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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.23 no.2 São Paulo jul./dez. 2021

 

ARTIGOS

 

Soberania e violência biopolítica neoliberal: revisitando o paradigma da guerra no pensamento de Michel Foucault

 

Sovereignty and violence biopolitics neoliberal: revisiting the paradigm of war in Michel Foucault's thought

 

 

André Constantino Yazbek

Professor Adjunto do Departamento de Filosofia (GFL) e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia (PFI) da Universidade Federal Fluminense (UFF)

 

 


RESUMO

O presente artigo recupera as noções de guerra de raças e de biopoder nas lições ministradas por Michel Foucault no Collège de France intituladas Il faut défendre la Société (1976), para refletir sobre a relação entre neoliberalismo e violência política. Nesse sentido, interessa-me examinar como o pensamento de Foucault formulou o problema do biopoder vinculado ao da violência de raça para analisar nossa atual política (neo)liberal em termos de paradigmas raciais e coloniais.

Palavras-chave: Michel Foucault, soberania, violência, raças, biopoder, governamentalidade neoliberal.


ABSTRACT

This paper brings forth the notions of "war of races" and "biopower", originally discussed in Michel Foucault's lectures at the Collège de France entitled "Il faut défendre la Société" (1976), to meditate on the relationship between neoliberalism and political violence. In this regard, it is of my interest to present how the biopower matter is linked to the violence amongst races according to Foucault, in order to analyze our current (neo)liberal politic in terms of racial and colonial paradigms.

Keywords: Michel Foucault, sovereignty, violence, races, biopower, neoliberal governmentality.


 

 

1. De qual liberdade nos falam?

Comecemos por apresentar duas peças centrais do dispositivo discursivo da retórica neoliberal, amplamente vocalizadas aos dias correntes. A primeira delas nos dá conta de que a diminuição do Estado implica em uma diminuição das formas de dominação e controle políticos, ou seja, da capacidade política estatal de constrangimento e de atuação sobre os indivíduos. A segunda delas, de talhe análogo a primeira, afirma em linhas gerais que o neoliberalismo, em sua crítica visceral ao Estado, é uma espécie de ação política e econômica que visa dar aos indivíduos a oportunidade, sem precedentes, de exercer sua liberdade, sem impor-lhes uma forma de vida específica. Do trabalho às atividades de lazer, escolha por modos de consumo ou serviços, estaríamos diante do máximo exercício da liberdade individual. Daí que a liberdade seja evocada contra a servidão ao Estado, como mote central da retórica neoliberal. Uma espécie de apanágio que permitirá a alguém como Friedrich Hayek, já em 1944, identificar nas tendências socialistas do dirigismo econômico da República de Weimar, a raiz da ascensão do fascismo, num claro esforço ideológico para contrapor-se à crise do liberalismo e da economia de mercado que marcaram o cenário político e econômico da década de 1930 (dominada pela tendência estatista do keynesianismo) (Hayek, 1944/2006, p. 4).

No entanto, seria necessário investigar em profundidade a vigência prática desta ideia de liberdade. Na expressão incisiva de Stefen Metcalf, em artigo publicado no The Gardian em 2017, "tão logo o neoliberalismo foi declarado como sendo o real, e tão logo tornou-se clara a hipocrisia universal do mercado, prontamente os populistas e autoritários chegaram ao poder". Aliás, é de notar-se que o mesmo Hayek, quatro décadas após seu esforço ideológico de combate ao estatismo keynesiano, haveria de saudar a aplicação do ideário neoliberal da chamada Escola de Chicago pelo governo autoritário do General Augusto Pinochet no Chile (1973-1990). Tal cenário de violação de direitos civis, supressão de garantia individuais e terrorismo de estado parecera, aos olhos do economista austríaco, absolutamente compatível com as práticas de mercado defendidas por sua escola de pensamento. Nas palavras de Hayek, em entrevista ao jornal chileno El Mercurio em 1981, "é possível para um ditador governar de maneira liberal. E é possível que uma democracia governe com uma falta total de liberalismo. Pessoalmente, prefiro um ditador liberal a um governo democrático sem liberalismo" (p. D-9).

Ora, este manejo desenvolto e aparentemente contraditório de defesa da liberdade deve ser apurado como índice do caráter regressivamente antidemocrático do neoliberalismo, cuja expressão concreta, quando não francamente autoritária como no caso chileno, revela um conjunto de práticas de retração da esfera pública para a desativação da margem decisória de processos populares de reivindicação de justiça social. Em consequência, se em nossa quadra histórica a defesa da liberdade (reduzida à autoridade individual para dispor de si mesmo em termos econômicos) tornou-se o apanágio de toda sorte de discursos autoritários, isso se deve ao fato de que se trata, precisamente, de solapar a possibilidade mesma do exercício da soberania popular sobre os processos político-econômicos em curso, culminando naquilo que Wendy Brown tem designado como a desdemocratização das democracias liberais (2006, pp. 690-714).

Nestes termos, não se trata apenas de uma crítica ao suposto caráter ilimitadamente estatizante das democracias, mas antes a uma retórica e prática que buscam recolocar a democracia em discussão para constituí-la como um problema no cerne mesmo de suas pretensões ao exercício da soberania popular, de modo a apresentá-la em seus excessos como um entrave de ineficiência e/ou uma ameaça socialista. O "neoliberalismo [...] é uma teoria dos limites institucionais que devem ser introduzidos na lógica da soberania popular, na medida em que esta lógica, quando não dominada, é prenhe do perigo totalitário" (Laval, 2011).

Compreende-se, portanto, que o neoliberalismo é mais do que um conjunto de políticas pró-mercado e compromissos públicos com o capital financeiro. Trata-se de um projeto de transformação social e institucional regressiva cuja marca é uma "racionalidade governamental fundada sobre o cálculo individual na ordem concorrencial" (Laval, 2011). Se quisermos nos valer das intuições pioneiras de Michel Foucault a respeito, trata-se de uma racionalidade de governo (no sentido amplo de uma dada estruturação do campo eventual de conduta dos indivíduos) no interior da qual a liberdade individual se vê convertida no próprio instrumento pelo qual os indivíduos são governados ou dirigidos. Tal racionalidade expressa um saber normativo que lhe é próprio: no âmbito de uma genealogia da governamentalidade ocidental (objeto das pesquisas de Foucault no momento de seu interesse pelo neoliberalismo).

A emergência do liberalismo marca o momento da "irrupção do mercado como princípio de veridicção", o que significa que caberá ao mercado concorrencial, ao saber da economia política que lhe corresponde, "falsificar ou verificar a prática governamental" (Foucault, 1978a/2008, p. 45). Em consequência, trata-se de destituir a soberania política do campo da economia: "o liberalismo econômico constitui [...] uma desqualificação de uma razão política que seria indexada ao Estado e à sua soberania" (Foucault, 1978a/2008, p. 45). E se assim o é, devemos notar que se trata de uma lógica de gestão social na qual crescentemente a economia demite o poder soberano de suas pretensões à gestão econômica, de maneira a liberá-lo para a intervenção violenta contra tendências em oposição às chamadas liberdades de mercado (daí o fato de que o modelo neoliberal possa operar tanto em chave autoritária quanto em regimes democráticos liberais).1

Neste sentido, não surpreende que a feição atual do neoliberalismo seja capaz de articular formas autoritárias de governo com a sujeição da totalidade da vida social ao modelo de negócios do capital, implicando na combinação atual entre uma crescente degradação das políticas sociais e um incremento igualmente substantivo dos aparatos materiais da violência de Estado. Na expressão lapidar de Boaventura Santos, "impôs-se a versão mais antissocial do capitalismo"2 e vê-se a emergência sucedânea de governos que parecem destinados a pôr fim à coexistência do capitalismo e da democracia liberal. Coexistência outrora pretensamente garantida pelo compromisso, na forma parlamentar, de um sistema político ancorado naquilo que a Europa convencionou denominar de Welfare State, ou o Estado de Bem-Estar Social (veleidade que, no caso específico da América Latina, salvo em ocorrências pontuais, jamais teve lugar efetivo).3

Portanto, não se trata de um menor Estado, um menos de poder ou uma menor espessura de seu exercício - como pretende a vulgata liberal e neoliberal -, mas antes, de um Estado cuja forma de soberania, desconectada de qualquer atribuição prática da garantia de um contrato-social capaz de promover a integração efetiva dos mínimo-assalariados no espaço público, é reconvertida, regressivamente, à dimensão arcana de suas funções assassinas. Nestes termos, digamos que o neoliberalismo é a destituição da soberania econômica para a reativação regressiva e triunfo da soberania em sua função primordial de requerer a morte, o que implica em reconhecer uma lógica governamental que parece levar ao paroxismo da morte a disjuntiva típica da maquinaria de acumulação capitalista em sua função soberana: ou a vida ou o lucro. Ou, ainda, em termos da disjuntiva lacaniana para a definição da alienação a partir da ideia de uma perda intrínseca à escolha forçada: ou a vida ou a bolsa (Lacan, 1973, p. 233). A requalificação da violência soberana talvez seja a marca atual do neoliberalismo.

Ocorre que, mesmo Foucault (a quem devemos boa parte do léxico atual do debate crítico acerca do neoliberalismo) não se deteve com vagar nos processos materiais violentos colocados em marcha pelo neoliberalismo, mas compreendera o liberalismo como uma forma de racionalidade governamental cuja finalidade seria a do governo das populações para o incremento da vida (e não para o seu exaurimento por meio do suplício ou da morte, como fora o caso para a soberania clássica pré-moderna).4 Assim, liberal é a forma própria de uma racionalidade biopolítica cujo marco operatório é, de um lado, o investimento maciço na vida das populações (para fins de desenvolvimento de suas forças produtivas) e de outro, o da gestão regular de mecanismos de controle que devem responder ao fluxo das trocas do sistema capitalista, regulando-os no sentido de favorecê-los, incitá-los, deixá-los flutuar, transcorrer, passar. Evidentemente, uma tal perspectiva não implica em denegar as operações materiais violentas deste modo de gestão social liberal e neoliberal, mas antes em apreendê-las, preferencialmente da perspectiva de seus processos operatórios positivos àqueles relativos ao desenvolvimento maciço do trabalho e do consumo das populações.5

Ainda assim, se a liberdade da qual nos falam é uma "mentira ideológica e uma técnica de governo", na incisiva expressão de Christian Laval (2020, p. 54) relendo Foucault, resta compreender como o poder gestionário da vida, pressuposto da forma liberal e neoliberal de governamento, pôde produzir uma espécie de violência biopolítica que requalifica a própria produção soberana da morte. Este aparente paradoxo, constantemente explorado por uma constelação de autores atuais, deve nos levar ao problema da biopolítica tal como ele fora primeiramente formulado por Foucault em seus cursos pronunciados no Collège de France, o que implica, como veremos, em apreendê-lo a partir do paradigma da guerra. Nestes termos, e ao que me parece, o problema da violência biopolítica concerne ainda ao estatuto renovado da soberania na sua forma arcana de requerer a morte.

 

2. De qual guerra nos falam?

Necessário lembrarmo-nos de que o enigma do neoliberalismo só será desvendado por Foucault ao cabo de uma série de investigações cujo centro ordenador, em primeira instância, fora o da guerra (como realidade intestina ao corpo político) e, em consequência, o de uma política das populações no interior da qual o racismo tornara-se elemento central para os processos de violência gestionária estatal em sua produção calculada de vidas que valem a vida e vidas que valem a morte.

É verdade que Foucault rapidamente abandonará o paradigma da guerra em favor da noção de governamentalidade. Tratava-se então de encontrar um conceito operatório o suficiente para caracterizar o poder em sua forma positiva (de incitação e gestão positiva das condutas). Uma noção que pudesse descrevê-lo e delimitá-lo como um conjunto plural de relações que não seriam nem guerreiras nem jurídicas e que, neste sentido, escapariam às alternativas da violência e do contrato social.6 Mas, se quisermos revisitar a primeira ocorrência do tema da biopolítica no âmbito dos cursos ministrados por Foucault no Collège de France, devemos nos dirigir às lições ministradas por ele em 1976, intituladas Em defesa da sociedade, dedicadas ao tema da política, da guerra e das raças. De que se trata?

Já em sua primeira lição Foucault esclarece aos ouvintes a perspectiva metodológica que servirá de eixo organizador para suas aulas naquele ano: o então professor do Collège de France pretende valer-se da grade de inteligibilidade da guerra para pensar o fenômeno da política em uma perspectiva crítica ao enquadramento teórico proporcionado pelas teorias jurídicas da soberania, cujo marco moderno, como se sabe, pode ser delimitado no Leviathan de Thomas Hobbes. Fora Hobbes quem assinalara, em sua ciência do justo e do injusto, a fundação da política sobre um ato de linguagem contratual. A fonte da justiça reside no contrato, precisamente, porque trata-se de um ato voluntário de pacificação do estado natural de guerra generalizada a partir da fundação pactuada da instância soberana, de sorte que a soberania, sendo uma consequência jurídica do contrato, tem por finalidade o estabelecimento e a manutenção da paz (Hobbes, 1651/1985, p. 232). Neste sentido, em Hobbes, as relações de poder compreendidas em seu aspecto pré-contratual (e, portanto, belicoso) são juridicamente neutras, nem justas nem injustas. Ou ainda, como assinala Limongi, "relações jurídicas não são relações de poder. Relações de poder não são jurídicas" (2013, p. 144).

Ao contrário, em 1976, na série de lições que compõe o curso Em defesa da sociedade, cuja aula final é inteiramente dedicada ao tema da biopolítica, Foucault se valerá de uma genealogia do poder político compreendido como relação de forças sobre forças (o que evidencia sua compreensão nietzschiana do poder) para, justamente, fazer da guerra o "fundamento da sociedade civil, a um só tempo princípio e motor do exercício do poder político" (Foucault, 1976/2005, p. 26). Trata-se, portanto, de apreender o ato de linguagem contratual, em seu estatuto estratégico jurídico de dissimulação da realidade do direito, como uma peça central nas estratégias do poder político e da dominação, a ser examinado, não do ponto de vista de uma legitimidade a ser fixada, mas sim a partir de seus procedimentos de sujeição.7 Da perspectiva genealógica de Em defesa da sociedade, portanto, relações jurídicas são relações de poder e relações de poder são relações (igualmente) jurídicas (ainda que o poder, sobretudo em sua função disciplinadora moderna, não seja em Foucault uma propriedade da lei, mas antes o exercício da norma).8 Assim, a adoção da grade de inteligibilidade da guerra para a análise das relações de poder e da política, na medida em que pretende explicitar a "instância material de sujeição dos súditos" (os processos contínuos de formação dos sujeitos pelos efeitos do poder), implica em realizar "exatamente o inverso do que do que Hobbes tinha pretendido fazer no Leviathan, e, acho eu, afinal de contas, todos os juristas" (Foucault, 1976/2005, p. 33-34).

Mas, do ponto de vista do conteúdo do curso do curso de 1976, esta direção metodológica da guerra como operador das relações políticas deverá ser aplicada a um material específico, concernente a uma genealogia do discurso das lutas de raças e de suas transcrições no horizonte histórico da pré-modernidade e da modernidade. Contra o modelo da soberania, portanto, o método e o conteúdo do curso servem para a tarefa genealógica: fazer emergir uma série de discursos de guerra de raças que, egressos dos séculos XVI e XVII, representara o avesso do discurso histórico da soberania justamente ao se apresentar como uma contra-história na qual "desaparece a identificação implícita entre o povo e seu monarca, entre a nação e seu soberano" (Foucault, 1976/2005, p. 80).

Opondo termo a termo o discurso de guerra de raças às narrativas jupterianas do poder (segundo as quais a política é o lugar de pacificação dos conflitos e, em consequência, de efetivação do contrato social), Foucault localiza em Hobbes o modelo a ser subvertido: se o discurso hobbesiano é tranquilizador,9 é porque o hobbesianismo procurara conjurar, com sua representação fantasmática da iminência de uma guerra total constantemente adiada pela soberania, o discurso "que se ouvia nas lutas civis que fissuravam o Estado, naquele momento, na Inglaterra" (Foucault, 1976/2005, p. 80). Ou seja, o efetivo discurso histórico da luta e da guerra civil. O que se elide com o hobbesianismo é, precisamente, a instância material e histórica das batalhas intestinas ao corpo político, instância que faz emergir, em lugar do problema clássico da soberania e da obediência civil, o problema da dominação e da sujeição.10

Compreende-se, portanto, que a série de lições oferecidas por Foucault em 1976 tenha por eixo organizador uma perspectiva na qual a "questão do poder já não pode ser dissociada da questão das servidões, das libertações e das alforrias" (Foucault, 1976/2005, p. 98). Contra o elogio da unidade indivisível da soberania e de sua continuidade sob a forma da transmissão do direito e da lei - marcas do discurso oficial do poder -, tratava-se de evocar uma história subterrânea da guerra de raças que evidenciaria antes a sucessão inglória das batalhas, o curso descontínuo das lutas de dominação e resistências e mesmo a permanência de discórdias intestinas que marcam o jogo de cizânias que subjazem às formas institucionais de justificação do poder. E se era necessário inverter o célebre aforismo de Carl Von Clauzewitz - não mais a guerra como continuação da política por outros meios, mas a política como a guerra continuada por outros meios11 - é porque aqui a figura da soberania, deslocada de seu uso jurídico clássico, deve nos levar a uma leitura da política na qual a função do poder instituído é a de "reinserir perpetuamente essa relação de força [manifesta na guerra], mediante uma espécie de guerra silenciosa, e de reinseri-la nas instituições, nas desigualdades econômicas, na linguagem e até nos corpos uns dos outros" (Foucault, 1976/2005, p. 26; itálicos meus).

Ora, esta recontextualização das linhas de força do curso de 1976 deve nos prevenir para o fato de que a noção de biopolítica, em sua primeira aparição sistemática nas lições ministradas por Foucault no Collège de France, concerne ao modo como o discurso da guerra de raças, até então oposto às narrativas oficiais do poder - tratava-se de dizer que o "poder político não começa quando cessa a guerra" (Foucault, 1976/2005, p. 58) -, é absorvido e reconfigurado como discurso estatal a partir da conformação de um racismo de estado, isto é, sob a forma de um discurso segundo o qual é preciso defender a sociedade dos perigos biológicos que lhe são imanentes. De modo ainda mais preciso: no momento mesmo em que o discurso histórico-político da guerra como fundamento das relações sociais se convertera, ao século XIX, em discurso revolucionário da luta de classes - momento de emergência de uma "consciência histórica" centrada na revolução e em suas promessas emancipatórias (Foucault, 1976/2005, p. 93) -, dá-se, da parte das forças reacionárias da soberania estatal, sua incorporação à gramática do Estado a partir da substituição do tema da guerra histórica pelo tema biológico, pós-evolucionista, da luta pela vida. Portanto, e nas palavras de Foucault, "não mais batalha no sentido guerreiro, mas luta no sentido biológico: diferenciação das espécies, seleção do mais forte, manutenção das raças mais bem adaptadas, etc." (1976/2005, p. 94).

Nestes termos, é devido considerar que a emergência histórica do racismo, deste discurso da "pureza de raças" ("com tudo o que ele comporta de estatal e biológico"), está vinculada à disputa pelo estatuto do discurso da guerra por uma política anti-revolucionária à serviço da "soberania conservada do Estado, de uma soberania cujo brilho e cujo vigor não são agora assegurados por rituais mágico-jurídicos, mas por técnicas médico-normalizadoras" (Foucault, 1976/2005, pp. 95-96). Desse modo, Foucault evidencia o momento que a passagem da lei para a norma, do jurídico para o biológico, do projeto de libertação para a preocupação da pureza racial, permitirá à soberania reacomodar-se em uma função essencialmente reacionária e violenta na qual o discurso histórico da luta de raças se vê convertido em um imperativo da proteção da raça.12 Portanto, em sua função normativa, esta "tomada de poder sobre o homem enquanto ser vivo" (Foucault, 1976/2005, p. 286) só pode realizar-se a partir de uma estatização do biológico, de sorte que uma decisiva reacomodação da soberania está na base da biopolítica tal como Foucault a compreende.

Ora, ademais da referência à norma e ao estatuto do saber biológico, centrais para a compreensão foucaultiana do poder em sua feição moderna - "foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista" (Foucault, 1974/2002, p. 80) -, interessa-nos o papel reservado à soberania na Em defesa da sociedade. Um papel que concerne diretamente à biopolítica no sentido dos processos materiais desencadeadores de uma violência contra o próprio corpo político. Algo que em certa medida ressoa o estado suicidário evocado por Paul Virilio para a definição do estado fascista, mas que guarda seu fundamento nas modernas democracias liberais (ao modo, se quisermos, do paradigma imunitário proposto por Roberto Esposito):13

esse discurso da luta das raças - que, no momento em que apareceu e começou a funcionar no século XVII, era essencialmente um instrumento de luta para campos descentralizados - vai ser recentralizado e tornar-se justamente o discurso do poder, de um poder centrado, centralizado e centralizador; o discurso de um combate que deve ser travado não entre duas raças, mas a partir de uma raça considerada como sendo a verdadeira e a única, aquela que detém o poder e aquela que é titular da norma, contra aqueles que estão fora dessa norma, contra aqueles que constituem outros tantos perigos para o patrimônio biológico. E vamos ver, nesse momento, todos os discursos biológico-racistas sobre a degenerescência, mas também todas as instituições que, no interior do corpo social, vão fazer o discurso da luta das raças funcionar como princípio de eliminação, de segregação e, finalmente, de normalização da sociedade. [...] Nesse momento, a temática racista não vai mais parecer ser o instrumento de luta de um grupo social contra um outro, mas vai servir de estratégia global dos conservadorismos sociais. Aparece nesse momento e - o que é um paradoxo em comparação aos próprios fins e a forma primeira desse discurso de que eu lhes falava - um racismo de Estado: um racismo que uma sociedade vai exercer sobre ela mesma, sobre os seus próprios elementos, sobre os seus próprios produtos (Foucault, 1976/2005, p. 72-73).

Ora, se a aristocracia decadente pensava a guerra como enfrentamento entre campos antagônicos, choque entre povos e conflitos de forças exteriores, a burguesia vitoriosa pensará a guerra crescentemente em termos civis e problemas internos à sociedade, "guerra que se desenrola assim sob a ordem e sob a paz, a guerra que solapa a nossa sociedade e a divide de um modo binário" (Foucault, 1976/2005, p. 70). Daí que o inimigo não seja mais o estrangeiro ou o invasor, mas sim o inimigo social. Ou seja, o elemento politicamente perigoso e etnicamente impuro, que a mera existência possui a virtualidade de afetar a ordem social, que reclama a mobilização de todo um conjunto de biopolíticas de inclusão-exclusiva e de extermínio cujas tecnologias já haviam sido introduzidas pelo policiamento médico do século XVIII, prolongadas e assumidas pelo darwinismo social do século XIX, pelo eugenismo e pelas teorias médico-legais da hereditariedade, da degenerescência e da raça. Trata-se, portanto, de uma "guerra que se desenrola assim sob a ordem e sob a paz, a guerra que solapa a nossa sociedade e a divide de um modo binário" (Foucault, 1976/2005, p. 70) por diferenças étnicas, de línguas e de forças, de vigor e de energia, de violência e barbárie, mas também o seu prolongamento no âmbito da doença, da loucura e da monstruosidade.

Visto desta perspectiva, resta que se poderá estabelecer, a partir mesmo do advento de um racismo de estado, a passagem histórica dos regimes liberais aos estados totalitários em termos de uma certa transferência de tecnologias de poder, que uma vez acomodadas à estatização das divisões médico-legais autorizadas pela norma do bios nos domínios aos quais ela é aplicável, será indexada a uma racionalidade que responde ao imperativo da guerra pensada em sentido histórico-biológico: "reciclagem, pois, ou reimplantação, reinserção nazista do racismo de Estado na lenda das raças em guerra" (Foucault, 1976/2005, p. 97). Mas, também, a partir do modelo stalinista, retomada do "discurso revolucionário das lutas sociais" para "fazê-lo coincidir com a gestão de uma polícia que assegura a higiene silenciosa de uma sociedade ordenada" (Foucault, 1976/2005, p. 97). Feitas todas as contas, como dirá Foucault em outro lugar, a despeito de sua singularidade histórica e de sua produção de efeitos de poder em escala inaudita,

fascismo e stalinismo simplesmente prolongaram toda uma série de mecanismos que já existiam nos sistemas sociais e políticos do Ocidente. [...] Afinal de contas, a organização dos grandes partidos, o desenvolvimento de aparelhos policiais, a existência de técnicas de repressão como os campos de trabalho, tudo isso é uma herança realmente constituída das sociedades ocidentais liberais que o stalinismo e o fascismo só tiveram que recolher (Foucault, 1978b/2001, pp. 535-536).

Note-se que, levadas a seu termo consequente, as observações de Foucault sobre o fenômeno totalitário implicam em considerar, justamente, a capacidade de repotencialização de uma violência biopolítica já inscrita nos regimes liberais por meio de uma contínua mobilização do racismo pela força soberana em sua função assassina: "o racismo é ligado ao funcionamento de um Estado que é obrigado a utilizar a raça, a eliminação das raças e a purificação da raça para exercer seu poder soberano" (Foucault, 1976/2005, p. 309). Evidentemente, compreenda-se por racismo aqui a produção politicamente orientada de largas franjas populacionais de indesejáveis destinados à exposição sistemática de suas vidas ao extermínio. Não apenas o assassinato direto, mas o "fato de expor à morte, de multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição, etc." (Foucault 1976/2005, p. 306). Daí que a (bio)política mobilize continuamente a soberania para a guerra intestina e intermitente, no sentido mesmo da exposição diferencial da população à morte.

 

3. De qual biopolítica nos falam?

Já fizemos notar que os desenvolvimentos ulteriores de Foucault implicariam no abandono do paradigma da guerra em favor da noção de governamentabilidade (noção destinada a explorar não exatamente os mecanismos da violência material do estado, mas sim o modo como as forças estatais incorporaram, no curso do desenvolvimento dos estados modernos, tecnologias de condução positiva das condutas). Mas esta mesma perspectiva, central para as análises foucaultianas do neoliberalismo como modo de governamentabilidade e modalidade de individuação obediente indexada à lógica da concorrência de mercado como princípio universal das relações sociais, talvez não faça jus ao problema da biopolítica quando visto da perspectiva da maquinaria de violência posta em marcha pelos processos da racionalidade neoliberal (sobretudo em espaços políticos periféricos).14

Neste sentido, sabemos que boa parte da interlocução pioneira sobre a biopolítica dialoga preferencialmente com a perspectiva do curso Em defesa da sociedade e do último capítulo de A vontade de saber, primeiro volume da História da Sexualidade, publicado por Foucault também em 1976. Norteadas pelo biopoder em suas relações com a temática da guerra e da soberania, ambas as obras têm servido à associação, bastante em voga, entre as análises da biopolítica foucaultiana - que apontam para a gestão da vida tendo por encargo o manejo do corte entre quem deve viver e quem deve morrer (o racismo estatal) - e os argumentos teórico-políticos de Carl Schmitt à propósito da soberania como prática decisionista que determinam, a um dado momento, quem é o inimigo: a "diferenciação especificamente política, à qual podem ser reconduzidas as ações e os motivos políticos, é a diferenciação entre amigo e inimigo (Schmitt, 1932/2020, p. 26).15 Essa tendência, ao que me consta, têm permanecido mesmo após a publicação da totalidade dos cursos oferecidos por Foucault no Collège de France, o que parece indicar que a questão não pode ser resumida no acesso aos textos das aulas de Foucault, mas antes é uma disputa pelo estatuto da soberania no horizonte dos modernos estados liberais (ou, ao menos, a uma atenção aos processos materiais da violência neoliberal).16 Mas é também por esta perspectiva que o tema da colonialidade têm se alimentado do diálogo com Foucault.

Se o curso de 1976 pode ser apresentado como uma genealogia da lenta formação do racismo como tecnologia biopolítica propriamente estatal e se o discurso da guerra de raças trazia consigo conotações mitológicas - tratava-se da postulação do retorno a uma idade de ouro em que a ordem social seria restaurada em sua origem imaculada, afirmando a superioridade física, étnica e moral de uma população sobre outra -, então o dispositivo estatal de guerra, voltado à defesa do próprio corpo político, implicara já o racismo como modalidade secular, em termos sócio-biológicos, da dominação colonial. Daí que o próprio Foucault, ao apresentar a articulação entre biopolítica e soberania na derradeira aula de Em defesa da sociedade, venha a afirmar que o "racismo vai se desenvolver primo com a colonização, ou seja, com o genocídio colonizador", assegurando a função assassina do Estado precisamente onde o "direito à morte é necessariamente requerido" contra o próprio corpo político (Foucault, 1976/2005, p. 307).

No entanto, e pelo fato mesmo de Foucault não ter desenvolvido o tema em seus trabalhos subsequentes, pode-se dizer que a "colonialidade era (e ainda é) a metade complementar ausente da biopolítica" - sobretudo se considerarmos que a maquinaria colonizatória que inaugura a modernidade europeia no século XVI, na lógica subjacente aos seus desenvolvimentos, implicou não apenas a administração de corpos nos Estados-nação emergentes (com o duplo vetor da disciplina e do biopoder) mas, igualmente, o "controle das almas dos não europeus através da missão civilizatória fora da Europa" (Mignolo, 2010, p. 14)17. Mas, tratando-se da questão da colonialidade, tal como a formulara pioneiramente Anibal Quijano, então é necessário refletir sobre os processos em curso de uma vasta produção de populações de indesejáveis pelo neoliberalismo atual, da perspectiva crítica desta porção do mundo àquela que corresponde, precisamente, a herança da colonialidade como violência instauradora: "o atual, o que começou a formar-se com a América, tem em comum três elementos centrais que afetam a vida cotidiana da totalidade da população mundial: a colonialidade do poder, o capitalismo e o eurocentrismo" (Quijano, 2014, p. 793).

Assim, a antinomia central de nossa razão política moderna, isto é, a coexistência, no âmbito de nossas estruturas políticas, de máquinas de destruição com instituições dedicadas à proteção da vida individual, algo que estivera no centro mesmo dos interesses de Foucault (1988/2001, p. 1634), não pode dispensar a reflexão sobre os processos de reinscrição da arché constitutiva da acumulação primitiva nas formas ampliadas da lógica ilimitada da acumulação de capital no neoliberalismo. É pela racialização do poder segundo o cálculo da guerra colonial, pela estratificação da forma de trabalho e pela codificação dos corpos sobre a base da dicotomia de raças e de gênero - não apenas uma guerra feita às populações colonizadas, mas também às mulheres18 -, pela função da morte no biopoder e pelo meticuloso controle normativo da sexualidade (campo de operacionalidade no qual vem cruzar-se, em sua forma privilegiada, o controle disciplinar e a regulação biopolítica)19 que se inaugura nossa modernidade. E, pelo mesmo motivo, somos reenviados não apenas à noção de colonialidade do poder, forjada pioneiramente por Quijano, mas também à perspectiva (igualmente e criticamente colonial) de Achille Mbembe a respeito do devir-negro do mundo: a reativação da lógica das raças e sua generalização como paradigma de uma humanidade subalterna. Assim, considerando ainda Mbembe, se a feição atual do neoliberalismo corresponde à tendência a fusão entre capitalismo e animismo, resta que seu efeito potencial é determinante

para a nossa futura compreensão da raça e do racismo. [...] Desde logo, os riscos sistemáticos aos quais os escravos negros foram expostos durante o primeiro capitalismo constituem agora, se não a norma, pelo menos o quinhão de todas as humanidades subalternas. Depois, a tendencial universalização da condição negra é simultânea com a instauração de práticas imperiais inéditas que devem tanto às lógicas esclavagistas de captura e de predação como às lógicas coloniais de ocupação e exploração, ou seja, às guerras civis ou razzias de épocas anteriores (Mbembe, 2013/2014, p. 15-16).

É este o cálculo geral da morte que agora parece ser reinscrito, na atualidade do neoliberalismo, como verdadeira arché de nossa modernidade e de seus processos constitutivos: a subalternização e a violência soberana, conjugadas às formas da governamentalidade neoliberal (arte de governo indexada ao problema do mercado e da veridicção do mercado definido por seu aspecto concorrencial) e ao modo de individuação obediente que lhe são correlatas, devem ser explicitados à contraluz de um conjunto de novos deslocamentos que Foucault não estivera em condições de apreender, dado o pioneirismo de suas análises. Um conjunto de deslocamentos que apontam para um modelo de governo consistente em "fazer a guerra contra todo cidadão", na expressão de Bernard Harcourt. E que, nesta medida, está na linha direta da lógica de guerra desenvolvida pelas experiências coloniais de contra-insurgência postas em prática pelo exército francês na Indochina e na Argélia, por exemplo (posteriormente transmitidas aos especialistas estadunidenses da luta anticomunista e praticadas por seus aliados, especialmente na América Latina e no sudeste asiático) (Dardot, P. & Laval, C., 2016/2019, p. xxiii).

Ocorre que, para levar a bom termo esta guerra contra o inimigo, "convém que o poder, por um lado, militarize a polícia e, por outro, acumule uma massa de informações sobre toda a população com a finalidade de impedir qualquer rebelião possível" (Dardot, P. & Laval, C., 2016/2019, p. xxiii). Assim, é na injunção da dimensão de radicalização estratégica de governamentabilidade liberal de controle e do paradigma militar da guerra colonial e contra-insurgente, que encontraremos a formação de um novo neoliberalismo - um modelo marcadamente autoritário, "violento e agressivo, imagem e semelhança da guerra travada contra os inimigos da segurança nacional" (Dardot, P. & Laval, C., 2016/2019, p. xxvi).

Daí que seja necessário que saibamos, criticamente, de qual liberdade nos falam, de qual guerra nos falam, de qual biopolítica nos falam. No limite, nossa quadra histórica se revela pela conjugação das formas da liberdade para o mercado com a adoção explícita do paradigma da guerra, biopoliticamente regulada, contra porções populacionais cujas vidas valem a morte: as vidas desvalidas, improdutivas, inférteis para o capital, ou cuja condição de trabalho equivale a sua redução ao estatuto de coisa como fora outrora a vida dos povos originários e dos escravizados no sistema de cálculos de extração de acumulação da empresa colonial.

Como bem assinalou Tomás Abraham em seu Prólogo à edição argentina de Em defesa da sociedade, a leitura consequente do paradigma foucaultiano da guerra como operador da biopolítica deve fazer atenção à noção de periculosidade, posto que é ela quem "assinala a passagem do virtual ao efetivo no sistema das ameaças" ao corpo social (Abraham, 1996, p. 10). Desde então, o colonizado, o nativo e igualmente as demais formas de vida improdutiva não empregáveis (o louco, o criminoso, o degenerado, o perverso) aparecerão como os inimigos da sociedade - e o neoliberalismo atual poderá ser reinscrito em uma história da violência e da guerra colonial.

 

Referências

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1 "Na verdade, tanto em um caso [democracia liberal] quanto em outro [regimes autoritários] os fundamentos da racionalização liberal, com sua noção de agentes econômicos maximizadores de interesses individuais, permaneciam como a estrutura da vida social e dos modos de subjetivação, justificando toda forma de intervenção violenta contra tendências contrárias" (Safatle, 2020, p. 29).
2 "Ora, foi isto o que aconteceu nos últimos quarenta anos, sobretudo depois da queda do Muro de Berlim. Impôs-se a versão mais antissocial do capitalismo: o neoliberalismo crescentemente dominado pelo capital financeiro global. Esta versão do capitalismo sujeitou todas as áreas sociais - sobretudo saúde, educação e segurança social - ao modelo de negócio do capital, ou seja, a áreas de investimento privado que devem ser geridas de modo a gerar o máximo lucro para os investidores. Este modelo põe de lado qualquer lógica de serviço público, e com isso ignora os princípios de cidadania e os direitos humanos. Deixa para o Estado apenas as áreas residuais ou para clientelas pouco solventes (muitas vezes, a maioria da população) as áreas que não geram lucro. Por opção ideológica, seguiu-se a demonização dos serviços públicos (o Estado predador, ineficiente ou corrupto); a degradação das políticas sociais ditada pelas políticas de austeridade sob o pretexto da crise financeira do Estado; a privatização dos serviços públicos e o subfinanciamento dos que restaram por não interessarem ao capital" (Santos, 2020, p. 24).
3 Nos referimos, evidentemente, à deriva autoritária de governos tais como os do Brasil de Jair Bolsonaro, o da Turquia de Recep Tayyip Erdoğan, o da Hungria de Viktor Orban, o das Filipinas de Rodrigo Duterte e mesmo ao dos EUA de Donald Trump, cujas feições características são, em grau variado, as de uma combinação das atuais configurações de um neoliberalismo autoritário. É neste sentido que Christian Laval e Pierre Dardot vêm insistindo no "caráter ao mesmo tempo plástico e plural do neoliberalismo", a ponto de consideraram que o conjunto atual dos extremismos de direita conforma um novo neoliberalismo cuja forma política original "combina autoritarismo antidemocrático, nacionalismo econômico e racionalidade capitalista ampliada" (Dardot, P. & Laval, C., 2019).
4 Nas palavras do Foucault de A vontade de saber, primeiro volume da História da sexualidade, publicado em 1976, "o direito de morte [poder clássico da soberania] tenderá a se deslocar ou, pelo menos, a se apoiar nas exigências de um poder que gere a vida e a se ordenar em função de seus reclamos. Essa morte, que se fundamentava no direito do soberano se defender ou pedir que o defendessem, vai aparecer como o simples reverso do direito do corpo social de garantir sua própria vida, mantê-la ou desenvolvê-la" (1976/2017, p. 146-147).
5 De acordo com Thomas Lemke, portanto, a opção de Foucault por uma concepção do poder como direção de condutas (ou governamento) "não exclui formas consensuais ou o recurso à violência, mas significa que a coerção ou o consenso são reformulados como formas de governo entre outras, eles são antes elementos ou instrumentos do que a fundação ou a fonte das relações de poder" (2002, pp. 3-4).
6 "Portanto, o modo de relação própria ao poder não deve ser procurado nem do lado da violência e da luta, nem do lado do contrato e do laço voluntário (que não são mais que seus instrumentos): mas do lado desse modo de ação singular - nem guerreiro nem jurídico - que é o governo" (Foucault, 1982/2001, p. 1056). Governo ou governamentalidade refere-se, portanto, a uma compreensão do poder em seu aspecto de individuação obediente e relacional, ou de assujeitamento: na medida em que governar significa estruturar o campo de ação eventual de outrem, o poder é a relação que incide sobre todo o "campo de possibilidade no qual vêm se inscrever o comportamento dos sujeitos que agem; ele incita, induz, desvia, facilita ou torna mais difícil, alarga ou limita, torna mais ou menos provável; no limite, constrange ou impede em absoluto" (Foucault, 1982/2001, p. 1056). Contudo, notemos ainda uma vez que não se trata simplesmente de denegar a violência do poder, seu aspecto repressivo, mas sim de apreendê-lo em seu aspecto de individuação relacional: "O funcionamento das relações de poder, evidentemente, não é uma exclusividade do uso da violência mais do que da aquisição dos consentimentos; nenhum exercício de poder pode, sem dúvida, dispensar um ou outro e frequentemente os dois ao mesmo tempo. Porém, se eles são seus instrumentos ou efeitos, não constituem, contudo, seu princípio ou sua natureza" (Foucault,1982/2001, p. 1055).
7"O sistema do direito e o campo judiciário são o veículo permanente de relações de dominação, de técnicas de sujeição polimorfas. O direito, é preciso examiná-lo, creio eu, não sob o aspecto de uma legitimidade a ser fixada, mas sob o aspecto dos procedimentos de sujeição que ele põe em prática" (Foucault, 1997/2005, p. 32).
8"De fato, as disciplinas têm seu discurso próprio. [...] O discurso da disciplina e alheio ao da lei; e alheio ao da regra como efeito da vontade soberana. Portanto, as disciplinas vão trazer um discurso que será o da regra; não o da regra jurídica derivada da soberania, mas o da regra natural, isto é, da norma" (Foucault, 1997/2005, p. 45). E, no entanto, é necessário considerar a soberania ou o direito público, evidentemente, não desaparecem do cenário político moderno, mas reorientam suas funções em conserto com a mecânica disciplinar: "De fato, soberania e disciplina, legislação, direito da soberania e mecânicas disciplinares são duas peças absolutamente constitutivas dos mecanismos gerais de poder em nossa sociedade" (Foucault, 1997/2005, p. 47).
9 "[...] creio que Hobbes pode mesmo parecer escandalizar. Na verdade, ele tranquiliza: enuncia sempre o discurso do contrato e da soberania, ou seja, o discurso do Estado" (Foucault, 1997/2005, p. 114).
10 "Logo, a questão, para mim, é curta-circuitar ou evitar esse problema, central para o direito, da soberania e da obediência dos indivíduos submetidos a essa soberania, e fazer que apareça, no lugar da soberania e da obediência, o problema da dominação e da sujeição" (Foucault, 1997/2005, p. 32).
11 "Seria, pois, o primeiro sentido a dar a esta inversão do aforismo de Clausewitz: a política é a guerra continuada por outros meios, isto é, a política é a sanção e a recondução do desequilíbrio das forças manifestado na guerra" (Foucault, 1997/2005, p. 23).
12 "A soberania do Estado transformou-o assim no imperativo da proteção da raça, como uma alternativa e uma barragem para o apelo revolucionário, que derivava, ele próprio, desse velho discurso das lutas, das decifrações, das reivindicações e das promessas" (Foucault, 1997/2005, p. 96).
13 "Ora, a vantagem hermenêutica do modelo imunitário está precisamente na circunstância que estas duas modalidades, estes dois efeitos de sentido - positivo e negativo, conservador e destrutivo - encontram finalmente uma articulação interna, uma conexão semântica, que o dispõe em uma relação causal, ainda que seja de tipo negativo. Isso significa que a negação não é a forma da sujeição violenta que de fora o poder impõe à vida, mas o modo intrinsecamente antinômico em que a vida se conserva através do poder. Desse ponto de vista, pode-se muito bem dizer que a imunização é uma proteção negativa da vida" (Esposito, 2004/2010, p. 74). Ao contrário de Esposito, e pelos motivos expostos no presente texto, acreditamos que a chave interpretativa para a polaridade das modalidades positiva (de conservação) e negativa (de destruição) da relação do poder com a vida encontra-se no próprio Foucault, ainda que ele ainda não as tenha desenvolvido suficientemente (algo que a própria obra de Esposito, em certo sentido, nos permite fazer).
14 Era Gérard Lébrun quem insistira que, a despeito da inegável importância da analítica do poder desenvolvida por Foucault, era preciso situá-la também em seus limites: "o homem condicionado, adestrado pelos poderes, é o privilegiado, o europeu. Não é o colonizado, não é o proletário do Terceiro Mundo (assim como não era o proletário europeu do século XIX). Estes, o poder não pensa sequer em domesticar: domina-os - e muito de cima" (1980, p. 08).
15 Para ficarmos no exemplo mais célebre, sabemos que Giorgio Agamben acentua esta correlação explicitando o que seria o ponto cego de "junção entre o modelo jurídico-institucional e o modelo biopolítico do poder", tendo em vista o núcleo pretensamente originário e oculto do poder soberano: "a produção de um corpo biopolítico é o ato original do poder soberano" (1995/1998, p. 16).
16 O que não significa, evidentemente, que a publicação da integralidade dos cursos ministrados por Foucault no Collège de France não tenha tido efeito sobre as várias interlocuções e usos que seu pensamento permite. Bem ao contrário, são bastante notáveis as diversas questões suscitadas, por exemplo, a propósito do papel e da importância do Estado, do pensamento econômico liberal na modernidade, da segurança e do planejamento, da sociedade civil como um campo de intervenções permanente, bem como dos processos de subjetivação em curso, da ética e de sua relação com os sistemas de verificação. Mas temos em vista, aqui, uma constelação de autores tais como os já citados Agamben e Esposito, mas também Achille Mbembe, Christian Laval e Pierre Dardot, Bernard E. Harcourt, Antônio Negri e Michael Hardt, entre outros.
17 Não nos esqueçamos que em Segurança, território, população, curso ministrado no Collège de France ano letivo de 1978, Foucault estará atento aos processos de secularização que constituem, no século XVI, a incorporação de tecnologias de poder pastoral (modo de governo inaugural do Ocidente) às tecnologias de governo dos estados modernos: "O soberano que reina, o soberano que exerce sua soberania se vê, a partir desse momento [século XVI], encarregado, confiado, assinalado a novas tarefas, e essas novas tarefas são precisamente as da condução das almas. Não houve, portanto, passagem do pastorado religioso a outras formas de conduta, de condutas, de direção. Houve na verdade intensificação, multiplicação, proliferação geral dessa questão e dessas técnicas da conduta [de origem pastoral]. Com o século XVI, entramos na era das condutas, na era das direções, na era dos governos" (Foucault, 2004b/2008, p. 309).
18 Questão chave para Silvia Federici, que desde seu Il grande Calibano (1984), a partir de uma crítica à teoria do corpo em Foucault (cuja insuficiência manifesta seria a de fundir as "histórias feminina e masculina num todo indiferenciado", desinteressando-se pelo disciplinamento das mulheres no processo de reprodução), procura articular o tema da acumulação primitiva com o "mundo de sujeitos femininos que o capitalismo precisou destruir" em seu controle da reprodução da força de trabalho por meio do domínio do corpo feminino: "a herege, a curandeira, a esposa desobediente, a mulher que ousa viver só, a mulher obeah que envenenava a comida do senhor e incitava os escravos à rebelião" (Federici, 2004/2017, p. 24-25).
19 "A sexualidade está exatamente na encruzilhada do corpo e da população. Portanto, ela depende da disciplina, mas depende também da regulamentação" (Foucault, 1997/2005, p. 300).

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