alguém separado do ambiente, de forma que "[...] o manuseio da pele no cuidado do bebê é um fator importante no estímulo a uma vida saudável dentro do corpo, da mesma forma como os modos de segurar a criança auxiliam o processo de integração" (Winnicott, 1988g/1990, p. 143). A maternagem, por meio do holding, do sustentar o bebê, vai possibilitando experiências integradoras, construindo a base para que ele possa reconhecer-se como alguém inteiro no estádio do Eu sou:

No começo do 'eu sou' o individuo é, por assim dizer, cru, não defendido, vulnerável, potencialmente paranoide. O indivíduo só pode atingir o estágio do 'eu sou' porque existe um meio que é protetor; o meio protetor é de fato a mãe preocupada com sua criança e orientada para as necessidades do ego infantil através da sua identificação com a própria criança (Winnicott, 1958/1983, p. 35).

Vê-se, assim, que a interconexão corpo-psiquismo também se dá de forma processual e contribui para a constituição da psique que poderá elaborar imaginativamente o corpo que o bebê habita. Conforme Dias (2003, p. p. 106), esse corpo tocado é capaz de dar sentido para o que experimenta, posto que "[...] seja o que for que esteja sendo experienciado - e tudo, no início, é experienciado no corpo e por meio do corpo - está sendo personalizado pela elaboração imaginativa". Conforme Winnicott (1960/1983, p. 45), "[...] a base dessa inserção é a ligação das experiências funcionais motoras e sensoriais com o novo estado do lactente de ser uma pessoa". Com isso, irá se solidificando a separação eu e não-eu, e o bebê vai se constituindo como um unitário, possuidor de um mundo "[...] interior e um exterior, e um esquema corporal. Deste modo, começam a ter sentido as funções de entrada e saída; além disso, se torna gradualmente significativo pressupor uma realidade psíquica interna ou pessoal para o lactente" (Winnicott, 1960/1983, p. 45).

Do mesmo modo, Winnicott (1988c/1990, p. 71) mostra que a psique é diferente da mente e/ou intelecto, sendo esta "[...] uma parte especializada da psique que não está necessariamente ligada ao corpo, embora dependa, evidentemente, do funcionamento cerebral", tendo assim funções distintas em termos de amadurecimento emocional. Segundo o autor, no desenvolvimento natural, a mente contribui para a compreensão do bebê sobre o ambiente suficientemente bom, passível de falhas, já que é suficiente e não perfeito. É a mente (intelecto) do bebê que "[...] transforma a falha relativa da adaptação num êxito adaptativo. O que libera a mãe da necessidade de ser quase perfeita é a compreensão do bebê" (Winnicott, 1949/2000a, p. 335). Quando isso ocorre, o intelecto funciona de maneira esperada, ajudando na adaptação do bebê ao ambiente.

Compreende-se, assim, que a experiência psicossomática é essencial e enriquecedora para o amadurecimento do bebê, de modo que "[...] na saúde a mente não usurpa as funções do ambiente", pois ele está lá ativamente por meio do cuidado e manejo com o bebê (Winnicott, 1949/2000a, p. 336). Neste aspecto, a função da pele é destacada, pois, segundo o autor, ela "[...] é de importância óbvia no processo de localização da psique exatamente no e dentro do corpo" (Winnicott, 1988g/1990, p. 143). A pele é a membrana limite entre o eu e não-eu, que só pode ser parte do bebê ao ser tocada, tornada viva pela força, calor, ritmo, enfim, por tudo que caracteriza o contato humano e materno. Quando isto acontece, vemos que "[...] a psique começa a viver no soma e uma vida psicossomática de um indivíduo se inicia" (Winnicott, 1962/1983, p. 60).

Ou seja, o bebê precisa de uma mãe atenta às necessidades específicas e únicas daquele tempo e momento; o cuidado como necessidade externa ao tempo do bebê é percebido como técnica, como um cuidado geral, programado, portanto irreal para o bebê, visto não ser seu por não participar da experiência de integração e nem oportunizar a experiência de ilusão de onipotência. De acordo com o autor,

[...] no desenvolvimento normal, nesse estágio o lactente retém a capacidade de reexperimentar estados não-integrados. Mas isso depende da continuidade de um cuidado materno consistente ou da reunião no lactente de recordações do cuidado materno começando gradualmente a serem percebidas como tais (Winnicott, 1960/1983, p. 44).

Ou seja, essas recordações do cuidado, passam a fazer parte do que denominamos aqui como memória da presença, pela confiabilidade e constância do ambiente materno disponível. Entendemos que o desenvolvimento de uma memória percebida, capaz de ser retida pelo intelecto de modo saudável e, portanto, diferente e posterior ao que designamos de memória da presença, só poderá aparecer posteriormente no decurso do amadurecimento. Pois, como veremos, a constância e permanência da maternagem resultam no desenvolvimento do lactente no estágio do Eu-sou, isto é, um eu separado da mãe, portanto próprio e capaz de perceber e relacionar-se com o mundo não-eu. Desta forma, compreendemos que, para que um eu se forme e possa ter essa memória percebida ou representacional, em termos de saúde emocional, é preciso que a constância, a permanência de cuidados seja sentida nos primórdios da vida do bebê, por meio da memória da presença. É do acúmulo de experiências da presença materna, possibilitando a vivência da ilusão de onipotência, que constituí um eu, que poderá, então, ter um psiquismo com lembranças registradas.

Compreendemos, assim, que o mundo interno e pessoal do bebê, conquistado pelas repetidas experiência de integração, só pode se constituir devido ao que estamos entendendo como memória da presença, na confiança em poder habitar por alguns instantes um universo particular e incomunicável, seu mundo subjetivo de onde parte o movimento em direção ao mundo objetivo que, para o bebê, é uma extensão do seu próprio corpo. Portanto, é porque encontra a mãe, quando retorna do estado de solidão, que o bebê pode experimentar seu mundo pessoal. Winnicott demonstra, porém, o paradoxo dessa capacidade sofisticada de ficar só, fundada na confiança da presença, visto que "[...] a habilidade de estar realmente só tem sua base na experiência precoce de estar só na presença de alguém" (Winnicott, 1958/1983, p. 34).

Por meio da capacidade de estar só, momento precioso, "[...] surge uma sensação ou impulso", que será "[...] sentida como real e será verdadeiramente uma experiência pessoal" (Winnicott, 1958/1983, p. 36), um gesto criativo do bebê. Com isso, o autor demonstra que o impulso do id é um impulso criador, isto é, experiência pessoal e não reação ao mundo, mas gesto singular em direção a ele. Defendemos que o que chamamos de memória da presença é condição para a criação genuína, gesto no mundo, o qual só pode ocorrer mediante um ambiente acolhedor. A presença de alguém que não exige nada do bebê, mas está ali somente e essencialmente como presença, permite ao bebê a experiência da solidão e o paradoxo de estar só na presença de alguém e, a partir disso, poder criar o "mundo". É apenas "[...] sob essas circunstâncias que a criança pode ter uma experiência que é sentida como real" (Winnicott, 1958/1983, p. 36).

Winnicott explica, ainda, que essa capacidade de estar só se realiza pela repetição de experiências do bebê em encontrar a mãe quando vai ao encontro dela. Essa repetição se constitui internamente como uma imago não durável, visto ser "[...] o começo da formação, na mente ou na realidade psíquica pessoal do bebê, de uma imagem do objeto" (Winnicott, 1971c/1975, p. 135). Essa imagem não durável e nem perceptível intelectualmente é sentida pelo que designamos de memória da presença, pois o bebê consegue manter viva a presença da mãe "internamente", confiante de que ela estará lá, assim que essa imagem esmaecer. Ainda não há representação da mãe como objeto externo, é o começo dessa formação, portanto ainda é precária e sujeita a descontinuidades. Por conta disso, compreendemos que o bebê sente essa presença mais do que é capaz de saber dela.

Segundo Winnicott (1971c/1975), a constituição da imagem materna funciona da seguinte maneira:

O sentimento de que a mãe existe dura x minutos. Se a mãe ficar distante mais do que x minutos, então a imago se esmaece e, juntamente com ela, cessa a capacidade do bebê utilizar o símbolo da união. O bebê fica aflito, mas essa aflição é logo corrigida, pois a mãe retorna em x y minutos. Em x y minutos, o bebê não se alterou. Em x y z minutos, o bebê ficou traumatizado. Em x y z minutos, o retorno da mãe não corrige o estado alterado do bebê (Winnicott, 1971c/1975, p. 135).

Por meio desta experiência, a psique que se forma é apresentada também à condição temporal, começa a constituir um passado, um presente e um futuro, pois é capaz de lembrar-se da presença materna e ir constituindo um passado, bem como ir ao encontro do mundo por meio dessa confiança e lembrança no presente e prever um futuro com base na esperança de que a mãe continuará lá, cuidando e reconhecendo suas necessidades. Se tudo correr bem, o bebê começa a se conhecer como um eu separado do ambiente, caminhando para o final da fase de dependência absoluta.

Insurgindo desta capacidade de elaborar imaginativamente seu corpo, isto é, de atribuir sentido próprio às suas experiências corporais, por meio dos "[...] elementos, sentimentos e funções somáticas, ou seja, da vitalidade física", a psique integrada ao soma é capaz de reconhecer a integração no tempo e no espaço (Winnicott, 1949/2000a, p. 333). Com isso, ela "[...] dá sentido ao sentimento do eu, e justifica nossa percepção de que dentro daquele corpo existe um indivíduo", que se sente real e pertencente a si mesmo (Winnicott, 1988a/1990, p. 46).

Com a conquista do estado unitário chamado eu, "[...] segue a história toda do processo secundário e da função simbólica, e da organização do conteúdo psíquico pessoal, que forma a base do sonho e das relações vivas" (Winnicott, 1960/1983, p. 45), ou seja, começa a existir um eu capaz de se reconhecer como alguém.

A partir disso, podemos postular que há uma marca e inscrição do cuidado e da maternagem que vão se constituindo como memória da presença do cuidado na vida do bebê. A capacidade de estar só somente se realiza na confiabilidade no ambiente, na estabilidade de que o cuidado não cessará neste período de descanso e relaxamento, de que a mãe não irá sucumbir enquanto o bebê devaneia. Esse é "[...] o paradoxo de que a capacidade de ficar só se baseia na experiência de estar só na presença de alguém, e que sem uma suficiência dessa experiência a capacidade de ficar só não pode se desenvolver" (Winnicott, 1958/1983, p. 35).

Winnicott explica que previsibilidade do cuidado materno insere uma forma de experimentar a temporalidade, visto que o bebê torna-se capaz de prever (esperar) a presença da mãe pela continuidade proporcionada por seu cuidado suficientemente bom. Afirma assim,

[...] estar só na presença de alguém pode ocorrer num estágio bem precoce, quando a imaturidade do ego é naturalmente compensada pelo apoio do ego da mãe. À medida que o tempo passa o individuo introjeta o ego auxiliar da mãe e dessa maneira se torna capaz de ficar só sem apoio frequente da mãe ou de um símbolo da mãe (WINNICOTT, 1958/1983, p. 34).

É na fase de dependência absoluta, pois, que a psique torna-se algo diferente da mente e da inteligência e, ao mesmo tempo, integrada ao corpo. É a partir da conquista da psique que podemos dizer que alguém começa a se constituir. Esta é uma grande conquista,

[...] a integração significa responsabilidade, ao mesmo tempo que consciência, um conjunto de memórias, e a junção de passado, presente e futuro dentro de um relacionamento. Assim, ela praticamente significa o começo de uma psicologia humana (Winnicott, 1988f/1990, p. 140).

A constituição psíquica como base para um mundo interior em comunicação com o mundo exterior se forma nas repetidas experiências de integração as quais nos apontam para um funcionamento da memória da presença, condição para a realização das demais conquistas do amadurecimento e para um caminho considerado saudável dentro da perspectiva winnicottiana. Esta presença será a base para os futuros amadurecimentos, como veremos nas fases seguintes.

 

3. Dependência relativa

Quando tudo corre bem, ao final da fase de dependência absoluta, assistimos à constituição da psique e, com ela, formas mais sofisticadas na relação do bebê com o mundo, já que o seu desenvolvimento intelectual também está amadurecendo. Segundo Winnicott, neste momento, "[...] o lactente muda de um relacionamento com um objeto subjetivamente concebido para uma relação com um objeto objetivamente percebido" (1960/1983, p.45, grifos nossos) e, com isso, grandes mudanças na forma como se relaciona com o mundo se operam, a começar pela relação de objeto.

A dependência relativa se caracteriza, especialmente, por uma diminuição da dependência do ambiente e, com isso, de sua capacidade de adaptar-se a suas pequenas falhas, de modo que "[...] se pode distinguir entre a dependência que está além da capacidade de percepção do lactente e a dependência da qual o lactente pode tomar conhecimento" (Winnicott, 1963b/1983, p. 83). O que ocorre é que o bebê começa a conhecer o ambiente como externo, e torna-se capaz, por exemplo, de perceber quando será alimentado, já que "[...] pode esperar uns poucos minutos porque os ruídos na cozinha indicam que a comida está prestes a aparecer. Ao invés de simplesmente ficar excitado pelos ruídos, o lactente usa esses novos itens para se capacitar a esperar" (Winnicott, 1963b/1983, p. 83).

A dependência relativa dura em média dos seis meses aos dois anos, tempo no qual o bebê está se capacitando para suportar a ausência materna e para experimentar sentimentos em relação a isso, visto que "[...] a criança emerge de um estado de fusão com a mãe, um processo que exige desta a capacidade tanto de amar como de odiar" (Winnicott, 1959-1964/1983, p. 116), atingindo, assim, a chamada posição depressiva, que não será discutida aqui.

Deste modo, um dos mais importantes objetivos pertinentes à separação eu e não-eu desse estágio é a realização do desmame gradual, no qual "[...] a principal tarefa da mãe (após propiciar oportunidade para a ilusão) é a desilusão" (Winnicott, 1971/1975, p. 28), processo no qual o bebê experimenta saber que o seio não foi criação sua, mas é parte do mundo externo, do corpo da mãe. Entretanto, só faz sentido falar em desmame se a oportunidade para a vivência da ilusão foi criada e o bebê pode experimentar gradualmente a perda dessa pela provisão que o ambiente forneceu, de modo que "[...] o simples término da alimentação ao seio não constitui desmame" (Winnicott, 1971/1975, p. 28).

Quando o desmame não se realiza, ou seja, ocorre falha ambiental em não atender à necessidade do bebê de experimentar a desadaptação, tal experiência pode se tornar traumática, pois impossibilita o amadurecimento. Por isso, na perspectiva winnicottiana, a adaptação ambiental às necessidades do bebê não são fixas, mas dependem da relação, da intimidade e da comunicação silenciosa que se estabelece entre a dupla mãe-bebê. Segundo Dias (2003, p. 3), a possibilidade de o aspecto traumático se concretizar, "[...] continuará a valer para todos os estágios subsequentes - se o bebê, tendo avançado em seu processo, precisar retornar por algum tempo a um estágio anterior e a mãe não puder reconhecer e aceitar o fato".

Deste modo, a premissa de que o mundo deve ser apresentado aos poucos e ao tempo do bebê não cessa. Ela continua nessa fase, tratando-se de "[...] algo que não pode ser feito por pensamento, nem pode ser manejado mecanicamente. Só pode ser feito pelo manejo contínuo por um ser humano que se revele continuamente ele mesmo, não há questão de perfeição aqui" (Winnicott, 1963b/1983, p. 83). Com isso, Winnicott mostra a importância de o manejo e de o desmame dessa fase serem realizados pela mãe, aquela que se constitui como presença e oportuniza a experiência da ilusão de onipotência e, com isso, a memória da presença.

Com a diminuição da dependência, o ambiente se torna mais sujeito às imperfeições. Imperfeições as quais o bebê que teve um bom começo está mais capacitado a suportar, por intermédio da experiência da desilusão de onipotência. É por meio desta que ele começa a perceber o mundo como algo externo, o que é necessário para que "[...] a falha ambiental, portanto, exerça seu papel positivo, possibilitando ao lactente começar a reconhecer um mundo que é repudiado" (Winnicott, 1963c, p. 165), com isso podemos dizer do início de uma relação de objeto.

Importante lembrar que assim como a apresentação do mundo ao bebê como sustentação das suas necessidades deve ser contínua e previsível, assim também o deve sua necessidade de desadaptação, pela gradual conquista de autonomia do ambiente materno quando ele começa a perceber sua dependência e sinalizar quando e como precisa de cuidado, por exemplo. Assim, "[...] o lactente pode se dar conta da necessidade de detalhes do cuidado materno, e pode de modo crescente relacioná-los ao impulso pessoal, e mais tarde, num tratamento psicanalítico, pode reproduzi-los na transferência3" (Winnicott, 1960/1983, p. 46) como veremos quando tratarmos de casos de regressão de pacientes neuróticos.

Defendemos aqui a existência, também nessa fase, de um funcionamento de memória que se sofistica, já que o bebê está construindo a imagem interna da mãe, assim como a percepção dela como externa a ele, com cheiro, força e ruídos próprios. Então, se a mãe se ausenta mais do que o bebê é capaz de suportar, ele experimenta ansiedade e, com ela, sentimentos ambíguos em relação à mãe, visto que ela não se ateve à sua necessidade e desejo (que começa a existir). De modo que, "[...] uma mãe faz muito ao saber as necessidades do ego da criança, sendo tudo isso não registrado na mente da criança" (Winnicott, 1963b/1983, p. 83). Conforme Winnicott, nesta fase, essa impressão (imagem) está se constituindo pelo amadurecimento do intelecto, anterior a um funcionamento mental mais maduro.

A conquista da relação de objeto nos mostra uma mudança de perspectiva do ponto de vista do bebê em relação ao mundo. É a partir dela que ele começa a se relacionar e pode vivenciar os primeiros contatos com a realidade externa que, no início, ainda é permeada por uma área intermediária. É nela que ocorrem os fenômenos transicionais, os quais inauguram uma nova e única forma de relação do bebê com o mundo externo, pois dizem de um modo de relação que não está nem somente no mundo subjetivo e nem totalmente no mundo objetivo. Ela ocorre no entre e, por isso, é tão salutar e produtiva para todos os modos de relação da vida do bebê, da criança, do adulto e do idoso. Winnicott (1971/1975) entende que essa área intermediaria é fonte da capacidade criativa inerente a todo ser humano. De modo que, a despeito de "[...] pertencer à realidade interna ou externa (compartilhada), constitui a parte maior da experiência do bebê e, através da vida, é conservada na experimentação intensa que diz respeito às artes, à religião, ao viver imaginativo e ao trabalho científico criador" (Winnicott, 1971/1975, p. 30).

Assistimos, nesta fase, à tensão entre o mundo subjetivo e o mundo objetivo os quais se impõem ao bebê, visto que este experimentou a desilusão de perceber que o mundo o qual acreditava ter criado, em verdade, já existia. Esta é uma tensão inerente ao viver e nela se produz uma experiência positiva quando há continuidade de um ambiente bom, capaz de propiciar ao bebê a vivência nessa área intermediaria dos objetos transicionais.

No que se refere aos propósitos de nosso artigo, é importante reconhecer que a experiência com os objetos transicionais só pode ocorrer depois das conquistas do estado unitário do eu, o qual depende, do nosso ponto de vista, da constituição da memória da presença, ocasionada na experiência de ilusão de onipotência. Winnicott traz importantes contribuições acerca dos fenômenos transicionais e o modo de funcionamento deles com o ambiente externo e o bebê, os quais extrapolam nossos objetivos.

No entanto, é importante considerar que nessa fase o bebê, por ter uma psique mais aprimorada, já começa a constituir pequenas amostras do que compreendemos como uma memória representacional do ambiente materno, a qual se mistura com o objeto transicional. Por isso, o ursinho, a fralda, a chupeta, que podem se tornar objetos transicionais só fazem sentido para a experiência do bebê na medida em que são alimentados pela presença efetiva da mãe, no cuidado. Sem essa presença, o objeto deixa de funcionar e, portanto, morre. Ao morrer o objeto e, com ele, a área intermediária de relação entre o mundo subjetivo e o mundo objetivo, morre também a capacidade criativa do bebê de instaurar um modo próprio e de dar sentido à realidade, constituída pela criatividade e fundamental para o continuar a ser do bebê. Quando essa experiência é positiva, ofertada pelo ambiente suficientemente bom, o bebê, ao final dessa fase, se torna capaz de experienciar o mundo externo cada vez mais sofisticadamente.

Caminhando para o final da fase de dependência relativa, há uma nova mudança na relação do bebê com o mundo externo, que agora se impõe de fato ao bebê, visto que não mais se adapta como o ambiente materno o fazia. A conquista da relação de objeto, da relação com o objeto transicional, leva-o agora ao uso do objeto. O uso do objeto se caracteriza por uma nova mudança na perspectiva do bebê, que passa a possuir o objeto e, com isso, vê a necessidade de destruí-lo, já que não é mais só criação sua. Vimos assim, na dependência absoluta, o bebê criando o objeto subjetivo e, ao final dessa fase, estabelecendo uma relação de posse com o objeto. Neste processo:

Entre o relacionamento e o uso existe a colocação, pelo sujeito, do objeto fora da área de seu controle onipotente, isto é, a percepção, pelo sujeito, do objeto como fenômeno externo, não como entidade projetiva; na verdade, o reconhecimento do objeto como entidade por seu próprio direito (Winnicott, 1971b/1975, p. 125).

A experiência de colocar o objeto fora de sua onipotência é oportunizada pela destruição do objeto subjetivo, mas a grande conquista da relação do bebê com um mundo externo a ele é dada pela sobrevivência deste objeto, que foi destruído subjetivamente. A partir disso, podemos dizer que uma relação com um mundo objetivo, externo, começa de fato a existir. Segundo Winnicott (1971b/1975, p. 126) "[...] é a destruição do objeto que o coloca fora da área do controle onipotente do sujeito. Dessa forma, o objeto desenvolve sua própria autonomia e vida e (se sobrevive) contribui para o sujeito, de acordo com suas próprias propriedades".

Ao destruir o objeto, o sujeito pode usá-lo e, com isso, destruí-lo sempre na fantasia, pois há um objeto real sobrevivendo. A mãe que sobrevive a essa destruição oportuniza ao bebê experienciar sua agressividade e seu amor como partes do desenvolvimento saudável de todo indivíduo. As consequências da não experimentação da destruição do objeto são importantes no que se refere ao desenvolvimento com o mundo externo, visto impedirem que o bebê se relacione com o objeto como totalmente externo a ele e, portanto, como algo que pode ser usado subjetivamente.

As condições ofertadas pelo ambiente bom nos primórdios da vida continuam como base para a continuidade do desenvolvimento emocional do bebê. Dias (2003, p. 248) esclarece "[...] o impulso do bebê de destruir é real, e ele precisa experimentá-lo, mas só poderá fazê-lo se houver segurança, isto é, se não houver risco de o objeto sucumbir", ou seja, se o bebê não puder confiar no ambiente, ele não poderá experimentar sua agressividade. E aqui a agressividade se refere à capacidade do bebê de expulsar o objeto subjetivo para a realidade e, com isso, amadurecer na forma como se relaciona com o ambiente externo. A conquista dessa destruição subjetiva cria e oportuniza um avanço na relação do bebê com o mundo, pois, como vimos, "[...] caso o objeto sobreviva, o impulso (destrutivo) se transforma na capacidade de usar o objeto que sobreviveu" (2003, p. 248).

Para Winnicott, a mudança para o uso do objeto é o que efetivamente instala o início da fantasia, de forma que,

[...] o sujeito diz ao objeto: 'Eu te destruí', e o objeto ali está, recebendo a comunicação. Daí por diante, o sujeito diz: 'Eu te destruí. Eu te amo. Tua sobrevivência à destruição que te fiz sofrer, confere valor à tua existência, para mim. Enquanto estou te amando, estou permanentemente te destruindo na fantasia' (inconsciente) (Winnicott, 1971b/1975, p.126).

A fantasia habitando o mundo interno chega ao final dessa fase com um psiquismo formado, a intelectualidade amadurecendo, e dá lugar para a constituição do bebê como um eu totalmente separado do ambiente materno, na constituição do Eu-Sou.

 

4. Rumo à independência

A conquista desta fase é a vivência pelo bebê de cada vez menos adaptação do ambiente materno, pois agora ele já tem condições mais elaboradas de lidar com o mundo. A base foi bem constituída, a confiança no ambiente que constituiu a memória da presença dá espaço agora à experiência com uma memória representacional e isto é um passo importante na perspectiva winnicottiana. Conforme Winnicott, o bebê consegue viver sem cuidado real, mas isso "[...] é conseguido através do acúmulo de recordações do cuidado, da projeção de necessidades pessoais e da introjeção de detalhes do cuidado materno, com o desenvolvimento da confiança no meio" (1960/1983, p. 46, grifos nossos).

As recordações do cuidado referem-se às experiências de lembrança sentida de como é esse cuidado, ao passo que a introjeção dos cuidados maternos dize respeito à toda gama de cuidado realizado pela adaptação materna nas fases anteriores que não são sabidas pelo indivíduo, mas participam da sua constituição, habitam sua experiência com o mundo. Conforme discutimos anteriormente, elas são constituídas como memória da presença e são a base para todas as demais conquistas do indivíduo no decorrer da vida.

Nesta fase, o bebê com mais de dois anos já está mais apto para se relacionar com o mundo de maneira inteira e, com isso, queremos dizer que se reconhece como alguém completamente diferente de tudo aquilo que é não-eu. Assim, "[...] existe um eu (self), que contém tudo, ao invés de elementos dissociados colocados em compartimentos, ou dispersos e abandonados" (Winnicott, 1971a/1975, p. 98), uma importante conquista do amadurecimento.

A fase em que ele se percebe como alguém é o estádio do Eu-sou, em que "[...] ele se torna uma pessoa total, consciente de si mesma e consciente da existência dos outros" (Winnicott, 1988b/1990, p.56). A importância dessa perspectiva para o bebê é que a partir de ser ele pode fazer algo no mundo e lidar com isso de maneira nova. Segundo Winnicott (1971e/1975, p. 177), "[...] o estádio possui significação devido à necessidade do indivíduo de chegar ao ser antes do fazer. 'Eu sou' tem de preceder 'eu faço', pois, de outra maneira, 'eu faço' torna-se desprovido de significado para o indivíduo".

Com isso, o bebê começa a operar ações no mundo e pode começar a lidar com suas consequências. Ele faz e percebe que isso gera mudanças no mundo externo e um matiz de sentimentos é descoberto a partir de então. Além disso, as relações interpessoais começam a ganhar contornos mais complexos. Segundo o autor, "[...] a criança torna-se autônoma e é capaz de assumir responsabilidades por si mesma, independentemente de um apoio de ego altamente adaptativo" (Winnicott, 1971e/1975, p. 177).

Para Winnicott (1988c/1990, p. 88), somente nessa fase é que faz sentido falar de relacionamento, "[...] indicando algo que ocorre entre pessoas, o EU e os objetos". Deste modo, a primeira relação objetal constituída pela mãe e, em seguida, pelo pai "[...] é o triângulo simples que apresenta as dificuldades e também toda a riqueza da experiência humana" (Winnicott, 1988b/1990, p. 57). É na relação triangular ocasionada pela mãe e pelo pai e, posteriormente, pelas demais relações sociais, que o bebê experimenta a complexidade das relações humanas. É essa composição que está à espera do bebê quando nasce, e é nela que "[...] os pais fornecem também a continuidade no tempo, talvez uma continuidade desde a concepção da criança até o fim da dependência, que caracteriza o término da adolescência" (Winnicott, 1988b/1990, p. 57).

A independência só existe na medida em que comporta a possibilidade da dependência, aquela que deixa aberto ao indivíduo a possibilidade de voltar à dependência, reconhecendo-a como parte do viver, seja nas experiências do brincar criativo ou do descanso. Experiências essenciais que foram oportunizadas no início da vida pela confiabilidade no ambiente que se constitui como memória da presença. Esta presença não sabida é sempre o "lugar" para onde um indivíduo constituído como alguém, como um eu unitário e, portanto, em condições mais saudáveis que os pacientes psicóticos, pode voltar, como apontaremos na experiência clínica da regressão à dependência.

Lembrando que "[...] o que é adaptativo ou 'bom' no ambiente está construído no armazém de experiências do lactente como se fosse uma qualidade do self, indistinguível, de início (pelo lactente), do funcionamento sadio do próprio lactente" (Winnicott, 1963a, p. 91), consolidando, então, do nosso ponto de vista, um lugar no passado que se atualiza no presente pela oportunidade de experimentar a dependência salutar, na qual o bebê, num estado fusional com a mãe, podia sentir o amor devotado como algo seu, parte do seu crescimento.

 

5. Memória da presença no setting analítico

De imediato, é preciso compreender que, para Winnicott (1954/2000, p. 377), regressão "[...] indica simplesmente o contrário de progresso". O progresso iniciado, como vimos em sua teoria do amadurecimento, desde a vida intrauterina, "[...] consiste na evolução do indivíduo, psicossoma, personalidade e mente junto com (eventualmente) a formação do caráter e a socialização" (Winnicott, 1984, p. 377). Deste modo, não é possível reverter este progresso sem condições que garantam sua continuidade, o que, na leitura winnicottiana, se dá por meio de provisões ambientais. O autor postula a necessidade da "regressão ao ambiente" e não ao trauma de forma isolado, pois os dois ocorrem conjuntamente. Com isso, interessa-se pelo contexto ambiental e "[...] não apenas a regressão a pontos bons ou maus nas experiências instintivas do indivíduo, mas também pontos bons ou maus na adaptação do ambiente às necessidades do ego e do id na história do indivíduo" (Winnicott, 1954/2000, p. 380).

Sendo assim, o diagnóstico empregado pelo analista é elementar, pois é a partir deste que se pode chegar à idade emocional (em termos das fases do amadurecimento) do paciente e realizar um trabalho atento às suas necessidades. Winnicott (1988/1990) compreende que cada indivíduo nunca abandona inteiramente as fases iniciais da vida, seja para retornar à experiência positiva e acolhedora vivida pelo ambiente suficientemente bom, seja, nos casos negativos, para retornar à vivência de ausência do ambiente suficientemente bom, buscando por aquilo que não viveu e precisa ser experienciado.

E é por meio do diagnóstico que o autor classifica os casos em três modalidades distintas. São elas (Winnicott, 1954/2000, p. 375):

a) "[...] pacientes que funcionam em termos de pessoa inteira, cujas dificuldades localizam-se no reino das relações interpessoais" (Winnicott, 1954/2000, p. 375), os quais terão na análise clássica seu tratamento;

b) "[...] pacientes nos quais a personalidade recém-começou a integrar-se e a tornar-se algo com o qual se pode contar", serão os chamados pacientes fronteiriços, que oscilam entre a técnica da análise clássica e outras adaptações do manejo devido, em especial, à premência da "[...] sobrevivência do analista na condição de fator dinâmico4" do tratamento (Winnicott, 1954/2000, p. 375);

c) "[...] pacientes cuja análise deverá lidar com os estágios iniciais do desenvolvimento emocional, remota e imediatamente anteriores ao estabelecimento da personalidade como uma entidade, e anteriores à aquisição do status de unidade em termos de espaço-tempo" (Winnicott, 1954/2000, p. 375). Nestes casos, a importância maior está no manejo, para além da técnica analítica.

A partir do diagnóstico, as condições necessárias passam a ser ofertadas, de modo que, para o autor, a função da análise na regressão e, mais especificamente, do setting tornam-se expressas pela presença do analista por meio do manejo, mais do que pela técnica interpretativa, do mesmo modo que o ambiente suficientemente bom ofertado ao bebê pela maternagem colabora para seu desenvolvimento. São nessas condições que a regressão pode ocorrer, senão não há como revertê-lo em desenvolvimento emocional, "[...] para que o progresso seja revertido, é preciso que haja no indivíduo uma organização que possibilite o acontecimento de uma regressão" (Winnicott, 1954/2000, p. 377).

A função do setting é possibilitar um ambiente suficientemente bom ao paciente para retomar seu processo de amadurecimento que está sempre no continuar da vida, está acontecendo, não é dado como pronto, acabado; ele "[...] parte da capacidade do indivíduo de se curar. Dá a indicação do paciente ao analista de como o analista deve se comportar mais do que como ele deve interpretar" (Winnicott, 1959-1964, p. 117).

O autor sustenta dois tipos de regressão. Uma delas opera como "[...] retroação em uma direção que constitui o oposto do movimento para frente do desenvolvimento. Vê-se aspectos regressivos aparecerem e reconhece-se que os mecanismos de crescimento do indivíduo tornaram-se bloqueados" (Winnicott, 1967/1994, p. 153). O outro tipo de regressão, muito diferente, é o vivenciado nos casos de um ambiente suficientemente bom, constituindo uma memória da presença e, por isso, encontrada novamente na regressão, visto ser aquela no qual o paciente "[...] regride por causa de uma nova provisão ambiental que permite a dependência" (Winnicott, 1967/1994, p. 154). Compreendemos que o paciente experimenta novamente o ambiente suficientemente bom e, por isso, pode regredir, pois já "conhece" esse ambiente bom e é capaz de lidar com ele pela relação transferencial.

A relação transferencial, em cada um destes casos, também terá necessidades distintas, mas a premissa da relação analítica é constituída na oferta ao paciente de repetidas experiências integradoras por meio do acolhimento e reconhecimento de suas necessidades nem sempre possíveis de serem verbalizadas e, por vezes, de extrema dependência, como no caso dos pacientes psicóticos.

A regressão também será caracterizada como um movimento saudável, pois carrega consigo um processo de cura. Regressão, para Winnicott (1954/2000), significa regressão à dependência, o que só pode ocorrer em relação ao ambiente. Não se trata, portanto, de regressão a um ponto de fixação, mas à fase de dependência na qual alguma conquista não foi realizada, paralisando o crescimento emocional. Abram (1996, p. 204) enfatiza que a regressão à dependência difere do fenômeno conhecido como "paciente regredido", haja vista que a regressão "[...] está relacionada ao paciente que, estando em análise, regride à dependência em função da relação transferencial", já o paciente regredido é aquele que "[...] ainda não pôde alcançar a maturidade do desenvolvimento emocional, provavelmente por causa de uma falha ambiental precoce" (Abram, 1996, p. 204).

Nos pacientes neuróticos, aqueles que constituíram um eu, o psicanalista atesta na análise de adultos, a mobilização do inconsciente reprimido, de modo que "[...] a origem dos sintomas neuróticos pode ser investigada no passado, ao tempo das pressões e tensões do período anterior à latência, quando o adulto era uma criança de 2 a 5 anos" (Winnicott, 1988b/1990, p. 55). É, portanto, uma criança com uma psique constituída, capaz da função imaginativa possibilitada pelo mundo interior, capaz de viver a repressão5. Conforme demonstramos anteriormente, tal mundo pode se constituir por meio da memória da presença, não racional, nem perceptível, por isso dela participam as fantasias, a imaginação e os traços das relações interpessoais, pois um eu existe e pode simbolizá-las.

É a partir dessa capacidade que uma criança pode, por exemplo, reconhecer experiências sobre as fases mais precoces de sua vida, tais como o parto, o nascimento. Por não terem sido traumáticas, essas experiências passadas oportunizam diferentes tipos de experiências sensoriais no presente relacionadas a essa fase. Conforme Winnicott (1949/2000, p. 272), é por isso que "[...] uma criança pode brincar de um modo que contém simbolismos ligados ao nascimento, assim como um adulto relata frequentemente fantasias que conscientemente ou não relacionam-se com o nascimento".

Tais elementos, quando presentes na regressão, são postos sob análise por meio da interpretação, possível pelo reconhecimento do ambiente suficientemente bom que colaborou para a constituição do eu deste paciente capaz de sofrer, se angustiar, amar e odiar. Deste modo, para Winnicott (1960a/1983, p. 146), "[...] a interpretação relaciona o fenômeno específico da transferência a uma parcela da realidade psíquica do paciente, e isso significa em alguns casos relacioná-la ao mesmo tempo a uma parcela da vida passada do paciente".

Nestes casos, a análise padrão é operada. Conforme o autor, "[...] faço psicanálise quando o diagnóstico é de que este indivíduo, em seu ambiente, quer psicanálise" (Winnicott, 1962a/1983, p. 154), de forma que nem todos podem sustentá-la. Compreendemos que somente pela constituição da psique e pela condição de reconhecer-se como alguém real é que a análise se faz possível, pois alguém pode desejar, constituir um mundo subjetivo seu: "[...] análise é para aqueles que a querem, necessitam e podem tolerá-la" (Winnicott, 1962a/1983, p. 154).

Na regressão de neuróticos, não se vê a necessidade de uma regressão real, que coloca o paciente na condição de dependência absoluta e exige do analista a sustentação dessa dependência tão singular e dolorosa, mas, sobretudo, a premência de retroceder "[...] para uma antiga situação de êxito" já vivida (Winnicott, 1954/2000, p. 379). A análise padrão exige do analista coisas diferentes, como sua "[...] capacidade para tolerar idéias e sentimentos (amor, ódio, ambivalência, etc.), para compreender processos, e também para demonstrar essa compreensão pela expressão adequada através da linguagem", interpretando o que o paciente já tem condições de reconhecer conscientemente (Winnicott, 1988c/1990, p.80).

A regressão não é temida, pelo contrário ela é fonte de vitalidade,

[...] devido a um senso de segurança propiciado pela mãe. Às vezes, segurança significa simplesmente ser adequadamente seguro no colo. Tanto em nível físico como em níveis mais sutis, a mãe ou o ambiente conservam a criança como que unida a si mesma, e a não-integração e reintegração podem processar-se sem ocasionar ansiedade (Winnicott, 1965, p. 7).

Em nossa compreensão, a regressão é ofertada como reconhecimento de algo já vivido, do ambiente bom que constitui a memória da presença e que possibilita o continuar a ser como movimento natural do processo maturacional individual. Winnicott reconhece a presença da memória deste ambiente suficientemente bom ao afirmar que, nos casos dos pacientes neuróticos, portanto, "mais saudáveis", há uma configuração positiva, na qual "[...] encontramos com mais clareza a memória de uma dependência, e portanto uma situação ambiental mais do que organização defensiva pessoal. A organização pessoal não é tão óbvia porque permaneceu fluida, menos defensiva" (Winnicott, 1954/2000, p. 380, grifo nosso).

Assim, por meio da transferência, a

[...] compreensão penetra mais fundo, e através da compreensão demonstrada pelo uso da linguagem, o analista embala o paciente fisicamente no passado, ou seja, na época em que havia necessidade de estar no colo, quando o amor significava adaptação e cuidados físicos (Winnicott, 1988c/1990, p.80).

Por meio desta experiência, a regressão proporciona ao paciente retomar angústias das fases pré-genitais, pois "[...] existem boas situações pré-genitais para as quais o indivíduo pode voltar ao deparar-se com dificuldades num momento posterior" (Winnicott, 1954/2000, p. 379). Com isso, uma interpretação "[...] correta e oportuna no tratamento analítico produz uma sensação de estar sendo fisicamente seguro, que é mais real (para o não-psicótico) do que se ele estivesse sendo concretamente embalado ou posto no colo" (Winnicott, 1988c/1990, p. 80). É nesta relação transferencial que o que compreendemos como memória da presença aparece nas fantasias da transferência, nas quais o paciente pode experimentar a regressão, visto que o "[...] terapeuta passa a se encarregar da organização das defesas no lugar do paciente" (Winnicott, 1988c/1990, p. 140).

Entendemos que, por ser constituído pela memória da presença, fortalecedora do self e parte da sua continuidade de ser, o paciente pode agora deparar-se com essa nova experiência de ser cuidado pelo analista e, ao mesmo tempo, experimentar as angústias referentes à fase do complexo de Édipo na relação transferencial. Tais sentimentos só podem ser vivenciados porque estamos lidando com um grupo de pacientes que puderam constituir um eu e, por isso, neurotizar, isto é, vivenciar sentimentos ambíguos com os objetos. Isto se dá tipicamente na relação com o analista, em que o paciente,

[...] vai gradativamente chegando a sentimentos de suspeita e ódio relacionados com o analista, fato que pode ser visto como tendo relação com o risco de se encontrar com outro paciente, ou com as interrupções devidas a fins-de-semana ou feriados (Winnicott, 1960a/1983, p. 146).

Ao descrever sobre a regressão de uma paciente neurótica, Winnicott (1971e/1975) reconhece o processo da análise como o da adaptação materna ao bebê, e a experiência realizada por este como o encontro com o objeto (analista), a relação de objeto, o uso e a posterior destruição (do analista). Tarefas fundamentais que possibilitaram a experiência do bebê à chegada do estádio do Eu sou e, na análise, lugar para o qual a paciente retorna (ou revive):

[...] descobri que a paciente necessitava de fases de regressão à dependência na transferência, com a consequente experiência do pleno efeito da adaptação à necessidade que, de fato, se baseia na capacidade do analista (mãe) em identificar-se com o paciente (bebê). No decurso desse tipo de experiência, há uma quantidade suficiente de fusão com o analista (mãe) para permitir ao paciente viver e relacionar-se sem necessidade de mecanismos identificatórios projetivos e introjetivos. Depois, vem o penoso processo pelo qual o objeto é separado do sujeito e o analista se separa, sendo colocado fora do controle onipotente do paciente. A sobrevivência do analista à destrutividade que é própria dessa mudança e a ela se segue, permite que aconteça algo de novo, que é o uso, pelo paciente, do analista, e o início de um novo relacionamento baseado em identificações cruzadas (Winnicott, 1971e/1975, p. 185).

Compreendemos, assim, que a regressão no setting de pacientes neuróticos funciona com base nas experiências conquistadas no início da vida, na fase da dependência absoluta, na qual o bebê experimentou reiteradamente a integração e, por isso, pode continuar seu desenvolvimento nas fases posteriores. Entendemos que a memória da presença, constituída nesta fase, possibilitou ao paciente experimentar o relaxamento, o descanso no mundo subjetivo sem medo de ser invadido, mas como o "lugar" para o qual ele retorna e vive na relação transferencial.

Conforme Winnicott, essa fase intermediária de não-integração, em que não se integrar ainda não é enlouquecedor, só ocorre em condições de profundo descanso6 em pessoas saudáveis ou em psicoterapia, "[...] nas condições físicas e emocionais altamente especializadas, características daquela situação" (Winnicott, 1988f/1990, p. 141). Deste modo, a regressão no setting de pacientes neuróticos se realiza como forma de descanso, um retorno àquela experiência primeira de não-integração, de poder habitar um mundo próprio e incomunicável pela memória da presença que acontece devido a este cuidado existencial e não apenas técnico.

 

6. Considerações Finais

A base para a saúde emocional constrói-se na relação primitiva mãe-bebê, conforme demonstrado na fase de dependência absoluta e que toma proporções fundamentais na clínica winnicottiana, haja vista ser a partir dela que alguém pode começar a ser. Entretanto, a conquista do estado unitário do eu nesta fase não determina que a vida e o ambiente emocional percam importância do decorrer das experiências futuras. As condições para lidar com o mundo como realidade externa ao sujeito têm suas bases nas relações iniciais mãe-bebê, mas isso não garante que a criança não viva experiências difíceis e até mesmo traumas nas diferentes fases do amadurecimento, pois o viver não implica garantias.

Assim, segundo Dias (2003), amadurecer inclui a capacidade de voltar, seja para retomar pontos falhos no desenvolvimento, seja para descansar, retomar experiências positivas que estão sempre em movimento, visto que "[...] avançar na direção do futuro e da independência é, ao mesmo tempo, uma 'viagem de volta', um retorno às origens" (Dias, 2003, p. 257), lugar existencial de onde nunca saímos inteiramente.

Na psicopatologia winnicottiana, o grupo de pacientes neuróticos está em condições mais saudáveis que os dos não-neuróticos, pois conquistaram o estádio do Eu-sou, viveram um ambiente suficientemente bom, constituíram um mundo subjetivo próprio e em comunicação com o mundo objetivo. Percebemos a importância de este mundo subjetivo ser conquistado, pois nunca se perde; é fonte para a capacidade de experienciar a vida com sentido próprio e condição indispensável para uma vivência de saúde emocional. Isso porque, conforme explica Dias (2003, p. 257), "[...] na saúde, não importa o grau de objetividade que o indivíduo tenha sido capaz de alcançar, o mundo subjetivo continua a ser a fonte de riqueza pessoal e de singularidade inalienável".

Vimos, assim, que o trabalho de regressão em pacientes neuróticos possui características próprias que se realizam pela possibilidade de retroceder a uma experiência real de um cuidado suficientemente bom. Compreendemos que a experiência para a qual o paciente, constituído por um psiquismo unitário, tem a oportunidade de voltar não para lá ficar, mas para de lá poder continuar seu caminhar e seu crescimento emocional, ocorre de modo inaugural no presente por meio da relação que estabelece com o analista.

Mas, conforme ensina Winnicott, essa relação deve se estender para além do setting, visto que "[...] a psicanálise não é um modo de vida. Sempre esperamos que nossos pacientes terminem a análise e nos esqueçam: e descubram que o próprio viver é a terapia que faz sentido" (1971b/1975, p. 123).

 

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1 Sobre alucinar o mamilo, Winnicott esclarece posteriormente que isso somente é possível após a primeira mamada teórica, ou seja, depois de algumas experiências com o seio, de algumas mamadas, que irão construir uma marca sensorial no bebê, ou seja, uma memória. Do contrário, não poderíamos pensar em alucinação de objeto, visto não ter nenhum material de memória sobre o mesmo. "Haveria a alucinação de um objeto, se houvesse material mnemônico para ser usado nesse processo de criação, mas isso não pode ser postulado considerando-se que é uma primeira mamada teórica. Aqui o ser humano se encontra na posição de estar criando o mundo. O motivo é a necessidade pessoal; testemunhamos então a gradual transformação da necessidade em desejo" (Winnicott, 1988d/1990, p. 122).
2 Esclarece Dias (2003, p. 123), "[...] experiência e sentimento de real (feeling of real) estão mutuamente imbricados: só aquilo que é dado na experiência é real para o indivíduo. Mas pode-se igualmente, dizer que algo - um estado de ser, uma fantasia, um sonho ou um acontecimento - só é uma experiência se for sentida como real. O 'real' aí implicado não tem nada a ver com realidade externa, no sentido de realidade que é representável, perceptível, visualizável e dizível". Aqui o real se relaciona com toda a sustentação ofertada pelo ambiente ao bebê para a criação do objeto, na área de ilusão de onipotência.
3 Conforme Winnicott (1958b/1983, p. 108), a transferência no processo analítico tradicional refere-se a um "[...] valioso material que emerge para análise nos termos do relacionamento emocional entre o paciente e o analista. Na transferência inconsciente aparecem amostras do padrão pessoal da vida emocional do paciente ou de sua realidade psíquica. O analista aprende a detectar estes fenômenos inconscientes da transferência e, empregando os indícios fornecidos pelo paciente, consegue interpretar o que está pronto para ser conscientemente aceito em uma dada sessão". Veremos que, nos casos de psicopatologias como os quadros de psicose e falso self, a transferência toma sentidos distintos dos casos de neurose.
4 A sobrevivência do analista refere-se à sobrevivência do objeto que instaura o uso de objeto pelo bebê na fase de dependência relativa. É fundamental o paciente viver a experiência de destruir o analista na fantasia e este sobreviver, isto é, estar lá presente, para então poder relacionar-se com ele como realidade externa, ou seja, não-eu. Está é uma necessidade, especialmente nos casos de um falso self adaptado e submisso ao ambiente, que teme experimentar sua agressividade e destruição do objeto subjetivo por temer sua destruição de fato. Explica Winnicott (1971c/1975, p. 127), "Se for numa análise que isso esteja se realizando, então, o analista, a técnica analítica e o cenário analítico, todos entram como sobrevivendo ou não aos ataques destrutivos do paciente. Essa atividade destrutiva constitui a tentativa, empreendida pelo paciente, de colocar o analista fora da área do controle onipotente, isto é, para fora, no mundo. Sem a experiência da destrutividade máxima (objeto não protegido), o sujeito jamais coloca o analista para fora e, portanto, não pode mais do que experimentar uma espécie de auto-análise, usando o analista como projeção de uma parte do eu (self)".
5 Para Winnicott (1988h/1990, p. 159), repressão "[...] é o nome dado à perda, pela consciência de uma pessoa mais ou menos saudável, de um conjunto de sentimentos, memórias e ideias tendo como causa a dor intolerável que ocorre quando são trazidos à consciência o amor e o ódio coincidentes, bem como o temor à retaliação. Aliada à repressão encontra-se a inibição dos instintos. O alívio trazido pela psicanálise em sua utilização habitual diz respeito à repressão por permitir ao paciente tomar consciência do conflito e tolerar a ansiedade referente à livre expressão dos instintos".
6 Aqui descanso é compreendido como relaxamento no mundo subjetivo, condições vividas por experiências com a arte, no brincar, em que o devaneio é possibilitado pela confiança no ambiente.

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