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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.23 no.2 São Paulo jul./dez. 2021

 

ARTIGOS

 

Biopolítica, direitos e resistência no pensamento foucaultiano1

 

Biopolitics, Rights and Resistance in the Foucauldian Thought

 

 

Marcelo Raffin

Professor Titular de Filosofia e Sociologia da Universidade de Buenos Aires (UBA) e Pesquisador de Filosofia e Teoria Política do Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Técnica (CONICET) da Argentina. Seus interesses atuais incluem filosofia contemporânea (particularmente francesa e italiana), filosofia política, teoria política e social e estudos de direitos humanos e memória. Seus últimos trabalhos de pesquisa referem-se às contribuições de Michel Foucault, Giorgio Agamben e Hannah Arendt, e à memória e direitos humanos. Também dirige a revista "El Banquete de los dioses. Revista de Filosofía y Teoría política contemporáneas", do Instituto de Pesquisas Gino Germani (Instituto de Investigaciones Gino Germani), Escola de Ciências Sociais da UBA

 

 


RESUMO

Neste artigo, proponho analisar quais são as ferramentas da matriz de pensamento foucaultiana sobre a biopolítica, que, por um lado, é altamente crítica da noção de direitos do homem/direitos humanos (droits de l'homme, na língua original) mas que, por outro lado, propõe a figura dos direitos dos governados (droits des gouvernés) como estratégia de resistência aos poderes. Com efeito, dentro dos elementos que compõem o quadro diagnóstico da biopolítica, Foucault formula uma forte crítica à noção de direitos do homem/direitos humanos, mas, ao mesmo tempo, levanta a possibilidade de exercer o que chama de direitos dos governados como expressão da resistência, da crítica e da liberdade perante os poderes que oprimem, subjugam e dominam a vida e suas formas instáveis e mutáveis. Portanto, neste artigo revisarei a distinção entre as duas noções mencionadas no pensamento foucaultiano, a fim de avaliar o alcance e as potencialidades que a noção de direitos dos governados pode ter, em particular, para interagir com as situações e os problemas que temos que enfrentar e, acima de tudo, em que medida ela se opõe, contradiz ou se concilia com a noção de direitos humanos.

Palavras-chave: Biopolítica; Direitos dos governados; Direitos humanos; Política; Resistência.


ABSTRACT

In this article, I intend to analyze the tools provided by the Foucauldian thought on biopolitics which, on the one hand, is highly critical of the notion of the "rights of Man" /"human rights" ("droits de l'homme" in the original language) but which, on the other, proposes the figure of the "rights of the governed" ("droits des gouvernés") as a strategy of resistance to the powers. In fact, within the elements composing the diagnosis of biopolitics, Foucault formulates a strong criticism to the notion of the "rights of Man" / "human rights" but, at the same time, he poses the possibility of the exercise of what he calls the "rights of the governed" as an expression of resistance, critique and freedom before powers which oppress, subdue and dominate life and its unstable and changing forms. Therefore, in this article I will revise the distinction between both notions in the Foucauldian thought in order to evaluate the scope and the potentialities that the notion of "rights of the governed" can have, in particular, to interact with the situations and the problems we have to cope with and, especially, to what extent it opposes, contradicts or can be reconciled with that of "human rights".

Keywords: Biopolitics; Rights of the governed; Human rights; Politics; Resistance.


 

 

1. Introdução

Neste artigo pretendo analisar as potencialidades e os alcances da produção de direitos no pensamento foucaultiano no que diz respeito à biopolítica. Mais especificamente, interessa-me analisar quais são algumas das ferramentas dessa matriz do pensamento foucaultiano, que, por um lado, se apresenta altamente crítica da noção de direitos do homem/direitos humanos (droits de l'homme, na língua original) mas que, por outro lado, propõe a figura dos direitos dos governados (droits des gouvernés) como estratégia de resistência aos poderes. Com efeito, dentro dos elementos que compõem o quadro diagnóstico da biopolítica, Foucault formula uma forte crítica à noção de direitos do homem/direitos humanos, mas, ao mesmo tempo, levanta a possibilidade de exercer o que chama de direitos dos governados como expressão da resistência, da crítica e da liberdade perante os poderes que oprimem, subjugam e dominam a vida e suas formas instáveis e mutáveis. Portanto, neste artigo, revisarei a distinção entre as noções de direitos do homem/direitos humanos e de direitos dos governados no pensamento foucaultiano, a fim de avaliar o alcance e as potencialidades que a noção de direitos dos governados pode ter, em particular, para interagir com as situações e os problemas que temos que enfrentar e, sobretudo, em que medida ela se opõe, contradiz ou se reconcilia com a noção de direitos humanos.

A questão que estou apresentando retoma uma das linhas centrais da minha investigação nos últimos anos sobre a noção de política em Foucault, na qual, entre outras questões para analisar, desvendar e aprofundar, aparece essa figura tão particular dos direitos dos governados como um dispositivo político e jurídico. Isso me levou a trabalhar sobre ela, sobre o que Foucault entendeu por ela e, sobretudo, sobre o alcance e as potencialidades que ela poderia ter, em particular, para nós. O trabalho não era evidente porque Foucault não desenvolveu essa noção extensivamente, mas fez várias referências a ela durante os últimos anos de sua vida. Ao mesmo tempo, o nome que ele escolhe, direitos dos governados, e o vínculo que estabelece com o que chama de novo direito (nouveau droit) - noção que tem um desenvolvimento ainda menor em sua produção -, levaram-me a analisar ainda mais a questão do direito em Foucault.

Portanto, a seguir, vou desenvolver minha argumentação em dois momentos, que incluirão, em primeiro lugar, uma breve digressão. Desta forma, vou estruturar o artigo a partir das questões seguintes:

1) uma série de breves observações sobre o uso da noção de droits de l'homme no pensamento foucaultiano, sobre as noções de direitos do homem e direitos humanos e sobre a configuração dos direitos humanos na arena política atual;

2) uma análise da noção de direitos dos governados em Foucault e a distinção que ele propõe entre essa noção e a de direitos do homem/direitos humanos; e

3) uma resposta à pergunta sobre as potencialidades e o alcance dos direitos dos governados como estratégia política de resistência aos poderes, com base na crítica e como prática de liberdade, e que relação essa noção mantém com a dos direitos humanos.

 

2. Droits de l'homme, direitos do homem, direitos humanos e a arena política atual

Em primeiro lugar, gostaria de fazer uma série de observações sobre três questões:

1. a noção de droits de l'homme no pensamento foucaultiano;

2. os conceitos de direitos do homem e de direitos humanos; e

3. a configuração dos direitos humanos na arena política atual.

Primeira questão: a expressão droits de l'homme refere-se, no pensamento de Foucault e no francês da França, tanto aos direitos do homem como aos direitos humanos. A escolha de qualquer uma das traduções implicaria deixar de lado o outro conceito, o que é extremamente problemático para o desenvolvimento do problema que pretendo expor. Isto porque, na utilização dessa expressão, Foucault remete aos dois significados, por vezes voltando-se mais para um do que para outro, embora seja difícil (ou mesmo impossível) discernir de qual está falando ou se ele prefere se referir a ambos indistintamente.

Segunda questão: é necessário enfatizar que direitos do homem e direitos humanos não são sinônimos, mas referem-se a conceitos diferentes. Com efeito, trata-se de duas noções, que implicam relações diferentes entre o Estado como sujeito de obrigações e as pessoas como sujeito de direitos, surgiram em momentos históricos diferentes e como consequência de situações diferentes.

Assim, os direitos do homem são a figura político-jurídica que cristaliza os direitos provindos do paradigma da filosofia do direito natural moderno racionalista e que traduz o elo fundamental entre o Estado e seus nacionais, ou, mais especificamente, seus cidadãos, apesar da vocação universalista que aparece na letra da lei. A figura dos direitos do homem é aquela que aparece nas declarações de direitos dos séculos XVII e XVIII e que passará depois para o universo das constituições modernas do constitucionalismo clássico, no âmbito dos Estados-nação. Baseia-se na ficção de um sujeito universal, mas, na realidade, esse sujeito não é mais que um homem, europeu, branco, adulto, heterossexual, proprietário e cristão, que exclui todas as outras formas do humano, ou seja, as mulheres, as crianças, os extraeuropeus, os escravos e as diversidades sexuais e religiosas.

Pelo contrário, os direitos humanos estabelecem um vínculo claro entre os Estados, como sujeitos das obrigações, e todas as pessoas independentemente do seu estatuto político-jurídico (nacionais, estrangeiros ou apátridas), como sujeitos de direitos, ou seja, a humanidade, pelo menos como um tipo ideal como o entende Weber. Isto é, como um tipo ideal que nunca aparece puro na realidade e que, neste caso, deve ser avaliado a partir das obrigações que cada Estado assumiu na matéria. Os direitos humanos surgem na esfera internacional, no direito e na política internacionais, após a Segunda Guerra Mundial, com base nos antecedentes dos direitos do homem que vão ser redefinidos com este novo termo. Por isso, são chamados de direitos humanos, para fazer a diferença com os direitos do homem.

Como pode ser observada, a distinção conceitual entre as duas noções não é menor, embora muitas vezes não seja levada em consideração e até mesmo ignorada. Além disso, muitos Estados usam a expressão direitos humanos para se referir a políticas ou cursos de ação política que realmente se referem à noção tradicional de direitos do homem, na medida em que reconhecem esses direitos apenas a seus nacionais.2 Esse limite na realização efetiva dos direitos já foi lucidamente evidenciado por Hannah Arendt no capítulo IX "O declínio do Estado-nação e o final dos direitos do homem" de As origens do totalitarismo, quando ela se referiu à situação dos apátridas europeus durante o período entreguerras, que simplesmente já não podiam exercer ou mesmo exigir direitos fundamentais, "inerentes a cada pessoa pelo simples fato de ser uma pessoa", perante qualquer corpo político que os reconhecesse, ou seja, perante qualquer Estado. É altamente significativa a conexão que Arendt coloca em evidência entre pertencer a um Estado e a condição de gozar desses direitos, que se tinham apresentado historicamente, em qualquer caso, na letra da lei e no plano conceitual, como universais.3 Certamente, além disso, a expressão que Arendt utiliza no original é extremamente significativa no que diz respeito ao que tenta explicar: os apátridas são, literalmente, pessoas sem Estado (stateless people) e o fato de não pertencer a um Estado equivale, ao mesmo tempo, a ser pessoas sem direito (rightless people).4

Terceira questão: os direitos humanos hoje constituem uma realidade paradoxal, com conotações positivas e negativas. Com efeito, o que podemos observar hoje em relação aos direitos humanos nas arenas políticas locais, nacionais, regionais e internacional é um processo por vezes consecutivo, mas por vezes também paralelo, de auge e queda, ou do que poderia se entender, em outras palavras, de legitimação e de deslegitimação.

Nesse sentido, os direitos humanos foram objeto principalmente de duas fortes críticas:

1) Por um lado, a deformação decorrente do uso abusivo de seus fins próprios, como, por exemplo, o fato de servir de justificativa para guerras ou intervenções militares em seu nome. Essas críticas são reforçadas por posições políticas tanto de esquerda (que vê nos direitos humanos, nesses casos, um instrumento de dominação dos poderes hegemônicos) quanto de direita (que, por vezes, associa os direitos humanos a um instrumento de luta das forças da esquerda). Este tipo de crítica refere-se, então, a uma desnaturalização dos direitos humanos - o que necessariamente nada tem a ver com sua natureza intrínseca, mas sim com um uso distorcido de seus propósitos declarados.

2) Por outro lado, a forte crítica que provém do campo acadêmico e intelectual, atacando os fundamentos e a própria natureza dos direitos humanos, na medida em que os concebe como dispositivo fictício das formas políticas modernas ou de captura e modalização da vida humana. O que faz com que a vida seja configurada de certa forma, impedindo a livre virtualidade de suas formas. Essas críticas foram formuladas pela chamada filosofia pós-moderna e, em particular, no âmbito do debate sobre a biopolítica. Nessa linha, inscreve-se, evidentemente, a crítica de Foucault, mas também as de Giorgio Agamben, Roberto Esposito, Antonio Negri, Gilles Deleuze, Slavoj Žižek e Jacques Rancière, com as especificidades e as diferenças de cada um deles.5

É então levando em conta essa configuração paradoxal dos direitos humanos na arena política atual que gostaria de abordar a questão dos direitos dos governados na produção foucaultiana. A fim de explorar a possibilidade de propor uma reabilitação ou uma nova legitimação dos direitos humanos, que considere as críticas que, em alguns casos, têm sido razoavelmente dirigidas a eles, mas que possa pensá-los, ao mesmo tempo, a partir de suas potencialidades como estratégia, como instrumento de emancipação e como uma arma de luta e criação políticas na arena contemporânea, tanto em nível local ou interno de cada Estado, bem como regional e internacional.

 

3. Os direitos dos governados em Foucault e a distinção com os direitos do homem/ direitos humanos (droits de l'homme)

A noção de direitos dos governados em Foucault deve ser enquadrada na questão mais ampla da política. A meu ver, podem-se distinguir duas noções ou duas imagens diferentes da política em Foucault: uma noção que está ligada à análise que o filósofo propõe do paradigma da biopolítica e da governamentalidade, onde a política aparece totalmente ligada aos dispositivos do governo da vida que fazem com que a vida adote uma forma particular e impedem que ela se desenvolva de outra maneira; e uma noção em sentido contrário, que vincula a política ao exercício da resistência e às práticas de liberdade por meio das práticas de si e dos outros como governo de si e dos outros, que conduz à criação e à produção de formas de vida a partir de nossos próprios desejos e nossas próprias ideias.6 Os direitos dos governados, em Foucault, como estratégia política, surgem então na inflexão dessas duas noções da política. Ao mesmo tempo, a produção de direitos em seu pensamento constitui um exemplo particularmente claro, que permite relacionar suas ideias com suas posições de militante.

Em relação à distinção entre as duas figuras dos direitos do homem/direitos humanos e dos direitos dos governados, Foucault fala expressamente dela em várias ocasiões, especialmente desde o final dos anos 1970 até sua morte. O filósofo afirma que a primeira noção é dependente da governamentalidade (gouvernementalité), enquanto a segunda é a afirmação ou reivindicação da independência dos governados a respeito dela. Assim, afirma que os direitos do homem/direitos humanos e os direitos dos governados implicam duas concepções absolutamente heterogêneas da liberdade. Em particular, defende a necessidade de produzir direitos dos governados como a cristalização jurídico-política das lutas sociopolíticas, criticando a figura dos direitos do homem/direitos humanos. A seguir, vou retomar e analisar os momentos mais importantes desse percurso.

Como Michel Senellart aponta na "Situação dos cursos" das aulas no Collège de France de 1978 e 1979, Segurança, território, população, Nascimento da biopolítica, é por referência ao movimento de dissidência soviética que Foucault teoriza pela primeira vez, em novembro de 1977, o direito dos governados (Senellart, 2004, p. 384), que julga "mais preciso" e "mais historicamente determinado" que os direitos do homem/direitos humanos, em nome da "legítima defesa perante os governos" (Foucault, 1994a, pp. 362 e 364)7.

Especificamente, Foucault afirma essas ideias em relação ao caso Klaus Croissant. Croissant é o advogado da Fração do Exército Vermelho (Rote Armee Fraktion-RAF), acusado de cumplicidade com seus clientes e proibido de exercer sua profissão na República Federal da Alemanha. Ele se refugia na França em 11 de julho de 1977 e pede asilo político. Senellart explica que, em 18 de outubro, três líderes da RAF, em prisão desde 1972 em Stuttgart, são encontrados mortos em sua cela. Em 19 de outubro, como medida de represália, membros do grupo assassinam o presidente do patronato, Hanns-Martin Schleyer, sequestrado em 5 de setembro (Senellart, 2004, p. 385). Em 24 de outubro, a justiça francesa se pronuncia sobre Croissant que, por conseguinte, é enviado à prisão de La Santé e extraditado em 16 de novembro para a República Federal da Alemanha. Nesse dia Foucault participa da manifestação diante da prisão e assume uma posição firme a favor do reconhecimento do direito de asilo de Croissant. Dedica-lhe artigos e entrevistas, incluindo o publicado em Le Nouvel Observateur, nº 679, de 14-20 de novembro de 1977, sob o título Será que Klaus Croissant vai ser extraditado?, onde apresenta, entre outras noções, pela primeira vez, a dos direitos dos governados em oposição à dos direitos do homem/direitos humanos.

Mas, para melhor compreender a crítica de Foucault aos direitos do homem/direitos humanos e sua proposta dos direitos dos governados é necessário recuar um pouco no tempo e retomar uma das consequências fundamentais que ele destaca em relação à emergência do paradigma da biopolítica. No capítulo V "Direito de morte e poder sobre a vida" de A vontade de saber, Foucault afirma que uma das consequências fundamentais da biopolítica consistiu na reviravolta decisiva produzida pela norma às expensas do sistema jurídico da lei, que levou a colocar a vida do homem no centro das expressões jurídicas.

Desta maneira, Foucault afirma que o direito à vida, ao corpo, à saúde, à felicidade, à satisfação das necessidades,

o "direito", acima de todas as opressões ou "alienações", de encontrar o que se é e tudo o que se pode ser, esse "direito" tão incompreensível para o sistema jurídico clássico, foi a réplica política a todos esses novos procedimentos de poder que, por sua vez, também não fazem parte do direito tradicional da soberania (Foucault, 1995, p. 191).

Por conseguinte, em certo sentido, os direitos do homem do final do século XVIII e do século XIX (e logo, poderíamos acrescentar, os direitos humanos, embora a distinção seja problemática em Foucault pelas razões já explicitadas) podem aparecer como a manifestação, segundo ele, da biopolítica e, então, da imbricação fundamental que, em sua opinião, acontece entre a vida e o poder na modernidade. Se assumirmos que essa é a posição defendida por Foucault na passagem citada (como é, aliás, por outros pensadores da chamada filosofia pós-moderna, em particular, Agamben), então os direitos do homem e os direitos humanos não passam de uma ficção ou um dispositivo de captura da vida pelo poder.

No entanto, não podemos deixar de sublinhar certa ambiguidade nas palavras da passagem citada. Certamente, a interpretação depende sobretudo do sentido que podemos atribuir à expressão réplica política (réplique politique) a todos esses novos procedimentos de poder. Se entendermos essa expressão como a consequência necessária do surgimento do paradigma da biopolítica, então só poderemos concluir que o direito, em todas as declinações indicadas (à vida, ao corpo, à saúde, à felicidade, à satisfação das necessidades etc.), que coincidem com algumas das expressões dos direitos do homem/direitos humanos e, por conseguinte, os próprios direitos do homem/direitos humanos, só apareceria como um conjunto de dispositivos que desenvolvem, reproduzem e reforçam esse paradigma. Mas, se entendermos a réplica política como uma reação ao surgimento do paradigma biopolítico em termos de confronto ou resistência, então o direito (em todas as declinações indicadas), e os direitos do homem e os direitos humanos, apareceriam como uma instância de resistência e de exercício de contrapoder ao paradigma biopolítico.

A ambiguidade assinalada quanto ao sentido e ao significado que podemos atribuir à expressão réplica política é reforçada pelo paralelismo que Foucault estabelece entre a vida e o direito no trecho citado. Assim como a vida se excede a si mesma, também o direito pode se exceder a si mesmo. E assim como nas lutas políticas da modernidade avançada, a vida se voltou contra o sistema que tentava controlá-la (ou seja, a biopolítica), também o direito pode, eventualmente, em alguns casos, se voltar contra a biopolítica, contrariando seu papel legitimador e de co-implicação com esse paradigma ao permitir a tradução de reivindicações ou demandas como a vida, o corpo, a saúde, a felicidade, a satisfação das necessidades (em uma palavra, como resume Foucault, o encontro com "tudo o que se é e tudo o que se pode ser") em formulações jurídicas (direito à vida, direito ao corpo, direito à saúde etc.). Ao longo do capítulo V de A vontade de saber, ao destacar "os movimentos da vida", quando Foucault se refere às pressões pelas quais esses movimentos e os processos da história interferem mutuamente (fenômeno que chama de bio-história) e, sobretudo, no trecho citado, ao afirmar que a vida sempre escapa também das técnicas biopolíticas que a dominam e a administram e que, portanto, não foi possível integrá-la exaustivamente a elas, ele afirma a possibilidade da resistência ao poder mediante a oposição entre a vida e a vida que o poder produz. O que aparece nessa formulação foucaultiana é, para dizê-lo mais especificamente, a potencialidade da vida como resistência ao poder. Seguindo essa mesma formulação, o direito pode então ser entendido como réplica política, como um exercício de resistência à biopolítica e como a possibilidade de produção de formas jurídicas diferentes daquelas que legitimam o paradigma biopolítico. Por esta via, Foucault abre o caminho à produção de direitos a partir da imanência de uma situação concreta de luta, embora certamente aqui Foucault não fale de direitos do homem/direitos humanos ou direitos dos governados.

Em vários momentos dos cursos de 1978 e 1979, Foucault desenvolve sua crítica dos direitos do homem/direitos humanos destacando que eles são expressão da governamentalidade. Porém, novamente, enquanto Foucault critica esses direitos, ele não descarta a possibilidade de produzir direitos a partir do exercício de resistências e contrapoderes perante a racionalidade governamental. Mas, nesses casos, ele prefere falar de direitos dos governados como expressão do exercício de resistência ao biopoder.

Justamente nesses cursos, Foucault afirma a ideia de direitos dos governados, onde ela aparece ligada à ideia de autonomia da ação política em relação ao paradigma da governamentalidade. Assim, Foucault apresenta os direitos dos governados como a afirmação ou a reivindicação da independência dos governados no que diz respeito à governamentalidade liberal, em oposição aos direitos do homem, que são dependentes dela. Foucault levanta essa distinção com o propósito de afirmar que, no nascimento da racionalidade do governo liberal, no final do século XVIII, convergem duas concepções diferentes, heterogêneas, mas não contraditórias, para compreender a limitação interna da racionalidade governamental liberal. Essa limitação da nova razão governamental foi produzida por duas vias, baseadas em dois elementos diferentes: o direito e a própria prática governamental. A primeira via, de natureza dedutiva e axiomática, tem suas raízes na experiência revolucionária francesa do final do século XVIII. Enquanto a segunda, indutiva e residual, toma como referência o critério da utilidade do utilitarismo inglês. As duas vias, a revolucionária francesa e a do radicalismo inglês, constituem em direito a regulação do poder público e implicam duas concepções heterogêneas da lei e da liberdade.

Com efeito, para a via revolucionária, a lei será concebida como a expressão da vontade coletiva que manifesta a parte de direito que os indivíduos aceitaram ceder e aquela que pretendem manter. Pela via radical, a lei será concebida como o efeito de uma transação que vai dividir, por um lado, a esfera de intervenção do poder público e, por outro, a esfera da independência dos indivíduos. Esta distinção na forma de conceber a lei conduz, por sua vez, a uma distinção na forma de conceber a liberdade: a via revolucionária afirmará que cada indivíduo possui originariamente, para si, uma certa liberdade da qual vai ceder ou não uma parte determinada na forma de direitos fundamentais, enquanto a via radical entenderá a liberdade a partir da independência dos governados a respeito dos governantes. É por isso que Foucault afirma que estamos aqui diante de duas concepções absolutamente heterogêneas da liberdade, compreendidas, respectivamente, a partir dos direitos do homem e dos direitos dos governados.

Ambos os sistemas têm, portanto, uma origem histórica diferente e implicam uma heterogeneidade essencial. Essas afirmações supõem uma tese forte a respeito da função do direito e da liberdade na formação das sociedades modernas ocidentais e da racionalidade governamental liberal, que implica afirmar que os atuais direitos humanos têm suas raízes na racionalidade liberal. E ainda mais, que hoje, cada vez que esses direitos são invocados, entra em jogo a ambiguidade que marca sua origem: a de ser devedores de um paradigma, de um lado, e de outro, a de mobilizar tanto o sistema dos direitos do homem, dependente da doutrina dos direitos naturais modernos, como o sistema de independência dos governados a respeito dos governos.

Ao afirmar essa heterogeneidade, Foucault não está argumentando que se trata de sistemas separados, incompatíveis ou excludentes, mas sim que há uma conexão incessante entre os dois. Na verdade, o que ele propõe aqui diz especificamente respeito ao núcleo central de sua análise do curso de 1979: analisar as conexões que permitiram articular a axiomática dos direitos do homem e o cálculo utilitário da independência dos governados como ambiguidade fundamental que caracteriza o liberalismo europeu do século XIX e mesmo do século XX e sua racionalidade governamental como república fenomenal dos interesses em termos de princípio de troca e critério de utilidade.

Por isso Foucault retoma este ponto crucial da ambiguidade, que caracteriza a figura dos direitos do homem desde seu nascimento, na análise da virtualidade e das potencialidades desses direitos no mundo atual como direitos humanos a partir de uma lógica estratégica de conexão do heterogêneo (em oposição a uma lógica dialética de homogeneização do contraditório). Isso o leva então a argumentar em Nascimento da biopolítica, que o problema atual do que é chamado de direitos humanos,

bastaria ver onde, em que pais, como, sob que forma são reivindicados, para ver que, de vez em quando, trata-se de fato da questão jurídica dos direitos do homem e, no outro caso, trata-se dessa outra coisa que é, em relação à governamentalidade, a afirmação ou a reivindicação da independência dos governados (Foucault, 2004, p. 43).

Os direitos dos governados apresentam-se, assim, sob a lógica estratégica de conexão do heterogêneo, justamente como uma estratégia, isto é, como uma ferramenta e, sobretudo, como uma arma política e jurídica para lutar contra a governamentalidade contemporânea em termos de inversão da ordem estabelecida ou de via de criação de outro sentido ou de outro estado de coisas.

Seguindo essa concepção dos direitos dos governados e a heterogeneidade fundamental da figura dos direitos do homem/direitos humanos, Foucault volta a falar deles na entrevista com o filósofo Farès Sassine para a revista Na Nahar al'arabî wa addûwalî publicada em Paris, a propósito de sua posição em relação à revolução iraniana, em agosto de 1979. O texto da entrevista aparece em árabe e pela primeira vez na língua original, na revista Rodéo, em 2013. Na verdade, Foucault fala aqui especificamente de direitos do homem/direitos humanos a partir da questão de Sassine por referência ao que tinha afirmado contra as primeiras ações do governo revolucionário em sua carta aberta ao primeiro-ministro iraniano Mehdi Bazargan (Lettre ouverte à Mehdi Bazargan) e no artigo É inútil revoltar-se? (Inutile de se soulever?), de abril e maio de 1979, onde responde a algumas críticas que lhe foram dirigidas em relação aos levantes iranianos de 1978. A partir das primeiras execuções de opositores e das medidas repressivas do novo regime, em sua carta aberta Foucault afirma que há limites, ou seja, leis e direitos, que os governos não podem ignorar. Entre esses limites, ele coloca os direitos do homem/direitos humanos. Então Sassine, retomando essa posição afirmada por Foucault, questiona o alcance do universal que esses direitos supõem, bem como outras noções que Foucault havia levantado a respeito dos levantes iranianos do ano anterior, especialmente as de vontade e espiritualidade política. Foucault enfatiza aqui que os direitos do homem/direitos humanos não existem como universais, mas que eles têm uma história, uma parcialidade histórica. Pelo contrário, Foucault afirma que o que é universal é "a necessidade de que haja direito" (il faut qu'il y ait du droit) porque se um direito não for oposto ao governo, se um direito não for oposto aos mecanismos e dispositivos do poder, então, ele conclui, o governo ou o poder "irão infalivelmente se descontrolar, nunca se conterão" (Sassine, 2014; Nívoli, 2016, pp. 74-75). Portanto, Foucault define aqui os direitos do homem/direitos humanos (e é necessário sublinhar que está a pensar antes no que está tentando definir nesse momento como direitos dos governados) como a "forma universal nunca definida em uma forma específica que é aquilo com o qual pode-se marcar um limite a um governo" (ce avec quoi on peut marquer un gouvernement...) [um limite é reconstruído a partir do significado da frase original] (Sassine, 2014; Nívoli, 2016, p. 76.).

Na mesma linha, a ideia dos direitos dos governados também aparece em um texto a favor dos prisioneiros políticos, redigido pelo próprio Foucault em Genebra, em 1981, e publicado sob o título de Face aos governos, os direitos humanos (Face aux gouvernements, les droits de l'homme). Certamente o título do texto faz menção aos direitos humanos. É altamente improvável que Foucault incluísse tal menção e que ela tenha sido feita pelo editor de Libération, onde o texto foi publicado em 30 de junho-1 de julho de 1984, após a morte de Foucault. Mas também é provável que o próprio Foucault pudesse aceitar esse título como estratégia política, na medida em que o texto foi efetivamente escrito para obter o maior número de adesões possíveis e pretendia se tornar uma nova "Declaração dos Direitos Humanos", o que constituía uma denominação altamente significativa para todo o mundo. Ora, no próprio texto, Foucault nunca fala de direitos humanos, mas de direitos dos governados, o que lhe permite defender sua posição de produção de direitos desde a própria imanência da luta política sem cair nas armadilhas da noção transcendental de direitos humanos com todas as falsidades que ela implica. Onde funda Foucault esses direitos dos governados? Na própria imanência da espontaneidade da luta política, do ato de resistência, da revolta. No texto, esse ato de resistência é caracterizado por Foucault com base em três princípios: a cidadania internacional, o direito absoluto de se levantar contra os poderes e o direito dos governados de intervir efetivamente nas políticas e nas estratégias internacionais, infringindo assim a divisão de tarefas tradicionais da governamentalidade moderna entre governos e governados que reserva aos governados o papel de uma indignação que sempre permanece lírica.

Foucault certamente também fala explicitamente de direitos humanos, em um trecho da entrevista "Michel Foucault: 'A experiência moral e social dos poloneses não pode mais ser apagada'", publicada em Les Nouvelles littéraires, nº 2857, em outubro de 1982, na qual ele os apresenta como os limites para todos os governos possíveis.

Esse significado que ele atribui aos direitos humanos corresponde claramente à sua noção de direitos dos governados e a menção explícita responde a uma pergunta do entrevistador. Nesse sentido, quando o jornalista insiste na possibilidade de considerar os direitos humanos como uma grelha que permita avaliar qualquer situação política evitando transigir com esses direitos, Foucault retoma sua crítica aos direitos do homem/direitos humanos como aqueles que estão vinculados a uma racionalidade universal capaz de fornecer critérios de ação em todas as situações possíveis (Foucault, 1994d, p. 349).

Ora, é preciso dizer que a noção de direitos dos governados não está isenta, em nenhum caso, de problemas teórico-filosóficos quando as demandas políticas ou os atos de resistência aos poderes são formulados em termos de direitos, ou seja, em termos de expressões jurídicas como direitos. Se em Foucault a imanência da luta política permite produzir direitos, sempre que se pretenda que um objeto seja formulado em termos jurídicos como uma expressão de direito, como um direito, não se poderia evitar um plano de transcendência próprio deste âmbito. Isso significa que sempre que se pretenda constituir reivindicações políticas (ou mesmo sociais, culturais ou econômicas) em termos de direitos, estaremos obrigados a apelar a uma dimensão transcendente que define o direito como tal, pelo menos como ele é conhecido até hoje com esse nome (ius), a partir de um critério que define todos os elementos possíveis e eventuais de um conjunto (lei ou ordem jurídica). A menos que queiramos ver nisso a expressão de algo diferente de um direito no sentido jurídico tradicional. Mas então, nesse caso, em minha opinião, seria preferível usar um termo diferente de direito, uma vez que ele está carregado com demasiada história e demasiadas conotações específicas. No entanto, essas observações dizem respeito apenas a um problema teórico-filosófico que não afeta em absoluto a potência efetiva da noção de direitos dos governados proposta por Foucault.

Finalmente, talvez deva ser dito que a noção de direitos dos governados está ligada no pensamento foucaultiano à de novo direito, que Foucault apresenta em 1976, no curso Em defesa da sociedade. O novo direito, em Foucault, é uma noção que remete à possibilidade da criação ou da produção de direitos a partir da resistência aos poderes e que, consequentemente, se opõe tanto ao papel do direito no paradigma do poder soberano (o direito associado com à legalidade), bem como o que o direito realiza sob o paradigma da normalização (o direito normalizado-normalizador).

Infelizmente, essa noção não teve continuidade na produção foucaultiana. Mas, em todo o caso, e retomando os casos subsequentes em que Foucault se pronuncia por referência ao direito (entre outros, a respeito das prisões, dos prisioneiros, da justiça judicial, da abolição da pena de morte, da cidadania internacional), tratar-se-ia de um novo uso, no sentido de uso inverso ou contra-uso, do direito formal e burguês como estratégia de contrapoder.

A expressão novo direito aparece na aula de 14 de janeiro de 1976, como uma noção que se refere, como diz Márcio Alves da Fonseca, a um âmbito de práticas, mas também a um âmbito teórico, que estaria liberado ao mesmo tempo dos mecanismos da normalização e do que Foucault chama de "princípio da soberania" (Alves da Fonseca, 2011, p. 238). Sobre este ponto, nesta aula, Foucault diz concretamente:

Para dizer a verdade, para lutar contra as disciplinas, ou melhor, contra o poder disciplinar, na busca de um poder não disciplinar, não é na direção do antigo direito da soberania que se deveria ir; seria antes na direção de um direito novo, que seria antidisciplinar, mas que estaria ao mesmo tempo liberto do princípio da soberania (Foucault, 1997, p. 35).

Não devemos esquecer o contexto em que essa noção é formulada: o curso em que Foucault se encontra a meio caminho entre o contraste do paradigma soberano e do modelo da sociedade de normalização e os prolegômenos ao paradigma da biopolítica. No entanto, considero que essa noção de novo direito como resistência aos poderes também pode ser pensada no contexto amplo da governamentalidade, formulada dois anos depois.

 

4. Quais seriam as potencialidades e o alcance dos direitos dos governados como estratégia política de resistência aos poderes, baseada na crítica e como prática da liberdade e que relação essa noção mantém com a de direitos humanos?

Chegados a este ponto, gostaria de retomar esta pergunta que fiz no início do artigo e respondê-la. Para dar minha resposta, vou retomar os diferentes pontos que acabo de desenvolver.

É preciso ressaltar que Foucault entende os direitos dos governados como um exercício da política como criação ou produção de modos de vida ou formas de subjetivação e de formas de mundo, em um gesto que não é só subjetivo, mas intersubjetivo, baseado em três pilares: a resistência, a crítica e a liberdade. Nesse sentido, lembremos que Foucault afirma explicitamente em É inútil revoltar-se? que "ao poder, é preciso sempre opor leis intransponíveis e direitos sem restrições", que em O que é a crítica? (1978), define a crítica como a vontade de não ser governado e que entende a liberdade como pressuposto da vida e não como consequência dos poderes ou como uma permissão concedida. Justamente, a ideia foucaultiana de liberdade consiste em afirmar que, uma vez que existe liberdade, existem relações de poder e não o contrário. Foucault vai então propor a noção de práticas de liberdade como o exercício da liberdade como resistência aos poderes na relação que o vivo mantém consigo mesmo, o que lhe permite se tornar sujeito de sua própria existência.

Além disso, é necessário levar em conta certas críticas levantadas pelos filósofos pós-modernos sem renunciar, no entanto, completamente aos direitos humanos. É realmente surpreendente que, em alguns casos, como em Agamben em particular, não se compreenda a virtualidade estratégica desses direitos quando é necessário recuperar a bíos ou a vida qualificada evitando a livre disposição da zōē, em contextos como, por exemplo, os genocídios, os extermínios, as migrações, o terrorismo ou as chamadas situações de exclusão social. Ao mesmo tempo, é necessário reconhecer às formas do humano uma base de igualdade, que não significa de forma alguma homogeneidade, o que requer, no entanto, um retrabalho permanente das configurações que essas formas podem assumir. Para tanto, o uso específico e estratégico dos direitos humanos pode ajudar a superar as críticas levantadas e, em particular, oferecer uma resistência à biopolítica e à governamentalidade neoliberal ou tornar valiosa uma vida que é concebida sem valor em uma situação determinada.

Nesse sentido, pode-se pensar em uma eventual utilização da noção de novo direito, no sentido proposto por Foucault, em termos de resistência e de prática de liberdade dos governados como réplica política à biopolítica e à governamentalidade (como ele enfatiza ambiguamente no capítulo V de A vontade de saber), que é apresentado como um incitamento à ação e à imaginação a partir das situações e dos desafios específicos que devemos enfrentar. Resta, no entanto, a dúvida quanto à formulação desses novos direitos em uma espécie de universalidade sem lei como produto da imanência da própria situação, como indiquei no ponto anterior. É isso realmente um problema ou apenas uma questão de consistência teórica? De qualquer maneira, o desenvolvimento dessas questões que se oporiam às formulações de direitos com base no modelo histórico da transcendência da lei com o qual o direito foi criado no Ocidente, abre caminho para novas linhas de pesquisa e novos desafios.

Em suma, levando em conta os elementos que acabo de apontar, a meu ver, o que Foucault entende por direitos dos governados e o que hoje podemos chamar de direitos humanos podem muito bem constituir uma estratégia política de resistência aos poderes de nossas democracias atuais e, neste sentido, de construção dessas democracias, mas com a condição de nos voltar conscientes das armadilhas a que nos podem conduzir as formas tradicionais dos direitos humanos e seu uso abusivo em situações específicas.

 

Referências

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1 Este artigo constitui uma divulgação de resultados parciais de minha pesquisa no Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Técnica (CONICET) da Argentina e na Universidade de Buenos Aires (UBA). Da mesma forma, o artigo retoma algumas das ideias apresentadas em Derechos del hombre/derechos humanos versus derechos de los gobernados: un análisis de la producción de derechos en el pensamiento de Michel Foucault, em Dorsal. Revista de Estudios Foucaultianos, nº 7, dezembro de 2019, CENALTES/UCM, Viña del Mar, Chile, e em apresentações em reuniões científicas realizadas nos últimos dois anos.
2 Cf., em particular, os casos Verdugo Urquídez (1990) e Álvarez Machaín (1992) (Corte Suprema dos Estados Unidos) ou Avena e outros nacionais mexicanos (México contra Estados Unidos) (Corte Internacional de Justiça, 2004) ou, em termos gerais, os requisitos impostos, cada vez mais, pela União Europeia para a realização efetiva desses direitos no que diz respeito às pessoas que não pertencem à união. Esses são apenas alguns dos exemplos da referência à noção conceitual de direitos do homem sob a expressão direitos humanos que podem ser constatados atualmente.
3 Também é importante sublinhar que enquanto Arendt se refere prioritariamente aos direitos do homem (rights of Man), também usa, indistintamente, a expressão direitos humanos (human rights) para se referir a eles. Além disso, ela faz uma referência concisa e cética às "muitas tentativas recentes para dar forma a uma nova declaração de direitos" que estavam sendo elaboradas em instâncias internacionais. Seria injusto exigir que Arendt pudesse discernir as duas noções em um momento em que o próprio conceito de direitos humanos estava se formando e, portanto, ainda não estava consolidado. Sua posição é compreensivelmente cética em relação a essas iniciativas. Por isso, pode-se afirmar que quando se refere a esses direitos, seja sob a expressão direitos do homem, seja sob a de direitos humanos, está sempre pensando em termos da noção de direitos do homem.
4 Arendt (1994, pp. 267-302), ponto II The Perplexities of the Rights of Man do capítulo IX The Decline of the Nation-State and the End of the Rights of Man. Por outro lado, o âmbito específico ou efetivo dos direitos do homem foi objeto de discussão desde o seu surgimento no final do século XVIII. Basta lembrar a famosa discussão entre Edmund Burke e Thomas Paine. O limite efetivo da realização dos direitos defendido por Burke contra a pretensão universalista da posição de Paine baseada nos benefícios da doutrina dos direitos naturais, parece ter sido resolvido de forma brutal na situação descrita e analisada por Arendt no capítulo citado de As origens do totalitarismo. Cf. Burke, E. Reflections on the Revolution in France and the Proceedings in Certain Societies in London Relative to That Event in a Letter Intended to Have Been Sent to a Gentlemen in Paris, 1790 e Paine, T. Rights of Man, 1791-1792.
5 Essas críticas aparecem especificamente em Agamben (1995), Deleuze (1988), Esposito (2002), Foucault (2004 e 1995), Negri e Hardt (2000), Rancière (2004) e Žižek (2005).
6 Sobre este ponto, cf. Raffin (2018).
7 Salvo indicação em contrário, a tradução é própria.

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